Bolsonaro
RPD || Mauro Oddo Nogueira: Auxílio Emergencial - A boia no meio da tormenta
Benefício manteve acesa parte da demanda, evitando uma queda ainda maior do PIB em 2020 e permitiu que mais de 50 milhões de brasileiros e seus familiares não se vissem privados de qualquer fonte de renda
O cenário brasileiro das últimas semanas foi marcado por tal quantidade de fatos relevantes que chega a ser difícil acompanhá-los, digeri-los, analisá-los. Dentre eles, sublinho a renovação do Auxílio Emergencial, com início programado para a primeira semana de abril. Acredito, porém, que o destaque não tenha sido o merecido. Digo isso por conta da dimensão dos impactos do programa na economia nacional. A rigor, não há como se fazerem avaliações precisas desses impactos, uma vez que ainda não se produziram os dados estatísticos que o permitirão. Uma dose de bom senso, contudo, somada a um olhar atencioso para a realidade, permite uma estimativa razoável.
O número mais esclarecedor é o do PIB. As estimativas para o PIB de 2020 quando do início da pandemia variavam, dependendo do otimismo de quem as fazia, entre uma queda de 6% até mais de 9%. Mas o resultado final foi de “apenas” 4,1%. E, por óbvio, isso não se deveu à pandemia ter sido menos virulenta ou duradoura do que se supunha. Muito pelo contrário.
O que impediu, então, que o PIB desmoronasse em um grau ainda maior do que o dessas previsões? A explicação que parece fazer sentido – principalmente cotejando-se o PIB com os índices de desemprego e desalento – é a de que o Auxílio Emergencial manteve acesa parte da demanda. Lembremo-nos de que os principais atingidos pelos fakedowns(modalidade tupiniquim de lockdown) são exatamente os autônomos e os informais. Ou seja, os que não têm reserva de capital, não conseguem mecanismos outros para se manterem de algum modo operando e atuam majoritariamente nos segmentos mais impactados. O Auxílio permitiu que mais de 50 milhões de brasileiros e seus familiares não se vissem privados de qualquer fonte de renda. Isso certamente evitou uma convulsão social – inclusive com a possibilidade de distúrbios de massa e saques – que se chegou a ver desenhada no horizonte.
Para a felicidade de quase todos, a pífia proposta de Auxílio inicialmente elaborada pelo governo foi ampliada pelo Congresso por pressão da sociedade. Não fosse isso, por render graças à Sua Majestade o Equilíbrio Fiscal (dogma abandonado desde o início da pandemia pelas economias mais liberais do planeta, como os EUA, Alemanha e Reino Unido), suas condições não teriam evitado a catástrofe.
Acontece que, para além dos impactos econômicos, há ainda três impactos de ordem moral.
O primeiro foi tornar visíveis os invisíveis. Houve susto generalizado quando cerca de 60 milhões de pessoas se apresentaram para receber o Auxílio. A despeito desse contingente de concidadãos aparecer claramente nas bases estatísticas – como a Pnad Contínua do IBGE, por exemplo – e ser objeto de numerosos estudos e publicações científicas, parece que os gestores públicos e a mídia em geral os desconheciam.
O segundo está condicionado a se admitir como verdadeira a hipótese que muitos economistas têm defendido, a de que parte da inflação – especialmente dos gêneros alimentícios – é consequência da elevação do dólar. E que parte decorre da pressão de demanda sobre esses itens de consumo (leite, arroz, feijão etc.), resultado dos efeitos positivos do auxílio emergencial sobre a renda das pessoas. Ocorre que tais produtos são classificados como bens com elasticidade-renda da demanda menor ou igual a zero. Trocando em miúdos, trata-se daquelas coisas que as pessoas não compram mais porque estão ganhando mais. Trocando mais em miúdos ainda, ninguém se empanturra de arroz e feijão porque teve um aumento salarial. Em alguns casos, até se compra menos desses produtos porque os substitui por outros mais caros. Esse comportamento da elasticidade só não se verifica em uma situação: quando a renda anterior do indivíduo não era suficiente para que adquirisse esses tais alimentos “básicos”. Portanto, admitir a veracidade desse componente inflacionário é reconhecer o nível de miséria a que estão submetidos milhões de brasileiros e que se traduz em uma amarga palavra de quatro letras: fome.
