Bolsonaro
Vinicius Torres Freire: A geração dos jovens que não verão país nenhum
Na vida adulta, geração que chega aos 30 só viu país empobrecer e se barbarizar
As projeções de crescimento da economia para o ano que vem começam a cair para a casa do 1%. É apenas chute vagamente informado, mas essa bola deve cair mesmo no pântano em que vivemos faz tempo. Em 2022, bicentenário da Independência, serão nove anos de pobreza piorada. Ainda estaremos colonizados pelos nossos piores monstros.
Imagine-se uma brasileira que teve a boa sorte de terminar a faculdade no último ano antes da catástrofe, em 2013, nos seus 21 anos. “Boa sorte” porque apenas 1 de cada 4 jovens de 18 a 24 anos está no ensino superior ou concluiu este curso. Há quem tenha largado a escola muito antes e terá vida pior. No ano que vem, essa brasileira fará 30 anos. Terá passado a primeira parte de sua vida adulta em um país em destruição. É apenas um símbolo de uma catástrofe duradoura, uma de várias gerações perdidas.
No ano que vem, o país ainda será mais pobre do que era em 2013: a renda (PIB) per capita deve ser ainda 7,5% menor. Pelas estimativas atuais, voltaremos a 2013 apenas em 2027. Mas chute econômico não é destino. Assistir bestificado à presente destruição vai nos garantir futuro tenebroso.
Mal ou bem, países do centro do mundo planejam a reconstrução depois da epidemia. São grandes projetos de economia verde e pesquisa científica e tecnológica, como biotecnologia e inteligência artificial.
Qual o lugar do Brasil nesse futuro? Uma zona de catástrofe ambiental e sanitária, talvez por isso objeto de sanções econômicas e políticas.
Nossos produtos industriais logo serão ainda mais obsoletos em termos tecnológicos e ambientais. Talvez não queiram também nossos grãos, ferro e petróleo, por prevenção ambiental ou porque a China passou a plantar soja na África ou porque o país é infecto ou avilta o trabalhador. Com o troco que nos sobrar, compraremos produtos “verdes” ou máquinas inteligentes reais e virtuais etc. inventados com pesquisa subsidiada no mundo rico.
O plano Bolsonaro é o avesso podre dos planos de reconstrução: é devastação ambiental e da Educação, sob mando de um adepto do espancamento de crianças. São tempos de dr. Jairinho e dr. Jairzinho.
Desmontam-se agências e a participação democrática nos conselhos de Estado, avilta-se ou se assedia o corpo técnico de servidores, perseguem-se professores, acelera-se a destruição da pesquisa científica. Capangas oficiais e paramilitares, milícias, talvez colaborem para a implantação de um autoritarismo temperado por farisaísmo, fundamentalismo religioso, patriotada militaresca e ignorância lunática.
Nos acostumamos aos quase nove anos de catástrofe econômica assim como nos acostumamos agora aos 3 mil mortos por dia ou aos crimes de responsabilidade semanais de Jair Bolsonaro. Resta força apenas para combater o regresso autoritário. O Brasil se acostumou a não ter futuro.
É pior do que nos anos perdidos para o horror social e a inflação dos 1980/90. Então se tentava reconstruir um país: Constituição, estabilidade econômica, alguns direitos sociais.
Ainda assim, nossos desastres vêm de longe, pelo menos desde a recessão que começou em 1981, desatino final da ditadura militar. Desde então até 2019, o PIB per capita do Brasil cresceu 36%. O dos países já ricos (OCDE), 85%. O do mundo, 75%. É o aspecto econômico de um fracasso longo e maior. A diferença agora é que morreu ou está para morrer, sem UTI, a ideia de sucesso ou de progresso.
“Não Verás País Nenhum”, dizia o título do romance presciente de Ignácio de Loyola Brandão (aliás de 1981). Tratava de um Brasil em que a Amazônia se tornou um deserto, em que São Paulo fede a cadáveres e em que militecnos comandam um governo autoritário.
Conrado Hübner Mendes: Agora, agora e mais agora, STF
Cabo Kassio e soldado Toffoli fazem amor com o presidente por telepatia
A urgência do STF do presente não é mais decidir casos conforme critério transparente e previsível de prioridade. O STF tem urgência em sobreviver como instituição relevante.
Submetidos a assédio permanente, em público e nos porões, de presidente da República que comete crimes comuns e de responsabilidade em série, ministros não dispõem de equipamentos potentes de autodefesa.
Um inquérito heterodoxo foi tudo o que puderam tirar da cartola. Não bastassem inimigos externos, apoiados pelo gangsterismo militar e falanges robotizadas, o STF tem que neutralizar inimigos internos, seus cabos e soldados íntimos.
Agora, agora e mais agora? Essa pergunta dá título a um dos grandes podcasts da pandemia, narrado pelo historiador Rui Tavares. Ele relata “histórias da história”, episódios do último milênio em que pessoas viviam um presente tomado por fanatismo, ódio e intolerância.
“Agora, agora e mais agora” serve também para expressar o senso de urgência em grau máximo que deveria nortear o comportamento do tribunal diante do precipício. Mais do mesmo deixará o STF ao sabor do acaso. Manter a liturgia da normalidade não disfarça mais nada. Melhor perceber o que o enfraquece e investir no que lhe dá força.
A característica determinante da fragilidade do tribunal está na constatação de que o “STF”, como instituição colegiada, quase não existe. O que chamamos de STF, boa parte do tempo, não passa de um agregado lotérico de ações ou omissões individuais. Isso fragiliza o tribunal não só pela irracionalidade burocrática, mas pela excessiva personalização de cada gesto.
O tribunal é cobrado não por obediência a precedente, à jurisprudência ou a argumento constitucional qualquer, mas pelas afinidades de Luís Roberto Barroso, Gilmar Mendes, Rosa Weber, Cármen Lúcia etc. Cada decisão ganha uma cara, um temperamento, um endereço privado.
