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Evandro Milet: Empreendedores e inovadores sofrem desde sempre no Brasil

Com a perseguição e arbitrariedades por parte de vários membros de diversos governos, no fim da vida o Barão de Mauá era um homem rico, mas tinha perdido quase todos os negócios

Nascido nos pampas gaúchos, Irineu Evangelista de Souza, o Barão de Mauá, em 1874, aos 61 anos, publicava em jornais europeus anúncios prometendo prêmios aos inventores de algum método de conservar a carne, até que encontrou um: cozinhar no vapor. Criou com isso uma fábrica de carne em conserva de grande sucesso. 

Era um inovador compulsivo já ligado no que chamamos hoje de inovação aberta com desafios lançados. Costumava ler os jornais das principais capitais do mundo e publicações de engenharia, finanças e manuais de produtos de alta tecnologia da época - locomotivas, motores a vapor, teares, fornos siderúrgicos, produtos químicos, aparelhos de precisão.

Era também um empreendedor serial. No dia 22 de junho de 1874, Mauá assistiu dom Pedro II enviar mensagens ao Papa e à Rainha da Inglaterra, inaugurando as transmissões telegráficas entre o Brasil e o resto do mundo, utilizando o cabo submarino, em projeto capitaneado por ele. No início do século 19, entre a Inglaterra e o Brasil, uma carta e sua resposta demoravam cinco meses. Com o telégrafo, a comunicação passou a ser imediata antes do fim do século, uma mudança exponencial.

Vinte anos antes, em 25 de março de 1854 Mauá provocara outra revolução. Chamou à rua a população da cidade do Rio de Janeiro e mandou acender os lampiões. Era sua a empresa que pela primeira vez iluminava a cidade. 
Órfão de pai, Mauá começou a trabalhar com nove anos de idade na empresa comercial do tio no Rio de Janeiro. Aprendeu tudo, tornou-se depois o principal executivo e partiu para voo solo. 

A fuga de dom João VI para o Brasil em 1808, provocada pelas incursões de Napoleão em Portugal, foi escoltada por navios ingleses. A partir daí a Inglaterra teve uma forte atuação na economia local. Mauá percebeu as oportunidades, aprendeu a falar fluentemente a língua e criou pelo menos 17 empresas instaladas em 6 países com sócios ingleses, franceses, norte-americanos e brasileiros. Entre elas: bancos no Brasil, Uruguai, Argentina, Estados Unidos, Inglaterra e França; estaleiros no Brasil e no Uruguai; três estradas de ferro no interior do Brasil; a maior fábrica do país, uma fundição que ocupava setecentos operários; uma grande companhia de navegação; empresas de comércio exterior; mineradoras; usinas de gás; fazendas de criação de gado; fábricas variadas. 

Das indústrias saiam inovações: engenhos de açúcar movidos a vapor; pontes de ferro; canhões para os navios de guerra; navios a vapor completos; fornos siderúrgicos e bombas de sucção.
Em 1867, o valor dos seus ativos era 20% maior que o orçamento do Império.

Mas sua vida de empresário não foi fácil. Travou grandes embates com dom Pedro II e seus ministros e perdeu vários. Pedro II também gostava de novidades. Estudou mais de uma dezena de línguas(do tupi ao sânscrito), conhecia paleontologia, estudava matemática, física e química e correspondia-se com sábios de muitos países. Mas a semelhança acabava aí. Seu interesse era teórico e Mauá era um empreendedor. Mas com isso gerava muito ciúme e inveja. O lucro era um problema. A filosofia da livre iniciativa que mudava o mundo não chegara por aqui. Enquanto a elite brasileira odiava as ousadias do barão, paparicava estrangeiros com as mesmas ideias. 

Com a perseguição e arbitrariedades por parte de vários membros de diversos governos, no fim da vida ele era um homem rico, mas tinha perdido quase todos os negócios, deixara de ser aquele que chegou a pensar em resolver os problemas do país por sua própria conta, mas deixava um legado inestimável de empreendimentos.

Inovação, ousadia, parcerias, empreendedorismo e globalização foram características das ações do barão de Mauá, muito bem retratadas no livro ”Mauá, empresário do império” de Jorge Caldeira, e que não diferem das características necessárias aos empreendedores de hoje.


Luciano Huck: Escutar, pactuar e agir - Sugestões para 2021

Muitas vidas teriam sido salvas se as autoridades tivessem ouvido mais os doentes, os profissionais de saúde e aqueles que trabalham em serviços essenciais

O ano de 2020 foi violento. Da porta para dentro de casa, um liquidificador de angústias, ansiedades, incertezas, reflexões profundas sobre valores e prioridades. Da porta para fora, toda sorte de maluquices, ataques à ciência, à democracia e às liberdades, desorganização total, mortes em números de zona de guerra.

Não cabe aqui nem minimizar nem varrer para debaixo do tapete a maior crise sanitária da história. Vivemos o mais doloroso evento para a humanidade desde a II Guerra no ano que passou. Isso fica ainda mais especialmente grave neste momento em que os números de casos e mortes voltam a se acelerar no Brasil.

Tenhamos consciência de que a vacinação, quando finalmente chegar, não nos fará esquecer tanto sofrimento. O ano de 2020 foi também de aprendizados e exercícios valiosos. Fez frutificar a solidariedade e multiplicar as redes de apoio. Reforçou a fé da sociedade na cooperação humana e na democracia. Mostrou a importância do Estado, na forma do SUS e na competência dos profissionais da saúde. Revelou a excelência de nossos cientistas e pesquisadores. Confirmou a capacidade das pessoas e das empresas de se desdobrarem para tocar a vida adiante, com engenho e determinação.

Essas lições igualmente vão ficar para sempre. Tenhamos isso em mente. Em 2020, o planeta foi forçado a parar. Em 2021, precisaremos, de algum jeito, forçá-lo a voltar a girar. Tal oportunidade é valiosa demais para aproveitá-la com os mesmos pensamentos, as mesmas idiossincrasias, as mesmas atitudes. Não podemos mudar o nosso passado, mas somos livres para escolher o nosso futuro.

Tenho conversado com muitos pensadores atuais, pessoas capazes de iluminar o pós-pandemia, e deles tirei sugestões para 2021, que vou resumi-las em três ensinamentos-convites que gostaria de compartilhar aqui.

O primeiro desses ensinamentos-convites é o de escutar. Escutar quem não tem sido ouvido. Escutar quem estudou. Escutar quem pensa diferente de você.

Minha carreira de comunicador foi construída prestando atenção no que os outros têm a dizer, em suas histórias, em suas dificuldades, sacrifícios e lições de vida. Nestes vinte anos rodando pelos quatro cantos do Brasil, em razão do meu trabalho na TV, tomei o pulso da realidade de um país potente, mas ainda vergonhosamente desigual. Aprendi muito com a nossa gente e continuo a aprender. Nosso povo tem muito a ensinar — sobretudo a quem se acha dono da verdade. Apurar os ouvidos é transformador. Se você escutar de verdade, não vai ter como ignorar os problemas que existem nem as propostas mais robustas e consequentes que surgem para enfrentá-los. Leva a gente a perceber que a realidade nada tem de binária.

Voltemos à pandemia. Era a chance de o poder público escutar com atenção os doentes e suas famílias. De ouvir os profissionais de saúde, os cientistas e todos aqueles que trabalham em serviços essenciais. Era hora de focar em quem foi mais impactado pela crise, em quem mais colaborou para solucioná-la. Muitas vidas teriam sido salvas se nossas autoridades tivessem ouvido mais essas pessoas.

Agora tomemos a questão da Amazônia. Se é fundamental escutar os alertas urgentes e os registros aflitivos da ciência e da meteorologia, também é importante ouvir as necessidades e privações das pessoas que vivem na região e de lá tiram o seu sustento. Qualquer programa de bioeconomia só será realmente sustentável na região das florestas quando houver um entendimento entre diferentes pontos de vista — ou seja, se for feito um encontro de ideias entre ambientalistas, produtores rurais e povos tradicionais, sem descartar ninguém que aja no marco da lei.

Então o segundo ensinamento-convite que proponho é o de juntar as pessoas, reunir as melhores ideias e buscar consensos. Tem muita gente decente no Brasil com vontade genuína de contribuir para fazer um país melhor. Uns dirão que isso é utópico, que as lutas (de classes?) do dia a dia jamais permitirão convergências. Conversa fiada — tão conveniente àqueles, aliás, que prosperam justamente com o imobilismo.