O terceiro, por fim, tem origem nas indefinições que se arrastaram por semanas. Nas idas e vindas em relação à sua renovação, valores que serão concedidos, critérios de elegibilidade, data de início e duração. Esse impacto moral é bem mais simples de se compreender. Basta que a gente se coloque no lugar de quem depende desse dinheiro para colocar comida nos pratos de seus filhos.
*Doutor pela Coppe/UFRJ e pesquisador do Ipea. É autor do livro Um pirilampo no porão: um pouco de luz nos dilemas da produtividade das pequenas empresas e da informalidade no Brasil.
- ** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de abril (30ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
- *** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.
RPD || Paulo Baía: O Brasil não respeita o sagrado ventre de um sorriso
Imagem de Marielle Franco vai sendo apagada para que o esquecimento recaia sobre o crime, escreve Paulo Baia em seu artigo. “Um crime político com endereço para qualquer uma que se aventure a desafiar as oligarquias da cidade do Rio de Janeiro”
Eu, Marielle Franco, mulher, preta, favelada, eleita vereadora pela cidade do Rio de Janeiro, levei quatro tiros no dia 14 de março de 2018.
Era a expressão de alegria. Nosso país não suporta uma mulher com um sorriso largo e sincero. Aberto e franco. O Brasil é o país da misoginia. Marielle subverteu não só pelas origens pobre e negra, mas também por seu currículo, seu brilhantismo profissional e acadêmico. Sua subversão maior era o sorriso escancarado. Brasil que estupra mulheres indígenas e pretas. Sou filho e neto de tais mulheres. Desejo suas vozes ouvidas. O Brasil não respeita o ventre de um sorriso.
Eu, Marielle Franco, fui assassinada no dia 14 de março de 2018, levei três tiros na cabeça e um no pescoço por um carro que me encurralou no Estácio. Como a música de Luiz Melodia: Se alguém que matar-me de amor, que me mate no Estácio, Bem no compasso, bem junto ao passo, Do passista da escola de samba, Do Largo do Estácio, O Estácio acalma o sentido dos erros que faço, Trago, não traço, faço, não caço, O amor da morena maldita domingo no espaço, Fico manso, amanso a dor, Holiday é um dia de paz... Os assassinos dispararam com uma submetralhadora. Queriam me executar para calar as minhas vozes: mulher, preta e favelada.
Eu já quero ser a segunda voz dela. Quero ser aquele que escuta. Como um velho, menos analista e mais antropólogo.
Peço permissão à ancestralidade feminina escravizada e violada nesse nosso torrão, a terra como Gaya, para ouvir Marielle. Desejo falar do lugar do feminino. Embora não possa incorporar o lugar de fala exclusivo dela. Desejo reunir forças para poder realizar esta homenagem. Somos seres simbólicos. É deles que marcamos o nosso compasso neste chão árido, seco, desértico e que machuca feito pelas dores de muitas mulheres. A terra é a simbologia mais antiga do feminino. Ela gira em torno do sol. E Marielle foi apagada antes de terminar a sua própria gira carregada de brilho e cheia de potência em defesa das mulheres faveladas. Das pretas. Ela lutava contra a perpetuação de um movimento de opressão cometido há séculos contra os pretos desde a colonização - a eterna escravidão que nos assombra cotidianamente.
