Bolsonaro
Paulo Fábio Dantas Neto: Carolinices sobre solução política de uma não questão militar
Na conjuntura crítica do Brasil atual, uma coluna semanal sobre política já corre o risco de deixar o tempo passar e, como uma Carolina tarda, mal ver a banda tocar. Se deixar de circular uma semana, aí então é que a fila anda e a banda toca longe da sua janela. A política brasileira tornou-se matéria volátil, seu relógio se perde nos minutos, enquanto a força desestruturadora da pandemia parece absorver para si as horas todas, assumindo, em paradoxo com seu andamento trágico, uma regularidade própria de rotinas de uma estrutura. Após duas semanas, eis-me tentando juntar, como num quebra-cabeça, fragmentos de fatos para montar um texto que comente alguma vida passada nessa rotina de morte.
No meio tempo entre a coluna anterior e essa, Jair Bolsonaro, ao lado de oferecer, ao Presidente da Câmara dos Deputados, a secretaria ministerial do seu governo (mais um anel que talvez desejasse manter nos dedos), perfilou - ou ajustou controles sobre - os Ministérios da Justiça e da Defesa, a AGU e a Polícia Federal, além do que já tem sobre os órgãos de informação. Se houvesse conseguido emplacar comandantes amigos nas forças armadas, estaria completo o desenho de um misto de bunker e trincheira para uma luta decisiva que acalenta em seus delírios. Restaria conseguir produzir a centelha de desordem pública que persegue, meses a fio, para justificar uma virtual proposição de estado de sítio, ou algo equivalente, com respaldo de comandos militares. Hoje o Congresso não o concederia. Mas num hipotético cenário de violência miliciana nas ruas, insubordinação nas PMs combinada com caos sanitário, povo amedrontado, pedindo ordem, o Congresso e o STF poderiam ficar emparedados. Assim parecem pensar os que respaldam os movimentos de Bolsonaro, ou os que hesitam em repeli-los.
O plano de Bolsonaro não pode mais ser segredo para ninguém que observe a cena política e social. Pode dar certo, em algum momento? Especialistas em assuntos militares afirmam que não e devem ser escutados com o respeito e a reverência que merecem. Intuo, porém, que não sabemos, apesar da reiteração obsessiva de uma mesma tática comprometer a estratégia bolsonarista, que se torna previsível pelas defesas adversárias, marcação cerrada feita por instituições que ele está obrigado a respeitar, mas ataca e organizações da sociedade que ele tem obrigação de governar, mas desgoverna.
Seu fracasso na área militar é, como sabemos, avaliação praticamente unânime. A grande imprensa, assim como a pequena, respalda a tese de que os militares cumprem seu papel institucional e ponto. Uma pergunta resta sem resposta: quem afinal escolheu (refiro-me a pessoas de carne e osso e não a entidades sobre-humanas que agiriam sozinhas) o novo comandante do Exército? Bolsonaro é que não foi. Interditaram-no numa prerrogativa sua? O desfecho não apenas revela que o capitão foi “contido” pelos generais na ativa, mas o desmoraliza e o leva a ver estrelas, mostrando quem manda nessa seara. Pode-se chamar de autonomia o que parece mais soberania da corporação na designação da sua cúpula? Penso que é complicado interpretar o ocorrido como mero movimento de despolitização e afastamento das FFAA da política. Pedindo vênia aos especialistas, suspeito que possa ser meia verdade persuasiva.
É verdade que a cúpula militar reagiu à politização tentada por Bolsonaro. Mas de onde provém a convicção de que, ciosa da profissão, descarta assumir qualquer atitude política? É obvio – e não precisa entender de militares para admitir - que faltam sintonias materiais e mentais entre, por exemplo, os contextos nacional e mundial de hoje e o do instável período que foi da promulgação da Constituição de 1934 ao autogolpe do Estado Novo, perpetrado por Getúlio Vargas. O contraste de época desaconselha analogia explícita entre a postura atual da cúpula da hierarquia militar e o antigo lema do General Góis Monteiro que, em vez de política “no exército”, preconizava, então, a política “do exército".
Golpe militar não esteve, pois, nem está na pauta das especulações razoáveis. O que causou receio, nessas duas últimas semanas, assim como em outros momentos, durante o atual governo, foi a hipotética chance de um autogolpe com respaldo militar, baseado num cenário de desordem e violência fomentadas. Essa nuvem dissipou-se, no momento. Mas não é irrazoável observar que ganhou potência e visibilidade uma expansiva política corporativa dos militares, alimentada pelo governo Bolsonaro e traduzida em fortes pressões orçamentárias. Conexões entre isso e a aproximação de uma eleição presidencial, no bojo da qual se discutirá prioridades em ambiente de grave crise social não devem ser subestimadas. É nesse contexto que é relevante interpretar a nota do agora ministro da Defesa, Gal. Braga Neto, publicada na véspera da data do golpe de estado de 1964, a título de celebrar seus 57 anos.
Braga briga com a História quando interpreta o período de 1964 a 1979 como de pacificação nacional. Afirma que um movimento de cunho popular depôs um governo ligado a uma ideologia violenta e que em seguida as forças armadas foram chamadas a pacificar e reconstruir o país. Levaram 15 anos fazendo isso até que o pacto da anistia, de 1979, teria dado maioridade democrática ao país. Inegável o caráter pacificador daquela lei e seu papel indutor da transição democrática que se seguiu, por uma década. Mas na historiografia de Braga, o general Figueiredo não foi o último general-presidente num regime autoritário, mas o primeiro presidente dessa democracia em novo patamar. O marco inaugural desse patamar é a ascensão do seu governo, não o colégio eleitoral de 1985, muito menos a Carta de 88.
Está, portanto, claro, que não me refiro à discussão sobre 1964, especificamente. Seria malhar em ferro frio, pois é sabido que os militares, em geral, não admitirão que foi um golpe de estado. Não tenho quanto a isso, preocupação historiográfica, muito menos doutrinária, mas política. Uma coisa é a polêmica sobre 64. Muitos liberais apoiaram e participaram do movimento. Foi um golpe, mas não estava escrito nas estrelas que ia dar em ditadura, como deu. Outra coisa é celebrar a ditadura que ocorreu por opção política, inclusive sua radicalização, depois de 1968. A nota de Braga chama essa noite quase fascista de pacificadora. A nota está se identificando não com as forças armadas, genericamente, mas com a “linha dura”, para a qual 1968 foi continuidade natural e necessária de 1964.
Essa narrativa é politicamente inaceitável por democratas porque não é só erro historiográfico. Prevalecendo, apontaria a uma negação da política que construiu a democracia que temos. Como sabemos e sentimos, com a eleição de Bolsonaro os fantasmas de 1964 voltaram a estar presentes, não importa se são delírios. Quando fantasmas guiam pessoas e as fazem se posicionar contra ou a favor de algo relevante, eles passam a compor uma realidade em aberto, sinalizando que o julgamento da História não está tão fechado assim. A eleição de alguém como Bolsonaro, dizendo abertamente o que disse na campanha, sinaliza, ela mesma, algo diverso de um assunto encerrado.
Penso que mesmo a omissão diante dessa narrativa já é um equívoco. Chamar essa cantilena extremista de moderada é equívoco maior ainda. Há como abordar esse ponto de modo prudente, afirmando que o marco inaugural, jurídico e político, da nossa democracia é a Carta de 88, sem com isso desqualificar a importância da anistia para que essa obra se tornasse concreta. Imprudente é nos acomodar a uma conveniência tática que, nesse caso, levaria a sociedade para longe do seu porto seguro, que é a defesa intransigente da democracia, não deixando sem resposta qualquer tentativa de usar esse termo para se referir ao que, de fato, foi ditadura. A democracia vive de suas instituições, de seus procedimentos e também do grau de crença, de convicção democrática da sociedade. Esse governo - e não apenas Bolsonaro - tem rebaixado esse grau, borrando as fronteiras entre ditadura e democracia. Essa nota foi mais um ato dessa sabotagem, dissimulado por um palavreado educado e por um verniz racional que não deixam de merecer reconhecimento, em meio à barbárie nossa de cada dia. Mas não podem iludir.
É fato que, depois dos fatos da última semana, o rio ficou mais navegável. Então, não vai ter golpe de qualquer espécie. Ficamos combinados assim.
Noves fora conversa de golpe, há um bolo fermentando contra a impolítica do presidente e ainda não dá para saber seu sabor. Dá para ver, porém, que agora a coisa anda em novos trilhos. Em vez de proposições de impeachment e CPIs, feitas por parlamentares ou grupos isolados e não previamente articuladas a contento, há um coro externo crescente pressionando o Congresso para que tome providências, mas ninguém se adianta dizendo quais seriam elas. Isso deixa rédeas sob manejo das suas lideranças, para negociarem e resolverem. Se e quando a "providência" vier à tona, já poderá ser na forma de ação concreta. Em certos momentos de alta na temperatura política, não se pensa tanto em risco de golpe quanto numa contagem regressiva para lançar Bolsonaro ao espaço. Como? Passagem pacífica do bastão ou guerra do fim do mundo? Mal comparando, entre um e outro extremo, vamos ver se Bolsonaro, que fala ao mesmo tempo como proclamador de uma república particular e refundador de uma imaginária ordem passada, vai concluir sua farsa simulando Deodoro ou Conselheiro.
A jornalista Rosângela Bittar especulou sobre uma etapa intermediária antes da “solução final” da farsa. A elite política da democracia representativa conserva-se atenta para preservar regras e limitações de horizonte do jogo político. Traduz para um contexto democrático um saber herdado de outros tempos. O mineiro Rodrigo Pacheco anda ensaiando a performance de um Campos Sales do sufrágio universal.
A recente reinserção de Lula no embate político direto, mergulhado na arena plebiscitária que é a praia que ele disputa com Bolsonaro, adicionou um fermento potente ao bolo. Em terreno análogo, peças publicitárias difundidas em rede têm produzido motes e bordões, batendo na carestia, no desemprego e na tragédia sanitária e tratando com humor e ironia o negacionismo e o nepotismo presidencial. O Congresso, dessa vez, apareceu como propositor e autor do auxílio emergencial. Bolsonaro e seu governo, até aqui, não contabilizaram lucros políticos, apenas responsabilidade pelo valor irrisório. O meio político - partidos e lideranças que vão de Pacheco, FHC e Temer, até Lula, passando pelos governadores e pré-candidatos - está empenhado nas vacinas, tendo esse, felizmente, se tornado um campo de cooperação, embora tensa, com o governo federal. O centrão pressionou e derrubou Pazuello, tentou emplacar uma ministra de fato e deu tom de última chance quando o presidente recusou e escolheu outro. E o Judiciário não perde chance de estreitar o espaço de Bolsonaro.
Tudo isso ocorre e entra aos poucos em catalisação. O conjunto produz efeito, tanto que a rejeição a Bolsonaro e a desaprovação a condutas do seu governo crescem continuamente, consistentemente, embora de modo incremental. Isso é comum em democracias, regimes políticos em que as políticas públicas dependem de percepções contraditórias do conjunto de uma sociedade complexa e não apenas dos seus segmentos mais informados, politizados, organizados e, por isso, mobilizados e influentes.
