Bolsonaro
Pedro Fernando Nery: Deveríamos falar em vacinar primeiro a população negra
Negros têm probabilidade maior tanto de morte quanto de internação do que brancos
A campanha de vacinação se iniciou pelos idosos, com taxas maiores de mortalidade. Estudos recentes para o Brasil têm mostrado que há outro grupo demográfico mais tendente a morrer de covid, bem como de se infectar e também de perder renda na pandemia. Se concordássemos em priorizá-lo na imunização, estaríamos falando de vacinar primeiro a população negra.
Aceito recentemente para publicação no periódico BMJ Global Health, um estudo de pesquisadores brasileiros e estrangeiros promove uma detalhada descrição das diferenças sociais e raciais na pandemia (Li et al., 2021). De instituições como o Ipea e as Universidades de São Paulo e Oxford, a pesquisa faz uso de uma informação que só está disponível para os pacientes do Estado de São Paulo: o CEP. Assim, foi possível combinar o dado com outras pesquisas com informações espaciais.
Indivíduos de áreas mais pobres chegam a ter probabilidade 60% maior de morte do que aquelas de áreas mais ricas (que predominam nas internações no início da pandemia, mas não depois). E negros têm probabilidade maior tanto de morte quanto de internação do que brancos.
Parte da diferença parece associada ao tipo de hospital do paciente (público x privado), mas não toda. Negros apresentam maior probabilidade de morrer mesmo nos hospitais particulares.
A versão definitiva do trabalho ainda não está disponível, mas um pré-print foi publicado em dezembro e explicado por um dos principais autores – o economista Rafael Pereira, craque do Ipea em estudos espaciais: “A vulnerabilidade à covid-19 é fortemente moldada por diferenças de saúde preexistentes na incidência de comorbidades e por condições socioeconômicas, que afetam a capacidade dos indivíduos aderirem ao distanciamento social e a intervenções não farmacológicas, e acessarem serviços de saúde”.
A população negra e aqueles com menor nível educacional são mais afetados por se ocuparem mais em trabalhos com contato face a face com outros. Enquanto isso, brancos têm maior probabilidade de estarem em teletrabalho.
Assim, não é surpreendente também que os dados de telefones celulares na capital paulista indiquem que são nos bairros de maior população branca que há maior adesão ao isolamento social, que também dura por mais tempo nesses casos.
Por sua vez, a evidência de presença de anticorpos em doadores de sangue – mais um tema do estudo – parece confirmar uma taxa maior de contágio entre a população negra. Já outra pesquisa, do Centro de Pesquisa em Macroeconomia das Desigualdades (Made) da USP, mostra que a mulher negra é mais vulnerável à perda de renda na pandemia (Fares et al., 2021). Homens brancos perdem menos.
Passada a vacinação de idosos, não parece haver um critério consistente para a continuação da campanha. Grupos organizados têm conseguido prioridade, e em vários lugares vemos sendo vacinados jovens pouco expostos, apenas porque possuem nível superior em áreas como educação física, nutrição, veterinária ou psicologia – pegando carona na vacinação dos profissionais de saúde da linha de frente.
A prioridade para idades mais altas funcionou como um critério simples razoavelmente bem alinhado com os riscos da pandemia. Com o avanço da campanha, com as novas variantes e com as evidências existentes, faz sentido pensarmos em outro? Ou as prioridades vão ser dominadas pelos lobbies das carteirinhas, em prejuízo dos expostos que não podem ser organizados por conselhos ou associações?
Se negros perdem mais renda com as medidas sanitárias, se estão mais expostos ao contágio pelas diversas razões listadas e se correm maior risco de morte, não é absurdo pensar que essa parte da população seja prioridade – ainda que haja sobreposição entre baixa renda e raça nas vulnerabilidades na pandemia. A precedência para a população negra chegou a ser defendida nos EUA por Melinda Gates.
É ideal um homem de 40 anos em teletrabalho ser vacinado antes de um entregador de 25 anos? A alocação inteligente das vacinas pode reduzir mais rapidamente tanto o contágio quanto as mortes, assim como as taxas de pobreza. Devemos buscar vacinar os vulneráveis primeiro.
*DOUTOR EM ECONOMIA
Míriam Leitão: O governo em grande confusão
No governo, a situação é completamente confusa, quando se trata de Orçamento. Para citar três exemplos, a peça que foi aprovada corta todo o dinheiro da área de tecnologia do Banco Central. Se esse gasto não for recomposto, não tem como rodar o Pix. Foi cortado todo o dinheiro do Pronaf, se não corrigir isso, não haverá financiamento da agricultura familiar. O Plano Safra foi reduzido à metade. Em qualquer órgão que se vá, é o que se ouve. Fala-se em shutdown. Nesse clima, o Senado instala hoje uma CPI para investigar ações e omissões do governo federal na gestão da pandemia que espalhou a morte pelo país. Os fios desencapados estão todos se juntando.
A CPI será instalada num momento de tensão entre governo e Congresso por causa do Orçamento, e ele só pode ser resolvido com um remédio que aumentará o conflito entre os dois poderes: vetando emendas parlamentares e mandando um projeto de lei. Ontem, o Ministério da Economia ensaiava mandar uma PEC tirando despesas do teto. Mesmo assim será necessário explicar bem essa PEC fura-teto para não parecer mais uma manobra criativa.
No meio disso, o presidente tenta escapar da CPI interferindo no Congresso. Na conversa com o senador Jorge Kajuru (Cidadania-GO), Bolsonaro juntou mais um crime aos muitos que já cometeu, o de impedir o livre exercício de uma CPI. E foi o que ele fez naquele telefonema estranho em que ameaçou até dar “porrada” no senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP). Numa manobra de desespero, para melar o jogo, os governistas propuseram uma segunda CPI que mira os governos estaduais, mas não conseguiram evitar a menção ao governo federal. Até o filho do presidente assinou em favor dessa CPI que tem como um dos alvos o governo do pai.
O que fará o presidente do Senado, senador Rodrigo Pacheco (DEM-MG)? Instalará duas CPIs sobre o mesmo assunto ao mesmo tempo, uma com o apoio do governo? E se é governista não cumpre o primeiro requisito da CPI, que é ser um direito da minoria, e não do governo. Não cumpre também o segundo requisito porque o fato determinado está amplo demais, ele quer pegar vários governadores e além disso o Senado não tem a prerrogativa de investigar governos estaduais.
Hoje o senador Pacheco instala a CPI original, que tem ordem judicial para abrir. O movimento feito pelo senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE), de requerer a possibilidade de investigar governos estaduais e municipais, foi apenas para casos em que houver conexão. Ele dá o exemplo de Manaus. Se o governo federal jogar a culpa sobre o governador ou o prefeito, é preciso ouvi-los. Na opinião do senador, isso dá mais legitimidade à CPI. O foco, contudo, será inevitavelmente no governo federal.
Enquanto isso, a economia capta os sinais de piora fiscal e isso se reflete nas oscilações do mercado. O Brasil poderia estar numa boa situação porque está havendo alta forte das commodities e isso, segundo análise que se ouve até dentro do próprio governo, só não está valorizando o real por causa do “excesso de ruídos políticos”. Em condições normais, quando as commodities sobem, as moedas dos países exportadores se valorizam. Era para o dólar estar caindo. Está acontecendo o contrário, o real é uma das moedas que mais perde valor.
— Tudo o que passa pela percepção de instabilidade institucional se reflete no câmbio. E um câmbio em desvalorização persistente pode ter reflexo na inflação — explicou uma autoridade do Executivo.
Se não houver acordo no Orçamento, o governo terá que parar, como já aconteceu nos Estados Unidos. Imagine um shutdown em plena pandemia. Isso foi resultado de uma série de erros do governo e do Congresso. A articulação política, na época a cargo do general Luiz Eduardo Ramos, foi tão mal feita que as informações sobre as despesas cortadas caíram sem aviso prévio sobre os órgãos do Executivo. Normalmente, quando vai haver cortes no Orçamento, os órgãos ficam sabendo dias antes para argumentar, defender o que é essencial. Esse pegou todo mundo desprevenido.
O governo já não está funcionando, agora tem que consertar um monstrengo orçamentário contornando leis fiscais ou irritando o Congresso, onde está começando uma CPI para investigar o crime principal de Bolsonaro, o da gestão desastrosa da pandemia, que mata milhares de brasileiros todo dia.
Carlos Andreazza: Pachequismo parlamentar
Bolsonaro terminara a quinta, 7 de abril, abatido. Roberto Barroso havia, pouco antes, ordenado ao Senado que instalasse CPI cujo objeto consiste em investigar as omissões do governo federal no enfrentamento à peste.