Exemplos não faltam de políticas públicas pactuadas e executadas a várias mãos, do Plano Real ao Bolsa Família, do SUS à Lei Maria da Penha. Em 2019, bem antes da pandemia, eu defendi num seminário no centro financeiro de São Paulo a urgência de o Brasil atacar a nossa abissal desigualdade socioeconômica. Tinham me dito que a plateia farialimer torceria o nariz para a defesa de um programa de renda mínima. Pois aconteceu o contrário. Na vida, os bons exemplos arrastam — e, no trato da questão pública, precisa ser assim também.

O terceiro convite para 2021 nasce dessa disciplina de escutar e de buscar entendimentos. É o imperativo de agir. Temos de tirar do papel as boas ideias. A curiosidade somada à iniciativa e à capacidade de execução pode mover montanhas. Numa conversa recente, a historiadora Anne Applebaum fez para mim a defesa de um reagrupamento político e da instalação de uma contranarrativa com o objetivo de deter os extremos antidemocráticos. Um chamado que considero irresistível e que conta com ventos a favor. Amém!

Nas últimas eleições municipais, as capitais e as maiores cidades rejeitaram inapelavelmente a polarização política. E agora na Câmara desponta a frente multipartidária mais ampla das últimas décadas. É gente diferente unida por um mesmo propósito: nada mais poderoso.

Neste momento tenso da história do Brasil, cheio de instabilidades, é normal que especulações e interpretações equivocadas apareçam por todos os lados. Existe uma vontade pessoal minha de atuar na construção de um futuro mais próspero e justo para a nossa sociedade. Essa vontade já é bastante notória. Venho procurando exercê-la de maneira constante e intensa por meio do diálogo, do mapeamento e da divulgação de boas práticas. Todos os meus passos em 2020 foram dados à luz do dia, sempre em caráter apartidário e pessoal. Divulguei informações sobre a pandemia com responsabilidade e frequência na TV e nas minhas redes sociais — mais de 30 milhões de pessoas impactadas semanalmente.

Contribuí para erguer pontes entre a iniciativa privada e comunidades desassistidas — da distribuição porta a porta de álcool em gel e kits de higiene até cestas básicas.

Participei do grupo de criação da União Rio, de inúmeras iniciativas com a Central Única das Favelas, procurando assim auxiliar financeiramente quem mais sofreu com os efeitos da pandemia na saúde e na economia.

Abri uma escuta permanente para aprender, apoiar e viabilizar iniciativas inclusivas e antirracistas — de um piloto de distribuição de renda não bancarizada em Alagoas à oferta de um intensivo digital e gratuito para inscritos do Enem no Rio Grande do Sul.

Tentei também contribuir dando protagonismo e reconhecendo vozes das periferias e do Brasil profundo, as quais conheço bem, presto atenção, ouço e com quem apreendo há mais de duas décadas viajando pelo país.

Puxei para o debate público brasileiro mais de uma dúzia de pensadores internacionais que, de alguma forma, podem inspirar nossos caminhos pós-Covid — de economistas que estudam a desigualdade, como Esther Duflo e Thomas Piketty, a referências da tecnologia e da inclusão digital, como Nandan Nilekani e Peter Diamandis.

Como cidadão, tento contribuir com meu país até onde minha voz alcança. Consciente da violência, dor e desfuncionalidade do ano que passou, concluí que preciso ir além em 2021. E quero chamar mais gente para avançar: escutando, pactuando e agindo.

Numa de suas tantas letras maravilhosas, um dia Caetano Veloso escreveu que “coragem grande é poder dizer sim”. A gente precisa de um país mais eficiente e afetivo, em que as pessoas tenham o direito de sonhar e as oportunidades não sejam determinadas pela cor da pele ou pelo CEP de nascimento. Uma nação com mais formaturas e menos funerais.

Temos de arregaçar as mangas das nossas camisas, pisar firme no chão da realidade e elaborar um projeto de nação que faça o Brasil liderar agendas globais.

É urgente trabalhar para ser a maior potência agroindustrial sustentável do planeta. Uma economia verde admirada, capaz de produzir e preservar, mas também de extinguir a miséria e combater com rigor as nossas enormes desigualdades.

Para isso, nós teremos de nos mexer, de unir favela e asfalto, campo e cidade, conectando Brasília ao mundo. Tal desafio só será possível se nossas lideranças reconhecerem a necessidade de fazer concessões em nome do bem comum. Pois nada acontecerá por geração espontânea.

Somos muitos. Podemos muito. Aqui estão algumas sugestões para juntos construirmos o futuro próximo do Brasil. Feliz 2021!

*Luciano Huck é apresentador de televisão e empresário

Publicado em VEJA de 13 de janeiro de 2021, edição nº 2720


BBC Brasil: 'Tribalismo masculino' - a seita violenta ligada ao 'viking' em invasão ao Congresso dos EUA

Um homem branco, musculoso e tatuado com o torso nu, a cabeça envolta por chifres e pelos de bisão, o rosto pintado com as cores da bandeira dos EUA e as pernas cobertas por tecido leve e da cor da pele se tornou o ícone da invasão à sede do Congresso dos Estados Unidos, na quarta-feira (06/01). Ele não era o único vestido assim

Ricardo Senra, BBC Brasil em Londres

Mas o que pareceu para muitos uma estratégia isolada para chamar atenção de fotógrafos também pode guardar as ideias de um movimento com objetivos contraditórios, radicais e violentos — da ode ao confronto físico e à guerra ao ódio contra mulheres, gays e suas conquistas por direitos iguais na sociedade.

Quem explica é a antropóloga brasileira Rosana Pinheiro-Machado, professora da Universidade de Bath, no Reino Unido, que pesquisa a masculinidade e dedicou parte de suas leituras recentes ao chamado "tribalismo masculino", ou "masculinismo".

"O princípio dos grupos tribalistas masculinos, ou masculinistas, é primeiro um ódio às mulheres, uma ideia de que as mulheres são objetos para reprodução humana simplesmente. Muitos dos grupos masculinistas norte-americanos defendem que as mulheres têm que ser caçadas, literalmente, e que nós só servimos para reprodução", diz.

Para os adeptos, a vestimenta "tribal" funcionaria como uma espécie de elogio aos primórdios da humanidade, antes de consensos globais em torno de paz, igualdade, direitos humanos e conquistas de mulheres e grupos LGBTQs.

As primeiras referências acadêmicas ao grupo surgiram há décadas, mas se tornaram mais frequentes nos anos 2000, graças a debates em fóruns anônimos e na deep web.

Desde 2016, ano de eleição de Donald Trump, essas ideias vêm ganhando força em meio a uma complexa teia de novos grupos impulsionados por negacionistas da ciência e teorias de conspiração, como a chamada alt-right, ou "direita alternativa", e, mais recentemente, o QAnon (veja mais abaixo).

Caça e guerra

Além do exemplo que ficou famoso, outros manifestantes trumpistas desfilaram visuais "tribalistas".

Um deles foi fotografado vestindo algo semelhante a uma pele de urso sob um retrato de Charles Sumner, importante senador que defendeu a abolição da escravidão no século 19. Na mão esquerda, o militante segurava um cajado. Na direita, um escudo policial.

"Os masculinistas não acham que a mulher tenha um papel na sociedade, eles são mais extremos. Os cristãos nos EUA veem um papel nas mulheres de cuidar da família. Os masculinistas as odeiam."

Como acontece em outros grupos sociais, o termo engloba um universo heterogêneo de adeptos. Em comum a todos os grupos, conta a professora, há "um elogio ao tipo de homem viril que se acredita ter sido perdido nas últimas décadas".

"Eles reivindicam uma virilidade da caça, da guerra. Alguns são mais religiosos, outros não são. Há grupos que se identificam com romanos, com espartanos. Outros, por exemplo, reivindicam uma estética viking, ou se identificam com grupos indígenas norte-americanos, como no caso do sujeito de Washington, que estava com uma roupa de bisão norte-americano", explica Pinheiro-Machado.

"Roupas de couro, corpo tatuado, isso perpassa a todos", diz.

"É um universo que remete à conquista, à invasão, a capturar mulheres para estuprar, botar em cativeiro para reprodução, em um cenário totalmente distópico em que os homens precisam estar entre homens para resgatar sua virilidade perdida."

Perigo

Entre os principais riscos associados ao grupo, a professora destaca como "mais evidente, preocupante e imediato a violência contra as mulheres".

"O feminicídio é inspirado na ideia de posse de mulheres, que é um fenômeno que sempre existiu, mas que é estimulado por um contexto político", diz.

"Outra consequência imediata é a perseguição de pessoas que estudam gênero e sexualidade, como a professora Lola (Aronovich, da Universidade Federal de Fortaleza) e a Debora Diniz (das universidades de Brasilia e Brown, nos EUA)."

Ambas são vítimas de constantes ataques e ameaças online vindas de grupos radicais identificados com masculinistas brasileiros, alguns investigados pela polícia.