Por outro lado, como o ensaísta Luiz Sergio Henriques bem frisou em artigo recente, um político como Bolsonaro sempre tem uma fonte inesgotável de recursos retóricos, porque não tem compromisso algum com a realidade e sequer com o que ele próprio disse ontem, quanto mais com o que se possa falar e fazer contra ele, hoje ou amanhã. Seu ativismo é e será um dado da realidade, mesmo se e quando ele estiver a minutos da derrota final. Jamais o veremos se calar ou passar recibo de derrotado. Foi assim com Trump, com ele tende a ser também.
*Cientista político e professor da UFBa
Demétrio Magnoli: Braga Netto, historiador
A ordem do dia alusiva ao golpe de 1964 foi assinada por Walter Braga Netto, um ministro da Defesa que acabava de ser nomeado em substituição a seu camarada de farda, Fernando Azevedo e Silva, demitido por recusar a subordinação das Forças Armadas aos delírios subversivos de Jair Bolsonaro. No texto, o general vestiu o manto do historiador para, supostamente, inscrever os “eventos ocorridos há 57 anos” no “contexto da época”.
Sabe-se que a ordem do dia estava pronta, assinada por Fernando Azevedo, e foi deliberadamente adotada por seu sucessor para exibir uma imagem de unidade dos comandantes militares. Por isso, deve ser lida como um consenso das cúpulas das Forças Armadas. Seu aspecto mais notável é a tentativa implícita de enterrar o “movimento de 1964” no arquivo do passado.
O general-historiador aprecia o conceito de continuidade e a ideia de harmonia. No texto, o golpe de 31 de março emerge na moldura da Guerra Fria, como derivação longínqua da aliança de guerra contra o nazifascismo, que teve a participação do Brasil. As Forças Armadas não aparecem como agentes principais da derrubada do governo, mas como componente de uma mobilização nacional que abrangeu a “imprensa”, “lideranças políticas”, “igrejas”, o “segmento empresarial” e “setores da sociedade organizada”. Por essa via, a virtude — ou a culpa — fica amplamente distribuída.
Um golpe de Estado constitui, pela sua natureza, uma cisão. Mas a narrativa de Braga Netto exclui a noção de ruptura, tanto para trás quanto para frente. De 1964, o texto salta à Lei de Anistia, de 1979, “um amplo pacto de pacificação”, desviando dos “anos de chumbo” da tortura, que se estenderam até 1976. A acrobacia converte o regime militar em prelúdio necessário das “liberdades democráticas que hoje desfrutamos”. Ditadura produz democracia — a tese paradoxal forma o núcleo do argumento do general.
O exercício historiográfico faz parte da operação política de confrontação dos chefes militares com Bolsonaro. As Forças Armadas declaram-se, hoje, “conscientes de sua missão constitucional” de “defender a Pátria” e “garantir os Poderes constitucionais”. Há, aí, convenientemente oculta, a crítica do golpe de 1964 e, quase explícita, a rejeição dos desvarios golpistas presidenciais. Braga Netto inclina-se à doutrina adotada pelos comandos militares que, desde o processo de abertura, riscaram uma linha no chão separando os quartéis da política.
Na última frase da ordem do dia, tudo que era sólido desmancha no ar. Depois da constatação do óbvio (“o movimento de 1964 é parte da trajetória histórica do Brasil”), surge uma conclamação: “Assim devem ser compreendidos e celebrados os acontecimentos daquele 31 de março”. Nela, a conjunção aditiva liga posturas essencialmente diferentes e expõe a fraude.
O historiador busca compreender o passado, mas nunca o celebra. A celebração do golpe militar é um ato político — e, no caso, um gesto condenável, pois nossa Constituição protege a ordem democrática. Atrás do manto que cai, avulta a figura de um agente político. Os militares que servem a Bolsonaro, inclusive os da reserva, reintroduzem a política nos quartéis — mesmo quando afrontam a vontade presidencial.
Toda instituição tem seus lugares de memória. Duque de Caxias e o Marquês de Tamandaré, patronos do Exército e da Marinha, remetem à Guerra do Paraguai. Eduardo Gomes, patrono da Força Aérea, remete à Segunda Guerra Mundial. Por que os militares insistem em celebrar o golpe de 1964, mesmo que sob o pretexto de inscrevê-lo no “contexto da época”?
O governo Bolsonaro representa, entre tantas coisas deploráveis, um projeto de revisionismo histórico. O presidente, um capitão excluído do Exército por indisciplina, assim como seu círculo de místicos extremistas, ergue contra a Constituição o espectro da ditadura militar. A geração atual de militares não participou dos desmandos do regime instituído em 1964. Inexiste um motivo legítimo para que seus expoentes manchem suas biografias associando-se ao revisionismo bolsonarista. Não celebrem um parêntesis sem glória.
José Eduardo Faria: Bolsonaro e a banalidade do mal
Não foi só a maneira desabrida e insensata com que o presidente Jair Bolsonaro agiu com o ministro da Defesa e com os comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica que chama a atenção. Se for correto o que a imprensa divulgou, também é digna de nota a orientação que o presidente deu ao novo ministro, obrigando-o a anunciar aos comandantes militares que estavam demitidos, antes que eles pudessem colocar o cargo à disposição.
O objetivo do inquilino do Planalto, como os jornais informaram, era mostrar força, de um lado humilhando os três comandantes e, de outro, reforçando a narrativa de que o presidente é quem manda. Ainda que essa narrativa seja aceita como válida apenas por convertidos, pessoas banais que aceitam absurdos como normalidade, o problema está nas tentativas cada vez mais evidentes do presidente de fazer dos militares rigorosos cumpridores de suas ordens e determinações, mesmo que elas transcendam restrições constitucionais.
Ainda segundo a imprensa, as três demissões teriam sido justificadas pelo Planalto com base no fato de que, por considerarem as Forças Armadas uma instituição de Estado, seus comandantes não as estariam alinhando aos interesses políticos do chefe do Executivo. Reiteradamente alertando que, pela Constituição, o presidente da República é o “comandante em chefe” das Forças Armadas, Bolsonaro passou a chamá-las de “meu Exército”. E, com isso, também começou a insinuar que poderia acioná-lo a qualquer momento e para qualquer coisa — desde impedir os governadores de implementarem políticas de isolamento até afrontar a principal corte do País, acusando-a de restringir prerrogativas presidenciais.
Com o retorno das agressões de Bolsonaro às instituições democráticas, a questão agora é saber como se comportarão os oficiais do “seu” Exército, ou seja, se aceitarão fazer tudo o que lhes for pedido ou se respeitarão não apenas a Constituição mas, igualmente, a corte encarregada de dar a última palavra no controle da constitucionalidade. A questão não é simples, uma vez que, de um lado, ela envolve uma cadeia de comando que começa no Palácio do Planalto e vai descendo os níveis hierárquicos do aparato militar. E, de outro, implica o risco de cumprimento de ordens absurdas, que atendem mais aos objetivos eleiçoeiros de um governante do que ao interesse público e a segurança — na conformidade da ordem legal — do País.
São ordens que, dependendo do modo como forem transmitidas e cumpridas, conforme se viu na demissão dos comandantes das Forças Armadas, podem corroer os próprios valores éticos das corporações militares das Forças Armadas. Como não se espantar, por exemplo, com um general intendente que, aceitando chefiar o Ministério da Saúde sem ter formação especializada na área, cumpriu servilmente ordens agravantes da maior crise de saúde pública já vivida pelo país? “É simples assim: um manda e outro obedece”, afirmou esse general que, de tanto obedecer ordens presidenciais tomadas sem qualquer critério técnico, exacerbou a pandemia, em vez de detê-la, motivo pelo qual hoje está sendo acionado judicialmente.
Essa questão já foi por mim discutida num artigo recente, neste mesmo espaço[1], no qual analisei as explicações dadas por esse mesmo general com o objetivo de eximir o governo Bolsonaro de qualquer responsabilidade sobre a escassez da oferta de oxigênio em Manaus. Em nenhuma de suas explicações ele relacionou as ordens absurdas que recebeu com os milhares de brasileiros mortos por sufocamento. Os argumentos que retomo para analisar os militares com o perfil desse general baseiam-se na análise que a filósofa alemã Hannah Arendt (1906-1975) fez há mais de meio século, no plano ético, de um dos oficiais de média patente que serviram ao regime nazista.[*] Trata-se de Adolf Eichmann, um tenente-coronel que recebeu a missão de administrar a logística das deportações em massa para os campos de concentração localizados nas zonas ocupadas pelas forças alemãs no leste europeu, durante a segunda guerra.
Eichmann estava, assim, situado no meio da cadeia de comando no setor da máquina nazista encarregado da “solução final” da “questão judaica” — o plano de remoção, por assassinato, da população judaica que vivia naquelas zonas. Por um lado, ele cumpria ordens. Por outro lado, as ordens que dava e as medidas que tomava, levando milhões de pessoas a diferentes formas de tortura e à morte, eram por vez balizadas por uma série de outras determinações emanadas de seus superiores.
Com o fim da guerra e a derrota da Alemanha, Eichmann fugiu para a Argentina. Muitos anos depois, foi sequestrado pelo serviço secreto israelita e levado para Jerusalém, onde foi julgado criminoso e condenado a pena de morte por enforcamento, em 1961. Convidada a cobrir o julgamento para a revista New Yorker, Arendt, que era judia, surpreendeu ao escrever cinco artigos na contramão dos que acusavam Eichmann de ser criminoso por ser nazista. Apesar de este ter sido o ponto mais abordado pelos jornalistas que cobriram o julgamento, Arendt concentrou a atenção na análise de pessoas incapazes de pensar por si e que, quando integram um aparato de poder, agem apenas como funcionários diligentes. Ou seja, cumprem ordens, sem discuti-las nem julgá-las, mesmo que sejam para matar inocentes.
Nesse sentido, a banalidade do mal decorreria não de uma premeditação da violência, mas, sim, da mediocridade implícita na incapacidade de reflexão que se instala em espaços institucionais. Eichmann não foi perverso, doentio, enraivecido e antissemita. Pelo contrário, destacava-se por ser educado e um homem comum — “assustadoramente normal”, dizia Arendt. Contudo, era incapaz de distinguir o certo e o errado. De resistir às ordens que recebia e cumpria. De avaliar moralmente o que de fato fazia e as consequências trágicas de seus atos administrativos. Apenas se orgulhava de executar corretamente suas tarefas. No fundo, foi um precursor do “simples assim — um manda, outro obedece”.
Faltava a Eichmann não somente a capacidade de se colocar no lugar do outro, de interagir com a subjetividade de outra pessoa, mas, igualmente, a capacidade de pensar, afirmava Arendt. Seu problema não era a ignorância. Era, isto sim, ter internalizado o senso de que o que fazia era correto e com base na lei — o que, em decorrência, não lhe permitia ver os efeitos brutais de suas decisões, revelando assim o quão desconectado estava do sentido do que é ser humano.