Uma nota: Barroso — que não raro se excede para interferir no Legislativo — não mandara abrir, de ofício, uma CPI; mas tão somente reagira a uma provocação, um mandado de segurança, que invocava a Constituição por um direito das minorias parlamentares. O ministro acertara. Lastreada em jurisprudência do tribunal, a liminar era incontornável e vinha em defesa da democracia representativa. Uma vez cumpridos os requisitos formais, havendo um terço de assinantes entre os senadores, fato determinado e prazo definido, não caberia ao presidente do Senado outro ato senão criar a comissão. Ponto final. Era, pois, o procrastinador Rodrigo Pacheco, comportando-se como um general-ramos de Bolsonaro, a faltar com a responsabilidade institucional — tocado a ser chefe de Poder pela vara do Supremo.
E, então, o abatimento de Bolsonaro na quinta: produto de seu isolamento, aprofundado pela decisão do ministro. No mundo real: está fraco, dependente de Valdemar da Costa Neto e de pachequismos no Congresso.
Na sexta-feira, porém, o presidente mudaria — subiria — o tom; artificialmente, conforme o padrão, para alimentar sua base de apoio sectária. Barroso — a rigor, o STF como instituição a ser corroída — voltava a ser o inimigo. Inimigo imaginário. Inimigo imaginário e secundário, aquele contra quem batalhar na guerra — a principal — contra os tiranos governadores, os corruptos cerceadores da liberdade e semeadores da pobreza.
Por que não investigá-los também — incluí-los — na CPI?
Ali, Bolsonaro soprava o apito que ditaria o comportamento dos seus no curso do fim de semana. Haveria uma “jogada casada” entre STF e a “bancada de esquerda no Senado” — o establishment operando — para derrubá-lo (preservando os tucanos e comunistas). Não apenas. O presidente daria outra senha: era hora de retomar a carga pelo impeachment de ministros do Supremo; cobrou “coragem moral” de Barroso para determinar a abertura de processos dessa natureza.
Nota para desprovidos de memória: por meio do filho Flávio, o moralmente corajoso Bolsonaro trabalhara loucamente para que não prosperasse uma estrovenga chamada CPI da Lava-Toga, proposta para... investigar ministros do STF. Outra nota: ao contrário da instalação de CPI, que não depende do pacheco da vez, pautar impedimento de ministro de corte constitucional é prerrogativa exclusiva do presidente do Senado.
Chegamos ao sábado. A agenda bolsonarista está posta: inchar a CPI para inviabilizá-la tecnicamente. E eis que o senador Alessandro Vieira, dito independente, apresenta petição para que o alcance da CPI seja ampliado. Do ponto de vista legal, um absoluto despautério. Explico: o objeto de uma CPI só pode ser alargado pela própria comissão — o que pressupõe que esteja estabelecida, com membros escolhidos. Não é o caso. (Ainda.) E mesmo essa ampliação tem regras limitadoras, de modo que jamais comportará a inclusão de governos estaduais e municipais à baciada — o que significaria a perda do fato determinado necessário à existência de uma CPI. (Essa ampliação exige fatos conexos. Por exemplo: se se vai, e consta do requerimento, investigar a atuação do governo federal no conjunto de barbaridades que resultou na falta de oxigênio em Manaus, mui provavelmente, como desdobramentos, serão apuradas as responsabilidades do prefeito daquela cidade e do governador do Amazonas na tragédia.)
É como funciona. E o senador Vieira sabe. Deveria saber também que sua medida, formalmente inócua, inócua não é politicamente: ao fomentar insegurança sobre a firmeza do objeto pelo qual se assinou a demanda por CPI, seu movimento estimula senadores a retirar os nomes do documento. Quem subscreve algo cujo conteúdo pode ser mexido no improviso? Não sei se lhe foi a intenção, mas o ato de Vieira bagunça, desinforma e faz o jogo de Bolsonaro.
Não foi, contudo, o pior evento do sábado. Do que só saberíamos no domingo, quando o senador Kajuru tornou pública conversa — de sua parte, sob forma de quebra de decoro, um desfile de vassalagem — havida com Bolsonaro na véspera. Parece-me improvável que o presidente desconhecesse a gravação e a intenção do interlocutor de divulgá-la. Seja como for, enquanto o outro implorava para ser trigo e não joio (não tem votos sem o bolsonarismo), ouvimos Bolsonaro cometer crimes; e mais que simples crimes de responsabilidade.
Para muito além de — aí, sim — interferir num Poder (alguma manifestação de Pacheco a respeito?) para minar CPI (para melar apuração em que, que tal?, seria investigado), o presidente instrumentaliza um senador para intimidar e — a palavra é esta — chantagear o Supremo. E assim continuará, radicalizando, delinquindo, em busca de brechas para seus avanços autocráticos, impunemente, desprovidos que vamos de procurador-geral da República.
Está fraco e isolado, mas não perdeu o senso de — o faro para — oportunidades. Conta com essa gentinha para lhe fornecer os ensejos.
Merval Pereira: Supremo sob pressão
O Supremo Tribunal Federal (STF) tem amanhã em sua pauta dois julgamentos com implicações políticas relevantes, e, por isso, seus ministros estão sob intensa pressão dos extremos, de lulistas e bolsonaristas. O próprio presidente Bolsonaro tratou de explicitar essa pressão ao sugerir a um senador que impulsione um processo de impeachment de ministro do STF, afirmando que, fazendo isso, conseguiriam barrar a CPI da Covid que o ministro Luís Roberto Barroso autorizou o Senado a instalar, cumprindo o que manda a Constituição.
O outro tema a ser julgado, a suspeição do ex-ministro Sergio Moro, está sob intenso tiroteio de um grupo de advogados criminalistas chamado “Prerrogativas”, que soltaram suas baterias contra o ministro Edson Fachin, relator da Lava-Jato no Supremo. Coadjuvantes do PT, que também ameaça o plenário do Supremo por meio de seu site oficial, colocando como pontos intocáveis “tanto a anulação das sentenças quanto o julgamento da suspeição de Moro”. E advertem: “Não toquem nos direitos de @LulaOficial”.
O diálogo do senador Kajuru com o presidente Bolsonaro, gravado pelo primeiro, que o divulgou, é uma prova evidente de uma conspiração de interferência do Executivo no Legislativo, embora a intenção do senador ao divulgar a conversa não tenha sido denunciar Bolsonaro, muito ao contrário. Bolsonaro acha que caiu numa armadilha, e Kajuru garante que o avisou de que divulgaria. Seja como for, o diálogo revela o baixo nível em que são tratados os assuntos mais importantes do país.
A CPI da Covid é fundamental para que sejam punidos os responsáveis por essa crise humanitária sem precedentes por que estamos passando, com a culpa claramente exposta do presidente da República, devido a sua intransigência quanto às orientações científicas de proteção da população que governa. Sua teimosia em rejeitar atitudes como distanciamento social ou uso de máscara tem fundamentos políticos rasteiros. Não compreende que o que permitirá a retomada econômica é a vacinação em massa, não o morticínio em busca de uma imunidade coletiva que não acontecerá.
O outro tema da tarde de amanhã, que deve entrar por quinta-feira, é a analise, pelo plenário do Supremo, da decisão do ministro Fachin de tirar de Curitiba os processos contra o ex-presidente Lula, enviando-os à Justiça Federal em Brasília. Com isso, as condenações foram anuladas, e Lula tornou-se elegível. Mas o PT e os membros do “Prerrogativas” não admitem que os 11 ministros votem com suas consciências e passaram a pressioná-los por meio de artigos em jornais, manifestos e declarações nas redes sociais.
A questão deles é temer que, derrubada a suspeição do ex-juiz Sergio Moro no plenário do Supremo, as provas e investigações contra Lula possam ser aproveitadas pelo novo juiz, já que não foram produzidas por um juiz suspeito, como definiu a Segunda Turma contra a decisão de Fachin, que considerou que o julgamento não deveria começar por ter perdido o objeto com a mudança de foro.
Três advogados membros do “Prerrogativas” escreveram um manifesto onde, depois de divagar filosófica e profundamente sobre o paradoxo do biscoito Tostines, que “vende mais porque é fresquinho, ou é fresquinho porque vende mais”?, dizem que nunca pressionaram o STF, mas advertem ao final, na mesma linha da postagem oficial do PT, que o grupo “Não se furtará, evidentemente, a denunciar estratégias processuais e interpretações regimentais heterodoxas para que determinado e especifico objetivo seja atingido”. Ou seja, não mudem nenhuma decisão que favoreça o ex-presidente Lula.
