Bolsonaro

Wlliam Waack: O vírus piorou o que já era ruim

O vírus agravou a perda de autoridade pública e de poder de decisão

A catastrófica situação da pandemia no Brasil agravou dois problemas preexistentes: a insegurança jurídica e a degradação da autoridade pública. Os dois fenômenos dividem entre si um fator comum, que é a ausência de lideranças respeitadas além de grupos consolidados nos extremos do espectro político. E explicam boa parte da paralisia decisória do governo central e a imensa dificuldade em lidar com a crise econômica e de saúde pública – que estão se retroalimentando.

Já bem antes da pandemia era o STF uma das principais fontes de insegurança jurídica do País. Nossa Corte Suprema foi totalmente consumida na batalha pelo controle das instâncias políticas, uma das grandes expressões da Lava Jato. E, diante da ineficácia do nosso sistema de governo (talvez o pior do mundo), passou a legislar e a tomar decisões levando em conta sobretudo as consequências políticas. No caso da pandemia, por exemplo, o STF acabou escalando um de seus integrantes como virtual ministro da Saúde.

Diante da propagação do vírus os ministros também se comportaram em função do embate político – situação escancarada pelas decisões sobre a abertura ou fechamento de igrejas e templos. Esse debate não foi provocado pela necessidade de se assegurar liberdade de religião, mas, sim, pelos interesses pessoais de candidatos a uma vaga no STF e por articulações para favorecer forças políticas que ocuparam uma parte do Legislativo, um pedaço importante do Executivo e estão chegando ao topo do Judiciário: as correntes evangélicas.

O fato de o STF ter de decidir quem decide o que sobre a pandemia expressa o segundo problema agravado pelo vírus: o da degradação da autoridade pública. Para isto foi fundamental a contribuição do atual presidente da República e seus traços característicos de personalidade (desequilíbrio emocional, traços de paranoia e de sociopatia). A “figura institucional” de Bolsonaro nunca entendeu a verdadeira natureza do poder do chefe do Executivo brasileiro, que não reside na caneta, mas, sim, na capacidade de ditar a agenda política.

Isto vale tanto para a economia como para a pandemia, com as quais não está sabendo lidar. Formalmente os poderes de Bolsonaro já vinham sendo encurtados pelo Legislativo e pelo Judiciário. Talvez ele nem tenha percebido que um instrumento clássico do presidente brasileiro – a alocação de recursos via orçamento – foi passada agora para um conjunto de forças políticas amorfas e regionalizadas, conhecida como Centrão, que conquistaram um posto vital dentro do próprio Palácio do Planalto. Ou seja, o Centrão aboliu intermediários. 

A ironia contida nesse fato é cruel: o Centrão manda, sem assumir qualquer ônus. Impõe limites e demissões de ministros ao presidente, sem qualquer responsabilidade por agendas, como acontece no parlamentarismo clássico. Diante da incapacidade do presidente de liderar e comandar, além da ausência de pensamento estratégico e definição clara de objetivos (além de se reeleger), a autoridade pública se diluiu. No caso da pandemia, está se dissolvendo numa corrida desesperada cuja melhor definição é, infelizmente, a do vire-se e salve-se quem puder.

Assim, a iniciativa privada está forçando e conseguindo ir adiante na compra de vacinas. Os governadores estão forçando e conseguindo contratar suprimentos onde seja possível, se necessário relegando a Anvisa ao papel de carimbar pedidos. Um número nutrido de decisões judiciais em várias instâncias criou uma confusão perigosa entre o que vale ou não vale não só em questões de medidas restritivas, mas, também, quanto ao ritmo de vacinações, grupos prioritários e quais entidades têm a liberdade de adquirir imunizantes.

Um quadro de contornos caóticos como esse sugere que em algum momento ocorrerá uma ruptura, até mesmo institucional. Mas não está “escrito” que acontecerá. Como foi dito acima, a pandemia apenas agravou o que já existia. Depois dela, é bem possível a acomodação aos padrões de comportamento político e social de sempre, caracterizados, de forma geral, pela ausência da preocupação com o bem-estar comum e o senso de coletividade. Estagnação é também um poderoso anestésico.

*JORNALISTA E APRESENTADOR DO JORNAL DA CNN


Maria Cristina Fernandes: Rejeição empresarial a presidente se mantém ascendente

Propaganda de apoio do PIB nacional com jantar em São Paulo foi tiro que saiu pela culatra

Se o jantar oferecido pelo dono da empresa de segurança Gocil, Washington Cinel, ao presidente da República tinha por objetivo propagandear o apoio desfrutado por Jair Bolsonaro no meio empresarial, o tiro saiu pela culatra. Grupos de WhatsApp de grandes empresários e investidores amanheceram indignados com a percepção vigente sobre o encontro. A avaliação é de que o Palácio do Planalto foi bem sucedido em passar a percepção, que asseguram equivocada, de que Bolsonaro tem apoio na elite econômica do país. A reunião, dizem, limitou-se a um punhado de empresários e banqueiros que responde a um dos critérios ou a ambos: são do núcleo duro raiz do bolsonarismo e estão sempre a assediar o presidente de plantão. A casa que sediou o jantar é um reflexo simbólico desta percepção. Vizinha do ex-deputado Paulo Maluf, nos Jardins, em São Paulo, a casa um dia pertenceu a um dos grandes industriais do país, José Ermírio de Moraes, e hoje é do empresário da segurança privada, ramo que cresceu junto com violência decorrente da falta de rumos do país.

A posição do grande empresariado e da grande finança estaria bem mais refletida, na visão deste interlocutor, em iniciativas como a Coalizão Brasil e a Concertação pela Amazônia, motivadas pelos equívocos da política ambiental brasileira, ou mesmo o apoio ao manifesto dos economistas por saídas para a pandemia. Essas mobilizações reúnem CEOs de grupos como Itaú, Klabin, Gerdau, Amaggi, Natura, Ambev, Gávea e Marfrig. Jantares do gênero são comuns em momentos de descrença sobre o apoio empresarial a um presidente em crise, mas a baixa representatividade do encontro de quarta-feira saltou aos olhos. A política dos “campeões nacionais” e a fartura do BNDES poupou a ex-presidente Dilma Rousseff de quóruns tão pouco representativos, o que não a impediu de cair.