Desse modo, sua dimensão cognitiva e moral foi corroída pela visão limitada e empobrecida de quem cumpre ordens irrestritamente. Quando um burocrata não assume a iniciativa própria de seus atos ou quando uma multidão numa sociedade massificada se revela incapaz de fazer julgamentos morais, aceitando e cumprindo ordens sem questionar, distanciando-se assim de sua essência humana, o mal se torna banal, afirma Arendt. “Do ponto de vista de nossas instituições e de nossos padrões morais de julgamento, essa normalidade era muito mais apavorante do que todas as atrocidades juntas, pois implicava […] um novo tipo de criminoso, […] que comete seus crimes em circunstâncias que tornam praticamente impossível para ele saber ou sentir que está agindo de modo errado”, concluía.
A ideia de banalidade do mal, desenvolvida por Hannah Arendt e por mim já utilizada para analisar o militarismo brasileiro contemporâneo, ajuda a interpretar o ocorrido com a demissão dos comandantes das Forças Armadas. Evidentemente, são distintos os contextos históricos dos males cometidos pelo nazismo, de um lado, e, de outro, o da profusão de decisões intempestivas, inconsequentes, insensatas e irresponsáveis do chefe do Executivo, um tenente medíocre e inconsequente reformado no posto de capitão por ser um “mau soldado”. Mas em ambos os contextos se visualiza a banalização do mal por impulso político e enviesamento ideológico. Igualmente, em ambos fica evidenciado como essa banalidade retira a humanidade dos indivíduos, tornando-os incapacitados de compaixão pelo próximo.
A exigência de Bolsonaro de que os comandantes das Forças Armadas se alinhem politicamente ao que chama de “meu Exército”, a ponto de afrontar governadores responsáveis que adotaram políticas de isolamento social, evidencia absoluta falta de compaixão com os recordes de mortos pela Covid que têm sido batidos diariamente. Também revela um desprezo pela existência humana e dá a medida da importância e da atualidade de Hannah Arendt. Notadamente quando ela afirma que o mal tem a ver com a liberdade de escolha do indivíduo, não sendo uma característica específica dele.
Pelo que se tem visto desde sua posse, Bolsonaro quer ao seu redor militares com perfis à sua imagem e semelhança — ou seja, reveladoras do ponto a que a barbárie humana pode envolver os indivíduos mais banais. Diante disso e da permanente tentativa de minar o império da lei com base nas mais toscas e torpes justificativas, só resta esperar que a cúpula das Forças Armadas seja capaz de evitar a corrosão do ethos da instituição a um ponto sem retorno, o que levará a democracia arduamente conquistada após a ditadura militar de 64 a ceder espaço para mais uma aventura autocrática. Na última tentativa de Bolsonaro de pressionar e enquadrar as Forças Armadas, a cúpula teve sucesso e o conteve. Até quando conseguirá resistir a novas ofensivas autocráticas?
Referência:
[1] “O ethos das Forças Armadas e a banalidade do mal”, Estado da Arte, 02/02/2021 (https://estadodaarte.estadao.com.br/ethos-ffaa-jef).
[*] Cf. Hannah Arendt, Eichmann in Jerusalem: a report on the banality of evil, Peguin Books, New York, 1963.
(Originalmente publicado em Estado da Arte, em 03/04/2021; https://estadodaarte.estadao.com.br/jef-banalidade-mal-planalto/ )
O Estado de S. Paulo: Bolsonarismo usa covid-19 para desestabilizar PMs e governos estaduais
Objetivo seria disputa pela Segurança Pública nos Estados; ataques às ações das polícias cresceram em 2021 e são monitorados pelos comandos das corporações
(Marcelo Godoy e Pedro Venceslau)
Quando a Polícia Militar de São Paulo anunciou que a vacinação para seus integrantes ia começar no dia 12 de abril, no mesmo dia todos os posts publicados pela corporação em uma rede social foram atacados por bolsonaristas, que afirmaram: “Vocês são covardes! Estão batendo em trabalhadores, seus capachos do calcinha apertada”. Outro bolsonarista, crítico à vacina Coronavac, do Instituto Butantan, escreveu: “Fico em dúvida se comemoro. Orações para vocês”.
O ataque às polícias nas redes sociais com informações falsas se multiplicaram em 2021, transformando a atuação da extremadireita no principal fator de instabilidade política para as forças de Segurança. “Já faz algum tempo que estamos sofrendo estes ataques. Alguns perfis lançam vídeos de abusos policiais de outros contextos ou mais antigos e fazem parecer que são atuais e contra a população”, disse o coronel Robson Cabanas Duque diretor da Comunicação da PM.
O fenômeno não atinge apenas a polícia paulista e o governador João Doria (PSDB), mas também as polícias de outros Estados, em que os governadores adotaram medidas de restrição à circulação de pessoas para controlar a pandemia de covid-19, como a Bahia e o Rio Grande do Sul. Também são alvo os governadores adversários do presidente Jair Bolsonaro, como os do Piauí e do Maranhão.
“Tem digitais bolsonaristas em questões locais. Eles se aproveitam para uso politiqueiro. A raiva dele (Bolsonaro) é não poder demitir ou prender governadores. Então tenta sabotar”, disse o governador Flávio Dino (PCdoB), do Maranhão. De acordo com o coronel Lindomar Castilho, comandante da PM do Piauí, há pessoas que “tentam desinformar e fazer a cabeça dos policiais” sob seu comando.
Em São Paulo, a PM tenta identificar o centro difusor dos ataques à corporação que buscam minar a disciplina da tropa. Entre as postagens monitoradas pela polícia está uma do ex-deputado Roberto Jefferson, aliado de Bolsonaro, e outra do blogueiro Allan dos Santos, ligado ao deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP). “Somos fiéis à Constituição, à lei, não importam quais sejam as orientações políticas dos governos. Somos uma instituição de 189 anos. Se cumprir a lei desagradará a A ou a B, assim será”, afirmou o coronel Cabanas.
Vacinação
Em carta divulgada dia 29, 16 governadores afirmaram que “os agentes públicos precisam de paz para prosseguir com o seu trabalho, salvando vidas e empregos”. “Estimular motins policiais, divulgar fake news, agredir governadores e adversários políticos, são procedimentos repugnantes, que não podem prosperar em um país livre e democrático”. O documento declarava ainda o apoio dos governados ao desejo das entidades de policiais de vacinação imediata de seus integrantes. A estratégia visava a retratar o bolsonarismo como responsável por opor a população aos PMs.
“A gente procura não entrar na questão política e se manter fiel ao regulamento e à nossa missão, contra esse jogo que pretende envolver as forças estaduais e federais”, afirmou o coronel Castilho. O Piauí, governado por Wellington Dias (PT) deve começar nesta segunda-feira a vacinar seus 6.140 PMs. A covid-19 havia matado 35 policiais militares e contaminado 1.283 no Estado até sexta-feira passada.
A reação dos governadores aconteceu após a ação coordenada do bolsonarismo de insuflar um motim na PM da Bahia em 28 de março. Naquele dia, o soldado Wesley Soares Góes teve um surto e, com um fuzil, foi ao Farol da Barra, em Salvador, onde passou a fazer disparos. Após atirar em direção aos colegas, acabou morto. De imediato, parlamentares bolsonaristas, como a deputada Bia Kicis (PSL-DF), passaram a tratá-lo como mártir por se recusar a cumprir as ordens do governador Rui Costa (PT). Mais tarde, ela removeu a publicação.
A estratégia de provocar um motim na Bahia só não foi para frente porque a ação foi filmada, confirmando que o soldado tentara matar os colegas. “A Bahia é o lugar mais frágil, em razão dos problemas enfrentados pelo governador na Segurança. Por isso foi atacada”, disse Renato Sérgio de Lima, presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Entre os problemas de Costa, estaria a contestação feita por sua gestão no Supremo Tribunal Federal da lei que acabou com as prisões disciplinares dos PMs.
Risco
Se a ação do bolsonarismo incomoda as PMs, ela não seria, no entanto, suficiente para, segundo especialistas em Segurança Pública, provocar uma ruptura da ordem. “Não há possibilidade de se repetir no Brasil a situação da Bolívia (onde uma revolta policial levou à deposição de Evo Morales). Os policiais têm diversas vantagens que não vão colocar em risco por razões ideológicas”, disse Leandro Piquet Carneiro, professor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo. Além disso, para Piquet, a aprovação do congelamento de salários na PEC Emergencial esvaziou o discurso sindicalista de Bolsonaro, diminuindo sua capacidade de mobilização. O Estadão não conseguiu contato com Santos e Jefferson.
Comandos das PMs pedem cautela a policiais em operações
Os comandos das PMs estaduais estão recomendando o máximo de cautela aos seus homens no cumprimento de medidas de restrição à circulação de pessoas durante a pandemia. Temem que qualquer incidente seja usado politicamente contra as corporações. “Recomendamos aos nossos homens que tenham bom senso em todas as ações”, disse o subsecretário de Segurança Pública, coronel Alvaro Camilo. Para o coronel Lindomar Castilho Melo, comandante da PM do Piauí, “bom senso e conversa não podem faltar. O policial não pode cair em provocações. Tem de colocar como autoridade.”
Para o oficial da PM e deputado federal Paulo Ramos (PDT-RJ), repercutiu mal na categoria a ação de bolsonaristas após o incidente com o soldado Wesley Góes, em Salvador. “Tentaram jogar companheiros contra companheiros, dividir a tropa”, diz Ramos. “Mas não deu certo, a repercussão (das iniciativas dos aliados de Jair Bolsonaro) foi negativa, tanto na Bahia como nos outros Estados.” Segundo ele, a identificação ideológica entre Bolsonaro e muitos PMs permanece.
Mas as expectativas práticas se romperam. “No discurso, o presidente incentiva o confronto (entre policiais e criminosos), mas nunca esteve nessa situação ou correu riscos. Ele só empurra os outros, incentiva os outros a se expor.” Para o coronel Ubiratan Ângelo, ex-comandante da PM do Rio, o discurso de Bolsonaro está enfraquecido. “O que ele fez pelas polícias ou pelos policiais? É só discurso, e o discurso está enfraquecido.”
Outra aposta para a manutenção da disciplina diante das investidas do bolsonarismo nas corporações contra é sistema de liderança e a efetividade da Justiça Militar. Diretor do Fórum Brasileiro de Segurança, Renato Sérgio d e Lima lembra que na semana passada a Justiça Militar paulista condenou a 6 anos e meio de prisão um policial que sacou um arma e ameaçou matar seu sargento no centro de São Paulo, em 2020. “A sentença do juiz Ronaldo João Roth foi dura.”
/ COLABOROU FÁBIO GRELLET
Evandro Milet: Inovação: as competências dos líderes que pensam e agem diferente
Inovação é a prioridade estratégica para qualquer líder de empresa no mundo. Exemplos não faltam mostrando que as empresas de sucesso hoje são aquelas que inovam, principalmente as que inovam de forma disruptiva. Aí fica a questão: a capacidade de um líder para inovar é inata ou pode ser aprendida? O que os líderes de sucesso fazem para inovar?