Um dos autores do texto, Marco Aurélio de Carvalho, coordenador do “Prerrogativas”, já havia dito que o ministro Fachin estava arquitetando “uma manobra com objetivos políticos”. A advogada Carol Proner, também do grupo, afirmou numa entrevista no YouTube que o ministro Fachin, ao afirmar que o plenário do STF pode reverter a decisão da Segunda Turma, anulando a condenação por suspeição do ex-ministro Moro, está defendendo “um verdadeiro golpe jurídico”. Se isso não é pressão de uma parte interessada, por motivos diversos, em um determinado veredito, não sei o que é.
Joel Pinheiro da Fonseca: A ascensão do terrorismo bolsonarista
Temos o coquetel perfeito para novos surtos com consequências letais
Em 17 de março, um bombeiro ateou fogo à sede de um jornal no interior de SP. O motivo? O jornal defendia medidas de isolamento social. No fim de março, em Salvador, um PM teve um surto psicótico e passou a ameaçar cidadãos e colegas de trabalho. Imediatamente depois de sua morte, foi elevado à condição de herói nos meios bolsonaristas, inclusive pela deputada Bia Kicis. No domingo (11), no aeroporto de Guarulhos, outro PM em surto psicótico fez uma comissária de bordo refém. Casos como esses estão se tornando mais comuns.
E não são só militares. Também em março, um empresário do interior paulista fez um vídeo, armado, com ameaças ao ex-presidente Lula. O governador de SP, João Doria, decidiu se mudar de sua casa para o Palácio dos Bandeirantes depois das ameaças de manifestantes bolsonaristas.
A pandemia e o isolamento deixam todos nós sob estresse constante. Some-se a isso discursos extremistas e teorias da conspiração, e temos o coquetel perfeito para novos surtos com consequências letais.
Bolsonaro e seus cabos eleitorais não precisam incitar violência diretamente contra alguém. Se o fizessem, sofreriam um processo criminal. É o que ocorre quando um deles, como o deputado Daniel Silveira ou a militante Sara Winter, se exalta e perde a linha. A receita é mais difusa, mas o resultado é similar e conta com vistas grossas das autoridades.
Doutrine a cabeça de seguidores com teorias da conspiração, paranoia e maniqueísmo político. Eleja alguns adversários como alvos preferenciais do ódio. Conclame a uma atitude genérica de resistência, revolta, a alguma “ação” não especificada para levar à vitória; deixe tudo no ar. Boa parte do público alvo entenderá a mensagem. Uma minoria de desequilibrados irá colocá-la em prática. É só aguardar. Quando a tragédia previsível acontecer, faça cara de paisagem, lamente o ocorrido e siga adiante, na esperança silenciosa de que os fanáticos se encarregarão de intimidar qualquer crítico.
Em privado, Bolsonaro revela suas reais intenções sem medo. Na reunião ministerial de 22 de abril de 2020, depois tornada pública pelo STF, disse com todas as letras que queria o povo armado para resistir às ordens de governadores. Seu sonho se aproxima da realidade com o decreto de armas que entraria em vigor nesta terça (13) e teve trechos suspensos pela ministra Rosa Weber.
No que depender de Bolsonaro, a produção e venda de armas e munições no país fica mais facilitada e menos rastreada. O laudo de capacidade técnica para se armar será emitido, não pelas autoridades, mas por clubes de tiro. O limite de armas e munições que cada um pode ter deve ser generosamente aumentado. Para atiradores, chega a 60 armas. E poderão ainda andar com elas carregadas por aí. Milicianos agradecem.
Em post desta segunda (12), diz Bolsonaro: “Hoje você está tendo uma amostra do que é o comunismo e quem são os protótipos de ditadores”. Sim, no discurso bolsonarista, as medidas restritivas têm como objetivo implantar uma ditadura comunista.
Ao fim do post, conclui o presidente: “Pergunte o que cada um de nós poderá fazer pelo Brasil e sua liberdade e ... prepare-se”. O recado está dado, e os meios para se “preparar” também. População armada e alimentada com propaganda sediciosa em seus celulares. Policiais chamados ao motim. Quantos desses jovens PMs, por sinal, serão alunos de Olavo de Carvalho, que oferece seu curso —nada mais do que fanatização sectária— gratuitamente a policiais desde 2019? Como se não bastasse a Covid, agora temos que lidar também, e cada vez mais, com o terrorismo bolsonarista.
Hélio Schwartsman: O paradoxo de Bolsonaro
Quanto mais crimes de responsabilidade o presidente comete, mais nos acostumamos com a situação
Atribui-se a Eubulides de Mileto o paradoxo do monte (“sorítes”). Um grão de areia obviamente não constitui um monte. Se eu adicionar um segundo grão ao primeiro, ainda não tenho um monte. Nem com um terceiro. Mas, se eu continuar com esse processo, em algum momento eu chegarei lá. De quantos grãos eu preciso para fazer um monte?O diálogo entre Jair Bolsonaro e o senador Jorge Kajuru pode sem grandes pinotes interpretativos ser enquadrado como mais um crime de responsabilidade, ou até dois, se valorizarmos a linguagem chula.
Pelas contas da Folha, em janeiro já havia 23 situações que poderiam ser classificadas como crimes de responsabilidade do presidente. Nos últimos três meses, Bolsonaro adicionou novos itens à lista. Quantos delitos mais ele precisa cometer para que tenhamos um monte de ilícitos e o Congresso decida pará-lo?
Filósofos, matemáticos e linguistas estão há 2.500 anos propondo soluções engenhosas para paradoxos como os de Eubulides, que fazem recurso à indeterminação ou à vagueza dos termos. Numa delas, a filósofa Diana Raffman traz a noção de histerese e sustenta que os limites em que os termos serão usados são elásticos e se relacionam com a história dos objetos.
Assim, se um objeto já era reconhecido por todos como um “monte de areia”, poderá continuar a ser chamado de monte mesmo que perca uma quantidade de grãos que, fosse outro o objeto, levaria a um rebaixamento de monte para pilha.
Vincular a categoria à história, porém, pode ser diabólico quando lidamos com questões institucionais. É mais ou menos o que estamos presenciando. Quanto mais crimes de responsabilidade Bolsonaro comete, mais nos acostumamos com a situação e mais difícil fica estabelecer que ele já excedeu o limite que exige uma ação. Em suma, quanto mais ele viola a lei, menor a possibilidade de que venha a ser punido —o que nos leva a uma outra família de paradoxos.
Juan Arias: Os três gols seguidos em Bolsonaro podem prever sua derrota final
Até os que continuavam apoiando-o porque o viam como o grande inimigo da esquerda começaram a se distanciar dele principalmente após a desastrosa gestão da pandemia com seu negacionismo exasperado
Os que convivem com o presidente Jair Bolsonaro afirmam que nunca o viram tão irritado como nestes dias. Talvez porque tenha sofrido três gols seguidos que podem prever sua derrota definitiva.
Até os que continuavam apoiando-o porque o viam como o grande inimigo da esquerda começaram a se distanciar dele principalmente após a desastrosa gestão da pandemia com seu negacionismo exasperado que fez com o que o Brasil seja visto hoje no exterior como o maior perigo sanitário do mundo.
O capitão viu de repente seu governo vazado três vezes. Primeiro quando o Exército fez com que ele soubesse com a renúncia dos três chefes das Forças Armadas que não está disposto a entrar em política e deu a entender que não é “seu Exército” como ele cacareja a cada dia.
O Supremo que ele achava ter dominado marcou dois gols seguidos em Bolsonaro. Primeiro derrubando por 9 votos contra 2 sua pretensão de que as Igrejas se mantivessem abertas ao culto apesar do agravamento da pandemia. Os magistrados se mantiveram firmes em que são os governadores e prefeitos que, segundo a gravidade do momento, poderão ou não impedir o culto presencial nos templos.
O outro gol do Supremo foi marcado pelo juiz Barroso obrigando o Senado a dar sinal verde à abertura de uma CPI para analisar as responsabilidades do Presidente e de seu Governo na gestão da pandemia que levou o país à catástrofe que está sofrendo com o horror de que em muitas cidades os mortos já superam os nascimentos. No Senado já existiam os votos suficientes para dar andamento à CPI, mas o presidente da Casa se fazia de desentendido e continuava sem abrir a comissão de inquérito sobre os possíveis crimes de Bolsonaro que zomba do que ele chamou de uma simples “gripezinha”. Enfurecido, o Presidente ameaçou o Supremo e o Senado em usar a “bomba atômica” contra eles. Ameaça que deixa a descoberto sua fragilidade e o poder que achava ter sobre as instituições.