Tribunais não precisam funcionar assim. Converter as partes num todo, ou 11 ministros num STF, é mágica institucional decisiva para a reputação e a autoridade de um tribunal. Mais do que qualquer outra instituição democrática, um tribunal deve adotar métodos que façam o todo ser mais respeitável que as partes e também a soma das partes.
Registros da história do heroísmo judicial destacam juízes que conseguiram liderar colegiados em situações de risco, imprevisibilidade e mudança. Nunca o que fizeram sozinhos.
Os exemplos clássicos de John Marshall e Earl Warren da Suprema Corte americana não são maiores do que as experiências de Aharon Barak, na Suprema Corte israelense, de Carlos Gaviria, na Corte Constitucional colombiana, de Albie Sachs e Arthur Chaskalson, da Corte Constitucional sul-africana, de Rosalie Abella na Suprema Corte canadense.
Tampouco são maiores do que Pedro Lessa, Victor Nunes Leal e Sepúlveda Pertence na história do STF, ou mesmo Ribeiro da Costa, que teria prometido fechar o tribunal e entregar a chave ao ditador Castelo Branco se decisão do STF não fosse cumprida.
Há reformas que o STF poderia fazer já, por sua conta. Depende de desapego e liderança para republicanizar a agenda, reprimir a obstrução do cabo e do soldado e tomar decisões corajosas com sofisticação jurídica e o selo do colegiado. A angústia de olhar para o tribunal em busca de arrojo e liderança e lá encontrar Luiz Fux, Dias Toffoli e Gilmar Mendes não é razão para desistir.
Hoje o colegiado do STF decide se mantém a decisão monocrática de Barroso que reconhece direito de minoria do Senado de abrir CPI e o dever de Rodrigo Pacheco de abri-la. Rumores dizem que o STF vai “modular” essa decisão elementar e dar ao Senado a liberdade para ampliar o objeto da investigação e postergar a CPI.
Seria um “caminho do meio” para atender a Bolsonaro, que prometeu dar porrada em senador e induziu falsa equivalência entre os deveres de abrir CPI e abrir impeachment (não os 111 pedidos de impeachment contra ele, mas os pedidos contra ministros do STF). Com base na fórmula “ou bota tudo ou zero a zero”, mandou o recado.
Cair na arapuca juvenil tramada por senador e presidente da estatura de um Kajuru e um Bolsonaro é melancólico demais para qualquer biografia. Melancólico sobretudo para um tribunal que, se não tem das histórias mais admiráveis nos anais da Justiça, exibe um orgulho espalhafatoso em cada cerimônia, um êxtase da autoimportância em cada discurso. É cafona e arcaico, mas não precisaria ser covarde.
*Professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e embaixador científico da Fundação Alexander von Humboldt.
Benito Salomão: Novas perspectivas para a taxa de juros
Na última reunião do COPOM (Comitê de Política Monetária) o Banco Central (BC) decidiu fixar a meta da taxa Selic em 2,75% ao ano, um movimento de elevação da referida taxa em 0,75 pontos percentuais. Tal elevação veio em boa hora, uma vez que a inflação está caminhando rapidamente para o dobro da meta fixada para 2021 cujo centro é de 3,75% ao ano. Os modelos que estimei preveem que a inflação atinja as proximidades de 7,25% em maio, ou talvez junho. Se o BC ignorasse este dado e mantivesse a Selic nos 2% de antes, chegaríamos no meio do ano com uma taxa real de juros (descontada a inflação) negativa de aproximadamente -5,25% (Ver Gráfico 1).
Gráfico 1 – Taxa Selic, Taxa de Inflação e Taxa Real de Juros no Brasil entre 2011 e 2020 (Mensal em % ao ano)
Isto seria um completo desequilíbrio, nem países desenvolvidos como Estados Unidos e Europa Ocidental têm taxas reais de juros negativas neste patamar. Em boa parte destes países que estão em situação de zero lower bound, isto é, taxas nominais de juros próximas de 0% ao ano, tem também inflação acumulada em 12 meses variando entre 1% e 1,5% ao ano. Isto os confeririam a estes países, taxas reais de juros próximas a -1% ao ano. Portanto, o Brasil apresenta no curtíssimo prazo, mesmo diante da elevação da Selic anunciada pelo COPOM, taxas reais de juros menores do que os países desenvolvidos. Isto explica parte da desvalorização da taxa de câmbio verificada no país que pode alimentar o prolongamento de níveis elevados de inflação por todo o ano de 2021.
Alguns economistas muito respeitados, no entanto, mostram sua preocupação para com o ciclo de alta da taxa Selic em um momento e os seus efeitos sobre a atividade e o mercado de trabalho. Para eles, uma contração monetária neste momento pode inibir a já enfraquecida atividade econômica e aumentar a já elevada taxa de desemprego involuntário da economia brasileira. Para discorrer sobre isto, entretanto, é preciso olhar para o formato da Curva de Phillips CPh (grosso modo é o nome dado para a curva de oferta da economia). De acordo com a melhor literatura desta área, ela pode assumir vários formatos e isto está relacionado com a forma como os agentes formam suas expectativas de inflação na economia. Há modelos que assumem que os agentes formam expectativas adaptativas projetando a inflação futura, a partir do comportamento passado da mesma. Nestes modelos, há um evidente trade off na CPh entre inflação e desemprego e o BC faz política monetária escolhendo entre mais inflação e menos desemprego, ou menos inflação e mais desemprego.
Isto, no entanto, é macroeconomia do final dos anos 1960. De lá para cá os modelos passaram por ajustes em seus pressupostos e a noção de que a política monetária se resume a uma escolha entre inflação e desemprego ficou ultrapassada e nada garante que elevações da taxa Selic como a do último COPOM piorem a situação da atividade e do emprego. Isto porque, se os agentes são racionais e com base nas informações disponíveis sabem que comportamento da inflação tende a se acelerar, eles se antecipam à decisão do COPOM de elevar os juros e passam a tomar decisões de investimento e produção tomando como dado o novo contexto de alta dos juros. Neste caso, elevações de taxa de juros não afetam o lado real da economia.