Muitos vídeos associados a tribalistas circulam há anos também em português — algo que se tornou mais frequente, segundo a professora, desde a eleição de Jair Bolsonaro, em 2018.

Em um dos filmes, um homem vestido de gladiador surge sobre um cavalo dizendo que o Brasil precisa se livrar de "ameaças comunistas e feministas".

Em outro, um paulista com roupas que imitam gregos de Esparta pede que homens lutem por sua virilidade.

Em fóruns abertos, grupos de brasileiros vão além e chegam a defender abertamente estupros e assassinatos de mulheres.

QAnon

Após ter fotos estampadas em jornais no mundo inteiro, o homem que viralizou após a invasão de ao congresso dos EUA em meio aos debates para a certificação da eleição de Joe Biden foi identificado em redes sociais.

"Para onde vamos, vamos todos", frequentemente abreviado como "WWG1WGA!" (em inglês) é um dos slogans mais populares do QAnon
Legenda da foto,"Para onde vamos, vamos todos", frequentemente abreviado como "WWG1WGA!" (em inglês) é um dos slogans mais populares do QAnon

Conhecido como "Q Shaman", Jake Angeli, de 32 anos, vive no Arizona e é um conhecido influencer (influenciador, em inglês) da extrema-direita americana.

Vestindo sempre referências a povos tradicionais indígenas dos EUA ou a vikings, ele já foi fotografado militando em protestos a favor de Donald Trump — ou fazendo oposição em atos organizados por grupos como o Black Lives Matter.

Nas redes, ele se tornou um dos porta-vozes do movimento QAnon, uma teoria conspiratória ampla e completamente infundada que diz que o presidente Trump estaria travando uma guerra secreta contra pedófilos e adoradores de Satanás do alto escalão do governo, do mundo empresarial e da imprensa.

Seus apoiadores vaticinam que esta luta levará a um dia de ajuste de contas, em que pessoas proeminentes, como a ex-candidata presidencial Hillary Clinton, serão presas e executadas.

Adeptos do movimento impulsionam hashtags e coordenam ataques aos que consideram inimigos — políticos, celebridades e jornalistas que eles acreditam, sem qualquer prova, estar encobrindo pedófilos.

Não são apenas mensagens ameaçadoras online: vários apoiadores do movimento foram presos após fazerem ameaças ou tomarem medidas concretas na "vida real".

Em um caso notável em 2018, um homem fortemente armado bloqueou uma ponte sobre a Represa Hoover. Mais tarde, Matthew Wright se declarou culpado de uma acusação de terrorismo.

Anti-gays que fazem sexo com homens

página de dicionario em ingles com o texto: "Uma pessoa, de qualquer gênero, que ama homens, ou que é atraída sexualmente por homem"

O principal ícone dos tribalistas masculinos ou masculinistas é o americano Jack Donovan, autor de livros e vídeos reproduzidos milhões de vezes online.

Segundo Pinheiro-Machado, Donovan e seus seguidores ilustram o eixo mais extremo dos masculinistas.

"Não se consideram gays, mas mantém relações sexuais com homens. isso é um aspecto paradigmático e extremo dos masculinistas", diz.

"Há uma devoção e um amor à estética masculina", continua a professora. "Mas a interpretação de uma identidade gay ou homoerótica seria um sinal de fraqueza. Então, é um ato sexual bruto em devoção a esse corpo que é a própria imagem. Mas sem associar isso ao feminino ou a uma identidade LGBTQ."

Em seu livro Androfilia (2006), Donovan faz ataques à cultura gay e a associa a "inimigos da masculinidade". Ao mesmo tempo, ele classifica seu desejo por homens como uma "defesa a um ideal masculino".

As teses do autor são descritas por críticos como preconceituosas e ameaçadoras, especialmente para homens gays que não têm perfis hipermasculinos — ou são descritos como "afeminados".

Segundo Matthew Lyons, um dos autores do livro Key Thinkers of the Radical Right (Pensadores-chave da Direita Radical, em tradução livre), publicado em 2019 pela editora da Universidade de Oxford, o tribalismo masculino de Donovan também parte do princípio de que gênero seria algo "natural e imutável" — em oposição direta à existência de pessoas transexuais.


Bolívar Lamounier: Estados Unidos e Brasil num mesmo espelho

Temos na Presidência figura tão despreparada, ignorante e atrabiliária como Donald Trump

A invasão do Congresso americano, na última quarta-feira, por baderneiros a mando de Donald Trump foi a pior agressão às instituições americanas desde o macarthismo (de Joseph McCarthy, senador por Wisconsin) nos anos 1950.

Muito pior, porque o macarthismo era “apenas” um anticomunismo histérico, ao passo que o intento de Trump foi (quiçá ainda seja) se manter no poder por meio de um golpe de Estado, em claro desrespeito aos procedimentos institucionais do país. Brechas para tanto, em meu modesto entendimento, existem. A combinação norte-americana de voto direto e indireto (este no colégio eleitoral) é uma aberração, um arcaísmo concebido no século 18, que já devia ter sido extirpado há muito tempo. Vendo-se e reconhecido pelo mundo como um modelo político exemplar, os Estados Unidos nunca cogitaram de uma reforma política séria, o que até se pode entender, dada a riqueza e a virtual invulnerabilidade internacional do país durante mais de dois séculos. Fato é, não obstante, que a ascensão à presidência de um indivíduo despreparado e atrabiliário trouxe para a luz do dia os defeitos do sistema.

Em 1967 o cientista político Anthony Downs propôs deixar de lado a visão histórica autocondescendente dos americanos, substituindo-a por um lastro teórico mais sólido. Seu argumento, na verdade, era bem simples. Diferentemente dos países influenciados pela Europa, a política americana nunca foi permeada por enfrentamentos ideológicos. Seu sistema partidário sempre foi balizado por duas grandes organizações: democratas e republicanos. O sistema de governo presidencial completa o quadro. Um candidato que pretenda ser realmente competitivo tem de adotar uma plataforma convergente, moderada, sob pena de se isolar numa ponta minoritária. Tal argumento refletia fielmente o ocorrido em 1964, quando o senador sulista Barry Goldwater pretendeu encarnar uma posição direitista veemente e foi massacrado pelo moderado Lyndon Johnson.

Acontece que Goldwater, com todos os defeitos que se lhe possam atribuir, não ia além do conservadorismo sulista; não se apresentava como portador de uma ideologia sem pés nem cabeça, como a “supremacia branca” de Donald Trump. E era, digamos assim, um político normal, não um bilionário de Nova York. Por essas e outras razões, penso que as feridas abertas por Trump não cicatrizarão tão cedo.

O caso brasileiro é muito mais grave que o americano. No que toca ao curto prazo, não há muito a dizer. Temos na Presidência da República uma figura tão despreparada, ignorante e atrabiliária como Trump. O Congresso tem se saído algo melhor que o esperado, mas o custo fiscal é elevado, como sempre foi. E o Judiciário (entenda-se o Supremo Tribunal Federal) parece cada vez mais empenhado em combater o combate à corrupção.

Numa perspectiva mais dilatada, o problema é que o sistema político brasileiro é incapaz de impulsionar o crescimento da economia e o aumento do bem-estar. Claro exemplo disso é o sistema de ensino. O atual governo já está em seu quarto ministro da Educação, e todos eles, como diriam os teatrólogos, passam pela cena sem dizer palavra.

O acoplamento do sistema presidencial a essa grande ameba partidária é, com certeza, a pior invenção política de que temos notícia nos tempos modernos. No sistema presidencial, o Executivo não dispõe de meios legítimos para forçar um Legislativo recalcitrante a aprovar reformas sabidamente necessárias; e o Legislativo, por sua vez, não tem como destituir um chefe de governo que careça da estatura exigida pelo cargo, a não ser pelo procedimento do impeachment, sabidamente complexo, demorado e perigoso. O impeachment não é sequer remotamente comparável, sob esse ponto de vista, ao voto de não confiança, próprio do sistema parlamentarista.

Tivéssemos cabeça, nós nos abalançaríamos a uma reforma política séria, cuja pedra angular haveria de ser a implantação do sistema parlamentarista de governo. Escusado frisar que o debate sobre sistemas de governo, sistemas eleitorais e demais peças político-institucionais não é monopólio de Brasília. Sendo, como são, reformas estruturantes, com impacto generalizado e duradouro sobre a sociedade, devem contar com toda contribuição relevante que o País possa mobilizar de fora para dentro, muito além da classe política.