Essas três derrotas às que é preciso somar o fato de ter sido obrigado a demitir seu ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, considerado o coração ideológico do Governo, seguidor fiel de Donald Trump e que estava fazendo com que o Brasil brigasse com meio mundo, indicam que as placas tectônicas de seu poder estão se movimentando e podem causar um terremoto político.
É importante que o amante das ditaduras comece a ver seu poder se quebrar porque com seus desmandos e ataques contínuos à democracia está fazendo com que o Brasil perca as esperanças. E já sabemos o que costuma acontecer quando um povo perde as esperanças nos que o governam.
De fato, com Bolsonaro o Brasil do futuro ficou muito para trás, o do Deus é brasileiro, o do milagre econômico, o país desejado pelos europeus que queriam vir trabalhar aqui, o Brasil respeitado em todos os foros internacionais, o de sua invejada diplomacia exterior. Tudo isso parece de repente ter se desfeito como uma bolha de sabão dando lugar a um pessimismo nacional.
Hoje predominam as fake news que envenenam a sociedade e a desorientam levada pelo ódio em vez da convivência pacífica. Onde se esconderam envergonhadas a esperança e a alegria de viver? Hoje até a música popular se tornou mais violenta.
De tanto falar de armas, de militares, de golpes de Estado, de genocídios e de sentirem-se abandonados em meio à matança da pandemia os brasileiros se veem a cada dia mais abandonados à sua sorte.
Enquanto os mortos se amontoam e já faltam cemitérios, soam macabras as zombarias, as ironias e até as imitações grosseiras de alguém que morre asfixiado por falta de oxigênio por parte de quem detém o poder da nação e deveria mostrar solidariedade e compaixão com tanta dor.
Dá a sensação de uma grande confusão que desorienta as pessoas que já não sabem em quem confiar com as instituições do Estado também até ontem desorientadas e incapazes de se unir contra o perigo comum de quem só pensa em conseguir o poder absoluto para impor um sombrio golpe ditatorial.
É surpreendente ver, por exemplo, os grandes empresários aplaudindo o candidato a ditador que arrastou o país a uma das maiores crises econômicas da história com milhões que ou passam fome, ou estão sem trabalho e que quase não conseguem viver com dignidade com o que ganham.
Estão cegas essas elites financeiras que não veem as lágrimas de milhões de brasileiros que levantam todas as manhãs sem saber se poderão dar de comer aos seus filhos? Esses empresários que manejam as finanças do país não veem que o Brasil está desmoronando e que a cada dia se sente mais inseguro sem saber que futuro seus filhos esperam?
Essas elites da política e do dinheiro não veem que o Brasil amanhece a cada manhã com os grandes veículos de comunicação mundiais anunciando a queda e desmoralização de um país que deveria e poderia ser o coração do continente?
Não, o Brasil não precisa para ser governado e para recuperar sua esperança hoje quebrada de mais messias e redentores, e sim de estadistas capazes de organizar o país em relação à sua dignidade, sem saqueá-lo vergonhosamente para que eles e suas famílias enriqueçam condenando um país rico material e espiritualmente à pobreza e ao desalento.
A única esperança é que a sociedade procure sua unidade e o antídoto para se defender contra os vírus políticos mais mortais do que os da pandemia porque envenenam não só o presente, e sim também o futuro da nação.
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A palavra de ordem dos brasileiros hoje deveria ser a da resistência aos que se divertem e lucram saqueando não só seus recursos, como suas liberdades até de expressão e, principalmente, a esperança de sair do pesadelo que os aflige mais unidos e com orgulho do que realmente representa este país no mundo.
O que espera, por exemplo, o Congresso para dar seguimento aos aproximadamente cem pedidos de impeachment contra o Presidente por parte da sociedade? O Congresso não é a voz e a expressão dos anseios da sociedade?
É desmoralizador ver essa voz da sociedade sufocada pelos interesses puramente pessoais dos que a governam. O que podem pensar os milhões sem casa e morando em pardieiros como animais vendo um senador jovem, filho do Presidente, investigado por corrupção, comprar uma mansão de seis milhões no coração aristocrático de Brasília?
Quando o poder que deveria pensar em como melhorar a vida das pessoas aparece preocupado somente em acumular privilégios e benefícios, a democracia se quebra envergonhada e humilhada.
O Brasil sofreu como tragédia os 21 anos de ditadura militar e agora parece viver como farsa a democracia. Só que às vezes a farsa dos aprendizes a ditadores pode ser mais grave do que a realidade.
O Brasil precisa com urgência de verdadeiros líderes capazes de devolver a esperança perdida a 220 milhões de pessoas submersas hoje no medo e na desilusão. A história é sempre mãe da sabedoria. O que o Brasil vive hoje pode lembrar quando há mais de 2.000 anos Cícero, senador romano, jurista, político e escritor enfrentou o conspirador Catilina que pretendia tomar o poder absoluto, com suas famosas palavras que atravessaram os séculos: “Até quando, Catilina, abusarás de nossa paciência? Por quanto tempo tua loucura zombará de nós? A que extremo chegou tua audácia desenfreada? Não percebeu que seus planos foram descobertos?”. O conspirador Catilina acabou fugindo de Roma com suas hostes fanáticas e derrotado.
Sim, o Brasil precisa de um novo Cícero capaz de repetir ao conspirador que só sonha em conquistar o poder absoluto zombando da Constituição e da democracia: até quando continuará abusando de nossa paciência?
Juan Arias é jornalista e escritor, com obras traduzidas em mais de 15 idiomas. É autor de livros como Madalena, Jesus esse Grande Desconhecido, José Saramago: o Amor Possível, entre muitos outros. Trabalha no EL PAÍS desde 1976. Foi correspondente deste jornal no Vaticano e na Itália por quase duas décadas e, desde 1999, vive e escreve no Brasil. É colunista do EL PAÍS no Brasil desde 2013, quando a edição brasileira foi lançada, onde escreve semanalmente.
O Estado de S. Paulo: Bolsonaro reclama de gravação de conversa por Kajuru e cobra autorização judicial
Segundo o presidente, seria necessária autorização judicial para a gravação do diálogo ter sido feita pelo parlamentar, o que não é verdade
Emilly Behnke, O Estado de S.Paulo
BRASÍLIA - O presidente Jair Bolsonaro reclamou nesta segunda-feira, 12, da divulgação de um telefonema seu com o senador Jorge Kajuru (Cidadania-GO). Segundo o presidente, seria necessária autorização judicial para a gravação do diálogo ter sido feita pelo parlamentar, o que não é verdade, uma vez que não há proibição na lei nos casos em que a divulgação é feita por um dos participantes. A conversa entre os dois tratou sobre a instalação da CPI da Covid no Senado, que preocupa Bolsonaro.
“Eu fui gravado em uma conversa telefônica, está certo? A que ponto chegamos no Brasil? Gravado”, comentou para apoiadores na saída do Palácio da Alvorada nesta manhã. "A gravação é só com autorização judicial. Agora, gravar o presidente e divulgar... E outra, só para controle, falei mais coisas naquela conversa lá. Pode divulgar tudo da minha parte, tá?”, disse Bolsonaro. A divulgação da conversa foi feita ontem, mas, segundo Kajuru, o telefonema ocorreu no sábado, 9.
O chefe do Executivo demonstrou irritação com a revelação da conversa. A Coluna do Estadão mostrou, no entanto, que Bolsonaro foi avisado por Kajuru com vinte minutos de antecedência que o áudio seria publicado nas redes sociais. Segundo o senador, Bolsonaro não tentou impedir a divulgação.
No telefonema, Bolsonaro pressionou Kajuru a ingressar com pedidos de impeachment contra ministros do Supremo Tribunal Federal. O presidente dá a entender que, se houver pedidos de impeachment contra ministros da Suprema Corte, podem ocorrer mudanças nos rumos sobre a instalação da comissão. A decisão pela criação da CPI, que tem o apoio de mais de um terço do Senado, foi do ministro Luís Roberto Barroso.
“Você tem de fazer do limão uma limonada. Tem de peticionar o Supremo para colocar em pauta o impeachment (de ministros) também”, disse Bolsonaro ao senador. “Sabe o que eu acho que vai acontecer, eles vão recuperar tudo. Não tem CPI, não tem investigação de ninguém do Supremo.”
Pouco antes de falar com apoiadores no Alvorada, o presidente também foi às redes sociais pedir "união e apoio" ao seu governo. Na postagem, sem citar em nenhum momento o enfrentamento da pandemia que já matou mais de 350 mil pessoas no País, o presidente elege o "comunismo" como inimigo a ser combatido, numa crítica velada a prefeitos e governadores que adotaram medidas restritivas para conter a proliferação da doença.