A tentativa do presidente da República de ressuscitar o antipetismo para fisgar de volta o apoio empresarial perdido, diz este interlocutor, tampouco surtirá efeito. Entre aqueles que, de fato, ditam os rumos da economia nacional, este discurso não adiciona um único voto para o presidente da República em 2022. Uma parte deles reconhece que se o PT estivesse no poder o país não teria afundado tanto e a grande maioria recebe esse discurso do presidente da República como um estímulo redobrado para a busca por uma terceira via. A presença do ministro Paulo Guedes tampouco sensibilizou os empresários que ficaram de fora do jantar. Se o ministro da Economia já não empresta prestígio ao presidente da República, a recíproca também é verdadeira. Guedes hoje é visto como ministro de um país imaginário onde todos gostariam de viver, mas que, infelizmente, ninguém acredita existir senão em seus devaneios.

Apesar do incômodo gerado pelo jantar, cuja divulgação teve o empenho pessoal de ministros palacianos, não haverá mobilizações adicionais para mostrar o azedume com este governo. E o principal motivo é a pandemia. Os CEOs críticos ao bolsonarismo estão recolhidos em suas casas porque temem aquilo que o presidente despreza, a agressividade da covid-19. Cresce, porém, neste grupo, a percepção de que Bolsonaro, no limite, chegará a 2022.

O cerco da imprensa internacional a Bolsonaro reflete-se no comportamento dos parceiros internacionais desses empresários. Edições das duas principais publicações financeiras do mundo, “The Economist” e “Financial Times”, mostraram que o dano à imagem internacional do presidente é irreversível. A revista trouxe uma charge contestando que a resposta brasileira à pandemia seja conduzida por um cabeça-oca, mas sim por um “ignorante, teimoso e arrogante”. Já o jornal da City londrina trouxe uma reportagem sob o título “Bolsonaro mais isolado do que nunca” em que uma dirigente da Organização Pan-Americana de Saúde reportou preocupação com o espraiamento das variantes brasileiras por 15 vizinhos das Américas. É a percepção do Brasil como ameaça global que cresce no mundo e preocupa os grandes empresários brasileiros.

Não há, por outro lado, percepção sobre saídas fáceis à vista. Há empresários deste meio que se aproximaram do vice-presidente Hamilton Mourão por conta de sua atuação no Conselho Nacional da Amazônia mas não há qualquer mobilização real para apear o presidente da República do poder por conta da percepção de que o Congresso quer mantê-lo no cargo. O artigo do vice-presidente publicado na terça-feira, 6, no jornal “O Estado de S. Paulo” (“O que os brasileiros esperam de suas Forças Armadas”) foi lido como uma manifestação clara de que Mourão não endossou o comportamento de Bolsonaro na recente crise militar e que subscreve a atuação estritamente constitucional das Forças Armadas em defesa das instituições nacionais.

Um dos empresários descrentes do bolsonarismo diz ter sido procurado por ministro de origem militar em busca de sua percepção sobre a conjuntura. O constrangimento do ministro ante seu pessimismo lhe deixou a impressão de que os militares deste governo têm a consciência de que estão em nau à deriva. Ante reclamações de que o Supremo Tribunal Federal estica a corda com o presidente, este empresário responde que o limite da tensão, na verdade, foi alargado lá atrás pelo ex-comandante do Exército Eduardo Villas Bôas com o tuíte ameaçador sobre o julgamento do habeas corpus do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e com o beija-mão promovido pelo mesmo general aos pré-candidatos à Presidência da República em 2018. Este empresário não mantém contato com o vice-presidente Hamilton Mourão. Tem a convicção de que, assim como o ex-ministro do TSE Herman Benjamin estava com a razão quando dizia que a chapa Dilma Rousseff-Michel Temer deveria ter sido cassada por excesso de provas, é preferível dois impeachments em cinco anos a um crime de responsabilidade por dia.


Ricardo Noblat: Em um único dia, Bolsonaro é derrotado duas vezes no STF

Vem aí a CPI da Covid para acuar o governo

O fracasso do governo do presidente Jair Bolsonaro no combate à Covid-19 subiu à cabeça de Marcelo Queiroga, o quarto ministro da Saúde em menos de um ano.

Anthony Fauci, o mais respeitado imunologista americano e conselheiro do presidente Joe Biden, disse que o Brasil virou uma “ameaça mundial” porque a pandemia aqui só faz crescer.

Em visita a Porto Alegre, perguntado a respeito, Queiroz estufou o peito, imitou a arrogância do seu chefe, e respondeu assim:

– Ele [Fauci] deve cuidar dos Estados Unidos. Do Brasil, cuido eu.

Bolsonaro amou a resposta de Queiroga logo no dia em que o vírus matou no país mais 4.190 pessoas. Foi o segundo dia com mais mortes desde o começo da pandemia.

A quarta-feira havia sido um dia ameno para Bolsonaro. Ele fez o que mais gosta: viajar, falar o que lhe vem à cabeça sem ser contestado, e arrancar aplausos dos seus devotos.

Esteve em Chapecó, em Santa Catarina, em Iguaçu, no Paraná, e em São Paulo onde jantou com empresários amigos escolhidos a dedo e que acabaram por ovacioná-lo.

A quinta-feira foi um dia pesado para Bolsonaro. Não pela morte de tanta gente, mas porque ele colheu duas derrotas importantes no Supremo Tribunal Federal.

A primeira: por 9 votos contra 2, o Supremo decidiu que governadores e prefeitos podem fechar templos e igrejas enquanto durar a pandemia. Bolsonaro queria o contrário.

A segunda derrota: o ministro Luís Roberto Barroso mandou que o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), instale de imediato a CPI da Covid.

Cumpridas as exigências da Constituição (número mínimo de apoiadores, definição do fato a ser investigado e prazo de funcionamento), a CPI é direito da minoria parlamentar.

Todos os requisitos foram cumpridos desde janeiro último, mas Pacheco, eleito presidente do Senado com o apoio de Bolsonaro, recusou-se a instalar a CPI para não criar embaraços ao governo.

Ontem mesmo, antes de Barroso anunciar sua decisão, Pacheco afirmou:

– Considero que a CPI da pandemia neste momento vai ser um ponto fora da curva. Além disso, pode ser o coroamento do insucesso nacional do enfrentamento da pandemia.

No seu despacho, Barroso ensinou a respeito de CPIs:

– Trata-se de garantia que decorre da cláusula do Estado Democrático de Direito e que viabiliza às minorias parlamentares o exercício da oposição democrática.

Simples assim. O que levou Pacheco a retrucar que, a seu juízo, e por razões de conveniência, a CPI não deveria sair da gaveta, mas que decisão da justiça é para ser cumprida, e ele a cumprirá.

Ora, era o que faltava. Não cumprir? Agora, resta ao governo escalar a maior e a mais confiável bancada de senadores aliados seus para se defender na CPI e atrapalhar seu funcionamento.