No clássico “DNA do inovador”, Clayton Christensen, com Jeff Dyer e Hal Gregersen, mostram como os inovadores de sucesso agem, muitas vezes intuitivamente. Descobriram cinco principais competências compartilhadas, todas ou parte delas, por nomes de referência mundial como Steve Jobs, Jeff Bezos ou Larry Page.
Associar, questionar, observar, manter rede de relações(networking) e experimentar, compõem essas competências, que fazem com que eles pensem diferente e ajam diferente.
“Associar” ajuda os inovadores a descobrir novas direções fazendo ligações entre questões, problemas e ideias aparentemente sem relação entre si. Descobertas inovadoras ocorrem muitas vezes na interseção de disciplinas e campos diversos. O autor Frans Johanssen descreveu esse fenômeno como “o efeito Médici”, referindo-se à explosão criativa que ocorreu em Florença quando a família Médici reuniu criadores de um amplo leque de disciplina - escultores, cientistas, poetas, filósofos, pintores e arquitetos. Esse encontro de especialidades deu origem ao Renascimento, uma das mais inovadoras épocas da história.
As outras quatro competências acionam o pensamento associativo, porque permitem aos inovadores aumentar seu estoque de ideias formadoras das quais surgem ideias inovadoras.
“Questionar” é uma dessas competências. Inovadores são grandes questionadores e mostram paixão pelo ato de perguntar. O que, como, onde, porque, quando, e se, por que não, são expressões comuns na cabeça dos inovadores. Querem saber porque as coisas são assim e porque não de outra forma.
“Observar” é a competência para prestar atenção ao mundo em sua volta - incluindo clientes, produtos, serviços, tecnologias e empresas. Ficou famosa a visita de Steve Jobs ao laboratório PARC da Xerox onde ele viu o mouse, a interface gráfica, os ícones, as janelas que lhe inspiraram na revolução feita na aparência dos computadores para sempre. Henry Ford tirou a ideia da linha de montagem para o seu Ford T de uma indústria de processamento de carnes, onde a desmontagem dos animais era feita a partir da suspensão das carcaças em um transportador aéreo que as levava de trabalhador a trabalhador, com cada um fazendo determinado corte.
“Networking” significa manter uma rede, não de recursos ou oportunidades de emprego, mas de ideias. Muitos inovadores fazem um esforço consciente para conhecer pessoas com formações diferentes: que vêm de países, setores econômicos e funções empresariais distintas; que são de idades, gênero, etnias, históricos diversos. As conferências de ideias TED, onde se reúnem empreendedores, acadêmicos, políticos, aventureiros, cientistas, artistas e pensadores de todas as partes do mundo, que apresentam suas mais recentes ideias, paixões e projetos, servem bem a esse propósito.
Por outro lado, fica claro agora que a diversidade de gênero, etnia, idade e formação na composição de equipes, não é apenas uma questão de justiça social ou de desigualdade, mas fator fundamental para inovação nas empresas.
“Experimentar”, a última competência, mostra que os inovadores estão constantemente testando novas experiências e pilotando ideias novas. A maior parte deles não pensa que cometer erros seja motivo de vergonha e mostram a coragem para inovar.
Muitas empresas fracassam em inovação de ruptura porque a alta direção é dominada por pessoas que foram escolhidas por suas competências de execução e não por essas capacidades fundamentais para inovar.
Rubens Ricupero: ‘Bolsonaro é uma aberração na história’
Taisa Szabatura, IstoÉ
Como diplomata e ex-ministro da Fazenda, Rubens Ricupero, 84 anos, testemunhou sete décadas de história do Brasil de uma posição privilegiada. Após terminar a faculdade de Direito, entrou para o Instituto Rio Branco, que forma os funcionários que trabalharão para a política externa do País, e começou a sua carreira no Itamaraty em 1960. Hoje é considerado por seus pares uma enciclopédia, por saber dados e números nacionais de vários períodos de cabeça.
Passa a pandemia dando aulas virtuais e trabalha em seu próximo livro sobre a realidade brasileira, ainda sem título definido. Imunizado com a primeira dose da AstraZeneca, observa com espanto os disparates do governo Bolsonaro.
Em entrevista à ISTOÉ festejou a queda do ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, considerado por ele como “condutor desastroso” da diplomacia desde o início do governo, e criticou a inoperância do ministro da Economia, Paulo Guedes, afirmando que nada realizou. “A política atual peca porque a visão de mundo que eles têm é irracional. São seguidores de uma seita”, disse. “Os atuais governantes são lunáticos e insanos, pessoas que não têm contato com a realidade.”
Quais forças que levaram à queda de Ernesto Araújo?
Ele caiu pelo conjunto da obra, graças à diplomacia desastrosa que conduziu desde o início do governo. Os erros cometidos em matéria de vacina ou a hostilidade à China não só em relação ao 5G, mas de modo geral, formam parte desse conjunto. Em termos imediatos, foi o Congresso, em especial o Senado, que impulsionou a ofensiva final contra ele. É preciso lembrar, porém, que há muito tempo ele era unanimidade: todos eram contra ele, a começar pela imprensa, os meios acadêmicos, os setores políticos junto aos quais sempre despontava como o pior ministro do governo.
Quais os erros dele à frente do ministério o senhor destacaria?
O principal foi aceitar a pregação de Olavo de Carvalho, através de quem fez sua carreira e chegou à posição de ministro. Foi por meio desse guru que ele se aproximou de Eduardo Bolsonaro e tantos outros. É um grupo sectário, que tem uma visão de mundo conspiratória e acredita que há uma destruição da herança política judaico-cristã, chamada globalismo. Organizações como a ONU, que procuram promover valores e novas regras, que violariam a tradição bíblica, seriam algo a ser combatido. A tolerância com as minorias sexuais e a promoção da igualdade de gênero, por exemplo, são vistas como uma ameaça. É em função disso que eles idealizam a política externa. Eles partem de uma visão distorcida da realidade mundial e, quando você tem um diagnóstico errado, qualquer terapêutica também será um equívoco.
Viramos realmente um pária perante o mundo?
Já somos um pária, não há dúvidas. São muitas as questões que nos envergonham, como direitos humanos, a questão dos povos indígenas, meio ambiente, destruição da Amazônia, a pandemia, os direitos da mulher e das minorias. É uma lista extensa de temas em que o Brasil está completamente na contramão do que se poderia chamar de estado atual da consciência moral da humanidade. Araújo e o próprio Bolsonaro, são pontos absolutamente fora da curva da nossa história. Acho que ambos, que são no fundo a mesma coisa, representam uma anomalia, uma aberração na história do Brasil e tenho confiança que essa aberração não vai durar além da eleição do ano que vem. Alguns erros já cometidos são, contudo, irreparáveis.
Quais seriam?
O Brasil era sempre visto como uma força de moderação, que buscava edificar consensos e evitava posições extremas. Tudo isso era uma constante em nossa história. Mesmo no governo Lula, em relação ao governo Fernando Henrique, houve continuidade. Claro que cada um dos governos teve ênfases diferentes, mas houve compatibilidade de valores. Ou seja, todos os governos democráticos, apenas com a exceção do atual, todos tinham a mesma adesão aos princípios básicos de direitos humanos. Com Bolsonaro, não. Dessa vez nós temos um governo que começou com um erro colossal de avaliação e não partiu de um bom julgamento da realidade internacional. Antes de se definir uma “diplomacia”, você precisa se perguntar: “Em que mundo eu estou situado? Quais são os problemas desse mundo e suas forças?” É a partir desse diagnóstico que se define como é possível obter o melhor resultado para o País.
E o governo não fez isso?
A política atual peca porque a visão de mundo que eles têm é irracional. São seguidores de uma seita. Na política há vários vieses, desde esquerda, extrema esquerda até extrema direita, mas esse grupo está fora do espectro. Os atuais governantes são lunáticos e insanos, pessoas que não tem contato com a realidade.
Bolsonaro é responsável por essa insanidade?
Bolsonaro é uma figura intelectualmente primitiva. Isso não quer dizer que ele não seja esperto. Ele tem intuição, tem astúcia de uma pessoa que procura sempre levar vantagem, mas ele não é alguém que leia livros ou que se preocupe com teorias assertivas. Ele não elabora nada.
As falhas de diagnóstico também valem para a estratégia econômica adotada pelo ministro Paulo Guedes?
O caso do Guedes é diferente. Ele deve achar esse papo de globalismo uma baboseira enorme, pois é um homem do mercado financeiro. Ele deve ter pouca paciência com essas teorias de Olavo de Carvalho. Ele tem outro tipo de problema: uma visão anacrônica do neoliberalismo da escola de Chicago. Ele quer aplicá-la justamente no momento em que os antigos praticantes a estão abandonando. O grande pecado dessa escola é o de dar uma confiança excessiva ao mercado e minimizar a posição do Estado. O pior problema do Guedes é que ele não tinha experiência prática no serviço público. Sem nenhum conhecimento de regras orçamentárias, ele começou a apresentar propostas fora das possibilidades do País.
O que o senhor chama de propostas fora da realidade?
Guedes disse que iria zerar o déficit público em um ano. Olha, o déficit público brasileiro é um problema que desafia o governo desde a independência, em 1822. Nenhum governo brasileiro conseguiu zerar isso. Como imaginar que alguém, por milagre, iria fazer isso em um ano? E como ele iria fazer? Vendendo todas as estatais e todos os imóveis da União? Aí ele também se enganou. Há muitas estatais que são dificílimas de vender, pois a resistência é muito grande, como Petrobras, Banco do Brasil e por aí vai. Tanto isso é verdade que ele não conseguiu mover um centímetro na privatização dessas estatais. Também os imóveis, são uma ficção. No papel, a União federal é dona de milhões e milhões de imóveis, mas muitos desses imóveis estão ocupados, às vezes há mais de um século, por posseiros ou outras pessoas. Ele mostrou que não tinha nenhum conhecimento real do problema. E o déficit só aumentou no lugar de diminuir.
Mas ele conseguiu aprovar a Reforma da Previdência. Isso não seria um sucesso?
Foi a única reforma que ele fez. E essa reforma já estava mais do que mastigada pelo Temer. Só não passou na época do Temer por causa daquele fatídico encontro, a altas horas da noite, dele com o dono da JBS. Não fosse isso, já estava pronta para ser votada. O atual governo recebeu isso de bandeja. Guedes até atrapalhou, não fez nada. As reformas Administrativa e Tributária estão paradas. No caso da tributária, ele está totalmente perdido. Ou seja, tudo indica que esse governo terá chegado ao fim tendo feito pouca coisa.
O senhor acredita no impeachment?
É difícil fazer uma previsão. Acho que no momento não há nada que indique politicamente que o impeachment irá ocorrer.
Tirar Bolsonaro não resolveria o caos na saúde?