"Hoje você está tendo uma amostra do que é o comunismo e quem são os protótipos de ditadores, aqueles que decretam proibição de cultos, toque de recolher, expropriação de imóveis, restrições a deslocamentos, etc", afirma o presidente. Apesar de Bolsonaro incluir a expropriação de imóveis na lista, numa tentativa de alarmar a população, nenhum governador ou prefeito adotou a medida entre as estratégias para conter o vírus. Informações nesse sentido envolvendo o governador de Sergipe, Belivaldo Chagas (PSD), já foram desmentidas pelo Estadão Verifica.
Na gravação com Kajuru, além de tratar do impeachment de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), Bolsonaro insistiu que a CPI da Covid amplie a investigação para incluir governadores e prefeitos, não apenas o governo federal. O presidente atribuiu ainda o número de mortes da covid-19 à suposta omissão de prefeitos e governadores, ignorando que ele mesmo boicota medidas que dão certo contra o vírus, como o distanciamento social e o uso de máscaras. “A questão do vírus... Não vai deixar de morrer gente, infelizmente, no Brasil. Poderia morrer menos gente se os governadores e prefeitos que pegassem recursos e aplicassem realmente em postos de saúde, hospital", disse Bolsonaro a Kajuru.
A publicação de hoje nas mídias sociais do presidente é acompanhada de vídeo com trechos de entrevistas de Bolsonaro antes, durante e depois de sua campanha eleitoral, inclusive com imagens do episódio da facada e de manifestações pró-governo. Ao cobrar apoio e o respeito à Constituição, ele afirmou que não se deve "ofender exatamente aquele que pode ser decisivo" em momentos difíceis.
"Se a facada tivesse sido fatal, hoje você teria como presidente (Fernando) Haddad (PT) ou Ciro (Gomes, PDT). Sua liberdade, certamente, não mais existiria", diz Bolsonaro, numa referência a seus adversários na campanha de 2018.
O chefe do Executivo voltou a defender a "liberdade" ao criticar adoção de "lockdown" por governadores e prefeitos. As restrições, que vão de toque de recolher ao fechamento do comércio, foram decretados após o sistema de saúde de muitas cidades entrarem em colapso, com UTIs lotadas e pessoas morrendo na fila à espera de um leito.
"Cada vez mais a população está ficando sem emprego, renda e meios de sobrevivência... O caos bate na porta dos brasileiros. Pergunte o que cada um de nós poderá fazer pelo Brasil e sua liberdade e... prepare-se", escreveu, conclamando seus seguidores.
FHC: “Não pode ser o candidato da elite”
Para ex-presidente, nome da terceira via em 2022 precisa conhecer bem realidade brasileira
Cristiano Romero, Valor Econômico
BRASÍLIA - Na polarização que se desenha para a eleição de 2022, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) afirma ser possível criar o “espaço” para uma terceira via competitiva que enfrente o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e o atual, Jair Bolsonaro (sem partido). Desde que a alternativa construa esse “espaço” com um forte discurso de “progresso econômico”, que conheça a realidade brasileira e não seja “anódina”. “É preciso ver quem é capaz de conversar com o Brasil. Não pode ser o candidato da elite”, defende, em entrevista ao Valor.
Para FHC, o Brasil “gosta de novidade” e a vitória de Joe Biden nos Estados Unidos é “positiva” por refletir “aqui de alguma forma” a possibilidade de se escolher “uma candidatura que seja equilibrada”. O ex-presidente almeja, mas não enxerga no momento o portador do perfil ideal para combater Lula e Bolsonaro em 2022: alguém que exerça liderança nacional, “atenda aos mais pobres” e seja popular.
“Estamos longe de ver alguém que simbolize essa diversidade, para ser um bom candidato de oposição”, diz. “Há governadores que têm peso. Dizem que são candidatos, mas eles não simbolizam nada nacionalmente”, acrescenta FHC, correligionário dos governadores de São Paulo, João Doria, e do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, pré-candidatos na corrida presidencial.
Para o tucano, “política não se faz com o passado”, mas com o futuro. Apesar disso, a disputa em 2022, afirma, pode favorecer Lula. Em sua opinião, o petista, na falta de uma terceira via competitiva, pode aglutinar forças do centro. “Bolsonaro é mais extremo que o Lula. Se não aparecer uma [terceira] candidatura, o Lula vai somar essa gente [que hoje faz oposição ao governo] para enfrentá-lo”, diz o tucano, que tampouco é a favor do impeachment de Bolsonaro. “Estamos muito longe de uma situação de impeachment. Bolsonaro está governando. Então, acho que é insensato”, disse.
A seguir, leia os principais trechos da entrevista ao Valor:
Valor: O senhor imaginou que o Brasil fosse se tornar o epicentro da pandemia?
Fernando Henrique Cardoso: Na minha casa falavam muito da gripe espanhola, que foi algo muito difícil, mas nunca mais se falou de uma pandemia no sentido que temos hoje. As pessoas não estavam, em geral, preparadas para isso. Quando o governo não sinaliza a gravidade, é pior. A situação é muito complicada, o número de mortos não para de crescer. E o pior é que os pequenos negócios na economia estão fechando, todo mundo está sofrendo as consequências e vai sofrer por muito tempo ainda.
Valor: Como estaremos depois da pandemia?
FHC: Não sei o que vai acontecer porque, neste momento, todos querem salvar a própria pele, todo mundo pensando em si mesmo, depois vai pensar na vida. E a vida é o trabalho, a política. O Brasil é curioso porque tem um serviço de saúde bom. Quando eu era criança, aqui só havia as santas casas de misericórdia e olhe lá. Hoje, temos o SUS e ele funciona, atende às pessoas. Eu uso o SUS.
Valor: Mas o senhor é bem atendido porque é ex-presidente.
FHC: Espero que sim, mas a cama é a mesma, os lençóis são os mesmos, os médicos, enfim, o SUS é razoável.
Valor: O que está faltando?
FHC: Confiança. É difícil manter a confiança numa situação dessas. E com o nosso presidente que acha que a pandemia é uma gripezinha, ninguém acredita em nada. Agora, isso não para a vida política. Ainda bem que tem eleição, mas sempre repito: política não se faz com o passado.
Valor: Não?
FHC: Não. Política se faz com o futuro. O que você apresenta, qual é o caminho. Num país como o Brasil, isso é mais forte.
Valor: Por quê?
FHC: Porque aqui não tem partido para disciplinar os políticos. O povo vai atrás de pessoas que expressam aquele momento. Neste momento, você olha em volta e vê falta de quem expresse alguma coisa. Vamos ver quem, depois da pandemia, vai expressar o momento novo do Brasil. É um país que tem futuro, tem riqueza, tem gente.
Valor: Mas não cresce há sete anos.
FHC: O problema fundamental é retomar o crescimento, mas diminuir a desigualdade, que é muito grande. Quando falam do meu governo, dizem: “Ele fez o Plano Real”. O real foi importante, mas fiz a reforma agrária, algo que tem um peso grande para a população. A educação melhorou bastante, Paulo Renato [de Souza] era um bom ministro; a saúde, onde o [José] Serra foi um bom ministro, antes dele o [Adib] Jatene, deu um salto grande. Comecei a reforma fiscal para enfrentar o déficit público, que sempre existiu e agora vai aumentar.
Valor: Bolsonaro, ex-deputado sem grandes pretensões políticas, rompeu com a polarização PSDB-PT que prevaleceu de 1994 a 2018. Como se explica isso?
FHC: Bolsonaro veio como o anti-PT. O pessoal ficou com medo da vitória do PT.
Valor: Medo do que exatamente?
FHC: O medo não estava baseado propriamente em fatos, mas muito mais na pintura que se fazia das coisas. Na verdade, quando foi presidente, Lula governou de acordo com o mercado. A presidente Dilma [Rousseff] foi mais voluntariosa, mas não fez nada que fosse contra os interesses predominantes. Ela podia ser menos capacitada que o Lula para lidar com a máquina pública.
Valor: Onde o senhor acha que a ex-presidente errou?
FHC: Ela rompeu [com o modelo macroeconômico herdado de Lula], sobretudo, no segundo mandato [2015-2016], quando fez outra coisa. A Dilma era mais estatizante que o Lula.
Valor: Lula manteve o modelo adotado em seu governo e, inclusive, o aperfeiçoou. Um exemplo foi a acumulação de reservas cambiais. Como o senhor o define?