Marielle era a terra fértil que ria e celebrava. Poderia uma mulher rir e celebrar? Sacralizar o riso, o corpo e a força do feminino é o meu desejo neste artigo. Tanto já foi dito a respeito de sua morte, sobre os assassinos, quem mandou matar que até hoje, no dia 02 de abril de 2021 (data que o autor escreveu o artigo), ainda não sabemos quem mandou executá-la. Os dias passam. O tempo corre. E a imagem vai sendo apagada para que o esquecimento recaia sobre este crime político.
Eu, Marielle Franco, fui assassinada, os tiros vieram de repente com força e não restou tempo para reação, caí morta, perdi a minha vida em meio à barbárie.
Permaneço preso ao ensaio antropológico e mágico. Feito um ritual de despedida e com o desejo de que sua morte não tenha sido em vão como tantas outras. O momento mais forte veio com a lavagem do chão cheio de sangue. No local onde a mataram no Estácio. Foi uma limpeza feita com ervas. E tambores. Marielle era a terra fértil que ria e celebrava o direito de vida dado a todos pela constituição de 1988, promulgada após a redemocratização. Nossa miscigenação é o fruto de estupros coletivos e continuados de mulheres indígenas e negras por séculos. É o machismo reprodutor assassinando mulheres vandalizadas e matáveis. Pai perverso e assassino de filhos mestiços pretos, quase pretos. Marielle é o retrato perfeito de séculos de violações aos corpos femininos.
Eu, Marielle Franco, fui morta de forma brutal sem direito à defesa. Nasci com a marca da exclusão e com a certeza de que deveria permanecer calada, distante do jogo político feito entre homens misóginos e racistas. A política feita para poucos que lutam por seus negócios embolados aos prazeres espúrios. E certamente com muitas garotas de programa em suas festinhas regadas a comida, bebidas, entre outras coisas.
Permaneço no meu ritual vivenciando uma eterna despedida de um antropólogo que se despe e veste a roupa do cientista político para dizer que a morte de Marielle foi o fim de um sonho e um crime político com endereço para qualquer uma que se aventure a desafiar as oligarquias da cidade do Rio de Janeiro.
Eu, Marielle Franco perdi a voz, mas renasço em todas as mulheres pretas, pobres e faveladas que trabalham e enfrentam o cotidiano de opressão. A vida é circular. E a Terra é redonda e gira em torno do sol.
O ritual de despedida homenageou o sorriso largo de uma mulher potente, vibrante, capaz de no sorrir rodopiar as energias, realizando a gira no meio do chão de terra das favelas cariocas. E é deste sagrado sorriso que o país precisa girar para recuperar a sua força e potência.
* Paulo Baía é sociólogo, cientista político e professor da UFRJ.
- ** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de abril (30ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
- *** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.
RPD || Sérgio C. Buarque: O Brasil foi intubado ... e o oxigênio está acabando
Sem medidas para o isolamento social e a vacinação em massa, calamidade sanitária que o país enfrenta leva diretamente ao desastre humano e econômico, avalia Sérgio C. Buarque
No primeiro trimestre do ano, o Brasil viveu o maior desastre sanitário da sua história com o colapso do sistema de saúde e número assustador de vítimas do Covid-19. Em março, foram 66.868 óbitos, cerca de 21% de todas as mortes pelo vírus no ano passado e o dobro do que foi registrado em julho, no auge da pandemia em 2020. O Brasil tornou-se grave ameaça internacional, sendo responsável hoje por cerca de 27% das mortes diárias no planeta e pela propagação de uma nova cepa mais contagiante e de maior agressividade. Esta dramática situação é o resultado direto da nefasta atuação do presidente da República na desqualificação das medidas de prevenção, no atraso da compra de vacinas e na tentativa de quebra das iniciativas de confinamento social dos governadores. Difícil imaginar mudança do comportamento e das decisões do presidente Bolsonaro no futuro imediato.