Fui favorável ao impeachment desde o início do governo. Desde os primeiros momentos tivemos vários exemplos de crimes de responsabilidade que se multiplicaram, principalmente agora na pandemia. Porém, não houve uma mobilização da população na rua. E, além do mais, o presidente soube agir de uma maneira tática, procurando ganhar o apoio do Centrão e, pelo menos por enquanto, não parece correr o risco de deixar o poder. Não há dúvida de que nas próximas semanas e meses, veremos a situação da pandemia piorar muito. Já é insuportável, mas irá piorar ainda mais. Só vai melhorar quando tivermos vacinas e a campanha de vacinação ganhar mais ritmo. Infelizmente, isso só ocorrerá no segundo semestre e provavelmente até o fim do ano.
Quanto tempo vai demorar para o Brasil recuperar sua reputação internacional?
Se houver uma mudança de governo nas próximas eleições e nós tivermos uma política externa mais objetiva, sim. É algo que não é difícil: basta fazer o contrário do que está sendo feito. A nossa política externa é a anti-diplomacia. Até as pessoas que não são familiarizadas com a diplomacia, conseguem entender que isso não é um bicho de sete cabeças. Existe um livro famoso chamado “Como fazer amigos e influenciar pessoas”, do Dale Carnegie, que explica isso: diplomacia é fazer amigos e influenciar pessoas. O Brasil faz o contrário. Faz inimigos, hostiliza e antagoniza as pessoas.
Por quê o governo Bolsonaro critica tanto a China?
Estão provocando a China, pois sabem que é um país com uma perspectiva de longo prazo. A China não pensa em semanas ou meses, mas em décadas à frente. Até séculos. Porém, o país também é muito suscetível, já que no passado sofreu muita humilhação por parte dos ocidentais. Nós tivemos esse problema gigantesco no caso das vacinas. O atraso no fornecimento da matéria-prima, o IFA, foi um sinal que o governo chinês mandou como uma advertência ao governo brasileiro. Tanto que agora o governo parou de insultar a China. O governo andou até implorando ao embaixador chinês que permitissem a Bolsonaro uma conversa com Xi Jinping, algo que não lhe foi concedido. O atraso foi de algumas semanas e o Brasil sentiu as consequências disso. Uma coisa que mudou também foi a postura em relação à tecnologia do 5G, antes duramente criticada. Falava-se até em proibir a participação dos chineses no consórcio. Isso mudou da água para o vinho e o negócio está andando. Viram que se negassem isso à China, seria uma declaração de guerra.
Como o governo Biden pode ajudar o Brasil?
A eleição dele é um grande avanço. Logo no começo ele se voltou para o Acordo de Paris, se voltou para a OMS e para o Conselho de Direitos Humanos. Conseguiu aprovar esse pacote de ajuda trilionária aos seus cidadãos. Está conseguindo vacinar velozmente a população e tudo isso influencia o resto do mundo pelo exemplo. As pessoas esperam que os Estados Unidos promovam a democracia onde ela não existe, mas a melhor contribuição que eles podem dar é pelo próprio exemplo. O Trump era o anti-exemplo.
FAP conclama defesa da democracia e mostra preocupação com avanço da pandemia
Em nota pública, Fundação Astrojildo Pereira lamenta perda de milhares de vidas para a Covid-19
Cleomar Almeida, Coordenador de Publicações da FAP
O presidente do Conselho Curador da FAP (Fundação Astrojildo Pereira), Luciano Rezende, e o diretor-geral da entidade, Caetano Araújo, divulgaram nota, nesta quarta-feira (31/3), em defesa da democracia e para reforçar preocupação com o avanço da Covid-19. A data marca os 57 anos da instalação da ditadura militar no país, que durou de 1964 a 1985.
Na nota, os representantes da entidade, que é vinculada ao Cidadania, criticam o negacionismo da pandemia, assumido pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido). A doença já matou quase 320 mil pessoas no Brasil, que, segundo a nota, está estagnado economicamente e deixa desamparadas pessoas que precisam de auxílio emergencial.
“A recuperação sustentável tem como condição o equacionamento da crise sanitária, e o auxílio emergencial, fundamental para a sobrevivência dos brasileiros e a manutenção de alguma atividade econômica no ano que passou, pode ser reduzido nos próximos meses, nos seus valores e no seu alcance”, afirma um trecho.
Com o país tomado por intranquilidade, segundo a nota, a FAP manifesta, publicamente, sua grande aflição com o avanço da pandemia e critica a criação de um ambiente hostil no país, “em que, diariamente, se estimula confrontos entre poderes, instituições e sociedade, colocando em risco a ordem democrática”.
A seguir, leia a nota na íntegra.
Nota pública em defesa da vida e da democracia
Assistimos nos últimos dias ao acúmulo de péssimas notícias para todos nós, cidadãos brasileiros. No que respeita à crise sanitária, o número de novos casos da pandemia e de óbitos dela decorrente aumenta assustadoramente.
Há poucos dias oscilávamos em torno da marca, já inaceitável, de duas mil mortes ao dia. Hoje estamos perto de dobrar esse número e não temos sinal algum de reversão dessa tendência.
O negacionismo assumido pelo Presidente da República, devido a sua função de liderança da nação, agrava a má gestão da pandemia, que cobra seu preço.
Tampouco são animadoras as notícias vindas da economia. A estagnação prossegue, a recuperação sustentável tem como condição o equacionamento da crise sanitária, e o auxílio emergencial, fundamental para a sobrevivência dos brasileiros e a manutenção de alguma atividade econômica no ano que passou, pode ser reduzido nos próximos meses, nos seus valores e no seu alcance.
Finalmente, no que se refere à política, vimos uma série de episódios de confronto e instabilidade entre instituições.
Como exemplo, o discurso que estimula a convocação reiterada para a ocupação das ruas, em várias cidades, de manifestantes contra as ações tomadas para combater o avanço do vírus e suas consequências.
Nesse clima de confronto, houve ainda a provocação racista, no recinto do Senado Federal, feita por um influente personagem palaciano.
Finalmente, a mudança repentina do ministério, a partir da demissão do Ministro da Defesa, seguida pela substituição dos três comandantes das Forças Armadas.
Fatos que colocam em risco o equilíbrio das três Forças, no desempenho de suas importantes funções constitucionais.
Neste quadro de complexidade e intranquilidade, a Fundação Astrojildo Pereira vem manifestar de público sua grande preocupação com o avanço da pandemia, a perda de centenas de milhares de vidas, dor, sofrimento nas famílias brasileiras e as graves consequências sociais e econômicas que já se consolidam, em um ambiente em que diariamente se estimulam confrontos entre poderes, instituições e sociedade, colocando em risco a ordem democrática.
Conclamamos também o conjunto dos cidadãos, os partidos políticos, os mandatários eleitos, as organizações da sociedade civil a cerrar fileiras em defesa da democracia no Brasil.
Brasília, 31 de março de 2021
Luciano Rezende
Presidente do Conselho Curador da Fundação Astrojildo Pereira
Caetano Araújo
Diretor da Fundação Astrojildo Pereira
Tibério Canuto: Reflexões de um ex-cabo conscrito
Há uma diferença oceânica entre um general de quatro estrelas que galgou a presidência e um ex-capitão baderneiro que também chegou a ser presidente da República. Isso fica muito claro na comparação entre os episódios da demissão de Sílvio Frota e a de Fernando Azevedo. Quando decidiu degolar seu então ministro da Guerra, Geisel previamente assegurou o apoio das principais guarnições militares do país e dos principais comandantes do Exército. Obedeceu uma das leis da guerra: a dissimulação e a surpresa, neutralizando, assim qualquer possibilidade de reação de Sílvio Frota.
Bolsonaro fez o contrário. Articulou o golpe a céu aberto, sem combinar com a cadeia de comando, sem a certeza de que a caserna se submeteria aos seus intentos, com a demissão do ministro da defesa Fernando Azevedo. Militares costumam dar nome às suas operações. O plano de invasão da União Soviética por Hitler se chamava Barbarossa, a da invasão da Normandia Overland. A de Bolsonaro bem poderia se chamar Operação Tabajara, tal o seu resultado desastroso.
Se o objetivo era transformar as Forças Armadas em instituições privadas a serviço de seu projeto de poder, o tiro saiu pela culatra. Em vez de perfilar-se aos seus planos macabros as FFAA se uniram na defesa do seu papel constitucional como instituição do Estado. O inédito pedido de demissão conjunto dos comandantes das três forças tem esse sentido, numa clara demonstração de que a postura profissional do ex-comandante do Exército, general Edson Pujol, sempre esteve respaldada por toda cadeia de comando, composta por 16 generais de quatro estrelas.
Sim, Bolsonaro sai no prejuízo na mais séria crise militar desde 1977. Não só por não ter conseguido seu objetivo de aparelhar as Forças Armadas. Mas porque instalou uma crise que inexistia e que representava até então sua principal base de apoio. O pacto estabelecido em 2018 pelo então comandante Eduardo Villas Boas no qual os militares ingressaram de corpo e alma na campanha do atual presidente na certeza de que controlariam seus “excessos” foi rompido pelo próprio Bolsonaro.
Ainda não está devidamente esclarecido qual será o comportamento de Braga Neto, substituto de Fernando Azevedo. Certamente entrou para atrelar a caserna aos designíos de Bolsonaro. Mas até onde irá, diante da resistência da cadeia de comando? O mais provável é que adote inicialmente uma postura comedida para não tocar fogo no paiol. A ordem do dia sobre 31 de março que assinou teve um tom moderado.
Só a ingenuidade da TV Globo pode considerá-la ruim porque os militares não trataram 1964 como um golpe, não condenaram o AI-5, nem a supressão das liberdades. Isto eles não farão nunca e não nos interessa alimentar esse debate. O positivo é que a nota assinada por Braga Neto era a ordem do dia escrita pelo então ministro da Defesa Fernando Azevedo e ela contém dois pontos positivos. A contextuação do período histórico em que o episódio se deu e o reconhecimento da anistia como importante instrumento para a pacificação do país.
Bolsonaro sai do episódio com o sabor de derrota por ter ignorado a própria história militar brasileira. Desde o advento da República é condição básica para o sucesso do golpe a participação das Forças Armadas como instituição e não apenas de um setor. Todas as tentativas individuais ou de apenas uma corrente militar fracassaram: os 18 do Forte, 1924, Insurreição de 35, a tentativa de golpe dos integralistas em 38, Jacareacanga e Aragarças, entre outros.
Getúlio Vargas implantou o Estado Novo porque contou com as Forças Armadas, como instituição. O golpe de 1964 foi vitorioso porque teve essa característica.
Mianmar não é aqui. Para que um golpe logre êxito, são necessárias condições externas e internas favoráveis, principalmente a última. 1964 aconteceu porque houve uma parte ponderável da sociedade apoiou e participou. Quando Daniel Aarão qualifica 1964 como um golpe cívico-militar não está de todo sem razão.
Sem tais condições, as Forças Armadas não se envolverão em incursões golpistas de Bolsonaro. Dá para pensar um golpe sem o apoio dos empresários? Impossível. Lula não está para os empresários assim como o fantasma do comunismo esteve em 1964. No limite, se não houver uma terceira alternativa, se compõem com Lula porque o governo Bolsonaro é um desastre até para eles.