A passagem das expectativas adaptativas para expectativas racionais vai determinar o formato do CPh e o quão a política monetária pode influenciar o lado real da economia. Como é de conhecimento de todos, desde o final de 2020 as expectativas de inflação já estavam difundidas entre os que acompanham o dia a dia da economia brasileira. Isto solidificou a expectativa, no começo de 2021, de que a taxa de juros iria iniciar um ciclo de alta. De forma que a decisão da última reunião do COPOM já era esperada pelo corpo majoritário dos agentes econômicos no país.
Neste sentido, os efeitos do aumento da taxa de juros sobre o lado real tendem a ser bastante limitados por duas razões: i) porque esta alta de juros praticada pelo BC já era esperada pela ampla maioria dos operadores na economia, ii) porque a taxa real de juros, que é a que importa para as decisões de investimento, tende a permanecer negativa durante todo o ano de 2020.
* Benito Salomão é mestre e doutorando em Economia pelo PPGE – UFU.
Gil Alessi: Governadores preparam carta a Biden para driblar protagonismo negativo de Bolsonaro
Com presidente e seu ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, alvo de críticas pelo aumento do desmatamento no país, chefes dos executivos estaduais querem acesso aos recursos dos EUA
Em meio à lentidão do processo de imunização contra a covid-19 no Brasil, e com o pedido feito por ONGs para que o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, não negocie “a portas fechadas” questões ambientais com Jair Bolsonaro, governadores brasileiros lançarão nos próximos dias iniciativas nestas duas frentes em busca de protagonismo —e de resultados concretos. Chefes de 23 Executivos estaduais formaram um bloco chamado “Coalizão Governadores Pelo Clima”, que assina uma carta endereçada ao mandatário americano.
O documento será entregue ainda este mês ao embaixador dos Estados Unidos no Brasil. Na mensagem de três páginas eles divergem de Bolsonaro ao defender o Acordo de Paris —que o presidente já falou em abandonar— e “o cumprimento do Código Florestal para a conservação das florestas e da vegetação nativa” —outro contraste com o Planalto, cujo ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, defende a flexibilização das leis para “passar a boiada”.
A carta é assinada por governadores de oposição a Bolsonaro, como João Doria (SP), Flávio Dino (MA) e Fátima Bezerra (RN), mas também por simpatizantes do presidente, como Romeu Zema (MG) e Cláudio Castro (RJ). Na mensagem eles se dizem preocupados com a situação e “conscientes da emergência climática global”. Também se colocam como atores capazes de contribuir com a solução caso tenham acesso aos recursos necessários, preenchendo um certo vácuo diplomático deixado pelo Governo Federal. “Nossos Estados possuem fundos e mecanismos criados especialmente para responder à emergência climática, disponíveis para aplicação segura e transparente de recursos internacionais, garantindo resultados rápidos e verificáveis”, diz o texto.
A articulação acontece às vésperas da Cúpula dos Líderes sobre o Clima, que será realizada de forma virtual em 22 e 23 de abril e para qual o Governo Joe Biden convidou Bolsonaro. Durante a campanha eleitoral em 2020 Biden chegou a dizer que poderia aplicar sanções contra o Brasil caso o país não controlasse o desmatamento. Depois de eleito, o tom de ameaça foi suavizado apesar dos recordes de devastação da floresta, e o enviado especial do Clima da Casa Branca, John Kerry, chegou a realizar uma videoconferência com o ministro Ricardo Salles e o então chanceler Ernesto Araújo para tratar do tema.
Todo o interesse não é em vão. A proteção dos biomas brasileiros é um negócio que movimenta bilhões de dólares. Desde o início do Governo Bolsonaro diversos fundos europeus ameaçaram suspender repasses destinados à preservação da floresta até que o Brasil mostrasse comprometimento com a redução do desmatamento e das queimadas na Amazônia e também em outros biomas. Noruega e Alemanha, por exemplo, bloquearam no final de 2019 o envio de recursos para o Fundo Amazônia, um dos principais do setor. Até o acordo comercial entre União Europeia e o Mercosul, assinado em junho de 2019, tem sua implementação arrastada à medida em que países como França e Áustria resistem a que ele saia do papel alegando preocupações ambientais.
O anúncio do contato dos governadores com Biden também ocorre uma semana após um grupo com mais de 200 ONGs ligadas a questões ambientais ter enviado ao presidente americano uma carta na qual criticam eventuais negociações “a portas fechadas” feitas entre os dois mandatários sobre a Amazônia sem a inclusão da sociedade civil. “Não é razoável esperar que as soluções para a Amazônia e seus povos venham de negociações feitas a portas fechadas com seu pior inimigo [Bolsonaro]”, afirmam em um trecho da mensagem, que também defende a participação dos Estados e comunidades locais nas tratativas. “Bolsonaro (...) compromete os Acordos de Paris ao retroceder na ambição da meta climática brasileira. Negacionista da pandemia, transformou seu país num berçário de variantes do coronavírus, condenando à morte parte da própria população”, conclui o texto.
Novos focos de atrito entre governadores e Planalto
A iniciativa dos governadores de contactar diretamente Biden tem potencial para provocar ainda mais atrito entre eles e o presidente. Ambas as partes já vivem uma relação bastante conturbada, erodida desde o início da pandemia quando Bolsonaro passou a atacar os executivos estaduais por tentarem controlar a crise sanitária com isolamento e restrições. Posteriormente, acusou os governadores de fazerem uso político da covid-19 e desviar recursos do Governo Federal destinados à Saúde.
Indagado sobre a possibilidade de conflitos com o Planalto, o governador do Piauí, Wellington Dias (PT), um dos signatários da carta, é taxativo: “Não estamos defendendo uma posição política individualista, e sim a posição do Brasil. Ela não foi alterada, apesar de verbalização [de Bolsonaro] no sentido diferente, as regras continuam as mesmas, não houve alteração da Constituição ou no Legislativo e Judiciário com relação à necessidade de proteger o Meio Ambiente”. Segundo ele, a ideia é que “Biden atente ao fato de que a posição no Brasil precisa ser uma posição que envolva os três poderes, e não apenas um”.