A calamidade sanitária leva diretamente ao desastre humano e econômico. A economia brasileira já estava patinando no primeiro trimestre, mesmo antes das modestas restrições implantadas em março, quando os casos e mortes pelo Covid-19 explodiram. Segundo o IPEA, o PIB dos três primeiros meses deste ano registrou queda de 0,5% em relação ao trimestre anterior. A dimensão do desastre sanitário e as incertezas em relação aos desdobramentos da contaminação e às decisões governamentais comprometem a economia e desestimulam os investimentos. Além disso, a nova variedade do vírus tem tido maior taxa de contaminação e de letalidade na população jovem[1] (qualificada para o trabalho) com a destruição de capital humano de efeito estrutural negativo na economia.
Para frear a cadeia de transmissão do vírus nos próximos meses, moderando a dimensão da trágica calamidade sanitária, será imperiosa a implantação de medidas drásticas de isolamento social. Como resultado, forte retração da economia: aumento do desemprego, da falência de empresas e da vulnerabilidade social. Entretanto, diante da gravidade da pandemia, se não forem adotadas medidas duras e impopulares, mantido o ritmo atual de mortos pelo Covid-19, até o final do semestre, o Brasil vai registrar a dolorosa marca de mais de meio milhão de vítimas do vírus. A implantação de um confinamento mais profundo demanda medidas compensatórias do Estado mais amplas do que foi aprovado na PEC emergencial. As quatro parcelas de R$ 250,00 em média para 45,6 milhões de famílias e os R$ 10 bilhões para o BEM-Programa de manutenção do emprego e renda[2] serão claramente insuficientes, para o enfrentamento dos efeitos econômicos e sociais negativos de algum nível de lockdown.
Não se pode ignorar, contudo, que as restrições fiscais deste ano são mais graves que as de 2020, em grande parte por conta das medidas de proteção e incentivos adotadas pelo governo, que gerou déficit fiscal de R$ 844,6 bilhões e ampliou a dívida pública para cerca de 100% do PIB. Mesmo com os gatilhos de redução das despesas correntes aprovados na PEC 109[3], o aumento do auxílio emergencial e do apoio ao emprego e às empresas para compensar o confinamento social deve agravar o quadro fiscal do Brasil. Mas, apesar dos riscos fiscais, o Brasil não tem alternativa de curto prazo. A calamidade permite suspender, transitoriamente, o Teto de Gastos e empurrar os compromissos para o futuro, ao passo que são concebidas e negociadas mudanças estruturais que viabilizem a recuperação das finanças públicas e a reanimação da economia.
O primeiro semestre já está perdido. O desempenho econômico do segundo depende das decisões atuais sobre a intensidade do confinamento e a velocidade do processo de vacinação. E, claro, da ação compensatória do Estado. Se não conseguir acelerar o ritmo de vacinação, até o final do semestre, o Brasil terá vacinado cerca de 84,4 milhões de brasileiros, apenas 40% da população, muito abaixo dos 70% considerados necessários pelos infectologistas para a imunização de massa. Embora muito mais grave do que o ciclo do ano passado, a nova onda do Covid-19 pode ser mais curta se forem adotadas medidas rígidas que quebrem a cadeia de transmissão do vírus e aceleram o processo de vacinação. O custo muito alto no presente, inclusive político, teria resultados mais rápidos e consistentes na recuperação da economia brasileira[4] no restante do ano.
- [1] Em São Paulo, a idade média dos pacientes internados nos hospitais caiu de 65 anos, em julho de 2020, para 37 anos em fevereiro de 2021; em Minas Gerais, 20% das mortes por Covid são de pessoas com menos de 60 anos; e, no Rio Grande do Sul, este percentual chega a 27,8%.
- [2] Muito abaixo do auxílio emergencial do ano passado que custou cerca de R$ 50 bilhões mensais e dos incentivos do BEM-Programa de Manutenção do Emprego e Renda que chegou a R$ 33 bilhões.