Custará caro. Ninguém trabalha de graça para governo numa CPI. Só o faz em troca de muito dinheiro, de cargos e de outros favores inconfessáveis. Sempre foi assim e sempre será.

Bancada de Bolsonaro no STF aumenta com adesão de Toffoli

A partir de julho serão três ministros

Era certo que a bancada de ministros bolsonaristas no Supremo Tribunal Federal se resumiria a dois ministros até o fim de 2022 – Nunes Marques, que já está por lá ocupando a vaga aberta com a saída de Celso de Mello, e outro a ser indicado pelo presidente a partir de julho próximo e que sucederá a Marco Aurélio Mello.

Mas, não. Descobriu-se, ontem, que Bolsonaro contará com três – um deles, José Antônio Dias Toffoli, que surpreendeu seus colegas ao votar junto com Nunes Marques pela abertura de templos e igrejas durante a pandemia da Covid. Toffoli não justificou seu voto. Limitou-se a dizer que acompanharia Nunes Marques.

Toffoli sabia que seria derrotado. O placar final foi de 9 a 2. Não se incomodou com isso. Está com Bolsonaro para o que der e vier. Encantou-se por ele antes mesmo de Bolsonaro ser candidato a presidente. À época em que foi assessor parlamentar do PT na Câmara, entre 1995 e 2000, os dois conversavam muito.

Foi Lula que fez de Toffoli ministro do Supremo em 2009. Toffoli havia passado no teste de fidelidade ao PT como consultor jurídico da Central Única dos Trabalhadores (CUT), advogado de três campanhas presidenciais de Lula, subchefe de assuntos jurídicos da Casa Civil e Advogado-Geral da União.

Sua recente passagem pela presidência do Supremo coincidiu com os dois primeiros anos de Bolsonaro presidente. Renasceu e se fortaleceu a amizade entre os dois. Toffoli virou uma espécie de assessor informal de Bolsonaro dando-lhe conselhos e, sempre que pôde, facilitou a vida dele dentro do tribunal.

Orgulha-se Toffoli de ter evitado em 2020 uma crise institucional que quase deflagrou um golpe militar. Ele ajudou a salvar o Brasil e a evitar a queda de Bolsonaro. A indicação de Nunes Marques para ministro passou por seu crivo. Foi quando Bolsonaro o visitou em casa, sendo recebido com um caloroso abraço.


Murillo de Aragão: O preço das decisões erradas

O governo federal foi lento e confuso nas respostas à pandemia

A essa altura dos acontecimentos, devemos ponderar sobre os erros que nos levaram a mais de 340 000 mortos pela Covid-19. Sem alarde nem radicalismos. A coleção de erros é enorme. Começa com erros estratégicos, por parte de todos os atores públicos e privados, e chega a erros táticos. Nesse rol se inclui a sociedade, que teima em não se conscientizar dos riscos. O ponto inicial reside no fato de que o mundo inteligente já sabia da gravidade do problema em janeiro de 2020. O mundo político brasileiro, porém, só reconheceu a gravidade do tema em março.

O segundo erro estratégico foi cometido pelo governo federal, ao não coordenar uma ação conjunta com governadores, prefeitos, Judiciário e Legislativo. Prevaleceram o conflito, as egotrips e, sobretudo, a descrença de que o problema era muito sério.

O terceiro erro estratégico foi não optar pela compra das várias vacinas que estavam em desenvolvimento. O governo federal apostou apenas na AstraZeneca, cujo processo de produção é insuficiente para nossos desafios. Fica a questão: por que a Fiocruz, berço do partido sanitarista, não propôs uma compra abrangente de vacinas de várias procedências até que o Brasil dominasse a produção?

“A compra maciça de vacinas é a melhor política para a retomada da economia”

Obviamente, terminamos dependendo da rejeitada CoronaVac, do Instituto Butantan, e da escassa, até agora, vacina da AstraZeneca. Se hoje, em pleno abril de 2021, ainda estamos decidindo se compramos ou não a vacina russa, imaginem se o governo de São Paulo não tivesse tomado a decisão de negociar e produzir vacina no ano passado? E as mortes prosseguem.

No campo da narrativa, o governo federal se mostrou confuso. Lento nas respostas e descrente das consequências da “gripezinha”. Não houve palavras de liderança. Os sucessivos comandos do Ministério da Saúde foram, cada um a seu tempo, espetaculosos, erráticos e com um processo deliberativo lento. Deveriam ter imposto uma ação abrangente de pré-compra de vacinas e, em coordenação com a Anvisa, uma liberação expedita das doses. Em janeiro, a Anvisa fez um espetáculo midiático para autorizar o uso emergencial de vacinas. Àquela altura, o Brasil já deveria estar vacinando, e não fazendo midiatismo em torno da obrigação de fazer de forma correta o que estava fazendo errado.

Governadores e prefeitos demoraram a reagir quanto à imposição do distanciamento social. O exemplo trágico do Amazonas resultou no caos da saúde pública no estado. Também desmontaram hospitais de campanha país afora sem um horizonte claro do fim da pandemia e não se preparam para o pior, quando o pior já se apresentava, no fim do ano passado. Politicamente, Bolsonaro cometeu um grave erro ao não assumir a liderança no combate à pandemia. O Brasil deseja um líder que Bolsonaro ainda não quer ser.

Se tivesse comprado milhões de vacinas, o Brasil poderia ter vacinado o dobro ou o triplo do que vacinou até o início deste mês. Gastos com a compra em massa de vacinas seriam uma pequena parcela do que será despendido com o auxílio emergencial. A aquisição maciça de vacinas é a melhor política para a retomada da economia. Estamos chegando tarde e a conta em vidas está aumentando.

Publicado em VEJA de 14 de abril de 2021, edição nº 2733


Luiz Carlos Azedo: Duas derrotas num só dia

Bolsonaro anunciou um novo remédio para o tratamento da covid-19, a proxalutamida, medicamento utilizado para tratamento de câncer de próstata e de mama

O presidente Jair Bolsonaro sofreu duas derrotas ontem, ambas no Supremo Tribunal Federal (STF). Uma foi a decisão acachapante do plenário da Corte em favor de governadores e prefeitos que determinarem o fechamento temporário de templos religiosos para combater a propagação da pandemia da covid-19, durante os períodos de rígido distanciamento social, cujo resultado foi 9 a 2. A outra, a liminar do ministro do STF Luís Roberto Barroso a favor do mandado de segurança dos senadores Alessandro Vieira (SE) e Jorge Kajuru (GO), do Cidadania, determinando a imediata instalação da CPI da Covid-19 pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), que vinha empurrando o assunto com a barriga há 65 dias.