Outra precaução importante é não repetirmos o erro de 1993, quando submetemos tais matérias a uma consulta popular plebiscitária. Cabe aqui o ensinamento do liberal gaúcho Joaquim Francisco de Assis Brasil (presidencialista, por sinal). Destacando a superioridade da busca da racionalidade no sistema representativo “em sua elaboração completa” e a falta dela no “simples plebiscito”, ele esclarece que o sistema representativo combina a pressão popular com a possibilidade “da discussão metódica, necessária para o completo esclarecimento dos assuntos, para a possível modificação do próprio modo de propor o objeto a resolver, e até para acentuar a responsabilidade das opiniões e dos seus portadores”.

*Sócio-diretor da Augurium Consultoria, é membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências


El País: Brasil chega a 200.000 mortes na pandemia com SUS sob pressão

País enfrenta um cenário difícil com doença mais uniforme entre as regiões enquanto a estratégia de vacinação segue imersa em dúvidas. Atrasos em testes e na atualização de prontuários turvam análise

Beatriz Jucá e Jorge Galindo, El País

O Brasil supera a dura marca de 200.000 mortes pela covid-19 em sua contagem oficial com um cenário nebuloso pela frente. O país está prestes a entrar na sazonalidade que favorece a circulação de vírus respiratórios e espera um repique pelas aglomerações das festas de fim de ano enquanto se vê imerso em uma série de obstáculos para iniciar a vacinação e ainda não tem uma política efetiva para frear os contágios mesmo com a iminência de uma variante do coronavírus mais transmissível. É neste cenário que o país conta, nesta quinta-feira, 200.498 mortes por coronavírus durante a pandemia e 7,96 milhões de casos ―mais de 87.000 deles registrados nas últimas 24 horas, um pico. Se no início da crise sanitária algumas regiões emanavam maior preocupação no país continental, a situação agora é grave nas mais diversas regiões. Nos últimos meses, o Brasil viu o vírus se espalhar pelo seu território de forma mais uniforme e agravar, por exemplo, a situação em regiões ao sul, que inicialmente tinham mais fôlego pela baixa concentração de casos e agora sofrem com seus sistemas de saúde abarrotados.

Depois de atingir os primeiros 100.000 mortos oficiais pela covid-19, em agosto, o Brasil não registrou picos agudos de mortes por covid-19 como nos primeiros meses da crise. A estratégia brasileira focou basicamente em uma gestão de leitos por prefeitos e governadores, que decidiam ampliar ou reduzir as medidas restritivas frequentemente conforme os dados locais. Em geral, só iniciativas pontuais de restrição circulação foram novamente impostas de agosto para cá, algumas delas só com a intervenção da Justiça, como em Manaus. Medidas para rastrear casos e de fato tentar frear os contágios não foram implementadas como uma política pública robusta. As mortes por covid-19 foram distribuídas em um espaço maior de tempo, mas o Brasil nunca chegou a conseguir controlar de fato a pandemia. Foram mais de 200.000 mortes registradas oficialmente desde março, data do primeiro óbito. Cerca de metade delas a cada cinco meses de pandemia no país.

Mas a perda humana de uma das maiores crises sanitárias pode ser ainda maior. O excesso de mortes já havia ultrapassado 200.000 em relação à média de anos anteriores em meados de novembro, segundo dados do Conselho Nacional de Secretários Estaduais de Saúde (Conass). Além disso, o sistema do Governo Federal que registra hospitalizações e mortes por covid-19, o Sivep-Gripe, indicava nesta quarta-feira, dia 6, as cifras de 187.800 óbitos confirmados e outras 80.000 mortes por síndrome respiratória aguda grave (uma complicação da covid-19 e de outras síndromes gripais) não especificadas, nas quais podem estar incluídos casos de coronavírus não registrados por exame por motivos que vão de problemas da coleta à dificuldades de detecção pelo teste laboratorial. A Vital Strategies —uma organização global composta por especialistas e pesquisadores com atuação junto a Governos— já alertou sobre a possibilidade de casos omissos sob a justificativa de que a OMS determina que casos em que os pacientes apresentaram três ou mais sintomas clínicos de covid-19 deveriam ser diagnosticados como suspeitos. O Ministério da Saúde tem dito que os casos são revisados e só depois incluídos no sistema de monitoramento.

Soma-se a isso a demora nas notificações e o represamento de dados que pesquisadores brasileiros têm ressaltado neste momento, quando a demanda por internação hospitalar de infectados pelo coronavírus voltou a crescer em diversos Estados. Isso porque, com a base de atendimento lotada, as fichas demoram a ser preenchidas e notificadas no sistema federal, atrasando a cadeia de dados. O cenário ainda é influenciado pelo represamento durante os feriados de fim de ano, quando tanto laboratórios quanto hospitais atuaram com equipes reduzidas, em regime de plantão.

Pandemia interiorizada

Se antes havia uma ampla concentração nas populosas capitais e cidades metropolitanas, o interior do país já está marcado pelo avanço do vírus e enfrenta a pandemia com sistemas de saúde mais frágeis. O mais recente boletim epidemiológico do Ministério da Saúde, com dados até o dia 26 de dezembro, mostra que 56% das novas mortes por covid-19 na referida semana já se concentravam em cidades do interior. Esta interiorização da mortalidade é observada desde setembro, quando a concentração de mortes começou a se equiparar entre estes dois perfis.

Em vários Estados, gestores trabalham para tentar ampliar leitos de UTI, mas agora enfrentam maiores desafios para contratar profissionais da saúde, exaustos pelo trabalho na linha de frente ao longo de meses. O Amazonas ―Estado onde já se ventilou a teoria de ter chegado a uma imunidade de rebanho sem vacina e a um preço alto de mortes― vive uma nova onda preocupante. O próprio ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, já afirmou que o Amazonas está caminhando para as proporções do ano passado. E o governador Wilson Lima tem dito que trabalha contra o tempo para abrir mais leitos hospitalares, transformando espaços administrativos em hospitais em salas com leitos clínicos e as de leitos clínicos em terapia intensiva. Lá, a Justiça determinou maiores restrições após o Governo relaxar medida sob pressão de comerciantes e empresários.

Em um contexto em que os vizinhos da América Latina já reagem à alta de casos de covid-19 com novas restrições, o Brasil segue inerte. E parece repetir a mesma posição errática do começo da pandemia. A guerra política entre o presidente Jair Bolsonaro e o governador João Dória na corrida por uma vacina geraram um clima tenso no país, embora, nos últimos dias, há uma pequena sinalização de trégua, com a decisão do Ministério da Saúde de comprar a vacina paulista desenvolvida com os chineses, a Coronavac. O Governo Federal enfrenta pressão da sociedade, de governadores e até da Justiça para antecipar uma estratégia nacional de imunização depois de atrasos nas negociações tanto de vacinas quanto de insumos. O Governo de São Paulo está na iminência de pedir a autorização para uso emergencial à Anvisa da Coronavac e promete começar a vacinar grupos prioritários no dia 25 de dezembro. Enquanto isso, o Governo Bolsonaro corre contra o tempo para tentar iniciar a vacinação antes. Prometeu começar cinco dias antes de São Paulo, no dia 20 de janeiro. Os cronogramas sobre o quantitativo de vacinas que devem estar disponibilizadas nos postos nos próximos meses ainda não estão definidos.

“A gente lamenta, mas a vida continua”

Já o presidente Jair Bolsonaro segue com declarações que põem em xeque a segurança de vacinas em um momento em que a confiança na ciência é fundamental para garantir uma campanha de vacinação ampla. Especialistas têm sido categóricos ao dizer que a estratégia de imunização é coletiva e que, para chegar à almejada proteção, é preciso que a maioria da população receba os imunizantes. Mesmo que a vacinação comece nas últimas semanas de janeiro, os meses seguintes deverão ser de muito trabalho para garantir esta cobertura vacinal. Mesmo os que receberem a vacina deverão seguir os cuidados como distanciamento e uso de máscara, já que há um tempo até o corpo desenvolver uma resposta imune e a maioria das vacinas necessita de duas doses para uma proteção admissível.

Numa mudança de tom, o Ministério da Saúde emitiu nota de pesar pelas vítimas da pandemia. Assinada pela pasta, o informe expressa solidariedade aos familiares que perderam seus entes queridos e diz fazê-lo em nome do presidente. Pazuello também falou pela primeira vez em “guerra” total contra a doença, que deve estar acima “das ideologias”. “O Ministério da Saúde está trabalhando incansavelmente, acompanhando pesquisas científicas e reforçando diálogos entre o Brasil e outros países para garantir vacinas seguras e eficazes à população”, prometeu o ministério. Já Bolsonaro, em uma transmissão ao vivo nas redes sociais, voltou a questionar os dados sobre mortes, falando que pessoas morreram “com” covid-19, como se fosse possível separar as causas. “A gente lamenta hoje, estamos batendo 200 mil mortes. Muitas dessas mortes com covid, outras de covid, não temos uma linha de corte no tocante a isso aí. Mas a vida continua...”