- [3] Os gatilhos aprovados pelo Congresso reduziram em muito a capacidade de manobra do governo, tanto nas despesas com pessoal (impedindo a suspensão das promoções), quanto na redução da renúncia fiscal de 4% para apenas 2% do PIB.
- [4] O crescimento da economia internacional, que poderia favorecer o desempenho econômico do Brasil, também estará sofrendo as consequências de novas ondas da pandemia, neste primeiro semestre, embora deva se beneficiar da recuperação da China e dos elevados investimentos do governo americano (US$ 1,9 trilhões) para combate aos efeitos da propagação do vírus, combinados com a aceleração da vacinação.
*Sergio C. Buarque é economista, com mestrado em sociologia, professor aposentado da FCAP/UPE, consultor em planejamento estratégico com base em cenários e desenvolvimento regional e local.
- ** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de abril (30ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
- *** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.
RPD || Vinícius Müller: A pedagogia do centro
Vinícius Müller avalia que, se não houver um passado que dê substância à formação de um centro político, este espaço será ocupado por candidatos polares como Lula e Bolsonaro, que o usam apenas de modo instrumental
Há uma expressão, comum e ingênua, que revela um modo particular de nosso entendimento sobre a História: ‘o problema é que nunca tivemos uma guerra para, de fato, resolvermos nossas feridas mais profundas’. Ou, especificamente, ‘se tivéssemos feito uma guerra de independência ou uma revolução contra escravidão teríamos um país mais justo e desenvolvido’.
A ingenuidade desta premissa reside na própria História. Os EUA, por exemplo, fizeram uma guerra para acabar com a escravidão e nem por isso resolveram a desigualdade racial que até hoje revela que esta ferida é muito maior do que uma guerra pode ser.
Contudo, esta premissa revela uma pedagogia, e sua instrumentalização resulta na condenação moral de qualquer tipo de ajustamentos ou negociações que porventura tenham sido feitos no passado ou que possam se efetivar no futuro.
É assim que há muito tempo temos oferecido nossa história pública: uma soma de arranjos feitos por quem, no fundo, não quer mudar nada. E se há – e certamente há – alguma verdade nisso, não parece razoável que essa seja a única versão da História. O outro lado é a glorificação, tão justa quanto supervalorizada, da ideia de que por seu ‘passado de luta’, por si só, alguém deva nos servir como referência. Muitas vezes, e pelo contrário, é o ‘passado de negociações e capacidade de fazer acordos’ que deve, por ser tão ou mais relevante à nossa trajetória, servir-nos de referência.
Pensar sobre isso nos ajuda a superar alguns de nossos atuais desafios: como criar uma outra pedagogia que rompa com esse modo parcial de contar a História? Como criar uma narrativa que envolva, primordialmente, os arranjos e acordos? E como fazer isso sem parecer oportunista?
Estas são barreiras na medida em que a declaração conjunta feita por possíveis candidatos de centro à presidência da República (Ciro, Doria, Amoedo, Huck, Mandetta e Leite) pode ser esvaziada se duas lacunas não forem rapidamente preenchidas. A primeira é a fragilidade da proposição que vê o problema apenas na inexistência de um projeto comum entre eles. Não é o futuro que conta, e sim o passado. Ou seja, o que precisam fazer é, antes de um projeto comum, encontrar um passado que os una ou que, no mínimo, justifique este ensaio de aproximação. A segunda é que, sem isto, os laços serão frágeis e, consequentemente, o fortalecimento do centro não significará nada de muito diferente do que é para os candidatos polares, Lula (PT) e Bolsonaro (Sempartido). Ou seja, se não houver um passado que dê substância à formação de um centro político, este espaço será ocupado por aqueles que o usam apenas de modo instrumental.