CPIs são uma prerrogativa da oposição, desde que tenham número mínimo de subscrições para instalação, o que é o caso. O que muda com a instalação da CPI é que o presidente Jair Bolsonaro, o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga e, principalmente, seu antecessor, o general Eduardo Pazuello, passarão a ter muitas dores de cabeça em razão de tudo o que ocorreu durante a pandemia até agora. Na lógica da oposição, a CPI é a banda de música dos pedidos de impeachment. O negacionismo de Bolsonaro tem um histórico de atitudes e medidas contra a política de isolamento social, mas também contra a compra e produção de vacinas, o uso de máscaras etc. É um prato cheio para a responsabilização criminal pelo elevado número de mortes que vem ocorrendo.

Rodrigo Pacheco segurou a instalação da CPI enquanto pôde, pressionado por Bolsonaro e pelo Centrão, mas contrariou os seto- res da oposição, inclusive os que o apoiaram. Com seu estilo conciliador e habilidoso, manobrou demais e acabou provocando mais uma intervenção do Supremo no Congresso. Agora, a oposição tem prerrogativas constitucionais e regimentais para fazer uma devassa no Ministério da Saúde. Como a base do governo é majoritária no Senado, o Palácio do Planalto tentará controlar a CPI, voltando-a contra governadores e prefeitos, mas isso fará com que o cacife dos partidos de Centrão aumentem nas negociações com o presidente da República.

Vacinas
Em sua live semanal, ontem, Bolsonaro voltou a criticar o isolamento social e defendeu “outras medidas” para combater a pandemia do novo coronavírus. Aproveitou para anunciar um novo remédio para o tratamento da covid-19, a proxalutamida, medicamento utilizado para tratamento de câncer de próstata e de mama. “É uma possibilidade. Um outro possível remédio que estará à disposição de todo o Brasil. Esperamos que dê certo”, disse. Também defendeu o exercício físico, que segundo ele, aumenta em oito vezes a velocidade de recuperação da doença.

Enquanto Bolsonaro flerta com o curandeirismo, a covid- 19 continua avançando no Brasil. Registrou 4.249 óbitos e 86.652 novos casos nas últimas 24 horas, segundo o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass). Com isso, o número de mortos pela doença chegou a 345.025, e o total de casos aumentou para 13.279.857. Na quarta-feira, foram registrados 3.829 óbitos e 92.625 novos casos. Ou seja, por falta de vacinas e isolamento social adequado, a escalada da pandemia continua.

Para complicar a situação, há 12 dias o Instituto Butantan não produz novas vacinas por falta de insumos. Ontem, reconheceu que a remessa de matéria-prima da CoronaVac está atrasada, mas anunciou que já foi liberada na China e deverá chegar a São Paulo até 20 de abril. O princípio ativo da vacina era para ter chegado ontem. De acordo com o Butantan, o lote de 3 mil litros de insumos é suficiente para a produção de 5 milhões de doses da vacina. Uma segunda remessa, com mais 3 mil litros, está prevista para chegar até o final do mês. O atraso não vai impactar as entregas previstas ao Ministério da Saúde: 46 milhões até o final de abril. O Butantan já disponibilizou 38,2 milhões de doses ao Programa Nacional de Imunizações (PNI) e ainda possui cerca de 3,2 milhões de vacinas no controle de qualidade, que devem ser liberadas até o dia 19 de abril.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-duas-derrotas-num-so-dia/

Alon Feuerwerker: Não é o que parece

Faça como numa reunião por Zoom: ponha a política no mudo

Apesar de tudo, o universo da política continua achando mais provável Jair Bolsonaro ficar no Planalto pelo menos até 2022. E tem outra. Depois de Luiz Inácio Lula da Silva voltar à elegibilidade, diminuiu naturalmente o número de quem vê o atual presidente na cadeira até 2026. Diminuiu, mas está longe de ter virado fumaça.

O ambiente anda chacoalhado. Esqueça, porém, os discursos: os principais atores só estão de olho mesmo é em 2022. Isso seria apenas o óbvio, não comparecessem dia sim outro também diante do público para dizer que estamos mergulhados numa tragédia (e estamos mesmo) e que isso exige medidas radicais imediatas.

De vez em quando, faça como numa dessas reuniões no Zoom, ou no Teams: ponha a política no mudo. Preste atenção no que os políticos fazem, e não no que dizem. Um exemplo foi o manifesto dos seis pré-presidenciáveis. Na forma, um libelo pela democracia. Na alma, apenas um posicionamento para a eleição. Contra Bolsonaro, Lula e possíveis aliados de cada um dos dois.

Se a prioridade fosse fazer um gesto antibolsonarista, Lula teria sido convidado. Mas suponhamos que as atribulações jurídicas dele constrangeram os autores. Então por que não chamaram o Guilherme Boulos? Ele é pré-candidato. Ou seja, se tirarmos o som, conclui-se que no manifesto a dita fé democrática apenas encobriu mais uma tentativa de alavancagem eleitoral “contra os extremos”.

Teria sido melhor dizer “olha, somos pré-candidatos, mas estamos dispostos a nos juntar em torno de um único nome”. Esta é, aliás, uma vantagem do atual ocupante do Planalto: as falas dele trazem o que pretendem dizer, não encobrem intenções e não exigem do povo grande esforço de interpretação.

“Preste atenção no que fazem, e não no que dizem. Um exemplo foi o manifesto dos seis pré-presidenciáveis”

Querem saber uma razão da estabilidade vivida pelo governo Bolsonaro, mesmo com a tragédia sanitária e suas consequências econômicas? Não há consenso entre os adversários de que qualquer coisa é preferível a ele na Presidência.

E o capitão vai tocando o barco, protegendo e mantendo organizadas suas fileiras, para resistir e preservar uma musculatura político-eleitoral que o coloque pelo menos no segundo turno em 2022.

Não que a vida de Bolsonaro esteja resolvida. Vamos ver o que sai da caixinha de surpresas do Supremo Tribunal Federal no dia 14, mas se Lula continuar candidatável espera-se a intensificação do bombardeio contra Bolsonaro vindo do “centro”, para tentar demoli-lo e oferecer-se ao eleitorado hoje bolsonarista como a única opção contra “a ameaça da volta do PT”.

Sobre isso, espera-se também um esforço monumental do establishment para convergir o “centro” para um único nome.

A política brasileira é cheia de sobressaltos, mas também tediosamente previsível.

Ah, e uma diferença definitiva entre a situação de agora e a das Diretas Já, citada no “manifesto dos seis”. Em 1984/85, os liberais que hoje seriam chamados de centristas aceitaram juntar-se à esquerda. Não consta que alguma vez Ulysses Guimarães, Franco Montoro ou mesmo Tancredo Neves tenham colocado a coisa como uma luta “contra os extremos”.