A carta dos Governadores pelo Clima não é a única iniciativa destes políticos que pode afrontar Bolsonaro. Nesta sexta-feira integrantes do Fórum Nacional de Governadores irá realizar por videoconferência uma reunião com a secretária-geral adjunta da Organização das Nações Unidas, Amina Mohammed. Na pauta, o pedido por “ajuda humanitária ao Brasil” em função da situação de descontrole da pandemia do novo coronavírus no país. “Queremos a sensibilização da ONU para que a Organização Mundial da Saúde agilize a entrega de vacinas para o Brasil”, afirmou Dias, referindo-se às doses do consórcio capitaneado pela entidade.
O protagonismo dos governadores na pandemia é uma questão crucial para Bolsonaro. Até o momento o Planalto ficou a reboque de iniciativas estaduais quando o assunto é imunização: boa parte das doses aplicadas nos mais de 23 milhões e brasileiros até esta terça-feira foi produzida no Instituto Butantan, em uma iniciativa do Governo paulista. Desde fevereiro outros governadores já iniciaram tratativas com laboratórios estrangeiros em busca de mais vacinas —algumas ainda sem autorização da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, como é o caso do imunizante russo Sputnik V, adquirido por Camilo Santana (CE) e Flávio Dino (MA).
Ruy Castro: Extinção do nome Bolsonaro
Assim como Drakul, Torquemada e Hitler, ele desaparecerá por falta de quem ouse usá-lo
Imagine se, nascido na Romênia, você portar o sobrenome Drakul. Será difícil esconder que, por mais correto como cidadão, marido e pai exemplar e dedicado colecionador de selos, você é tatatatatataraneto de Vlad Drakul (1431-76) —ou príncipe Vlad, o Empalador, famoso por ter executado 40 mil inimigos atravessando-os do ânus à boca, vivos, lentamente, com estacas pontiagudas. Drakul foi também o nome em que se inspirou o irlandês Bram Stoker ao batizar seu vampiro Drácula, em 1897. Não é sobrenome dos mais confortáveis para se levar pela vida.
Mas, assim como há séculos não deve haver mais Drakuls por lá, não se conhecem também Torquemadas na Espanha —quem vai admitir ser descendente de Tomás de Torquemada, que mandou milhares de hereges e judeus para a fogueira no século 15? E de quantos Hitlers você ouviu falar na Alemanha e na Áustria desde o suicídio de Adolf em 1945? É verdade que, possivelmente broxa, o Führer não deixou filhos, mas não terão sobrado sobrinhos e primos com seu nome? E será conveniente ter hoje o sobrenome Tsé-tung na China, Amin Dada em Uganda e Pol Pot no Camboja? Os três somados ordenaram quase 80 milhões de mortes no século 20.
Façanhas invejáveis até por Jair Bolsonaro, responsável por boa parte dos por enquanto 13,6 milhões de brasileiros contaminados com a Covid e 358 mil mortos, números de que logo sentiremos saudade. Aos quais Bolsonaro chegou por um somatório de negação, sabotagem e mentiras, imortalizadas em tantas declarações gravadas. Nunca um criminoso se entregou tanto pela palavra.
O nome Bolsonaro também desaparecerá por falta de quem ouse usá-lo. Claro que, sabendo como seus filhos devem lavar o cérebro de seus próximos, talvez leve mais uma ou duas gerações para ele se tornar uma maldição.
Neste momento, pelo menos, já desprende um hálito putrefato, impossível de disfarçar.
Piauí: Os números chocantes da desigualdade vacinal
Imunização brasileira é lenta e discriminatória. País é o 73º em proporção de vacinados. E regiões pobres, com menos idosos, ficam no fim da fila. Em SP, distritos mais protegidos são 8 vezes mais ricos que os com menos doses aplicadas
Por Antonio S. Piltcher, Amanda Gorziza e Renata Buono, na Piauí
A vacinação contra a Covid-19 no Brasil caminha a passos lentos. Em relação à proporção da população vacinada, o país está na 73ª posição do ranking mundial. Alguns locais do Brasil são mais impactados pela falta de vacinas e pela distribuição desigual do imunizante. Na cidade de São Paulo, os distritos mais vacinados têm renda média oito vezes maior e vacinam quatro vezes mais que os distritos menos vacinados. Na cidade do Rio, um morador do Baixo Leblon tem três vezes mais chance de ter recebido a primeira dose da vacina contra Covid que um morador do Vidigal. Municípios com maior proporção de população indígena estão com taxas de vacinação maiores. Na Paraíba, uma cidade de maioria indígena aplicou quinze vezes mais doses que o município vizinho. Para realizar as comparações, foram utilizados os microdados do Open Data SUS, que permitem mapear a imunização dentro dos municípios, pois incluem os primeiros cinco dígitos do CEP de cada pessoa vacinada. Assim, foi possível estimar a proporção de habitantes imunizados em cada bairro. Os números foram compilados pelo Pindograma, site de jornalismo de dados.
O Mato Grosso do Sul é o estado que mais aplicou doses de vacina contra a Covid-19 proporcionalmente à sua população – 18 doses a cada 100 habitantes até 9 de abril. O ideal é que se tenham 200 doses a cada 100 indivíduos, já que são necessárias duas aplicações para a completa imunização. Por outro lado, o Mato Grosso, estado vizinho, aplicou metade das doses – apenas 9 a cada 100 pessoas. Ambos têm proporções semelhantes de idosos em sua população: MS com 13% e MT com 12%.
No Rio Grande do Sul, 14% da população recebeu a primeira dose da vacina contra Covid-19, enquanto o Acre vacinou apenas 8% de seus habitantes até o dia 9 de abril. No entanto, a proporção de gaúchos idosos é de 19%, enquanto a de acrianos é de 8%, ou seja, a população do Acre é majoritariamente jovem. O PIB per capita dos estados também difere: R$ 15 mil no Acre e R$ 37 mil no Rio Grande do Sul.