Existem alguns valores e princípios dos militares que devemos ter em conta. O primeiro deles é a observância à hierarquia, que é basilar para a manutenção da disciplina. De acordo com esse critério, o comandante do Exército é o mais antigo, de acordo com o Almanaque do Exército. A dificuldade de Bolsonaro é nomear um ministro de sua preferência desrespeitando essa norma. Não há general de quatro estrelas “bolsonarista”, embora algum possa ser picado pela mosca azul. Mesmo o seu preferido, general Marcos Freire Gomes, atual comandante do Exército do Nordeste, perfila-se com a postura profissional da cadeia de comando. E para ser nomeado, teria de violar o Almanaque do Exército, “caroneando” quatro generais de quatro estrelas.
O outro valor é o da camaradagem. Isto implica em lealdade com os companheiros. A liderança de Braga Neto será minada porque ele não foi leal com um seu companheiro de ministério – Fernando Azevedo – ao contrário dos três comandantes que se demitiram em desagravo a Azevedo. Braga Neto tem outro problema. Apesar de estar na reserva, é um general de quatro estrelas mais novo do que os que estão na ativa. O problema está criado porque o ministério da Defesa foi “militarizado”. A pasta foi concebida para ser a prevalência do poder civil sobre o poder militar. Por isso, seus comandantes nos governos FHC, Lula e Dilma foram paisanos. A tradição foi rompida por Temer e Bolsonaro.
Não estou dizendo aqui que Bolsonaro não tentará o autogolpe e que não tentará envolver as Forças Armadas em sua aventura. Mas entre querer e poder há uma enorme distância. As chances de sucesso de um golpe a la Trump são muito pequenas, para não dizer nenhuma. Mas ele vai tentar, provavelmente antes da eleição, quando ficar claro que perderá para quem for para o segundo turno.
É risível pensar um golpe apoiado exclusivamente pelas polícias militares. Isto não deu certo nem em 1932, quando a Força Pública de São Paulo era proporcionalmente mais apetrechada do ponto de vista bélico do que são as atuais polícias militares.
Alega-se que Bolsonaro está mais forte porque estreitou os laços com o “centrão”, que agora adentra no Palácio do Planalto por meio da nomeação da deputada Flávia Arruda para a articulação política do governo. Isto serve, até certo ponto e até certo grau, para evitar um pedido de impeachment. Desde sempre o avanço do “Centrão” no aparato governamental é diretamente proporcional ao enfraquecimento do presidente. Foi assim com Dilma e Temer, está sendo assim com Bolsonaro.
Daqui a três meses os políticos começam a se movimentar por aquilo que é seu combustível: a expectativa de poder. Cada vez mais ele foge entre os dedos de Bolsonaro. Nessa toada, se voltarão para Lula, se não for criada uma terceira alternativa.
É possível que tenha dito um monte de besteiras. Não sou um expert em questões militares. Sou apenas um ex-cabo conscrito do Exército. Apenas umas palavrinhas finais.
A oposição presta enorme serviço à nação se não buscar tirar dividendos da crise militar. Sua politização pode levar os militares a se unir no campo oposto. Nesse sentido a iniciativa do PSOL, PT e PSB de entrarem com um novo pedido de impeachment, baseado nas demissões dos quatro militares é ruim. Em vez de unir, vai dividir.
Se alguma frente deve ser costurada no momento, é a ampla frente para que 2022 aconteça. Temos de chegar ao porto seguro da eleição presidencial.
Marcus Oliveira: 1964, ainda precisamos falar disso
Em 1985, o General João Baptista Figueiredo, último dos ditadores brasileiros, recusou-se a passar a faixa presidencial para José Sarney, preferindo sair às escondidas, pelos fundos do Palácio do Planalto. Essa cena é sintomática e marca os dilemas enfrentados no processo de transição para a democracia. Embora a promulgação da Constituição de 1988 tenha sido um avanço imprescindível para a construção de um ordenamento político democrático, o autoritarismo civil e militar permaneceu nos subterrâneos da Nova República. Nos momentos de crise, impulsionados entre tantos outros fatores pelo fracasso do projeto petista, as sombras do autoritarismo adquiriram novas dimensões a partir do momento em que Jair Bolsonaro ascendeu ao poder. Em sua nostalgia da Ditadura Civil-Militar, Bolsonaro revela, além de uma postura antidemocrática, o desejo de rompimento com a estrutura jurídica e política da Nova República. Diante desse passado mal elaborado que persiste, ainda é preciso acionar o combate pela história, memória e democracia.
O Golpe Civil-Militar de março de 1964, além de instaurar um regime ditatorial que duraria mais de duas décadas, interrompeu a experiência democrática em curso no Brasil desde 1946. Apesar das várias crises e de inúmeras tentativas de golpe, a ordem republicana surgida após a queda do Estado Novo estimulou a democratização da sociedade e o protagonismo da sociedade civil. No início dos anos 1960, essa cultura política democrática, fundamental para a manutenção dessa República, foi incapaz de fazer frente ao golpismo de parte das elites e dos militares.
O projeto dos militares, a despeito de suas diferenças internas, ambicionava uma modernização pelo alto, capaz de desmobilizar e controlar os impulsos políticos oriundos da sociedade civil. Nesse sentido, a ordem política e jurídica instaurada a partir dos Atos Institucionais e da Constituição de 1967, apontava precisamente para a construção de um Estado de Exceção marcado pela constante violação das liberdades individuais e dos direitos humanos. No preâmbulo do AI-1, editado em abril de 1964, apesar da manutenção da Constituição de 1946, os militares signatários se arrogam o Poder Constituinte e afirmam sua identidade com a nação brasileira. Nesses termos, a edição do AI-5, em dezembro de 1968, não configurou um golpe dentro do golpe, mas o aprofundamento, pela linha-dura, da excepcionalidade anunciada nos primeiros tempos do regime.
Todavia, o regime procurou mascarar sua própria excepcionalidade por meio da manutenção de determinados aspectos da institucionalidade democrática. Em meio aos mandatos cassados e eleições indiretas para os cargos do Executivo, houve a criação de um sistema bipartidário dividido entre a Aliança Renovadora Nacional (ARENA), representante das forças institucionais do regime, e o Movimento Democrático Brasileiro (MDB), oposição que buscava se organizar politicamente dentro das instâncias institucionais possíveis.
Por outro lado, há uma fragmentação no campo das esquerdas. O Partido Comunista Brasileiro (PCB), um dos atores políticos mais importantes do período, sofre inúmeras cisões internas motivadas por militantes que, inspirados pelos modelos revolucionários cubano e chinês, ingressaram na luta armada. Para os que aderiram às ilusões armadas, a derrubada do regime por meio da via insurrecional não significava a conquista da democracia, mas a possibilidade revolucionária de implementação da ditadura do proletariado. Os pecebistas jamais apoiaram a luta armada, permanecendo na defesa de uma estratégia que visava derrotar politicamente o regime, aprofundando as orientações democráticas que conduziam as ações do partido desde o final dos anos 1950. Em virtude disso, em função da ilegalidade, os comunistas se somaram à luta política do MDB e cumpriram papel significativo na luta pela recuperação da democracia.
A derrota da ditadura militar brasileira começa a ocorrer precisamente nas margens dessa institucionalidade política remanescente. Nos anos 1970, após o extermínio de grande parte dos grupos armados e dos primeiros sinais de crise do “milagre econômico”, a oposição emedebista se fortalece em torno da (anti)candidatura – simbolicamente desafiadora – de Ulysses Guimarães para a presidência da República. Nesse contexto, o MDB conquista importantes avanços no Legislativo e os militares anunciam seu projeto de abertura política.
Com Ernesto Geisel na presidência, a linha-dura representada por Costa e Silva e Médici perdem relevância diante da proposta de uma abertura lenta, gradual e segura. Contudo, isso não implicou o desaparecimento da linha-dura, tampouco a eliminação das arbitrariedades do regime. Concomitantemente a abertura, Vladmir Herzog e dirigentes do Comitê Central do PCB foi assassinada ou teve que ir para o exterior. Nesses termos, a proposta de abertura pensada no governo Geisel marcava a persistência da excepcionalidade do regime e o desejo de controlar o processo de abertura e transição. Para os militares, a desconstrução do aparato autoritário criado ao longo da ditadura deveria obedecer ao ritmo de uma transição delimitada e controlada pelos próprios militares, no qual a oposição deveria cumprir papel secundário. Na transição para os anos 1980, a Lei de Anistia, embora absolva os condenados e processados, pretendeu relegar os crimes e as arbitrariedades ao esquecimento. Por outro lado, o retorno do pluripartidarismo almejava o enfraquecimento do MDB por meio da divisão política dos setores oposicionistas.
Contudo, como atesta Luiz Werneck Vianna, é preciso distinguir projetos políticos e processos históricos. Reforçar essa distinção implica perceber que, apesar do caráter pactuado da transição, o projeto encabeçado pelos militares não foi integralmente vitorioso. As forças oposicionistas, mesmo divididas entre projetos de democracia política e social, foram capazes de disputar politicamente a transição. Em virtude disso, movimentos significativos como as “Diretas Já!” adquirem significados para além dos fracassos e derrotas políticas.
Portanto, o processo histórico de abertura e transição foi resultado dessa complexa trama política na qual diversos projetos se encontravam em disputa. Aqueles que defenderam a política e a democracia ao longo da ditadura militar foram os responsáveis pela elaboração dos caminhos políticos que permitiram a redemocratização do Brasil nos anos 1980. Todavia, a divisão dos atores políticos e a disputa dentro da própria institucionalidade do regime contribuíram para os dilemas vivenciados durante a transição e na Nova República.
Com Bolsonaro, tais dilemas se tornaram mais evidentes e se intensificaram. Vivemos dias atormentados nos quais alguns pensam no rompimento com o ordenamento republicano estabelecido pela Constituição de 1988 enquanto outros reencenam o passado de modo farsesco. Trata-se, ao contrário, de remover os obstáculos ao aprofundamento da democracia de 1988. Para isso, é preciso reconhecer a trajetória histórica que nos fez chegar até aqui, em toda sua complexidade, contradições e limites. É preciso demarcar uma leitura histórica que não oculte o quão trágico foi para a sociedade a ditadura civil-militar e, ao mesmo tempo, valorizar a estratégia política que a conduziu, com êxito, apesar dos percalços, para a democracia da Constituição de 1988.
Cristiano Romero: Sem nação, pandemia é mais devastadora
Manifesto é tardio, mas é cinismo criticar iniciativa
É de um cinismo atroz a crítica feita, principalmente por alguns setores da esquerda, ao contundente manifesto, assinado por 500 economistas e lançado no fim de semana passado, que cobra do governo Bolsonaro mudança radical no enfrentamento da pandemia. Subscrito por economistas de orientação ideológica distinta, o manifesto, intitulado “O País Exige Respeito; a Vida Necessita da Ciência e do Bom Governo”, é uma forma de sensibilizar a opinião pública para a tragédia que assola o país devido ao inacreditável negacionismo do presidente da República diante da maior crise sanitária vivida pela humanidade em cem anos.