Era outro tempo. E outro tipo de político.

Publicado em VEJA de 14 de abril de 2021, edição nº 2733


Malu Gaspar: Jair Bolsonaro, um presidente imunizado contra a CPI da Covid

O requerimento para a criação de uma CPI da Covid-19, protocolado no Senado no início de fevereiro, deixou há muito de ser um pedido de investigação para ser um termômetro que afere as chances de sobrevivência política do presidente da República. Aos olhos de hoje, os líderes da Câmara e do Senado parecem ter concluído que Bolsonaro, que esteve na UTI, já pode ser politicamente desentubado.

O requerimento tem a assinatura de 31 senadores, mais do que as 27 exigidas, e o objeto da investigação é definido: “apurar as ações e omissões do governo federal no enfrentamento da pandemia da Covid-19 no Brasil e, em especial, no agravamento da crise sanitária no Amazonas com a ausência de oxigênio para os pacientes internados” nos primeiros meses de 2021.

Nessas circunstâncias, o regimento do Senado diz que o pedido deve ser lido em plenário e a CPI, instalada imediatamente. Mas Pacheco, eleito para o cargo com o apoio de Bolsonaro, está há dois meses produzindo desculpas para não fazê-lo. A última foi expressa num documento enviado ontem pelo Senado ao Supremo Tribunal Federal, em resposta a uma ação de parlamentares pedindo a instalação da comissão.

Diz que a CPI poderia ter “efeito inverso ao desejado”, produzindo “desconfiança da população em face das autoridades públicas em todos os níveis”. Menciona, ainda, um eventual “apagão das canetas”, em que os gestores públicos deixariam de tomar decisões urgentes por medo de punição.

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Causa espécie o argumento de que não se deva apurar responsabilidades por uma tragédia sanitária para não causar medo em gestores públicos. Crises são momentos desafiadores, mas não podem ser consideradas salvo-conduto para desvios que causam mortes.

Além disso, acreditar que, depois do colapso no Amazonas e da omissão do governo federal na obtenção de vacinas, será uma CPI que dilapidará a confiança do brasileiro nas autoridades públicas soa tão falso como a promessa milagrosa de cura oferecida pela cloroquina.

Outra coisa que se ouve muito no Congresso é que “uma CPI desviaria o foco”, que deve ser voltado para a obtenção de vacinas. É fato que a pressão dos senadores removeu do cargo o chanceler Ernesto Araújo. É verdade também que o discurso do presidente da Câmara, Arthur Lira, ameaçando o governo com “remédios amargos” e até fatais (como uma CPI), causou paúra em Bolsonaro.

Depois disso, ele abriu negociações para comprar a Sputnik V. Mas é difícil entender como uma CPI com 11 de 81 senadores poderia causar mais tumulto que os conflitos promovidos pelo próprio presidente da República.

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A questão, aí, parece ser quem se quereria proteger do tumulto. Com a naturalidade de quem entendeu que o que estava em jogo era a ocupação de espaços na máquina pública, e não a confiança da população, Bolsonaro pagou a fatura. Cedeu a cabeça de Araújo ao Senado e entregou um ministério dentro do Palácio do Planalto à Câmara, nomeando para a Secretaria de Governo uma afilhada de Lira, a deputada Flávia Arruda.

No dia seguinte, o presidente da Câmara foi ao Planalto se reunir com o ministro da Saúde e saiu com discurso de líder de governo, desafiando as informações de prefeitos e governadores sobre a vacinação. “Por que o Brasil distribuiu 34 milhões de doses de vacinas e nós só temos 18 milhões de doses aplicadas? Não acho que seja possível que nenhum governador e nenhum prefeito não esteja vacinando.”

De um dia para outro, o remédio amargo virou água com açúcar.

Na Câmara, o foco de Lira passou a ser atender os empresários bolsonaristas Luciano Hang e Carlos Wizard, que reivindicavam mudanças na lei que permitiu a compra de imunizantes pelo setor privado.

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O texto aprovado em março mandava as empresas doarem as doses compradas ao SUS até que fossem vacinados todos os brasileiros do grupo de risco para a Covid-19. Só depois elas poderiam imunizar seus funcionários, entregando ao SUS uma dose para cada empregado vacinado.

Para atender Hang e Wizard, Lira aprovou, em regime de urgência, o fim da obrigação de esperar a vacinação dos grupos prioritários — o que rendeu ao projeto o apelido de “fura-fila”.

E Bolsonaro, de novo à vontade, voltou a defender remédios sem eficácia, visitou sem máscara bairros populares nos arredores de Brasília e falou contra medidas de isolamento social. No dia seguinte, o Brasil ultrapassou a marca de 4.000 mortes por dia pela Covid-19.

No ofício ao STF, Pacheco afirma que a população “reclama a priorização de soluções, e não a busca de culpados”. A julgar pelos últimos lances, o Congresso não está preocupado em encontrar nem uma, nem outra.

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Merval Pereira: LSN, incompatível com a democracia

Assim como chegou a vez de extinguir a Lei de Imprensa promulgada na ditadura militar, graças à ação, em 2009, do então deputado federal Miro Teixeira, jornalista e advogado, parece ter chegado ao fim a vigência da famigerada Lei de Segurança Nacional.

O presidente da Câmara, Arthur Lira, quer colocar em votação um pedido de urgência para a análise de um projeto de lei que revisa integralmente a LSN. As mesmas razões se impõem hoje. Conforme argumentou na ocasião Miro Teixeira, a Lei de Imprensa imposta pela ditadura militar continha dispositivos incompatíveis com o Estado de Direito inaugurado com a Constituição de 1988, como a prisão de jornalistas condenados por calúnia, injúria e difamação.

Com sua revogação, as questões envolvendo notícias ou comentários têm nos Códigos Civil e Penal sua resolução. Também a Lei de Segurança Nacional (LSN) tem servido de base para diversas ações do atual governo contra seus opositores, jornalistas e cidadãos em geral. Dados oficiais mostram que, nos últimos 18 meses, foram abertos 41 inquéritos com base na LSN, mais do que em qualquer período dos últimos 20 anos, quando foi usada 155 vezes.

O artigo 26, que considera crime “caluniar o Presidente da República, o do Senado federal, o da Câmara dos Deputados ou o do Supremo Tribunal Federal, imputando-lhes fato definido como crime ou fato ofensivo à reputação”, é o mais usado para coagir os críticos do governo. O projeto de lei na Câmara pretende alterá-lo para considerar crime apenas atentados contra a integridade física de autoridades, cuja pena pode chegar a 30 anos em caso de morte.