Para tanto, é necessária a criação de uma pedagogia do centro, que não só repudie a narrativa histórica da ’luta’ - característica daqueles que atiçam a polarização e usam o centro apenas como ferramenta -, mas também identifique os valores que são vistos no passado e transferíveis ao futuro. E esta pedagogia pode seguir alguns passos: a) leitura do contexto não pode ser capturada pela tentação da polarização. O esforço é achar, no contexto, os elementos que engrandecem a narrativa do ‘acordo’ e condenam a viciada e, hoje irresponsável, narrativa da ‘luta’; b) exaltar em nossa trajetória exemplos de arranjos e acordos que nos ajudaram a avançar e, ao mesmo tempo, enfrentar a narrativa que encontra em nossa trajetória apenas os acordos e arranjos que nos atrasaram; c) nomear os riscos e problemas criados em nossa trajetória pela ética da ‘luta’. Ela não pode, porque efetivamente não é, ser vista como moralmente superior à ética do ‘acordo’; e d) encontrar uma linguagem que facilite o entendimento de que ser do centro é a definição de um valor enraizado em nossa trajetória e que, mesmo responsável por alguns resultados ruins, também foi elemento fundamental para grandes avanços.
São esses os passos, em resumo, que criarão um ambiente favorável para que o centro deixe de se posicionar como o ‘negativo’ à polarização e seja o ‘positivo’ de nossa trajetória e de nosso futuro. Ou seja, aquele que carrega - porque identifica, valoriza e comunica - os avanços que tivemos em nossa história quando conseguimos anular a retórica da ‘luta’; e não o refúgio daqueles que só querem reproduzir nossos males.
Assim não seremos engolidos por aqueles que fazem do centro um instrumento oportunista. Ou alguém tem dúvida de que Bolsonaro acena ao centro apenas por uma lógica tática e de curto prazo? Ou de que o discurso de que Lula é o verdadeiro centro é só oportunismo?
*Vinícius Müller é doutor em História Econômica, professor do Insper e do CLP (Centro de Liderança Pública)
- ** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de abril (30ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
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RPD || Editorial: A fadiga das instituições
No cenário de incerteza em que o país mergulhou após as eleições de 2018, apenas uma percepção clara se consolida mês a mês, para um número crescente de observadores: a progressão acelerada da crise, em suas diferentes dimensões.
No plano sanitário, a pandemia avança de forma galopante e, com ela, o número de óbitos evitáveis. Ultrapassamos a marca de trezentas e cinquenta mil mortes, a média de falecimentos ao dia segue em curva ascendente e não dispomos ainda de uma previsão confiável a respeito do ponto aproximado de reversão dessa situação. Devemos essa situação de catástrofe exclusivamente à omissão do governo federal na contratação das vacinas e sua oposição sistemática às práticas recomendadas pelo consenso da ciência na sua falta: uso de máscaras e distanciamento social.
A expectativa do caos sanitário no curto prazo empurra, por sua vez, a perspectiva de retomada da economia para o médio e longo prazo. A redução concomitante do valor e abrangência do auxílio do governo aos mais necessitados abre as portas para o aprofundamento da insatisfação popular, com consequências imprevisíveis no momento.
Finalmente, temos a dimensão política da crise. Está claro hoje que a hipótese de enquadramento do Poder Executivo por parte de sua base parlamentar, fundamentalmente o grupo conhecido como “centrão”, não passou de esperança vã, alimentada por alguns dos atores do processo e seus apoiadores na esfera pública. Crises continuam a ser provocadas; as instituições, tensionadas; as práticas formais e informais da democracia, erodidas.
No espaço de poucos dias, assistimos à fabricação de uma crise militar, à retomada da ofensiva contra os Poderes Legislativo e Judiciário, e ao inacreditável chamamento de manifestações em favor das “liberdades” de culto e de locomoção, liberdades que, cumpre esclarecer, jamais sofreram até o momento qualquer ameaça.
As instituições encontram-se sob forte fadiga: seu desenho não incorporou a hipótese de mandatários de má fé democrática, em postos de relevância política.