Dois municípios com porte parecido, Santos e Carapicuíba, no estado de São Paulo, têm níveis distintos de vacinação contra a Covid-19. Em Santos, 13% dos 433 mil habitantes já tomaram a primeira dose da vacina. Já em Carapicuíba, na região metropolitana, apenas 3% dos 403 mil habitantes foram vacinados. Os PIBs per capita dos municípios são bastante desiguais: aproximadamente R$ 52 mil em Santos e R$ 14,4 mil em Carapicuíba.
Na cidade de São Paulo, a vacinação dos distritos mais ricos e mais pobres difere significativamente. Nos cinco locais mais vacinados até 25 de março – Pinheiros, Jardim Paulista, Alto de Pinheiros, Campo Belo e Vila Mariana –, a primeira dose foi aplicada em 17% da população, e a renda média é de R$ 9.230. Já nos cinco menos vacinados – Anhanguera, Parelheiros, Jardim Ângela, Perus e Cidade Tiradentes –, apenas 4% dos habitantes foram vacinados, e a renda média de R$ 1.167.
Até 25 de março, Marcação, na Paraíba, administrou 73 doses de vacina contra Covid-19 a cada 100 habitantes. A vizinha Cuité de Mamanguape distribuiu apenas 5 doses a cada 100 habitantes. Ambas as cidades têm PIB per capita baixo, R$ 10 mil em Cuité de Mamanguape e R$ 9 mil em Marcação, que tem população majoritariamente indígena, o que não é o caso de Cuité.
Na região do Parque Bom Jesus, na periferia de Goiânia, 2% dos moradores foram vacinados até 25 de março. Nessa região, 70% das pessoas se autodeclaram negras. Já no Setor Marista, no centro da cidade, onde menos de 20% da população é preta e parda, foram vacinados 13% dos habitantes com a primeira dose até a mesma data.
A desigualdade na vacinação também está presente dentro da favela. Na cidade do Rio de Janeiro, no CEP 22452, que cobre metade da favela do Vidigal, apenas 4% dos moradores foram vacinados com a primeira dose. A renda média dos habitantes do Vidigal é de R$ 1.789. Já no Baixo Leblon, 13% da população recebeu a primeira dose, e 4%, a segunda dose. A renda média dos moradores do bairro Leblon é de R$ 11.311.
Nota metodológica: As comparações do Open Data SUS limitam-se a dados de ao menos duas semanas antes da data de publicação do =igualdades e não comparam UFs distintas, pois há atraso na importação das informações das secretarias estaduais de Saúde para a plataforma federal, o que gera distorções para datas mais recentes.
Fonte: Dados do Open Data Sus, IBGE, Bacen e Secretarias Estaduais de Saúde via coronavirusbra1/Giscard, compilados pelo Pindograma
Hélio Schwartsman: Vale gravar o presidente?
Penso que Kajuru podia, sim, ter gravado Bolsonaro
"A que ponto chegamos no Brasil aqui. [Fui] Gravado". Foi assim que o presidente da República, Jair Bolsonaro, expressou contrariedade por ter um diálogo seu com o senador Jorge Kajuru divulgado para o público. A indignação se justifica?
Do ponto de vista legal, a questão é complexa. De modo geral, admite-se que uma pessoa grave conversação de que seja parte, especialmente se o objetivo for defender-se de alguma coisa. Mas vale lembrar que a lei só vai até certo ponto. Ela pode regular enquadramentos penais e a licitude de provas, mas não os efeitos políticos de uma gravação com conteúdos picantes.
Basta lembrar que tanto o diálogo entre Dilma Rousseff e Luiz Inácio Lula da Silva em que a então presidente dizia estar enviando o Bessias como as conversas entre o então juiz Sergio Moro e procuradores da Lava Jato constituem provas ilícitas, mas isso não as impediu de desencadear terremotos políticos que também tiveram consequências jurídicas.
O melhor modo de analisar a questão, portanto, não é o legal, mas o ético. É correto gravar conversa própria sem avisar os outros participantes de que tudo está sendo registrado? Fazê-lo é por certo deselegante. Pode ser também uma violação ética, mas isso depende do contexto.
Se você grava sem avisar uma conversa íntima com seu melhor amigo e a divulga, fracassou nos deveres da amizade. Mas, se faz o registro de uma autoridade pública tentando extorqui-lo e a denuncia, cumpriu uma obrigação cívica. A ética tem menos a ver com o ato de gravar do que com as circunstâncias e personagens envolvidas.
Kajuru podia gravar Bolsonaro? Penso que sim, e não apenas porque a palavra do presidente não pode ser levada muito a sério —o que torna toda gravação um ato de defesa. Altos cargos públicos vêm com alguns ônus. Um deles é o de não dizer nada que cause uma crise política. Quem viola esse princípio o faz por conta e risco.
Bruno Boghossian: Com manobra no Senado, crescem chances de CPI não dar em nada
Mudança abre caminho distrações que podem acabar poupando Bolsonaro na pandemia
A missão número um de Jair Bolsonaro era "mudar o objetivo" da CPI da Covid. Com a ajuda do Congresso, o presidente conseguiu. O Senado ampliou o foco da investigação e incluiu o dinheiro federal repassado aos estados. De quebra, parlamentares começaram a criar empecilhos para a realização das sessões. Na prática, cresceram as chances de a comissão não dar em nada.
Bolsonaristas já trabalham para que a CPI só exista no papel. O líder do governo no Congresso, Eduardo Gomes (MDB), quer que o colegiado só se reúna depois que a vacinação avançar. Ele espera ter o apoio do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM), que era contra o funcionamento da comissão agora.
Se não for possível segurar o andamento dos trabalhos, a base governista tem outras saídas. A decisão de transformar a CPI numa investigação abrangente, como pediu Bolsonaro, abre caminho para manobras diversionistas que podem acabar poupando o presidente.
Com a ampliação de escopo, a comissão passa a incluir as ações de estados e municípios “no trato com a coisa pública” durante a pandemia. Isso significa que a CPI pode investigar praticamente qualquer despesa com verba federal em qualquer lugar do Brasil. É o suficiente para distrair senadores que não estiverem interessados em investigar Bolsonaro.