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O Globo: 'O Brasil é dos únicos países que conseguem em um único dia vacinar 10 milhões', diz Temporão

Sanitarista José Gomes Temporão destaca papel do SUS para impedir uma situação ainda mais grave e diz que sociedade deve lutar por campanha de vacinação abrangente

Paula Ferreira, O Globo

BRASÍLIA — A esperança para se responder com eficiência à pandemia vem do Sistema Único de Saúde (SUS) e da ciência brasileira, impulsionada por instituições centenárias como a Fiocruz e o Instituto Butantan. A opinião é do ex-ministro da Saúde do governo Lula, o sanitarista José Gomes Temporão. À frente da pasta durante a pandemia de H1N1, em 2009, ele frisa que a saúde pública brasileira vem evitando uma catástrofe ainda maior no país.

A saída da crise, ele diz, depende de o governo federal "deixar os servidores da Saúde trabalharem". Temporão critica a falta de conhecimento do ministro Eduardo Pazuello, e afirma que, diante da falta de comando no Ministério da Saúde, criou-se uma "autoridade sanitária informal", constituída por especialistas e gestores de outras esferas, para dar conta da emergência sanitária.

— Se o governo federal finalmente chamar os sanitaristas, epidemiólogos, os técnicos e cientistas do Programa Nacional de Imunização (PNI) e entregar a eles a condução e a coordenação do esforço de vacinação, nós teremos sucesso. É um momento crítico, porque temos até agora praticamente 20 milhões de pessoas vacinadas no mundo e, no Brasil nenhuma.

O país tem 200 mil mortos e especialistas criticam as estratégias do Ministério da Saúde. O que tem evitado um cenário ainda pior?

A saúde pública do Brasil é muito respeitada, inclusive internacionalmente. Havia expectativa de que enfrentássemos a situação poupando o maior número de vidas possível. Mas, infelizmente, uma série de obstáculos e opções nos levaram a essa situação dramática de 200 mil mortes. O SUS, de um lado, tem uma fragilidade por conta dos últimos dez anos, de redução de políticas, estratégias e financiamento. Com a aprovação da Emenda Constitucional nº 95 pelo Congresso, em 2016, houve uma redução real dos gastos federais. A pandemia, então, encontra o sistema numa situação de fragilidade, de desfinanciamento. Mas, por outro lado, ele se organizou, ao longo de 32 anos, em base habitacional, aumentou muito a cobertura. O SUS enfrenta esta crise sanitária entre uma fragilização mais conjuntural e uma fortaleza mais estrutural. Os 200 mil óbitos mostram que fomos derrotados por esse vírus, mas, sem o SUS, seria uma situação de barbárie social, o caos total. Isso é fato.

Por quê?

O SUS mostrou muita resiliência. A estratégia brasileira está centrada, de maneira equivocada, na organização do sistema hospitalar de atendimento. E esta é uma doença na qual o monitoramento, a testagem ampla, a detecção das pessoas sintomáticas e o seu isolamento reduzem a probabilidade de que se espalhe e haja muitas internações. Mas, desde o início não tivemos liderança. É a situação mais grave por que passa o Brasil em toda a sua História e não se pode enfrentá-la sem coordenação do governo federal e sem contar com a ciência e a saúde pública. O presidente rejeitou a ciência, ridicularizou as medidas de prevenção, criou uma falsa dicotomia entre saúde e economia. Não houve plano de comunicação para a sociedade. A crise foi enfrentada apesar do governo.

Como se deu o enfrentamento "apesar do governo"?

Com governadores, prefeitos, sanitaristas, infectologistas, imunologistas, instituições da área de saúde pública, da sociedade civil, parlamentares construindo o que eu chamaria de uma autoridade sanitária nacional informal. E o epílogo patético e constrangedor é a maneira trágica como o governo vem lidando com a vacinação. É nossa última oportunidade de tentar consertar todos os equívocos cometidos anteriormente, organizar uma campanha de vacinação nacional, liderada pelo PNI, visando atingir no prazo mais curto possível uma alta cobertura vacinal. E não temos plano, projeto, liderança, vacinas, seringas, nada.

Que medidas o senhor destaca dessa “autoridade sanitária informal”?

O governo federal abriu mão do único papel que tem, e que é extremamente importante, de coordenação, planejamento estratégico, suporte, assessoria, apoio a estados e municípios, diálogo, transparência e mobilização da a sociedade. Os governadores e prefeitos tiveram que se virar, adquirir respiradores, testar, organizar equipes, mobilizar profissionais de saúde. E não só sem apoio do governo federal como contra a postura anticientífica, desmobilizadora, de negação da realidade. Essa responsabilidade é intransferível. Eu, com 70 anos de idade e 45 de saúde pública, espero ver os verdadeiros culpados pagarem pelo que fizeram com a população.

E é preciso acrescentar a essa autoridade sanitária informal as instituições de ciência e tecnologia que, mesmo com expectativa de redução de mais 70% do orçamento, fazem com que o Brasil lidere os estudos clínicos de duas das mais importantes vacinas em termos globais, uma pelo Instituto Butantan e outra pela Fiocruz. São instituições centenárias, que conseguiram fazer isso porque têm autonomia. Só poderemos ter campanha de vacinação nos próximos meses por causa delas.

É possível confiar na experiência do PNI para imunizar os brasileiros?

Se o governo deixar de atrapalhar... O ministro da Saúde não entende nada, não é respeitado nessa área, foi posto no ministério como um interventor. Se o governo federal finalmente decidir chamar os sanitaristas, epidemiólogos, os técnicos e cientistas do PNI e entregar a eles a condução e a coordenação do esforço de vacinação, nós teremos sucesso. É um momento crítico, porque temos até agora praticamente 20 milhões de pessoas vacinadas no mundo e, no Brasil, nenhuma.

A omissão do governo federal pode levar estados a organiza suas campanhas de vacinação. Isso quebra uma das pernas do PNI, que é a centralidade. É preciso uma estratégia para vacinar toda a população brasileira ao mesmo tempo, é isso que reduzirá drasticamente a circulação do vírus. Em 2010 vacinamos 80 milhões de pessoas contra a H1N1 em três meses; em 2009, 40 milhões de adultos jovens contra rubéola e a síndrome da rubéola congênita. O Brasil é um dos únicos países do mundo que consegue, em um único dia, vacinar 10 milhões de crianças contra a poliomelite.

Como fazer a campanha?

É preciso uma estratégia de mobilização envolvendo empresariado, setor público e privado, igrejas, ONGs, partidos. Tudo vai depender da velocidade com que a gente faça a campanha de vacinação. Se conseguirmos atingir pelo menos a metade da população até o meio do ano, e é possível, será um sucesso. Os sinais de preocupação vêm da paralisia do governo federal, que está nos levando a um beco sem saída.


Fernando Luiz Abrúcio: Ameaça à democracia será contínua nos próximos 2 anos

Mesmo que por vezes faça recuo táticos, como aliar-se ao Centrão, Bolsonaro nunca abandonou o objetivo final de quebrar o contrato democrático instaurado pela Constituição de 1988

Anteontem foi o dia da vergonha para a democracia americana. Trump tentou dar o primeiro golpe de Estado da história dos Estados Unidos, mas, felizmente, fracassou. Ninguém pode dizer que o assalto ao Capitólio foi inesperado. O trumpismo buscou solapar as instituições democráticas desde sua campanha eleitoral de 2016. A estratégia populista e autocrática foi reproduzida durante quatro anos, sem que tivesse havido uma reação à altura do sistema político. Parece que se caminha para um “happy end”, porém, o custo foi muito alto, e o Brasil precisa aprender com essa experiência.

Bolsonaro idolatra Trump e procura imitá-lo, embora pareça ser ainda mais irresponsável e autoritário, como mostram o descaso com as vacinas e seus elogios à tortura realizada no regime militar. Ou seja, o presidente brasileiro potencializa o que há de pior no seu ídolo, algo que tem um efeito terrível para um país com democracia mais recente e com um desenvolvimento econômico e social bem menor. 

Quando fala que o Brasil terá problemas semelhantes se não for adotado o voto impresso, Bolsonaro anuncia não apenas sua estratégia para 2022. Ele segue uma linha de atuação, adotada desde a eleição de 2018, de solapar continuamente as instituições democráticas, em nome de um populismo autoritário cujo objetivo é destruir a democracia e concentrar o poder em suas mãos. Mesmo que por vezes faça recuo táticos, como aliar-se ao Centrão após a prisão de Fabrício Queiroz, o presidente nunca abandonou o objetivo final de quebrar o contrato democrático instaurado pela Constituição de 1988.