Uma dificuldade, ou um constrangimento, para que o Supremo Tribunal Federal (STF) reveja a LSN é que ele a vem utilizando em inquéritos sobre os ataques desferidos contra o próprio Supremo, nas manifestações antidemocráticas acontecidas e na prisão do deputado Daniel Silveira.

Existe, porém, uma explicação jurídica para isso: a lei está em vigor até que seja extinta. Também a Lei de Imprensa era usada para processar jornalistas ou exigir direito de resposta, até ser revogada. Por isso mesmo, deve ser extinta. O ministro Gilmar Mendes, que é o relator de ações no Supremo que pedem que a LSN seja revogada, deu cinco dias para que o Ministério da Justiça justifique o uso da lei contra os que supostamente ofenderam o presidente da República.

Para o ministro Luís Roberto Barroso, a Lei de Segurança Nacional precisa de uma revisão, ou mesmo revogação completa, para sanar as “inconstitucionalidades variadas”. Ele falou em seminário virtual do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, considerando a LSN “uma obsessão mais com a segurança do Estado do que com a institucionalização da democracia e com o exercício pleno da cidadania”.

Ao afirmar que a LSN não se coaduna com a atualidade da sociedade brasileira, o ministro Barroso está entrando numa questão jurídica que vem sendo debatida desde a promulgação da Constituição de 1988: a recepção das leis anteriores. O jurista Marcelo Cerqueira, ex-deputado federal e advogado de presos políticos, que atuou na Constituinte como assessor, defende desde sua tese de 1994, com que foi aprovado como professor titular da Universidade Federal Fluminense, que, como definiu o jurista austríaco Hans Kelsen, as leis incompatíveis com o espírito de uma nova Constituição não são “recepcionadas”por ela, e considera que a Lei de Segurança Nacional (LSN) é uma delas e deveria ser tratada não apenas como inconstitucional, mas “ilegal”.

Para ele, “há um direito novo que o pacto político alargou e que a Constituição refletiu. Os novos preceitos constitucionais permitem uma outra leitura do direito, um novo impulso em que as regras velhas se vestem com novas roupagens para ser aceitas na festa da democracia”.


Míriam Leitão: Escolhas erradas no pior da crise

Há algo profundamente errado no Orçamento, além de todos os números desencontrados. Os erros são crassos, de todos os lados, e reveladores. Mas a principal falha é que o governo e o Congresso juntos fizeram uma peça em completo divórcio com o país. Os brasileiros estão morrendo, as emergências são dramáticas na saúde e na educação, mas o Orçamento garantiu verba para submarino nuclear e corvetas dos militares, encheu os bolsos dos parlamentares de emendas, reservou verba para os palanques de Bolsonaro. É a prova, mais uma, de um governo alheio a tudo o que é de fato urgente neste pavoroso momento brasileiro.

Mesmo se houvesse mais dinheiro para o Ministério da Educação, o risco é o uso errado. O ministro Milton Ribeiro saiu da sua inexistência para ir ao Congresso defender a medieval educação domiciliar, com a socialização das crianças sendo feita nas igrejas, e as verbas para programas essenciais foram cortados. O autor da lei da compra de vacinas pelas empresas queria passar o custo para todos os brasileiros. O deputado Hildo Rocha (MDB-MA), autor da lei que autoriza o fura-fila na vacinação, queria incluir um dispositivo permitindo que os empresários descontassem no Imposto de Renda Pessoa Jurídica. Diante das críticas, recolheu sua péssima ideia. Mas é um sinal da distorção na escolha das prioridades dos poderes no Brasil. O ministro Kassio Nunes Marques, ao expedir sua liminar permitindo os cultos no meio desta carnificina que virou o Brasil, mostrou que também o Judiciário pode ser colhido por essa falta de noção que atingiu os poderes no Brasil. Como perguntou o prefeito de Belo Horizonte, Alexandre Kalil, em que planeta estão os negacionistas?

O Orçamento é parte dessa mesma confusão de prioridades. Quem entra no emaranhado dos números vê muita coisa errada nos detalhes, de parte do Executivo e do Legislativo. Ninguém pode dizer que não viu a grande lambança das contas públicas. No blog ontem contei que houve pedalada para frente e pedalada para trás. O governo superestimou despesa, o relator subestimou. No caso dos gastos da Previdência, o projeto de lei orçamentária previa R$ 712 bilhões. Isso é, segundo técnicos, pelo menos R$ 7 bilhões a mais do que o valor que pode ser projetado. O valor correto seria em torno de R$ 705 bilhões. Mas o relator Márcio Bittar (MDB-AC) fez algo ainda pior, ele subestimou despesa obrigatória e colocou no seu relatório R$ 698 bilhões. O governo fez o cálculo do aumento da despesa vegetativa, mas não considerou os ganhos da reforma da Previdência. Isso é um dos detalhes desse emaranhado numérico. Isso é só um exemplo da torre de babel que se tornou esse Orçamento do ano, com comprovações explícitas de erros de parte a parte.

Em cada escolha, o que se vê é o retrato de um governo com distorção da realidade. O Censo pode até não ser feito neste ano e ficar para 2022. Há uma discussão entre especialistas se faz agora ou no próximo ano com mais segurança. Mas o que é mais importante é se dar conta de que o governo vem estrangulando o IBGE desde 2019. O previsto inicialmente eram R$ 3,4 bilhões, o Ministério da Economia mandou cortar R$ 1 bilhão. A então presidente do IBGE aceitou e reduziu os questionários. Depois cortou mais R$ 400 milhões e agora acabou praticamente com a dotação. O atual governo briga com números e não vê relevância em estatística. E o Censo será fundamental para trazer os dados com os quais reconstruiremos as políticas públicas.

Neste momento aumentou espantosamente a insegurança alimentar no Brasil. E o governo só neste quarto mês do ano está depositando nas contas digitais da Caixa o auxílio emergencial. Em dezembro, estava claro que seria necessária uma nova rodada do auxílio, mas o Ministério da Economia fez avaliação errada de conjuntura. Achou que o país estava retomando o crescimento, quando estava entrando em nova onda de contágio e mortes.

Depois que consertarem todas as contas do Orçamento da União, com vetos em emendas e um projeto restaurando as despesas obrigatórias, quando resolverem todos os conflitos com as leis fiscais do país, sobrará a questão mais importante: no Brasil, executivo e legislativo erram dramaticamente ao definir que prioridades o país deve ter no meio da maior crise em um século.