Os integrantes da CPI também ganham poder para mirar adversários políticos e desafetos. Aliados de Bolsonaro estão de olho em rivais do presidente nos estados, enquanto outros senadores, interessados em concorrer a governos estaduais em 2022, querem aproveitar para desgastar concorrentes locais. O Planalto deve se beneficiar da confusão.
A blindagem de Bolsonaro vai depender do comportamento dos 11 titulares da CPI. O governo não conseguiu escalar uma tropa de choque fiel, mas a comissão terá uma minoria de oposicionistas convictos e uma maioria de senadores do centrão ou de partidos sem alinhamento político claro. O Planalto tem muito a oferecer para esse grupo.
Luiz Carlos Azedo: Cenário ruim para 2022
Enquanto a pandemia não é controlada, o cenário econômico continua sendo de muitas incertezas e agravamento dos problemas sociais do país, como o desemprego
Com a leitura do requerimento da CPI da Covid-19 pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), consolidou-se uma das principais linhas de força da disputa eleitoral de 2022, a crise sanitária. Mesmo que a pandemia venha a ser controlada, suas consequências políticas se farão sentir durante a campanha eleitoral, devido ao agravamento do desemprego, que não se resolverá facilmente, e o presidente Jair Bolsonaro será responsabilizado pela oposição, não somente pelo número muito alto de mortes. Os dois problemas ainda se somarão à disputa em torno da Operação Lava-Jato, mesmo que seus processos sejam concluídos ou arquivados, e à defesa da democracia, uma pauta que Bolsonaro reiteradamente põe na ordem do dia ao atacar o Supremo Tribunal Federal (STF), além de os partidos de oposição e a imprensa.
Não foi à toa que Bolsonaro tentou melar a CPI e orientou seus aliados a ampliarem o escopo das investigações, para chegar a governadores e prefeitos, o que somente é possível, constitucionalmente, seguindo o dinheiro destinado ao Sistema Único de Saúde (SUS) pelo governo federal. Pacheco, cumprindo determinação do ministro Luís Roberto Barroso, do STF, apensou o requerimento da CPI apresentado pelo senador Eduardo Girão (Podemos-CE) para investigar a responsabilidade de estados e municípios em más condutas no enfrentamento da pandemia, ao pedido original do senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), unificando as duas CPIs requeridas.
Segundo Pacheco, “estão excluídos do âmbito de investigação das comissões parlamentares de inquérito do Poder Legislativo federal as competências legislativas e administrativas asseguradas aos demais entes federados”. A guerra de narrativas entre Bolsonaro e a oposição marcará o funcionamento da comissão, mas são os fatos que determinarão o rumo das investigações.
No dia em que CPI passou a existir de fato, o Brasil registrou 3.808 óbitos por covid em 24 horas e mais 82.186 novos casos, segundo o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass). Com isso, o número de mortos pela doença chegou a 358.425, e o total de casos aumentou para 13.599.994. Na segunda-feira, foram registrados 1.480 óbitos e 35.785 novos casos. O ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, reconheceu, ontem, que o Brasil tem 1,5 milhão da segunda dose de vacina em atraso. Ou seja, o cobertor está curto: muitas pessoas não estão recebendo o reforço adequado porque o fluxo de produção de vacinas, principalmente na Fiocruz, não acompanhou a escala da imunização pela primeira dose e houve uma opção de reduzir os estoques de segunda dose para aumentar o número de vacinados parcialmente.
Inflação
Enquanto a pandemia não é controlada, o cenário econômico continua sendo de muitas incertezas e agravamento dos problemas sociais do país, que registra uma de suas maiores taxas de desemprego da história, em torno de 14,5% neste ano, ultrapassando a de países como Colômbia, Peru e Sérvia, e caminha na contramão da taxa média global, cuja estimativa é de recuo para 8,7% este ano, ante 9,3% em 2020. Uma das consequências do desemprego é a fome, que atinge seis de cada 10 domicílios brasileiros; no Nordeste, são sete em cada 10 domicílios, segundo pesquisa das universidades federais de Brasília e Minas Gerais, e a Universidade de Berlim.
Ciente do problema, Bolsonaro tenta culpar governadores e prefeitos. A falta de comida na mesa é leve em 32% das casas, moderada em 13% e grave em 15% (nada pra comer). Além disso, a qualidade da alimentação piorou: queda superior a 40% no consumo de carnes e frutas e de 37% no consumo de verduras e legumes. A pesquisa mostra, ainda, que, em 63% dos domicílios, o auxílio emergencial ser- viu para comprar cesta básica. É um cenário perigoso, porque o auxílio emergencial e o Bolsa Família estão sendo insuficientes para resolver o problema alimentar das famílias de baixa renda por causa da inflação dos alimentos. Nos dois primeiros anos do atual governo, o custo da cesta básica subiu 32%.
Ricardo Noblat: CPI da Covid pode virar a CPI do fim do mundo de Bolsonaro
Se não terminar em pizza, é claro
Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) sabe-se como começa, mas não como termina. A da Covid, sequer se sabe como começará. Rodrigo Pacheco (DEM-MG), presidente do Senado, leu o pedido de abertura da CPI como mandou na semana passada o ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal.
CPI é direito assegurado pela Constituição à minoria parlamentar. Mas no que depender da tropa aliada ao governo Bolsonaro dentro do Senado, ela não sairá do papel. Se sair, não será instalada até que passe a pandemia. Se for instalada antes, simplesmente não funcionará. Se funcionar, será sabotada até o fim.
Em sessão nesta tarde, o Supremo deve avalizar a decisão de Barroso que tanto irritou Bolsonaro, deixando-o em pânico. O principal objetivo da CPI é investigar erros cometidos pelo governo no combate à Covid. Secundariamente, poderá investigar erros de governadores e prefeitos no uso de verbas federais.
Faltam vacinas no país. Faltam remédios para a intubação de vítimas da doença em estado grave. Na maioria dos municípios, faltam UTIs, e os doentes são transferidos para municípios que as tenham. Acontece que nesses lugares a rede de UTIs está perto do colapso. E o número de mortes só faz crescer.