Muitos apontam agora o risco que corremos em 2022. É preciso corrigir essa impressão: a ameaça antidemocrática tem sido cotidiana e será contínua nos próximos dois anos. O sistema político não tem respondido à altura porque as consequências já se fazem presentes num país à deriva, com desesperança na saúde, na economia, na educação e em termos de desigualdade social. Ou os democratas brasileiros reagem logo, ou em 2022, mesmo que Bolsonaro fracasse no golpe, o Brasil já estará em frangalhos. 

*DOUTOR EM CIÊNCIA POLÍTICA PELA USP E PROFESSOR DA FGV-EAESP


Ricardo Noblat: O Brasil não quebrou. Bolsonaro é que não tem conserto

Desabafos de um presidente desorientado

No seu primeiro dia de aparente trabalho em Brasília depois de oito a navegar atrás de golfinhos e a provocar aglomerações sem máscaras em praias paulistas, o presidente Jair Bolsonaro brindou o país com desabafos tão desastrosos que alguns dos seus auxiliares se viram obrigados a tentar consertá-los.

O primeiro deles foi feito diante de um grupo de devotos à entrada do Palácio da Alvorada: “O Brasil está quebrado, chefe. Eu não consigo fazer nada. Eu queria mexer na tabela de imposto de renda. Tem esse vírus potencializado por essa mídia que nós temos aí. Essa mídia sem caráter que nós temos”.

O segundo desabafo veio na sequência e na mesma ocasião: “Então, [o Brasil] é um país difícil de trabalhar. Quando se fala em desemprego, né, [são] vários motivos. Um é a formação do brasileiro. Uma parte considerável não está preparada para fazer quase nada. Nós importamos muito serviço”.

No fim da tarde, no mesmo lugar e em resposta a um devoto que lhe cobrou a promessa de reajustar a tabela do Imposto de Renda para beneficiar os que ganham menos, Bolsonaro disse: “Eu queria mexer na tabela. Mas não esperava esta pandemia. Temos uma dívida de aproximadamente R$ 700 bilhões”.

Se Bolsonaro nada consegue fazer uma vez que o país quebrou no seu colo, por que ele não pede as contas? No começo do seu desgoverno, reconheceu que não nascera para ser presidente. De fato, ao examinar-se sua biografia, pelo visto não nasceu para fazer grande coisa. Não faria falta se renunciasse.

Como militar, Bolsonaro destacou-se como um bom corredor de longas distâncias, acumulando elogios. Mas consta do seu prontuário que acabou afastado do Exército por má conduta. Como deputado federal por quase 30 anos, passou em branco. Uma vez eleito presidente, o que fez até agora que prestasse?

De quem é a culpa pelos problemas que enfrenta e por não saber combatê-los? A acreditar-se no que diz, é da imprensa que só o critica. É da justiça que o tolhe. É do Congresso que não o apoia. Pode ser de parte dos seus ministros, embora ele os tenha escolhido. É da pandemia. Mas dele e dos seus filhos não é.

Ao afirmar que o Brasil está quebrado, o que é uma mentira, Bolsonaro se desculpa pelo que gostaria de fazer, mas não pode. O que não gostaria ou o que não admite como necessário é justamente o que o aconselham a fazer. Como não sabe administrar nem para onde seguir, sua vida é um inferno.

Faltam-lhe conhecimentos para governar. Falta-lhe perfil para ser presidente da República. Falta-lhe disposição para pegar no pesado. Falta-lhe grandeza para reconhecer suas limitações e cercar-se de uma equipe competente. Jamais imaginou que se elegeria, salvo depois da facada. Para completar então…

Põe os problemas dos filhos, educados para ser um espelho do pai, acima dos problemas do país. E por deficiência sua, enxerga o mundo pelos olhos deles. Se os filhos fossem pelo menos os gênios que ele nunca foi, mas não são. O pai nunca os estimulou a estudar e a pensar com liberdade. São bonecos de ventríloquo.

“Alguns falam que ‘não sei quem’ não deixa eu governar. Quisera eu que fosse só um ‘não sei quem’, unzinho só”, queixou-se Bolsonaro no seu último desabafo do dia com a esperança de que seus devotos sintam pena dele. O Brasil não está quebrado, já teve. Seu presidente é que não tem conserto.

Em campo, a “Operação Abafa o que o Presidente Falou”

Os tradutores de Bolsonaro

Roga-se muitas vezes aos brasileiros que não levem a sério tudo o que seu presidente lhes diz. Mas como pedir o mesmo a investidores estrangeiros quando Jair Bolsonaro diz que o Brasil está quebrado e que por isso ele não pode fazer nada?

A “Operação Abafa o que o Presidente Falou” foi deflagrada tão logo os ministros mais próximos de Bolsonaro ficaram sabendo de suas declarações birutas no dia de ontem. Como todas tinham a ver com a economia, o ministro Paulo Guedes saiu na frente.

Guedes talvez seja o melhor tradutor de Bolsonaro. Depois de ouvi-lo, inverte o sentido do que ele disse ou quis dizer. Segundo Guedes, Bolsonaro quis dizer que o governo precisa manter sua credibilidade e respeitar o teto de gastos.

A regra do teto limita o crescimento das despesas públicas à variação da inflação. Guedes a usa como argumento para rejeitar a ideia de ampliar gastos e de prorrogar o auxílio emergencial a trabalhadores informais. Bolsonaro tem horror à regra.

“Não há nenhuma divergência entre nós. Obviamente, o presidente se referiu à situação do setor público”, contemporizou o ministro da economia. Adolfo Sachsida, secretário de Política Econômica de Guedes, festejou a fala de Bolsonaro.

“O que o presidente deu foi uma tremenda declaração em defesa da consolidação fiscal. É um tipo de declaração que mostra para todo o mercado que ele está comprometido não apenas com a agenda de reformas, mas com a de consolidação fiscal”, disse.

Segue o baile.


Pedro Fernando Nery: O que é que a OCDE tem?

Hoje, a organização parece uma rede de informação sobre boas políticas públicas

Brasil entra nesta década com a expectativa de ingressar na OCDE, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico. Nos últimos dias, um de seus diretores pontuou que o ingresso é questão de tempo, e o governo brasileiro afirmou que espera para este 2021 a carta-convite da organização. Em dezembro, a OCDE lançou seu relatório bienal sobre o Brasil – uma competente análise do País que também permite nos comparar com seus 37 países-membros, a maioria de elevado desenvolvimento humano. O que fazemos diferente deles?

Em primeiro lugar, é preciso desmistificar a OCDE como o “clube dos países ricos”. Em décadas recentes, a organização se abriu para países do Leste Europeu, dos Bálticos e da América Latina. O México aderiu em 1994, o Chile em 2010 e a Colômbia em 2020 – a Costa Rica já foi convidada. A entidade parece hoje fundamentalmente uma rede de informação sobre boas políticas públicas. Embora tachada de neoliberal em alguns círculos da academia brasileira, suas (muitas) publicações tratam da inclusão social à mudança climática.

Voltando então ao exercício proposto: como a atuação do Estado brasileiro se compara com a dos países da OCDE? 

O gasto do governo está em linha com a média do bloco (há muitos países que gastam mais, há muitos países que gastam menos). Mas a composição do gasto – e da arrecadação de tributos que o financia – destoa. O gasto com servidores é maior no Brasil. Em especial, é bem maior o prêmio salarial no serviço público (diferença da remuneração em relação a trabalhadores da iniciativa privada) – principalmente para os servidores federais. 

Na composição da carga tributária, na OCDE a tributação direta é maior: em geral tributamos menos a renda e mais o consumo de produtos. Mas o que o relatório da OCDE chama mesmo a atenção é para o aumento ocorrido em anos recentes do gasto tributário no Brasil (renúncia de impostos). A entidade aponta que parte dessas vantagens a contribuintes que deixam de pagar a totalidade dos impostos seria regressiva (beneficia os mais ricos) e deletéria à produtividade da economia. Sugere, assim, que o Brasil promova uma reforma tributária para tornar nosso sistema mais justo e impulsionar a produtividade.

Ainda quanto à produtividade, os países da OCDE são claramente mais abertos ao comércio internacional, e praticam tarifas médias de importação bem menores. As barreiras no mercado de bens também são maiores no tocante à regulação por aqui: no indicador da entidade que mede exigências regulatórias, as nossas parecem excessivas na comparação. As barreiras protegeriam empresas de competição e limitariam o crescimento do PIB do País – além de prejudicarem o poder de compra dos mais pobres.