O movimento é tardio? Sim, não se tenha dúvida disso. Mas, o que explica o imobilismo da elite intelectual brasileira, assim como de todos os outros setores da vida nacional, é o fato de, infelizmente, não sermos uma nação. Esta só existe quando cada cidadão se reconhece no outro, quando compartilha valores e aspirações, quando todos são rigorosamente iguais perante as leis, quando não existe discriminação de qualquer espécie, quando o Estado assegura a todos oportunidades iguais de formação educacional e acesso a serviços, como a saúde e segurança pública.
Na Ilha de Vera Cruz, regimes ditatoriais procuraram forjar simulacros de identidade nacional, como a paixão pelo futebol. Pelé, o melhor jogador de futebol de todos os tempos (do passado e do que ainda virá), carregou nos ombros, talvez inconscientemente, o peso da responsabilidade de ajudar a Seleção Brasileira a vencer a qualquer custo a Copa do Mundo de 1970, no México.
Em documentário produzido pela Netflix, aos 80 anos, envelhecido pelos problemas de saúde que vem enfrentando nos últimos anos, Pelé relata, de uma maneira que nunca se viu antes, a carga sobre-humana que a falsa nação exigiu dele, em meio aos anos de chumbo da longa ditadura militar instaurada no país (1964-1985).
Em outubro do ano passado, o governador de São Paulo, João Doria, fechou acordo com o então ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, para a compra de vacina da China, primeiro passo para a produção de imunizante em larga escala, no Instituto Butantan (estadual) e na Fiocruz (federal). Doria começou a negociar com os chineses em abril. O acerto envolvia outros Estados, uma vez que, com exceção da União e do governo paulista, as unidades da Federação não possuem dinheiro nem tecnologia para produzir vacinas.
Num sinal claro de que está ali para atrapalhar e não para ajudar, no tema gravíssimo da pandemia, o presidente Jair Bossonaro desautorizou o acordo. A pergunta que fica no ar é uma só e não se dirige apenas aos 500 economistas do manifesto lançado há poucos dias: onde estávamos todos, os cidadãos instruídos deste imenso país, os sindicatos patronais e de trabalhadores, os artistas, todos aqueles sabedores de que o presidente negacionista estava usando a tragédia para fazer política, jogando governadores e prefeitos, diante da ausência de vacina, na armadilha da necessidade de adotar medidas de isolamento social?
Sem nação, seremos sempre uma democracia manca porque nunca teremos institucionalizado para defender a sociedade de maus governantes.
Pelé
A propósito de Edson Arantes do Nascimento, eleito o maior atleta do século XX e que fez 80 anos no ano passado, sob o silêncio constrangedor de seus compatriotas, que juravam ver nele um dos símbolos de nossa identidade nacional _ mentira, claro _, este humilde colunista diz o seguinte:
Monstro, extra-terrestre, gênio, fora-de-série, fenomenal, absoluto, artista, maestro, rei, inigualável, inalcançável, Deus, enfim. Foi em todos os quesitos do esporte bretão o melhor da história, inclusive, no gol. Sua arrancada rumo ao gol adversário não era engenho humano. Sua habilidade tinha a precisão de um relógio suíço e a plasticidade de um balé russo.
Pelé não “matava” a bola. Esta, na verdade, perdia a fúria ao se aproximar de seu peito. Acolchoava-se nos braços do ente querido como se estivesse retornando depois de um dia longe de casa.
O craque do Santos e do Brasil usava régua e compasso, mas, em seus pés, a redonda ia sempre em direção à meta adversária. Irascível, muitas vezes batia na canela dos marcadores, como se esses fossem cones em dia de treino. O drible era pura arte, mas a serviço da missão jamais negligenciada: furar o bloqueio e colocar a bola na rede.
Para Pelé, não havia “russos”, mas jogo contra em pelada de várzea. “Último a ir no gol”, apressam-se os maganos onde começa _ ou começava _ o sonho do futebol na pelada atéia, sem uniforme, paixão clubística, mancha verde, fiel corintiana, young Flu ou religião de qualquer natureza.
Assim como no “jogo contra”, adversários de Pelé não tinham naturalidade nem nacionalidade; nem registro profissional ou passaporte; carteira de identidade ou de motorista. Não chegavam a ser pedras no caminho do poeta, mas estavam ali para cumprir o destino histórico de testemunhar o sobrenatural, o indizível, o inacreditável, o indomável.
Se tivesse sido jogador ao tempo em que Pelé ainda não havia estreado como jogador profissional, eu certamente sonharia “perder” para Pelé. Ganhar seria perigoso, afinal, ninguém acreditaria e eu passaria por mentiroso e megalômano: “Acreditem, ganhei dele, venci-o, é verdade!”. É quase como sonhar em ser o substituto de Lennon nos Beatles, ainda que este seja um desafio mais palatável do que jogar e vencer o maior jogador de futebol de todos os tempos, aqui e alhures, nesta e em todas as dimensões.
Edson Nascimento é parte do maior grupo populacional deste país, cujo nome _ Brasil _ nada diz, ao contrário da maioria dos territórios deste planeta. Pelé é negro como 56% dos habitantes da Ilha de Vera Cruz. Pergunte a um quatrocentão paulista, a um galego do Sul, a um carioca de sobrenome de diplomata e a um descendente de usineiro de Pernambuco se ele se reconhece minimamente no “ídolo" que os fizeram sentir orgulho, por alguns anos, de serem brasileiros. As respostas mostrarão o quão distantes estamos de um projeto de nação.
O Estado de S. Paulo: Após um ano de pandemia, Bolsonaro anuncia comitê para coordenar ações contra covid-19
Um dia após recorde de mortes diárias no País, presidente anuncia comitê para coordenar ações em conjunto com governadores, Legislativo e Judiciário
Emilly Behnke, Camila Turtelli e Daniel Weterman, O Estado de S.Paulo
BRASÍLIA - Mais de um ano após o início da pandemia do novo coronavírus, o presidente Jair Bolsonaro anunciou nesta quarta-feira, 24, a criação de um comitê para coordenar ações no País contra a doença. A formação do grupo foi definida em reunião do presidente da República com os presidentes do Supremo Tribunal Federal, Luiz Fux, do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), da Câmara, Arthur Lira (Progressistas-AL), do procurador-geral da República, Augusto Aras, governadores e ministros.
No encontro, o presidente foi cobrado a liderar um "pacto nacional" e ouviu ser preciso "despolitizar a pandemia". Em pronunciamento em seguida, Bolsonaro voltou a defender o tratamento precoce, composto por medicamentos sem eficácia comprovada no tratamento da covid-19.
Segundo declarou Bolsonaro, a ideia é que haja uma coordenação destas ações em conjunto com os governadores e chefes do Congresso. O grupo deve se reunir semanalmente com as autoridades para, de acordo com o presidente, "redirecionarmos o rumo do combate ao coronavírus".
"Sem que haja qualquer conflito, sem que haja politização, creio que seja esse o caminho para o Brasil sair dessa situação bastante complicada que se encontra", afirmou o presidente após o encontro, realizado na manhã de hoje no Palácio da Alvorada.
Os confrontos, no entanto, têm sido a marca da relação de Bolsonaro com governadores e prefeitos desde o início da pandemia. O presidente é crítico a medidas de isolamento social determinadas pelos governos locais e chegou a ingressar com uma ação no Supremo para reverter restrições em três Estados: Bahia, Rio Grande do Sul e Distrito Federal. O pedido foi negado ontem pelo ministro Marco Aurélio Mello.
Participaram da reunião no Alvorada os presidentes do Supremo Tribunal Federal, Luiz Fux, do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), da Câmara, Arthur Lira (Progressistas-AL), o procurador-geral da República, Augusto Aras, governadores e ministros.
Nenhum dos três governadores alvo da ação participou da reunião de hoje em Brasília. Na lista de convidados estavam apenas aliados, como o governador de Goiás, Ronaldo Caiado (DEM), e o do Paraná, Ratinho Junior (PR), que também adotaram restrições de circulação e o fechamento de comércio para conter a propagação da doença.
"(Vamos) pedir a todos que entendam que, em situações delicadas, em situações críticas como a que estamos vivendo, muitas vezes se faz também necessário o isolamento social", afirmou Caiado. O governador reforçou que a responsabilidade de todos é "salvar vidas" e disse que o novo ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, terá as credenciais para adotar ações técnicas e habilitar leitos de Unidade de Terapia Intensiva (UTI).
O encontro no Alvorada foi realizado no momento mais agudo da pandemia, no dia em que o País deve atingir a marca de 300 mil mortos pela doença. Após a explosão de casos, cidades passaram a registrar filas para leitos de UTI e a falta de oxigênio e medicamentos usados no processo de intubação, necessários para o atendimento a pacientes.
O presidente também afirmou que o governo está focado na vacinação em massa da população, mas insistiu na defesa do chamado "tratamento precoce", que utiliza medicamentos sem eficácia comprovada para tratar a doença. "Tratamos também da possibilidade de tratamento precoce, isso fica a cargo do ministro da Saúde (Marcelo Queiroga), que respeita o direito e o dever do médico 'off label' (fora da bula) tratar os infectados. É uma doença como todos sabem, ainda desconhecida", disse. "Uma nova cepa, ou um novo vírus, apareceu e nós, obviamente, cada vez mais, nos preocupamos em dar o atendimento adequado a essas pessoas", acrescentou Bolsonaro.
"Não temos ainda um remédio", citou. "Mas, a nossa união, o nosso esforço, entre os três Poderes da República, ao nos direcionarmos para aquilo que realmente interessa - sem que haja qualquer conflito, qualquer politização da solução do problema - creio que essa seja realmente o caminho para o Brasil sair dessa situação bastante complicada que se encontra", afirmou.
União
Após a reunião, o presidente do Senado afirmou que a expectativa é de que Bolsonaro lidere um "pacto nacional" para enfrentar a doença. "Há a compreensão de que medidas precisam ser urgentemente tomadas. Com a liderança do presidente da República e a liderança técnica do Ministério da Saúde, por meio do ministro Marcelo Queiroga, e os demais Poderes da República", disse Pacheco.
Tanto o presidente do Senado quanto o da Câmara disseram que a reunião foi uma expressão do que a sociedade brasileira espera dos Poderes no enfrentamento da pandemia. Os dois estiveram, na segunda-feira, em um jantar com empresários na capital paulista, na casa do dono da Gocil, Washington Cinel. Entre os participantes, estavam signatários da carta divulgada no fim de semana para cobrar o governo federal por vacinas e uma avaliação sobre a necessidade de um lockdown.
No comitê que deve ser criado para o combate a pandemia, Pacheco ficou responsável por ouvir as demandas dos governadores. Lira ressaltou ser preciso “despolitizar a pandemia”. “Desarmar os espíritos e tratar como um problema de todos nós”, disse o presidente da Câmara.
Para o deputado, a reunião foi uma demonstração de diálogo e de união para que os poderes passem a falar uma “linguagem só” para assistir à população.