Salvo os ideológicos, nenhum parlamentar, deputado ou senador pouco importa, se presta a defender o governo de graça numa CPI, qualquer governo. Bolsonaro já é refém do Centrão, do qual depende para aprovar projetos do governo no Congresso e barrar pedidos de impeachment que possam abreviar seu mandato.
Caberá ao MDB a relatoria da CPI da Covid. É o cargo mais importante. O senador Renan Calheiros (MDB-AL), aliado de Lula e do PT, deve ser o relator. A oposição ao governo e os partidos que se dizem independentes indicarão 7 dos 11 titulares da CPI. É um mau sinal para Bolsonaro. Certeza de encrenca feia.
O MDB tem um pé dentro do governo, mas quer pôr os dois. Se conseguir, não significa que apoiará a reeleição de Bolsonaro no ano que vem, longe disso. A tendência do partido é apoiar um candidato do centro (não confunda com Centrão), mas se ele não tiver chances de vencer, poderá se alinhar a Lula.
Nada pode haver de pior para um governo do que a abertura de uma CPI justamente no momento em que ele está mais fraco, e por ora, sem perspectivas de se recuperar. Se a CPI decolar e investigar a fundo o que deve, haverá chuvas e trovoadas em Brasília com um final imprevisível. Certas coisas serão inevitáveis.
Por exemplo: convocar para depor o atual ministro da Saúde e os três que o antecederam – entre eles, o general da ativa Eduardo Pazuello que saiu de lá insinuando que políticos do Centrão tentaram encher os bolsos nas negociações para a compra de vacinas. Um general sendo interrogado por senadores, já pensou?
Não deverá ser o único. Quanto foi gasto pelo Exército para produzir cloroquina receitada por Bolsonaro para tratamento precoce do vírus? Tratamento precoce para a doença jamais existiu. Quem deu ordem ao Exército para tal? O general Fernando Azevedo e Silva, ex-ministro da Defesa, talvez saiba.
Por que o sucessor de Luiz Henrique Mandetta, o médico Nelson Tech, foi ministro da Saúde por menos de 30 dias? O que o levou a pedir demissão? Não pôde nem montar sua equipe. Por que não pôde? E a história da vacina da Pfizer oferecida ao governo em junho do ano passado e recusada até o final de dezembro?
Se não terminar em pizza, a CPI da Covid tem tudo para no futuro tornar-se conhecida como a CPI do fim do mundo de Bolsonaro e de muita gente.
Elio Gaspari: Bolsonaro quer pizza de limão
Em geral, as CPIs resultam em fábricas de vento e a da pandemia promete vendavais
Bolsonaro pediu ao senador Jorge Kajuru que o ajude a fazer “do limão uma limonada” na Comissão Parlamentar de Inquérito da pandemia. O que ele quer mesmo é uma pizza. Noves fora a ameaça de “porrada”, a fala do capitão é uma enciclopédia bolsonarista:
Mania de perseguição: “Se não mudar o objetivo da CPI, ela vai vir só pra cima de mim”.
Havendo um problema cria-se outro: “É CPI ampla, investigar ministro do Supremo”.
Num momento, Bolsonaro soltou uma frase intrigante: “Se não mudar a amplitude, a CPI vai simplesmente ouvir o Pazuello”.
Qual é o problema de se tomar o depoimento do general que ele colocou no Ministério da Saúde? De uma hora para outra “ouvir o Pazuello” virou uma fonte de ansiedade.
Quem viu o empreiteiro Marcelo Odebrecht sendo tratado como um príncipe ao depor na CPI da Petrobras em 2015 sabe quanto há de teatro nas comissões parlamentares de inquérito que buscam fatos y otras cositas más. Odebrecht estava preso, seus malfeitos eram conhecidos e, ainda assim, informou que “não respeito delator”. Meses depois estava colaborando com a Justiça.
Em geral, as CPIs resultam em fábricas de vento e a da pandemia promete vendavais. O comportamento de Bolsonaro é público e algumas de suas atitudes já foram narradas pelo ex-ministro Luiz Henrique Mandetta em livro. Nesse aspecto, além do depoimento desse ex-ministro, será informativo o de seu sucessor, Nelson Teich —ele poderá revelar por que se foi embora em menos de um mês.
O grande quadro está escancarado: e é um retrato de corpo inteiro de Bolsonaro. Ele chamou a Covid de “gripezinha” e combate o isolamento por uma mistura de ignorância com oportunismo que estava no seu código político já ao tempo em que era vereador do Rio, rachando apoios e patrimônios.
Asmodeu virá nos detalhes, todos relacionados com a gestão do Ministério da Saúde. Mandetta já contou que semanas depois de sua posse o Planalto pediu a cabeça de quatro colaboradores. Seria o jogo jogado, mas “quem articulou as exonerações e impôs os novos nomes mirava o controle de mais de oitenta por cento do orçamento do Ministério da Saúde.” Quem?
O general Eduardo Pazuello assumiu o ministério com seu pelotão de militares e deu no que deu. Na sua despedida, insinuou que tem algo a revelar. Contou que “a liderança política que nós temos hoje que nos mandou uma relação para a gente atender e nós não atendemos”. Ele acrescentou: “A operação de grana com fins políticos acontece aqui”. Novamente, quem?
Essa fala de Pazuello teria caído mal no Planalto. Por quê?
O general chegou a falar de um “grupo dos oito”, formado por colaboradores que levou para o ministério e passou a orquestrar sua fritura. Quem?
A certa altura, tentaram “ empurrar uma pseudonota técnica ” defendendo um medicamento. Cadê a nota? Que medicamento era esse?
Pazuello disse a congressistas que não deveriam falar mais em isolamento, foi ao Amazonas oferecer cloroquina quando faltava oxigênio e sua equipe mandou as vacinas de Manaus para Macapá. Isso mostrou que seus conhecimentos de logística, aplicados no Dia D, em vez de levar os Aliados a Paris, levariam os alemães a Londres.