FHC: O Lula é prático. Eu o conheci bastante quando ele era dirigente sindical. Ele é inteligente, sensível e prático. Sempre teve mais amor ao capital, mas nunca deixou de olhar para o povo, sempre fez uma mescla das duas coisas. É mais paulista: “O governo faz, mas quem faz também é o mercado”. Com a Dilma, é mais Estado. Não deu certo não só por ser Estado, mas também porque a conjuntura não favoreceu. Bolsonaro se elegeu na base de que é um liberal.
Valor: Ele é um liberal?
FHC: Não é liberal. É um militar e eu conheço bem os militares. Meu pai era general e meu avô, marechal. Nada contra isso, mas conheço a mentalidade militar deles, que é mais Estado. No caso do presidente, ele é capitão, então, é mais reivindicativo ainda. Nunca falei com ele, mas lembro que ele era um ser reivindicante, queria coisas para os militares. Não me parece que ele tenha grandes habilidades políticas.
Valor: Mas foi eleito presidente.
FHC: Sempre disse: quem tem votos eu respeito. Ele foi eleito. Sou visceralmente antigolpe. Nossa sociedade provou o gostinho da liberdade, é difícil voltar atrás.
Valor: O senhor não vê risco de golpe da parte do presidente?
FHC: Acho que não tem. Ele pode ter o ímpeto que tiver, não sei qual é o ímpeto dele, mas não pega. É difícil você botar um país do tamanho do Brasil na risca, tem que ter um partido. Aqui não tem nem partido nem de esquerda nem de direita.
Valor: E os partidos que chegaram ao poder, como PT e PSDB, são hoje bem menores do que eram, o que mostra que a fragmentação das legendas continua aumentando.
FHC: Além da fragmentação partidária, temos tradição de seguir o líder, de seguir pessoas. Bolsonaro, querendo ou não, tem liderança, o Lula também. Estão pregando a necessidade de localizar o centro. Depende de pessoas. Quem é? Não pode ser um centro anódino. Isso não pega na política.
Valor: Quem teria esse perfil?
FHC: Tem que ser alguém que faça a economia crescer e dê emprego para quem precise e atenda aos mais pobres. É fácil falar e difícil fazer, mas tem que simbolizar isso. Há governadores que têm peso. Dizem que são candidatos, mas não simbolizam nada nacionalmente.
Valor: É torcedor do Fluminense ou do Flamengo?
FHC: Eu era mais Fluminense, mas estava errado. Era melhor ter sido mais Flamengo... Quando fui candidato à Presidência [em 1994], Marcello Alencar era [candidato a] governador do Rio. Ele tinha força na Baixada Fluminense e me levou a uma cidade da região. No [Estado do] Rio, não conhecia nada; mais Niterói. Era assustador para mim.
Valor: Por quê?
FHC: Fui a um lugar onde tinha um bar, uma escadinha, por onde subimos e chegamos a uma sala grande, meio escura, onde estavam os “chefes” da Baixada, todos com pulseiras e colares de ouro. Eu era ministro da Fazenda. Conhece a Ana Tavares [então assessora especial]? Ana ia comigo e dizia: “Não vai falar com fulano!”. Eu dizia: “Ana, eu tenho que falar”. É complicado. Nossos líderes que estão aí têm que conhecer o Brasil. Eu tinha algum conhecimento de Brasil porque, primeiro, fui sociólogo. Minha mãe nasceu em Manaus. Minha família, por parte de mãe, é de Alagoas. Meu pai nasceu no Paraná, mas a família é de Goiás. Você tem que conhecer essa realidade, a diversidade que é o Brasil. Não adianta saber pelos livros, tem que ter contato com as pessoas. Ser líder político no Brasil não é fácil.
Valor: Como assim?
FHC: Bolsonaro tem a vantagem de ser capitão da reserva. Não sei o quanto ele andou pelo país, mas, mesmo que não tenha feito isso, eles [os militares] têm um certo conhecimento da realidade. Algum conhecimento do povo o líder político tem que ter. Estamos longe de ver alguém que simbolize essa diversidade, para ser um bom candidato de oposição. Os que estão aí e que são possíveis candidatos podem vir a ter, mas têm que obrigatoriamente vir a ter.
Valor: O senhor disse que ficou assustado com o encontro na Baixada Fluminense. Como foi?
FHC: Ah, chegou uma hora, depois de me ouvirem, que um deles disse: “Eu aposto não sei quanto nesse menino aí”. O menino era eu [com 63 anos na época]! Andei muito na Baixada com o Zito [José Camilo Zito dos Santos Filho, ex-prefeito de Duque de Caxias]. É muito importante falar com todo mundo e isso, que as pessoas pensam que é fácil, não é. Quando era presidente, eu falava com os motoristas, o sujeito que tomava conta da piscina [do Palácio da Alvorada], a moça que cuidava das flores, que se chama Dalina... Eu queria saber como as pessoas simples sentem a vida. Como não há estrutura partidária que sustente uma candidatura, é você que tem que se projetar. Projetar é jogar para fora, não é ficar para dentro. É preciso ver quem é capaz de conversar com o Brasil. Não pode ser o candidato da elite. Se ficar só na elite, está perdido.
Valor: Pesquisas mostram que, com a volta de Lula, neste momento a disputa de 2022 está entre ele e Bolsonaro. Há espaço para uma terceira candidatura, de centro?
FHC: Em política, o espaço é criado. Não está dado. Eu gostaria que houvesse alguém que criasse esse espaço. A maioria [dos eleitores] não é uma coisa nem outra, então, alguém tem que criar. No Brasil, o importante é o progresso econômico. Os que são espertos, Bolsonaro e Lula, ganharam espaço porque tiveram a capacidade de demonstrar [que conhecem a realidade].
Valor: Terão a mesma capacidade agora?
FHC: O Brasil gosta de novidade. Depende de aparecer uma novidade que seja palatável para a maioria da população. O mundo hoje é um mundo mais calmo, não tem expectativa de guerra. Isso reflete aqui de alguma maneira. Ganhou nos Estados Unidos o [Joe] Biden. Isso para nós é positivo porque não foi o extremo que ganhou. Então, há condições para uma candidatura que seja equilibrada, que não seja do extremo.
Valor: Lula é do extremo?
FHC: Não estou dizendo que Lula seja de extremo porque ele não é. Bolsonaro é mais extremo que o Lula. Se não aparecer uma [terceira] candidatura, o Lula vai somar essa gente [que hoje faz oposição ao governo] para enfrentá-lo. O Lula é inteligente, pegou no ar, aprendeu. O que ele vai simbolizar? Não sei. O que foi que ele simbolizou com o governo? Foi uma época feliz da vida no Brasil. E a economia foi bem. Mas ele não vai simbolizar o que vão dizer que ele simboliza, que é o socialismo, o comunismo, o Lula vermelho.
Valor: O que a sociedade tem a seu alcance para lidar com um presidente que nega a gravidade da pandemia desde o início e, por isso, não comprou a vacina ao tempo?
FHC: Ele vai pagar um preço por isso se houver alguém que diga isso, com força. Se não houver, não adianta. Política é sempre assim.
Valor: O governador de São Paulo, João Doria, está fazendo isso e o resultado tem sido o oposto. O Estado produz a vacina, mas esta tem que ser entregue ao governo federal para distribuição nacional. Como o governo atrasa a importação de vacina, o governador tem que fazer “lockdown” e isso derruba sua popularidade. Ele não corre risco de perder a reeleição?
FHC: Pode ser que ele ganhe de novo, pode ser. Por enquanto, quem está pagando um preço elevado [pela falta de vacinas] são os governadores. Você sabe como é o povo aqui. O povo não olha quem está tão lá em cima.
Valor: Quando começar a imunização em massa, Bolsonaro não pode se tornar o “pai” da vacina?
FHC: Quem for o pai da vacina terá vantagem eleitoral enorme, mas, isso hoje. Não sei daqui a um ano, porque as pessoas esquecem.
Valor: Em 36 anos de redemocratização, tivemos dois presidentes afastados por impeachment. Nossa democracia é frágil?
FHC: Não. Acho que já está consolidada, o povo gostou da liberdade de escolher. Eu acho difícil que dê marcha à ré. Não é impossível. Como dizia Otávio Mangabeira [ex-governador da Bahia], “a democracia é uma plantinha tenra que tem que ser regada todo dia”.
Valor: O senhor apoiaria Lula?
FHC: No segundo turno, se ficar o Lula contra o Bolsonaro, não sei se o PSDB vai fazer isso... Se depender da minha inclinação, iria nessa direção, com muita dificuldade porque o Lula jogava pedra em mim.