Já em outras áreas, parece faltar atuação do Estado. Consideremos a mobilidade intergeracional. Aqui se levariam nove gerações para que os descendentes de um cidadão que nasceu entre os 10% mais pobres chegasse à renda mediana do País (em média). Nos países nórdicos do grupo, são até três gerações. O hiato salarial entre homens e mulheres estaria bem acima da média do grupo (quatro vezes maior que o de países como Bélgica e Dinamarca). E patinamos nas chamadas políticas ativas de emprego (treinamento, intermediação de mão de obra) – muito mais robustas naqueles países.

A pobreza é naturalmente maior no Brasil, mas chama a atenção a sua distribuição entre diferentes grupos etários: ela se concentra muito mais nas crianças no Brasil do que na OCDE, que, por sua vez, desprotege mais os idosos. De fato, muitos países ali pagam benefícios para famílias com crianças, universais ou semiuniversais. Já a despesa brasileira com educação não é destoante, mas a sua capacidade de alcançar resultados é.

Ainda, a OCDE é pioneira na avaliação do bem-estar subjetivo das populações, com medida que se aproxima de uma quantificação de “felicidade” – talvez uma alternativa ao PIB como indicador de progresso. O Brasil não vai especialmente bem em nenhum dos componentes pesquisados e seria o pior do grupo quanto à segurança dos cidadãos.

Entrar no “clube dos países ricos” não vai deixar o Brasil rico. Tampouco há uma fórmula de sucesso na organização: mesmo os dados aqui expostos se referem a médias, que em alguns casos escondem grande diversidade entre os membros. Contudo, o ingresso na OCDE pode ajudar o Brasil a paulatinamente incorporar boas práticas em diversas áreas: fica a expectativa do aprendizado de como os países de maior desenvolvimento humano chegaram lá.

*DOUTOR EM ECONOMIA 


Míriam Leitão: O risco maior do ano é interno

O risco do Brasil este ano não é externo, é brasileiro mesmo, diz o economista Alberto Ramos, diretor de pesquisa econômica para América Latina do banco Goldman Sachs. “Não tem vacina e se tivesse não teria seringa”, disse. De fato, a crise aqui está pior do que a do mundo. Nos Estados Unidos a primeira semana do ano começa num alto grau de tensão institucional. Donald Trump transformou eventos que são apenas protocolares em atos tardios da eleição que já perdeu. Na política, a semana começa intensa na disputa da Câmara dos Deputados com o apoio do PT a Baleia Rossi (MDB-SP).

O que nos aflige é que dezenas de países já começaram a vacinar e o Brasil está parado. Ontem, a boa notícia, postada no meu blog por Ana Carolina Diniz, é que a indústria fornecerá 30 milhões de seringas e agulhas. E na próxima semana sairá o edital de 300 milhões de seringas.

— O Brasil tem um problema pandêmico e outro que é endêmico — falou o economista Alberto Ramos, de Nova York, ao jornalista Alvaro Gribel.

O pandêmico será resolvido mais cedo ou mais tarde, quando o país for vacinado. O endêmico é a lentidão das reformas macro e micro e o baixo crescimento crônico.

— A última vez que o Brasil cresceu mais de 3% foi em 2013. Já são quase 10 anos — disse Ramos.

O Congresso começou o ano intensamente por causa da disputa para a presidência da Câmara dos Deputados. Durante a manhã de ontem, vários parlamentares do PT receberam ligações de Baleia Rossi e nessas conversas ficou claro que haveria uma divisão na votação, mas que a maioria ficaria a favor de apoiar a candidatura de centro contra o candidato de Bolsonaro, Arthur Lira (PP-AL). Parlamentares que ouvi contam que o acordo da candidatura de Baleia Rossi com a esquerda não passou pelas reformas, mas sim nos pontos de defesa institucional e autonomia do legislativo. Contudo, a reforma tributária já havia sido discutida antes. A esquerda quer, com toda razão, que a estrutura de impostos seja mais progressiva e por isso pediu aumento de impostos sobre heranças e cobrança de tributos sobre lucros e dividendos. E isso foi incluído no projeto.

Da perspectiva do mercado, o Brasil teria que aprovar este ano ainda a reforma administrativa, apesar de Alberto Ramos considerar que a proposta do governo “deixou muita gente de fora”. A reforma tributária ele define como “minimalista”. A do governo, de fato, é. A proposta é apenas a unificação de PIS e Cofins:

— Há um grau de frustração muito grande com as reformas que não avançam e o conteúdo deixa a desejar. A da previdência deixou de fora os estados e municípios e manteve privilégios dos militares.

Ele acha que o Brasil pode crescer 3,8% este ano, grande parte por efeito estatístico da queda do primeiro semestre do ano passado. Mas o país tem chance de se beneficiar do cenário externo porque a vacina pode virar o jogo na recuperação econômica do mundo, os preços das commodities estão em alta, os estímulos monetários e fiscais de vários governos continuam. O problema brasileiro é que a pandemia agravou muito a crise fiscal e as respostas são fracas.

Nos Estados Unidos, o mercado já olha para o governo Biden, que começará no dia 20. Segundo Ramos, no curto prazo o presidente democrata significa mais atividade, porque haverá mais estímulo. A médio prazo, pode representar mais impostos e mais regulação. Mas ele disse que, sem expressar preferência política, o mercado reagiu bem à vitória de Biden porque Trump gerava ruído com o resto do mundo.

Os Estados Unidos deveriam estar vivendo agora apenas a formalidade da transição, mas está numa crise. O estarrecedor telefonema do presidente Donald Trump para o secretário de Estado da Georgia, Brad Raffensperger, que o jornal “Washington Post” divulgou, mostra como o país mais poderoso do mundo democrático está nesses últimos dias do governo Trump a um passo do abismo institucional. Trump queria que a autoridade estadual fraudasse a eleição. Ontem, analistas estavam avaliando, segundo o “Post”, se Trump violou as leis da Georgia. Ora, ele violou as regras básicas da democracia. Os Estados Unidos viveram, nestes quatro anos, tantos absurdos que ainda têm dúvidas se esse caso viola ou não a lei. Esse é o risco no Brasil de Bolsonaro. O país se acostumar com a anomalia institucional.


Marcus André Melo: Da governabilidade à democracia

O debate institucional brasileiro sofreu inflexões nas últimas três décadas

As análises sobre o arranjo institucional brasileiro sofreram várias inflexões nas últimas décadas. Embora tenha dinâmica própria, elas acompanharam o debate público mais amplo e refletiram a conjuntura.

A primeira década da democracia foi marcada por uma frustração coletiva avassaladora. O país viu a hiperinflação, planos macroeconômicos fracassados, e um impeachment presidencial.

O diagnóstico era de que o país institucional era ingovernável devido à combinação de presidencialismo, multipartidarismo, federalismo robusto, e partidos fracos. A debilidade do sistema partidário seria produto da adoção da representação proporcional com lista aberta e pela ação desorganizadora dos interesses regionais/locais.

O dilema seria, portanto, que presidentes sem sustentação parlamentar eram incapazes de aprovar a agenda do Executivo. A era FHC, no entanto, pôs em xeque o diagnóstico, e a agenda de pesquisas mudou. Os poderes do presidente —como as medidas provisórias, iniciativa exclusiva ou controle da agenda congressual— foram vistos como facilitadores da aprovação de agendas. O Congresso não se revelou obstáculo à agenda do executivo.

Mas as pesquisas passaram a mostrar que o gerenciamento das coalizões é variável chave: a governabilidade depende do compartilhamento do poder com os membros das coalizões, cada vez mais necessária dada a fragmentação partidária crescente. E que o equilíbrio que permite que esta solução não degenere em abuso de poder e corrupção é instável. Elas mostraram também que o judiciário e instituições de controle lato sensu —que se beneficiaram de robusta delegação de poderes e gradativo e inédito fortalecimento organizacional— são cruciais.

O equilíbrio institucional se desfez, dando margem a duas interpretações rivais: 1) a crise teve (tem) raízes institucionais —o presidencialismo multipartidário gera incentivos perversos, corrupção e ingovernabilidade; e 2) a crise resultou das escolhas dos atores políticos em meio a uma tempestade perfeita (exposição avassaladora de corrupção com crise econômica) e ao fortalecimento das instituições de controle lato sensu, alterando a dinâmica do jogo.

O debate que se seguiu sofreu nova inflexão: o desenho institucional deixa de ter centralidade, o foco é a democracia. É o presidente —com suas preferências e escolhas— que é o centro do debate, e não a presidência como instituição.

Se o debate nos anos 1990 centrava-se no Executivo, agora ele se desloca para o Judiciário como fonte de governabilidade, embora o foco muitas vezes é nos juízes e suas escolhas, e não na instituição, que passa por teste de estresse inédito.

*Marcus André Melo, Professor da Universidade Federal de Pernambuco e ex-professor visitante do MIT e da Universidade Yale (EUA).