Adriana Fernandes: Crise do Orçamento deixou mágoas na relação entre Congresso e governo

Independentemente do tamanho do acerto do presidente Jair Bolsonaro com o comando do Congresso para a saída do impasse sobre as emendas parlamentares do Orçamento de 2021, a crise política já deixou mágoas e feridas abertas na relação entre o Senado e a Câmara e também com o governo.

As cicatrizes poderão ser maiores ou menores a depender da forma como o presidente vai bater o martelo. Bolsonaro tem prazo até dia 22 para sancionar o Orçamento. De hoje até lá, parece uma eternidade.

Foi assim em 2020, quando impasse orçamentário semelhante se instalou na República, no momento em que a pandemia da covid-19 mostrava a sua cara no Brasil. A diferença é que agora Senado e Câmara estão divididos. Lideranças já avisaram que o rancor é grande no Senado com Paulo Guedes pela postura que consideram errática do ministro da Economia em relação ao acordo feito pelo governo para acomodar o aumento das emendas parlamentares com cortes de despesas obrigatórias.

O Senado ficou com a imagem chamuscada porque não cumpriu o acordo das emendas e aumentou a parcela para obras de interesse dos senadores. Será, portanto, o mais atingido pelo desfecho da crise, que ainda não está fechado e terá de passar pelo arbítrio do presidente Bolsonaro. Por sua vez, a Câmara vai ficar com o que já tinha negociado antes da votação. É para isso que o presidente da Casa, Arthur Lira, luta e sobe o tom: garantir o mesmo valor das emendas parlamentares para os deputados que já estava acertado. Nenhum centavo a mais ou a menos.

A crise causa frisson e explica o vaivém de rumores que têm surgido no mercado com o processo “estica a corda” do Centrão. É o jogo de pressão funcionando.

No mercado financeiro, enquanto reunião sobre Orçamento acontecia em Brasília, a especulação que corria era de que, se não houvesse acordo, Guedes poderia cair. Quem não gosta do ministro da Economia pega carona na crise para desgastá-lo ainda mais.

Enquanto a corda estica, o recado que vem sendo transmitido pelos líderes é que haverá maior dificuldade para aprovação dos projetos de interesse da área econômica. Muitos falam em retaliação a Guedes que na visão deles trava o acordo.

Um aperitivo já foi dado pelo Senado que colocou na pauta de votação projeto que permite às empresas cortarem jornada e salário dos funcionários ou suspenderem contratos neste ano, nos mesmos moldes do programa adotado em 2020, o BEm.

Na hesitação do governo sobre como bancar o BEm em alinhamento às regras fiscais, o Senado foi lá e cravou uma no governo, que no mesmo dia saiu do muro e mandou projeto para alterar a Lei de Diretrizes Orçamentárias e abrir caminho ao financiamento do BEm por meio de créditos extraordinários e sem compensação de aumento de arrecadação ou mais corte de despesa.

O recado político do Congresso, que tem chegado até empresários e banqueiros, é o de que haverá distensão política com uma saída honrosa para a crise do Orçamento e que o tamanho das emendas não será o que foi aprovado.

Mas esse mesmo PIB, que fica cobrando publicamente as reformas, já sabe que não terá mais nenhuma aprovada. Ninguém tem expectativa de reforma nem sonha mais com elas.

Por outro lado, o recado transmitido por empresários a interlocutores do governo é que pare de meter os pés pelas mãos (ou seja, de fazer besteira) para chegar até o ano que vem, quando haverá folga orçamentária pela correção do teto de gastos pela inflação mais alta.

“Não regredir mais” virou o ponto mais alto do sarrafo das cobranças dos empresários junto com mais vacina e melhoria das relações diplomáticas. São oito meses até o fim do ano. Depois é só eleição e nada mais.

Guedes tenta evitar a decretação de calamidade (tema da última coluna) e quer administrar a edição de novos créditos extraordinários de medidas de combate ao impacto da pandemia na base do conta-gotas para controlar a expansão dos gastos.

E o presidente do Banco CentralRoberto Campos Neto, trabalha para comunicar o dilema orçamentário apontado pelo Copom como risco adicional para a inflação que pode levar a uma alta maior dos juros, como apontado por ele em entrevista ao Estadão publicada no domingo.

Guedes e Campos Neto estariam com Bolsonaro nesta quarta-feira em jantar com empresários. Tentativa do governo de estancar a sangria que faz com que o presidente esteja perdendo apoio na parcela do PIB brasileiro que o ajudou na sua eleição em 2018.


Ricardo Noblat: Jantar de Bolsonaro com empresários foi uma ação entre amigos

O presidente reafirmou o que pensa e acabou ovacionado

Nos oito anos dos governos de Fernando Henrique Cardoso, e nos oito de Lula, não foi preciso selecionar com rigor nomes de empresários dispostos a jantar com eles para driblar o risco de serem fortemente pressionados por isso ou por aquilo. Fernando Henrique estava à vontade no meio deles. Lula, também.

Já foi o caso do presidente Jair Bolsonaro até, pelo menos, metade do ano passado. Desde então deixou de ser, daí os cuidados tomados em ocasiões como essas. Recentemente, centenas de economistas, empresários e banqueiros pesos pesados do PIB assinaram um manifesto fazendo duras cobranças a Bolsonaro.

Não se tem notícia se alguns deles participaram do jantar oferecido a Bolsonaro, ontem, em São Paulo, por Washington Cinel, dono da empresa de segurança Gocil. Mas nomes graúdos compareceram. E os primeiros relatos indicam que Bolsonaro foi muito bem recebido e chegou a ser ovacionado quando discursou.

O que ele disse para merecer aplausos? No dia em que o Brasil ultrapassou a marca de 340 mil mortos pela Covid-19, o presidente fez duras críticas a Estados e prefeituras que defendem restrições mais severas de isolamento social. E defendeu a manutenção de igrejas e templos abertos, segundo o jornal VALOR.

O encontro fora planejado para apresentar um Bolsonaro mais moderado à parte do empresariado paulista. Mas ele foi o de sempre. “Tem de olhar o lado bom do país. Os investidores estão acreditando no Brasil. Basta olhar, hoje, o leilão dos aeroportos. Não existe terra melhor do que essa!”, disse o presidente.

Que em seguida disparou: “Podem me dar porrada à vontade. […] Imagina se o [Fernando] Haddad tivesse ganhado a eleição?”. E ele mesmo respondeu: “O Brasil teria afundado. Se os atuais presidenciáveis tivessem no meu lugar, tinha virado o caos social”. A agressiva retórica entusiasmou os convidados.