Valor: Mas ele ainda joga?
FHC: Não, ultimamente não tem jogado, porque ele não precisa.
Valor: As condenações, agora anuladas, e a prisão de Lula o tiraram da eleição de 2018. O ex-juiz e ex-ministro Sergio Moro é acusado de ter agido politicamente. Como o senhor avalia isso?
FHC: É isso aí, o Moro fez isso. Acho que ele fez um erro ao aceitar ser ministro. Ele mostrou, na época da Lava-Jato, sua importância no combate à corrupção. É importante, é verdadeiro. Mas, depois, entrou no jogo de poder. Não é a dele. Ele é um bom juiz. O jogo do poder é um jogo difícil e ganhar do Lula não é brincadeira, é difícil. Ele sabe. Lula segue a regra. Instintivamente, ele sempre faz isso. Isso não quer dizer que o outro lado não possa transformar o Lula num fantasma outra vez. Pode, independentemente do Lula. É claro que eu não vou contribuir para isso nunca.
Valor: Para onde vai o PSDB, que, assim como o PT, se enfraqueceu e sem dividiu nos últimos anos?
FHC: Unir o PSDB é uma tarefa sempre difícil. E não sei se se deveria perder muito tempo com isso, porque não são os partidos que elegem os governantes. Eu me dou com o Doria. Sou amigo dele há muito tempo. Conheço pouco o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, que é do PSDB também. Ele tem bom nome também. Agora, é mais recente e o Sul é longe do centro. Mas vai ficar entre esses dois, você vai ver.
Valor: E o Luciano Huck?
FHC: Eu o conheço bem, sou amigo da mãe e do padrasto dele. Não sei... Ele vai ter que decidir agora. Ele teria que queimar a vela e deixar a [Rede] Globo. É agora. Se ele tomar a decisão e se jogar, tem condição de se transformar num político. Mas tem que se transformar num político, naquilo que os outros já são. Não é tão simples assim. Ele tem mais popularidade do que qualquer deles, hoje. Ter popularidade é uma coisa, ser líder político não é a mesma coisa. É bom ter popularidade, mas tem que ser como líder político. Eu não quero dizer que ele não possa, mas ele vai ter que mostrar que pode se transformar em um líder político. Custa mais a ele do que aos outros porque os outros já queimaram as velas.
Valor: O senhor acha que há motivos para um pedido de impeachment do presidente Jair Bolsonaro?
FHC: Nunca fui favorável à ideia que você trabalhasse pelo impeachment. É golpe, de outra maneira. Na situação da Dilma, ela mesma inviabilizou. Mas agora estamos muito longe de uma situação de impeachment. Ele está governando. Então eu acho que é insensato.
Bruno Carazza: Quando a esmola é muita
Imunidade não quer dizer subvenção
Nos primórdios, a ordem era a seguinte: em primeiro lugar a Igreja, depois a unidade do Estado e as leis e só então viria o interesse da população.
“Juro manter a Religião Católica Apostólica Romana, a integridade e indivisibilidade do Império e fazer observar a Constituição Política da Nação Brasileira, e demais Leis do Império, e prover ao bem geral do Brasil”, exigia o art. 103 da nossa primeira Constituição, proclamada por Pedro I em 25 de março de 1824.
Logo após a Independência, a liberdade de culto existia apenas no papel, pois o catolicismo era o credo oficial; o único com direito a possuir templos - as demais práticas religiosas eram permitidas apenas em residências ou espaços fechados, sem demonstração externa. E havia um detalhe: para ser deputado, era preciso ter pelo menos 400 mil réis de renda líquida e professar a religião do Estado - ou seja, ser católico.
Com a Proclamação da República foi abolido o vínculo oficial entre Igreja e Estado no país. A Carta Magna de 1891 proibiu o governo de estabelecer, subvencionar ou atrapalhar o funcionamento de qualquer culto. O princípio da laicidade prevalece até hoje, insculpido no inciso I do art. 19 da atual Constituição.
E foi com base nesse dispositivo que a Associação Nacional dos Juristas Evangélicos obteve do ministro Kássio Nunes uma liminar impedindo governadores e prefeitos de editarem normas restringindo cerimônias por causa da pandemia. Esse entendimento, contudo, foi derrubado na semana passada pelo plenário do Supremo Tribunal Federal, que decidiu que a proteção à vida não viola o princípio da liberdade religiosa.
Afora o debate se a fé pode ser exercida num contato direto com Deus ou carece de interação comunitária (“igreja” vem de “reunião”, em grego), muitos veem na controvérsia jurídica uma motivação muito mais mundana: a queda de arrecadação de dízimo.
Como igrejas não publicam seu faturamento, fomos atrás de um dado indireto para ver a quantas anda esse “mercado”. Contando com a ajuda de Joaquim Honório, do Laboratório de Analytics da Universidade Federal de Campina Grande, na Paraíba, compilamos a data de criação de todas as pessoas jurídicas inscritas no banco de dados da Receita Federal que exerciam “atividade de organização religiosa” (CNAE 9491-0).
Como pode ser visto no gráfico, há uma aceleração na abertura de entidades ao longo das últimas décadas. No entanto, após atingir um pico de 12.116 novos estabelecimentos em 2013, o movimento é revertido, com um aprofundamento significativo em 2020, quando chegou a “apenas” 4.808 até novembro.
O arrefecimento no lançamento de novas igrejas Brasil afora pode ser derivado de inúmeros fatores, inclusive em função de uma acomodação frente ao forte crescimento das últimas décadas.
Todavia o ciclo econômico adverso em vigor desde a grande recessão de 2015/2017, potencializado pelas medidas de distanciamento exigidas pela covid-19, surge como candidato mais provável para explicar não só essa reversão de tendência, como também o lobby das entidades religiosas junto aos três Poderes da República.
Além das ações propostas no STF e da evidente influência que exercem sobre Jair Bolsonaro, líderes religiosos promovem uma ampla agenda no Congresso Nacional. Uma pesquisa no site da Câmara dos Deputados indica que existem pelo menos 370 projetos de lei em tramitação com essa temática, sendo 70 apresentados desde o início da pandemia.
Além da pressão para a manutenção dos templos abertos - somente em março foram cinco propostas apresentadas com esse objetivo - e a pauta de costumes, há uma variada pauta tributária, o que reforça a tese de que a crise econômica não poupou padres, pastores e afins.
Organizações religiosas há tempos tentam por vias legislativas e judiciais ampliar os limites da imunidade tributária que, de acordo com o texto atual, só atinge seus templos - e não todas as suas outras atividades.
Além da recente derrubada do veto que abre caminho para um perdão bilionário de dívidas tributárias, o apetite da bancada da Bíblia não tem limites. As propostas gravitam em torno de questões de grande vulto, como a isenção de impostos para a remessa de valores para o exterior (PL nº 4.936/2020) e o afastamento da legislação trabalhista sobre as funções exercidas nas igrejas - que seriam consideradas trabalho voluntário, segundo o PL nº 4.188/2020.
Desconsiderando que a mesma Constituição que concede imunidade aos templos também proíbe que nosso Estado subvencione religiões com subsídios e isenções, os parlamentares buscam até mesmo a dispensa do recolhimento de direitos autorais na execução de músicas nos templos e meios de comunicação (PL nº 3.399/2020) e gratuidade no pagamento de taxas cartoriais na aquisição de imóveis (PL nº 2.870/2019).
É tanta a ganância de parlamentares que agem como procuradores de igrejas que corremos o risco de, em breve, regredirmos ao tempos do Império, quando interesses religiosos pairam acima do país, da Constituição e do próprio povo brasileiro.
*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”
Ricardo Noblat: Bolsonaro sugere impeachment de ministros do STF para esvaziar CPI
Quanto mais confusão, melhor para ele
Por mais repulsiva que seja quando revelada, a tentativa de interferência de um presidente da República em assuntos internos do Congresso faz parte do jogo jogado às escondidas do distinto público, aqui e em toda parte. Não chega a ser um crime capaz de derrubá-lo. Transparência é tudo o que não há na política.
Mas quando um presidente também interfere para que um parlamentar apresente pedidos de impeachment contra ministros da mais alta Corte de Justiça do país, o crime está mais do que configurado – desta vez por atentar contra a autonomia dos poderes. Foi o que fez o presidente Jair Bolsonaro.
Em conversa por telefone divulgada pelo senador Jorge Kajuru (Cidadania-GO) nas redes sociais, Bolsonaro sugere com clareza que, se houver pedidos de impeachment contra ministros do Supremo Tribunal Federal, a CPI da Covid poderá ser esvaziada, deixando assim de investigá-lo e ao seu governo.