Ele é um asterisco no manifesto bolsonarista mas, como Mandetta e Teich, tem o que contar.
Fernando Exman: Bolsonaro tenta refundar o governo
Executivo tem responsabilidade no aumento da miséria
O Supremo Tribunal Federal (STF) eclipsou os planos do presidente Jair Bolsonaro de refundar o governo a partir da recente reforma ministerial.
Acreditava-se, dentro do Executivo, que depois de mudanças na cúpula da Saúde essa nova configuração no primeiro escalão pudesse dar tempo suficiente ao governo para promover um rearranjo na base e construir os alicerces de uma aliança voltada à reeleição. Melhorariam também as relações com militares e com a comunidade internacional, ao passo que se tentaria dar novo impulso à coordenação entre as pastas com a troca na Casa Civil.
Problemas mais urgentes seriam também atacados. Uma preocupação dentro do governo é, por exemplo, com uma possível escalada da violência decorrente do crescimento da miséria, embora o próprio combate à fome tenha sido negligenciado.
Surgiram, então, as duas recentes decisões disparadas do STF. A primeira foi de autoria do ministro Luís Roberto Barroso, que instou o Senado a criar a CPI da pandemia. Dificilmente o governo não sairá alvejado da comissão parlamentar de inquérito, mesmo que ela amplie o seu escopo para investigar eventuais irregularidades ocorridas nos Estados e municípios que receberam recursos federais.
São amplos os instrumentos que os parlamentares terão para abespinhar Bolsonaro. Afinal, CPIs podem quebrar sigilos fiscais, telefônicos e bancários. Na história recente, muitas comissões foram instaladas e em nada resultaram. Mas tantas outras buscavam informações sobre determinados assuntos e, ao obterem dados sigilosos, tropeçaram em revelações mais preciosas.
Cabe também aos estrategistas do Planalto avaliarem o custo-benefício - além dos riscos - de se adiar a instalação da CPI da pandemia para o fim do ano. Esse é um movimento capaz de levar à sobreposição do plano de trabalho da Comissão Parlamentar de Inquérito ao calendário eleitoral.
O segundo petardo levou a assinatura da ministra Rosa Weber. Na segunda-feira, a poucas horas de os decretos presidenciais que ampliam o acesso a armas e munições começarem a valer, ela sustou trechos da nova regulamentação tão aguardada pela ala armamentista que apoia o governo.
Os decretos dividem a base eleitoral do presidente. Enquanto atiradores, caçadores e colecionadores esperavam uma postura até mais agressiva de Bolsonaro na flexibilização da regulação do setor, evangélicos se mantém contra qualquer investida nesta seara. É um tema delicado, mas do qual o chefe do Executivo demonstra que não abrirá mão.
Nesse caso, será interessante ver como o advogado-geral da União, André Mendonça, tentará se equilibrar entre a missão de defender os pontos de vistas do chefe e ainda sim ter o apoio das igrejas para ser o indicado “terrivelmente evangélico” à próxima vaga do STF. O caminho mais fácil que ele terá para percorrer acabará sendo a fundamentação segundo a qual a maioria da população já se manifestou em 2005 contra a proibição da comercialização de armas e munições e ainda hoje mantém majoritariamente essa posição.
Mendonça já precisou advogar sobre esse tema quando comandou a AGU pela primeira vez, antes de ser nomeado ministro da Justiça. Sua recolocação na posição original foi, inclusive, um dos lances centrais da estratégia de refundação executada no fim do mês passado.
O substituto, Anderson Torres, foi alçado do posto de secretário do Distrito Federal justamente em meio ao temor no governo de que a crise sanitária, depois de se tornar uma crise socioeconômica, possa ganhar os contornos de uma crise de segurança pública.
Torres é delegado da Polícia Federal e possui experiência na área, além de bom trânsito no meio político. Em seu discurso de posse, destacou que a Justiça e a Segurança Pública são a espinha dorsal da paz e da tranquilidade da nação, principalmente em meio a uma crise sanitária mundial com impactos na economia e na qualidade de vida dos cidadãos. Ele sublinhou que se deve garantir o “ir e vir sereno e pacífico”, para então emendar: “A Segurança Pública foi uma das principais bandeiras da sua eleição e ela voltará a tremular alta e imponente”. Foi um discurso direcionado ao setor, mas também para os agentes políticos.
Já a nomeação da deputada Flávia Arruda (PL-DF) pode ter o condão de manter Bolsonaro próximo do próprio PL e do PP, de onde o presidente pode tirar seu candidato a vice e garantir mais tempo de televisão para a campanha.
Bolsonaro gosta de dizer que foi eleito sem dinheiro e tempo de propaganda em 2018. Mesmo assim, até seus aliados concordam com a tese de que sua eleição resultou de uma conjunção de fatores de difícil reedição. O campo adversário busca se fortalecer nas redes sociais. E o presidente pode precisar se expor em debates e ter mais tempo de TV para defender as realizações de seu governo.
Até agora, porém, a reforma ministerial ainda não conseguiu acabar com a desarticulação crônica da administração federal, origem de grande parte dos desgastes sofridos pelo Executivo. O impasse relacionado ao Orçamento deste ano, por exemplo, é uma dessas turbulências gestadas dentro do próprio Executivo.
A preocupação de Bolsonaro com a possibilidade de o aumento da miséria provocar distúrbios sociais também se remete, em parte, a essas divergências internas.
É preciso pontuar que o governo demorou muito para editar uma medida provisória e estabelecer o novo benefício emergencial. Milhões de brasileiros receberão um auxílio emergencial menor e muito mais tarde do que suas famílias podem suportar. Os saques em dinheiro só terão início em maio. Quem nasceu em dezembro só poderá colocar as mãos no dinheiro em junho, e as últimas parcelas estão previstas para setembro. Isso não tem nada a ver com o que o STF decidiu sobre a autonomia dos entes subnacionais para combater a pandemia nem com as medidas de isolamento adotadas por governadores ou prefeitos. Os demais Poderes não podem ser culpados pela morosidade e desarticulação do Executivo.