Lourenço Cazarré: Laços de sangue, igreja católica e trabalho duro

Bem mais que um livro sobre a imigração italiana dirigida ao Sul do Brasil no Século 19, Tutti brasiliani (Editora Libretos, 205 páginas), é uma obra cujo verdadeiro centro é o fantástico desdobramento dessa onda migratória já no Brasil, fenômeno que acabou por transformar o nosso país num dos maiores produtores de grãos do mundo. Mas vamos com calma.

Comecemos pela viagem dos Bortot para o Brasil, muito bem documentada, e que seguramente pode ser vista como uma mostra do que ocorreu com dezenas de milhares de outras famílias. Usando um sobrenome que em sua mais remota origem pode ser francês ou austríaco, os Bortot trabalhavam há, no mínimo, três séculos como meeiros de um grande proprietário de terras na região de Belluno, nos Alpes italianos. Lá, em uma pequena área, criavam uns poucos animais – vacas, ovelhas, burros, porcos e galinhas – e mantinham algumas culturas – videiras e trigo – que os sustentavam ao longo do ano. E, para reforçar as proteínas, caçavam pássaros com redes. Para fazer suas roupas, fiavam cânhamo, lã e linho. E esfolavam raposas, toupeiras e lebres para vender a pele.

Em meados do século 19, parte dessas famílias italianas de muitos filhos, apertadas em sítios modestos, começaram a migrar para a América em busca de melhores perspectivas de futuro. Na ordem de preferência: Estados Unidos, Argentina e Brasil.

Os Bortot, que chegaram ao Brasil em 1893, receberam do governo (financiada, a ser paga em alguns anos) o que julgavam ser uma vasta porção de terra, vinte hectares, algo impensável no país de origem. Uma das curiosidades da onda italiana dirigida ao Sul do Brasil é que, na quase totalidade, os emigrantes eram agricultores.

No Rio Grande do Sul, eles foram contemplados om glebas na zona da Serra. Basicamente, terrenos inclinados, cobertos de mato e perdidos nos cafundós intransitáveis. Os alemães, que desembarcaram antes, a partir de 1825, receberam lotes às margens dos rios. Por isso, como puderam desde logo comercializar seus produtos em Porto Alegre, enriqueceram mais rapidamente.

No meio da mataria cerrada, os filhos de Dante Alighieri tiveram de se virar. Foi o que fizeram. Botaram abaixo as árvores centenárias e com elas ergueram suas casas. Quase todos eles, além das habilidades agrícolas, tinham noções de marcenaria, carpintaria e ferraria. Assim, utilizando-se de conhecimentos centenários trazidos da terrinha, passaram a criar seus porcos, a plantar trigo e a tratar de suas videiras. Comiam sua polenta e bebiam vinho e grapa. E passaram também a consumir os surpreendentes pinhão e palmito. O excesso de produção, quando havia, entrava no escambo por, digamos, sal e fumo. Uns abriram comércios para reforçar o caixa. Outros, mais habilidosos, começaram, nas raras horas vagas, a instalar moinhos e a fabricar carroças e arados. Dessas ferrarias de fundo de quintal, surgiria, depois, a pujante Caxias do Sul, a Manchester guasca.

Passados uns poucos anos, ressurgiu a necessidade de buscar novas terras, e mais baratas, para a descendência crescente. Em 1920, os Bortot partiram para o Noroeste do Rio Grande do Sul, onde podiam adquirir propriedades maiores e, o que era o mais importante, com terrenos planos. Alguns dos filhos dos pioneiros fixaram-se em Paim Filho, numa região cuja cidade mais importante é hoje Sananduva.

Depois, no começo dos anos 1930, mais uma vez empurrados adiante pela redução das propriedades, determinada pelos inventários, alguns dos Bortot partiram para o Sudoeste do Paraná. Fixaram-se em um pequeno vilarejo, que é hoje Pato Branco (85 mil habitantes). O Sudoeste do Paraná era então, e seria por mais uns vinte anos, o nosso Faroeste.

A descrição do crescimento das cidades paranaenses, fundadas majoritariamente, por descentes de italianos partidos do Rio Grande do Sul, é um dos pontos altos do livro. O autor fala de incontáveis tiroteios, jagunços assalariados, grileiros impiedosos, tocaias, violações, assassinatos, falsificação de documentos, terras tomadas à bala e misteriosas empresas protegidas por políticos inescrupulosos…

Ao longo de sua saga, em duas oportunidades, os Bortot foram vítimas das muitas guerras travadas pelas elites intelectuais do Rio Grande do Sul – leia-se: caudilhos ricos formados em Direito em São Paulo, em geral palavrosos e arrogantes – que costumavam brigar, de vez em quando, por motivos impenetráveis para gringos que mal arranhavam a língua portuguesa. Na revolução de 1893, os Bortot foram depenados. Tropas famintas comeram todos os animais e todos os grãos. Repetiu-se o mesmo em 1923. E a gringada, o que poderia fazer? Ora, que fosse se queixar ao Papa porque não havia autoridade pública brasileira à qual pudessem apresentar a conta.

Ivanir José Bortot. Foto: Divulgação

Lê-se o livro de Ivanir José Bortot como se fosse um romance sobre uma família europeia que vem fazer a América. Exatamente como em um livro de ficção, a cada geração, dois ou três membros do clã se destacam. Ora é uma mulher forte que cria seus muitos filhos sem a ajuda do marido precocemente falecido. Ora é um sujeito empreendedor que funda muitas empresas e dá trabalho a irmãos, irmãs, cunhados e cunhadas. Ora é um nonno, que guarda as memórias da família, que pede ao neto que lhe segure a mão no instante em que vai partir deste mundo. Ora é o ingresso de alguém – descendente de terceira geração – em uma universidade.

Sim, esse é um fato muito importante para os imigrantes: a ocasião em que um neto ou um bisneto – pode ser de italiano, alemão, polaco, português ou ucraniano – enverga uma fatiota e senta-se a uma escrivaninha para ganhar, às vezes em um mês, no conforto do ar-condicionado, o que seus ancestrais levavam décadas para amealhar sob o sol impiedoso.

Esse livro será ampliado no futuro, tenho certeza, porque a saga dos descentes de italianos do Rio Grande do Sul – e, também, dos alemães e poloneses – ainda não foi contada. Partindo do Estado original, eles tomaram nos anos 1920 o Oeste de Santa Catarina. Chegaram ao Paraná nos anos 1930 e continuaram a subir pelo mapa: Mato Grosso, Rondônia, Pará e Amazonas foram colonizados a partir de 1970. Depois, nos anos 1980, a diáspora gaúcha seguiu para o Sul do Maranhão, o Norte de Goiás (Tocantins) e o Oeste da Bahia. E, aparentemente, termina quando chega ao Sul do Piauí, em 1990. Em resumo, falta contar a epopeia dessa gente que forjou o semicírculo da produção agrícola que sustenta, há várias décadas, as contas desta nação inzoneira, cartorária e carnavalesca.

Por fim, destaco outra peculiaridade deste livro. Ivanir Bortot exerce o jornalismo há cerca de cinco décadas. Na maior parte desse tempo, atuou em publicações voltadas à economia. Daí que seu livro, desde as primeiras páginas, dá números ao que está sendo descrito. Um porco custa tanto. Uma vaca equivale a tantas barricas de vinho. Esse fato, o fato de que toda coisa tem seu preço, em geral, é pouco abordado nos livros escritos pelos historiadores genuínos, os de carteirinha. Nada contra os mestres catedráticos, mas no trabalho de Bortot vemos claramente como vai se formando o patrimônio de uma família ao longo de décadas. Não apenas o patrimônio palpável, físico (casas, lojas, hotéis, serrarias, veículos, culturas agrícolas, transportadoras, indústrias), que aumenta à força de muito suor e trabalho incessante. Mas não é só isso. Ivanir Bortot registra também os valores morais – impalpáveis, outra espécie de riqueza – que alicerçam o progresso. Valores como, por exemplo, a solidariedade, já que nesses grupos, por décadas, o patrimônio é um só e é de todos. Uma solidariedade que é, ao mesmo tempo, a previdência social e o plano de saúde da família. A solidariedade que aflora toda vez que a tragédia arrebenta com um deles.

A confiança alicerçada nos laços de sangue faz com que o controle dos negócios seja delegado às mãos do mais talentoso, o líder nato, aquele que em geral é aceito e reconhecido por todos ou pela maioria.

Se fosse possível sintetizar esse movimento migratório tão importante na história nacional, talvez se pudesse dizer que os descendentes dos peninsulares instalados no Sul do Brasil há mais de um século e três décadas – e que hoje se espalham do Norte ao Sul – construíram sua história baseados em três pilares: os laços de sangue, os valores da igreja de Roma e a ética do trabalho duro, incessante.