Se Bolsonaro sente-se tão à vontade para interferir no Senado e boicotar a decisão do Supremo de mandar instalar a CPI, quanto mais em órgãos que não são do governo, mas do Estado, como Receita Federal, Polícia Federal, Procuradoria-Geral da República, e o que mais possa ameaçar sua segurança, e a dos filhos.
“Você tem de fazer do limão uma limonada. Tem de peticionar o Supremo para colocar em pauta o impeachment (de ministros) também”, disse Bolsonaro a Kajuru. “Sabe o que eu acho que vai acontecer? Eles vão recuperar tudo. Não tem CPI, não tem investigação de ninguém do Supremo.”
Kajuru respondeu que ingressou com pedido no Supremo para obrigar o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), a também pautar para votação em plenário o afastamento do ministro Alexandre de Moraes, ao que Bolsonaro respondeu: “Você é dez. Sou a favor de botar tudo para a frente”.
O Senado tem hoje dez pedidos de investigação contra ministros do Supremo. Contra Alexandre de Moraes são seis. Ele virou alvo após determinar a prisão de vários bolsonaristas investigados no inquérito das Fake News. Há pedidos também para investigar Gilmar Mendes, Edson Fachin e Cármen Lúcia.
CPI é um instrumento da minoria parlamentar assegurado pela Constituição. O pedido de CPI da Covid cumpriu todos os requisitos legais, mas o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), aliado de Bolsonaro, preferiu engavetá-lo. Foi o ministro Luís Roberto Barroso que mandou instalá-la de imediato.
“A CPI, hoje, é para investigar omissões do governo Bolsonaro, ponto final. Se não mudar o objetivo, ela vai só vir pra cima de mim. Tem que mudar a amplitude dela”, comentou Bolsonaro com Kajuru. “Se não mudar, a CPI vai simplesmente ouvir (o ex-ministro da Saúde) Pazuello para fazer um relatório sacana.”
Amanhã, em sessão do Senado, Pacheco vai ler o requerimento de instalação da CPI. Na quarta-feira, o plenário do Senado aprovará ou não o requerimento que foi assinado por 33 dos 81 senadores. Nesse mesmo dia, o plenário do Supremo avalizará a decisão de Barroso por larga maioria de votos.
Não se sabe se Kajuru tornou pública por sua conta e risco o telefonema trocado com Bolsonaro no último sábado. Ou se foi autorizado por ele a fazê-lo. Para o presidente, em meio a uma pandemia que só cresce e mata porque o governo se recusa a combatê-la desde o início, quanto mais confusão melhor.
El País: Descontrole da pandemia no Brasil deixa reformas econômicas em segundo plano
Enquanto outros Governos começam a pensar na vida depois da crise, o país se encontra suspenso num estado de choque por causa do caos provocado pela covid-19
Isabella Cota e Carla Jiménez, El País
No meio do caos que fez do Brasil o país com mais mortes e contágios diários pelo coronavírus, perdeu-se o espaço para a discussão das reformas econômicas das quais o país necessita. E não é por falta de vontade. O Governo do presidente Jair Bolsonaro pretendia discutir com legisladores em março uma reforma do código tributário e a privatização de algumas empresas estatais. Mas, com média de quase 4.000 mortes por dia e o colapso do sistema de saúde, é impossível pensar no que vem depois. O Congresso se concentrou em votar medidas que facilitem a compra de vacinas e de suprimentos básicos para o sistema de saúde. O próprio ministro da Economia, Paulo Guedes, rendeu-se aos fatos. “A vacinação maciça é a melhor política fiscal, a mais barata e de maior impacto”, disse em um evento virtual com empresários no fim de março. A inoculação será o que vai dar início à recuperação da economia, cujo PIB caiu 4,1% em 2020.
O que à primeira vista parece sensato ―cuidar antes da pandemia e depois acomodar as reformas― é na verdade um efeito colateral da errática gestão da crise sanitária no Governo Bolsonaro. Sem planos para vacinação maciça, o mandatário insiste em contrariar as medidas de distanciamento social para o controle da pandemia. “Não temos resposta adequada para lutar com os efeitos da difícil pandemia neste momento”, diz a economista Monica de Bolle. “Estava anunciado, previsto, mas nada se fez”, acrescenta. Na última semana, dois ministros pediram demissão, e o presidente substituiu seis.
Outra amostra da desorganização em que se encontra o Brasil está no fato de que o orçamento para este ano só foi aprovado na Câmara em 25 de março e ainda está pendente de passar no Senado. A proposta oferece verbas adicionais e discricionárias aos parlamentares a um ano das eleições. Isto foi possível apesar do teto fiscal, explica Samar Maziad, analista de risco de crédito soberano do Brasil na agência qualificadora Moody’s. Esse limite autoimposto nos gastos públicos oferece a investidores e analistas uma garantia da solvência fiscal da maior economia da América Latina.
Para não ultrapassar esse teto, os legisladores subestimaram os custeios obrigatórios, como seguro-desemprego e a previdência. As supostas reduções de gasto somam 25 bilhões de reais. O próprio Paulo Guedes aconselhou Bolsonaro a não aprovar esse orçamento, que foi qualificado por economistas e especialistas como uma “peça de ficção”. O presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, também alertou para a falta de solidez do orçamento em entrevistas concedidas na semana passada: “Qualquer incerteza sobre o orçamento agrava a incerteza fiscal”.
No plano econômico e financeiro, o Governo marcou tentos ao conseguir aprovar em fevereiro a independência do Banco Central, assim como uma emenda constitucional para assegurar o pagamento de novas ajudas emergenciais às populações mais vulneráveis à pandemia a partir deste mês. A primeira rodada de estímulo econômico, com ajudas de 600 reais, foi concedida entre abril e dezembro de 2020 e teve um impacto tangível na economia, reduzindo inclusive o nível de pobreza, mas ultrapassou o teto de gastos. Para este ano, o Governo conseguiu aprovar uma segunda onda de estímulos econômicos ―43,8 bilhões de reais para 45,6 milhões de brasileiros― que será paga por quatro meses e em valor inferior, praticamente metade do que foi no ano passado.
“Este é um estímulo muito mais limitado”, observa Maziad. “A pergunta agora é: com esta piora da pandemia e a lenta vacinação, haverá necessidade ou pressão para aprovar ainda mais estímulos econômicos?”, prossegue ela. De acordo com dados da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômicos (OCDE), o Governo do Brasil arrecada 33% do PIB em impostos, muito acima da média latino-americana, que é de 23%. Diferentemente de seus pares na região, como a Colômbia e o México, onde atualmente se discute a necessidade de aprovar uma reforma fiscal para aumentar a arrecadação, o problema do Brasil não é esse. É mais uma questão de como simplificar as regras tributárias, diz Maziad, algo que o Governo de Bolsonaro procurava fazer antes que a pandemia se descontrolasse.PUBLICIDADE
“A preocupação é que o aumento do gasto visto no ano passado não se reverta, e como o Governo poderá continuar cumprindo o teto de gasto”, opina Maziad por telefone de Nova York. Por sua parte, De Bolle afirma que esta segunda rodada de apoio econômico não terá o mesmo impacto em 2021. “Teremos um ano difícil na economia, não podemos esperar recuperação porque nossa situação fiscal vai piorar”, antevê.
Em entrevista à agência Reuters, o vice-presidente da Câmara dos Deputados, Marcelo Ramos (PL-AM), aliado de Bolsonaro, disse que o presidente provavelmente tentará aumentar o gasto público para sustentar sua popularidade, agora que seu principal adversário, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, está de volta à arena política. Imediatamente depois de o STF anular os julgamentos que o condenaram, Lula atacou Bolsonaro por administrar mal a pandemia e a economia. Ramos afirmou que o Congresso não permitirá nenhuma “aventura fiscal” no período anterior às eleições do ano que vem. “A Câmara esteve muito consciente do problema fiscal do Brasil e tem controles e contrapesos que são efetivos” para conter uma onda de gastos do governo, disse Ramos à Reuters.
Enquanto outros países começam a pensar na vida depois da pandemia, diz Maziad, o Brasil está obrigado a permanecer em um estado de crise, sem avançar suficientemente rápido na vacinação ou na contenção dos contágios. “Em outros lugares já há espaço para pensar em outras coisas ou para olhar além da pandemia, mas no Brasil, nas últimas semanas, basicamente eles centraram a atenção no que está acontecendo com a pandemia e como isso afeta todo o resto. Isto é um obstáculo grande para o crescimento”, aponta a analista.
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