Fux, por sua vez, afirmou que o Supremo buscará estratégias para diminuir a judicialização da pandemia, mas que nenhum integrante do Judiciário deverá participar do comitê anunciado por Bolsonaro. "O Supremo Tribunal Federal, o Poder Judiciário, como último player para aferir a legitimidade dos atos que serão praticados, não pode participar diretamente desse comitê", afirmou Fux. "Entretanto, como esse problema da pandemia exigem soluções rápidas, nós vamos verificar estratégias capazes de evitar a judicialização, que é um fato de demora na tomada dessas decisões."
Pronunciamento
Ontem, em pronunciamento em rede nacional de TV e rádio, Bolsonaro mentiu ou exagerou sobre ações do governo contra a covid-19. Pressionado a moderar o tom, Bolsonaro disse que 2021 será "o ano da vacinação".
No discurso, Bolsonaro tentou desfazer a imagem de negacionista e de que impôs barreiras para a chegada das vacinas, apesar de ter rejeitado por meses propostas de imunizantes e até ter levantado dúvidas, sem provas, sobre a eficácia dos produtos. Abaixo, trechos com mentiras ou exageros do presidente.
MENTIRAS
Ações do governo
Logo no começo do discurso, Bolsonaro disse que "em nenhum momento" o governo deixou de tomar medidas contra o vírus e o "caos" na pandemia. O presidente, porém, desestimula desde o começo da pandemia a adoção de medidas básicas de combate à doença, como distanciamento social e o uso de máscaras. Bolsonaro só começou a usar a proteção facial mais regularmente nas últimas semanas, mas mesmo assim segue desacreditando os benefícios de medidas de restrição de circulação. Ele chegou a ir ao Supremo Tribunal Federal (STF) para impedir que alguns Estados adotem lockdowns ou toque de recolher.
Doses distribuídas
Bolsonaro disse que o Ministério da Saúde já entregou "mais de 32 milhões de doses" da vacina contra a covid-19. Segundo dados da própria pasta, porém, foram cerca de 29,9 milhões até agora.
Pessoas vacinadas
O presidente disse que mais de 14 milhões já foram vacinados no País contra a covid-19. Na verdade, 11,4 milhões receberam pelo menos a primeira dose da vacina. Destes, somente 3,62 milhões receberam a segunda dose, que garante a eficácia do produto.
Compra da Coronavac
Bolsonaro disse que sempre ter dito que compraria "qualquer vacina", desde que aprovada pela Anvisa. Não é verdade. Irado com possível ganho político do governador paulista, João Doria (PSDB), pela entrega da Coronavac, Bolsonaro mandou o Ministério da Saúde recuar de uma promessa de compra deste imunizante, em outubro de 2020. Em entrevista, ele ainda disse que a vacina não seria comprada de forma alguma por causa de sua "origem". A Coronavac foi desenvolvida pela chinesa Sinovac. “Da China nós não compraremos. É decisão minha. Não acredito que ela transmita segurança suficiente a população pela sua origem, esse é o pensamento nosso", diz Bolsonaro, em 21/10 em entrevista à Jovem Pan.
EXAGEROS
Ranking de vacinados
Bolsonaro voltou a afirmar que o Brasil é o 5º país que mais vacina no mundo. O presidente, porém, considera o número total de doses aplicadas. Quando a comparação é ajustada à população de cada País, o Brasil é o 18º no ranking mundial, segundo dados do Our World in Data, que usa informações oficiais.
Pfizer e Janssen
Bolsonaro disse que intercedeu "pessoalmente" para antecipar o calendário da vacina da Pfizer e garantir as doses da Janssen. De fato, Bolsonaro realizou uma reunião com a Pfizer neste mês, mas o atraso na compra destas vacinas deve-se justamente à resistência e até desdém de Bolsonaro sobre a oferta destas empresas. Por meses, o presidente classificou como "abusiva" a exigência da empresa de que governo assumisse riscos e custos por eventuais efeitos adversos das vacinas. Trata-se da mesma cláusula colocada por fornecedoras do consórcio Covax Facility, entre outras companhias. “Lá no contrato da Pfizer está bem claro: ‘Não nos responsabilizamos por qualquer efeito colateral. Se você virar um jacaré, é problema de você’”, afirmou o presidente, em 17 de dezembro do ano passado. Como revelou o Estadão, um dispositivo para destravar a compra foi inserido em minuta da medida provisória 1026/2021, com respaldo da Saúde, mas acabou excluído da versão final, publicada em janeiro.
500 milhões de doses
Bolsonaro disse que o País terá alcançado mais de 500 milhões de doses de vacina até o fim do ano. Essa conta, porém, considera imunizantes que ainda tem barreiras no País, como a Covaxin (20 milhões de doses contratadas) e a Sputnik V (10 milhões). Ambas não entregaram ainda dados exigidos pela Anvisa para liberar o uso emergencial dos imunizantes. Há ainda 8 milhões de doses da vacina de AstraZeneca/Oxford, fabricada pelo Instituto Serum, da Índia, nesta conta. O governo indiano, porém, tem travado as exportações.
Judith Butler: 'Trump e Bolsonaro são sádicos desavergonhados'
'Bolsonaro e Trump são os rostos da crueldade do nosso tempo, e cada um é responsável por incontáveis mortes', afirma Judith Butler
Filósofa americana, que participa nesta quarta (24) de seminário virtual sobre feminismo, fala sobre as perdas da pandemia agravadas pela desigualdade e o novo livro que chegará ao Brasil, em julho, pela Boitempo
Renata Izaal, O Globo
Na última vez em que esteve no Brasil, em 2017, Judith Butler foi alvo de petições on-line e ações judiciais de grupos conservadores que tentaram impedir sua vinda ao país para um seminário sobre democracia. Ela veio, cumpriu sua agenda, mas, na volta para casa, foi agredida no Aeroporto de Congonhas por quem acredita que a filósofa americana é a fundadora da “ideologia de gênero”.
Mas Butler não fundou coisa nenhuma. O que ela fez, de modo muito resumido, foi teorizar sobre o gênero como algo socialmente construído, uma performance. Sua obra, na verdade, é muito mais extensa e avança sobre política e democracia; violência de Estado; luto; poder, discurso e sexualidade; sionismo e a questão palestina.
Hoje, às 14h, Butler voltará a se encontrar com o Brasil, mesmo que remotamente. Ela vai discutir feminismo, corpo e território com a cantora, compositora e ativista Preta Ferreira, dentro da programação do ciclo de debates on-line “Feminismo para os 99%”, realizado pela Boitempo. O encontro será transmitido no canal no YouTube da editora, que publicará, em julho, o livro mais recente de Butler. Em “A força da não violência”, ela critica o individualismo na ética e na política e defende a “igualdade radical” para que se possa construir algo bom juntos.
Em uma breve entrevista, Judith Butler, que leciona na Universidade da Califórnia, Berkeley, reflete sobre pandemia e luto, o negacionismo de Bolsonaro e de Trump e vibra com o feminismo latino-americano: “Movimentos como o Ni Una Menos e o Las Tesis me tocam e inspiram muito”, afirma.
Seu novo livro defende uma igualdade radical, mas a pandemia tem aprofundado as desigualdades em todo o mundo. Como analisa a crise atual e suas possíveis consequências?
Acho que estamos vendo com mais clareza do que nunca as desigualdades econômicas e raciais que foram geradas pelo capitalismo global, além da situação terrível imposta a mulheres, pessoas trans e não binárias, que foram confinadas nas casas onde sofrem violência e degradação. É ainda mais doloroso ver os lucros das farmacêuticas. Mas, mesmo assim, também vivemos num tempo em que a ação contra as mudanças climáticas é imperativa, em que a luta pelas vidas negras soa mais alto e é mais persuasiva, e em que as várias formas de feminismo conquistam apoio. Não está claro em qual direção o mundo irá, mas a sensação de que as lutas estão entrelaçadas me dá esperança.
O luto é um tema importante em sua obra e tem sido debatido na pandemia, que trancou as relações nos meios digitais e impediu tantas despedidas. Qual o impacto disso?
Tem sido devastador para tantas pessoas não poderem se aproximar dos que estão morrendo, terem apenas o Zoom como um meio para o luto e, ao final, serem deixadas com um isolamento que é insuportável e debilitante. Precisamos uns dos outros para vivermos o luto. É importante estar perto fisicamente e regenerar o sentido de uma vida conjunta a partir dessa perda devastadora e, agora, rápida. A arte pública que marca as nossas perdas vai continuar sendo importante, assim como as pequenas reuniões e, eventualmente, as grandes.
Manifestações, como as do movimento Black Lives Matter, foram ao mesmo tempo atos públicos de luto e protesto. Sabemos que tantas pessoas não precisavam ter morrido, que elas sofreram da perda de cuidado adequado com a saúde e que as razões para isso foram a marginalização social, o racismo e a desigualdade econômica. Então teremos que refletir sobre a morte que poderia ser evitada: quem ou o que deixou tantas pessoas morrerem?
O governo dos Estados Unidos levou muito tempo para organizar sua resposta à pandemia, já o brasileiro ainda não o fez adequadamente. Isso é uma forma de violência?
Talvez tenhamos que revisar o nosso entendimento de assassinato, ou que aceitar que há muitas maneiras de lidar com a morte. Esta última está distribuída por toda a sociedade, e os trabalhadores só têm valor quando são produtivos. É o momento para uma renovação das ideias socialistas, começando com uma renda nacional garantida. Trump e Bolsonaro são sádicos desavergonhados. Com isto, quero dizer: se, em algum momento, eles sentem vergonha, a superam por meio do sadismo. São os rostos da crueldade do nosso tempo, e cada um é responsável por incontáveis mortes.
Trump não se encerra com a eleição de Biden e Kamala.
É ótimo que Trump tenha saído. Mas o que seu governo deixou claro é que a supremacia branca, o masculinismo (ideologia que prega a superioridade dos homens e a exclusão das mulheres), a transfobia, a homofobia e o antifeminismo têm raízes profundas na cultura americana. Nossa luta será longa.
Depois da agressão que sofreu no Brasil em 2017, você ainda acompanha o que se passa no país?
Sim, acompanho a situação política no Brasil e as operações do movimento contra a ideologia de gênero. O incidente comigo foi pequeno se comparado com o que aconteceu com feministas e pessoas LGBTQIA+ que perderam suas vidas para a violência, o abuso sexual, o racismo e a transfobia. A questão é: por que é permitido que essas violências aconteçam? Temos que perguntar sobre polícia e complacência do Estado e sobre as notícias falsas e fomentadoras de ódio geradas on-line.
A América Latina tem sido apontada como o epicentro do feminismo hoje. Você concorda?
Movimentos como o Ni Una Menos (que, desde 2015, organiza manifestações contra a violência de gênero na Argentina) e o Las Tesis (coletivo chileno que criou performance contra a cultura do estupro reproduzida em diversos países) me tocam e inspiram muito. São corajosas, enfurecidas e alegres, e o feminismo precisa envolver todo esse arco afetivo para conseguir apoio e exemplificar a nova forma de vida que substituirá a violência, a exclusão e a desigualdade.