Eles se sentiram então mais à vontade para, a salvo dos jornalistas, impedidos de testemunhar a cena, criticarem as medidas mais duras de isolamento do governador João Doria (PSDB). Muitos aproveitaram para falar mal dos governos do PT e disseram ver Lula como seu inimigo número um.

“Estamos com o senhor. O Brasil não volta para ladrão e vagabundo”, gritou um empresário, para quem falta compreensão de certa parcela do público para entender o quanto Bolsonaro é autêntico. Flávio Rocha, um dos apoiadores de Bolsonaro, pediu a aprovação das reformas econômicas ainda este ano, e prometeu:

– Vamos te dar apoio.

Falou-se de vacinação, por suposto, mas nada que pudesse constranger o presidente, outra vez aplaudido ao afirmar que o Brasil é um dos poucos países do mundo que produzem imunizantes. Não disse que sem os insumos fornecidos por outros países, o Brasil seria incapaz de produzir as vacinas que usa.

“Foi uma conversa boa, eu gostei, me deu tranquilidade”, definiu Rubens Menin, controlador de MRV, Banco Inter e da rede de televisão CNN. Questionamentos sobre o viés ideológico de Bolsonaro ficaram de fora da pauta do jantar. “Foi uma conversa de alinhamento, não de confusão”, segundo Menin.


Eugênio Bucci: Os dez mandamentos do desmando

Verás teu povo fenecer sem o sopro da vida e isso te insuflará a embriaguez de poder

1 – Profanarás o Estado laico.

A maior notícia da temporada não tem que ver com sepultamentos noturnos extenuantes ou com reuniões angustiantes entre empresários e o presidente da República. A maior notícia é que entrou em cartaz na TV Brasil – emissora da Empresa Brasil de Comunicações, a EBC, vinculada ao governo federal – a novela Os Dez Mandamentos, produzida e já exaustivamente exibida pela TV Record. Segundo foi noticiado, a EBC pagou R$ 3,2 milhões pelos direitos de sua nova atração. Com isso vem abaixo qualquer aparência de laicidade que pudesse ainda resistir na comunicação pública da União. É verdade que a TV Cultura, de São Paulo, exibe desde sempre a missa dominical de Aparecida, mas Os Dez Mandamentos chegam à TV Brasil para explodir com todos os limites. Se a TV Cultura tem uma face de coroinha, a EBC é agora um canal escancaradamente missionário, com préstimos do dízimo do erário.

2 – Transformarás a política em fanatismo.

A mistificadora novela na TV governamental pode ser vista como um curso de formação (e de deformação) política. Nela se encena a regressão do neopentecostalismo a uma forma religiosa pré-cristã, decalcada no monoteísmo judaico. O objetivo não é espiritual. Não se trata de expandir os horizontes da fé. Trata-se apenas de catequizar as massas para convertê-las às maravilhas da autocracia.

Moisés, na trama da Record, é um líder acima de todos porque está em linha direta com Deus, alegadamente acima de tudo. Em vez de dialogar, ordena. Sua liderança exige obediência, em lugar de raciocínio. Ele não tem aliados, mas fiéis. A novela reduz a fanatismo o que há de política no Velho Testamento.

3 – Xingarás a ciência de bruxaria.

Na cosmogonia fraudulenta da novela em reprise na EBC, só a renúncia à razão pode salvar os aflitos. Somente os milagres produzem soluções – e os milagres não são acessíveis à compreensão humana. Quem busca de entender os mistérios da natureza por meio da experiência e da crítica atenta contra o sagrado. Melhor morrer cumprindo as ordens do profeta do que buscar a cura pela inteligência. A ciência é um tipo de feitiçaria e seus praticantes são apóstatas, assim como a democracia é uma tentação demoníaca.

4 – Invocarás o nome de Deus em vão, sim, Senhor.

O mandatário maior fica autorizado a, mesmo sem crer, imitar Moisés, agindo como se tivesse parte com aquilo que está acima de tudo e de todos. Assim aglomerará crédulos ao seu redor, enquanto outros se amontoarão em seu nome. Primeiro, vivos. Depois, mortos.

5 – Não te compadecerás dos que padecem no abandono.

Dizendo de outro modo: verás teu povo fenecer sem o sopro da vida e isso te insuflará a embriaguez de poder. O anjo da morte na porta do teu próximo avivará tua vaidade.

6 – Não honrarás a verdade dos fatos.

site da TV Brasil promete sensações indescritíveis, gozosas, fáceis e falsas: “A novela Os Dez Mandamentos é repleta de conflitos familiares, intrigas, luta pelo poder, traições, inveja, ódio, paixões proibidas e amores impossíveis, em tramas recheadas de muita emoção”. Eis a que se reduz o nome de Moisés na programação da emissora estatal. A propaganda, em tempos de asfixia generalizada, é de perder o fôlego. Enquanto isso, fora do site da TV Brasil, proliferam as garantias de que tudo não passará de uma “gripezinha”, sob aplausos excitados. O discurso do Planalto leva os desinformados a crer que a moléstia que os consome não passa de um embuste armado por jornalistas, cientistas, comunistas, professores, intelectuais e artistas, todos em conluio. Fechar o comércio é fazer o jogo dos covardes, diz alguém. Os autoproclamados corajosos exultam.

7 – Matarás.

Ele se olha no espelho e se vê mito. Crê ter sido predestinado a livrar o Brasil da praga do comunismo. Está acima do certo e do errado. O que é a morte de alguém, ainda que famoso, diante de tão grandiosa missão? No stalinismo, tudo era permitido em nome da classe. No nazismo, tudo era imperativo em nome da raça, incluído o genocídio: os que morreram nos campos de extermínio eram a doença, eram um vírus maligno. Ele repete: morrer faz parte. Está convicto: se todos vamos morrer um dia, que partam antes os fracos e os maricas.

8 – Conspurcarás todas as profecias.

Trazida para a TV Brasil, altar de todos os falsos testemunhos, a novela Os Dez Mandamentos tem o propósito indigno de urdir a mensagem de que as autoridades cumprem desígnios divinos. O que pode haver de mais antimoderno?

9 – Amaldiçoarás pensamentos e desejos.

Nada que não seja a obediência tem status de virtude na EBC. O pensamento foi declarado uma ameaça. O desejo, perdição – a não ser o do chefe.

10 – Não amarás a ninguém, mas adorarás a ti mesmo.

Na novela, um Moisés fake. Fora dela, um imitador barato. Cidadãos fanatizados acreditam na liberdade de levar o contágio uns aos outros. Julgam-se livres para matar e morrer. Adoram quem os condenou a parar de respirar. Não amam ninguém. Não sabem o que é amor.

*Jornalista, é professor da ECA-USP