Às oposições resta perseverar na clareza quanto a suas tarefas fundamentais, na cooperação cada vez mais indispensável na sua consecução, na resiliência democrática permanente. A hora é de concentrar o esforço de todos no combate às ameaças que rondam a democracia.
RPD || Entrevista Especial - José Gomes Temporão: ‘Pandemia terá impacto central no futuro da Nação’
Ausência de medidas e negacionismo do presidente Jair Bolsonaro contribuíram drasticamente para a situação crítica que o país enfrenta atualmente no combate à pandemia do novo coronavírus, acredita Temporão
Por Caetano Araújo, Luiz Santini e Renato Ferraz
O número de crimes tipificados no Código Penal e na Constituição brasileira que o presidente e seu governo cometeram contra a população brasileira em relação ao combate contra a pandemia do novo coronavírus são inúmeros, incontáveis, avalia o ex-ministro da Saúde José Gomes Temporão, entrevistado especial desta 30ª edição da Revista Política Democrática Online.
Temporão aponta três medidas que deveriam ter sido feitas pelo Governo Bolsonaro para evitar a situação em que o país se encontra atualmente: 1) Deveria ter liderado articulação entre Butantan, FIOCRUZ e os laboratórios estrangeiros que estavam desenvolvendo novas vacinas e fechado acordos de compra ainda em meados de 2020. 2) Optou apenas pelo número mínimo de doses do mecanismo Covax, administrado pela Organização Mundial da Saúde, que é de 10% da população. O Brasil vai receber, assim, 20 milhões de doses, suficientes para vacinar 10 milhões de pessoas. País tinha direito de pleitear até 80 milhões de doses, em benefício de 40 milhões de brasileiros. 3) Se tivesse fechado acordos compra com Pfizer, Moderna, Sputinik V e outros produtores lá atrás, teríamos tido vacinas a partir de janeiro e já poderíamos estar com 100 milhões de pessoas vacinadas.
“A sociedade brasileira, o povo brasileiro, foi objeto de um ataque criminoso organizado do governo federal, que destruiu a capacidade brasileira de enfrentar adequadamente essa pandemia”, critica Temporão. Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista concedida à Revista Política Democrática Online.
Revista Política Democrática Online (RPD): A pandemia está tendo o impacto de uma tragédia social, sanitária, emocional. Mas pode ter favorecido o reconhecimento da importância do Sistema Único de Saúde para a saúde dos brasileiros por parte de toda a sociedade, independentemente de níveis sócioeconômicos, tanto quanto a percepção da relevância do papel da ciência e da qualidade dos pesquisadores e cientistas nacionais na condução das graves questões sanitárias que vêm ameaçando o país. Como valorizar esses sentimentos de forma permanente?
José Gomes Temporão (JGT): Que bom começarmos a conversa falando de coisas boas também. A situação difícil, dramática e trágica que nosso país vive nesse último ano tem e seguirá tendo impacto central no futuro da nação. Importa destacar, no entanto, que, ao longo desse período pandêmico, o SUS ganhou novo contexto, um novo olhar da sociedade. Está lá na Constituição de 1988, no Artigo 196: “a saúde é um direito de todos e dever do Estado, alcançando através de políticas econômicas e sociais”. Quer dizer, uma visão bastante abrangente da questão da saúde. Nós também sabemos que, no curso dessas três décadas, se de um lado o SUS conseguiu se estruturar, ampliou cobertura, reduziu desigualdades entre classes sociais e regiões e teve um impacto nos indicadores sanitários extremamente importante, por outro lado se fragilizou do ponto de vista do financiamento, da gestão, do modelo assistencial. E através de uma política deliberada de subsídio ao mercado, o que nós assistimos foi um crescimento proporcional muito importante do percentual da população brasileira que dispõe de um plano seguro de saúde para o atendimento de suas necessidades corriqueiras de exames, consultas e internações – maior parte, provida pelo empregador. Ou seja, é uma cobertura privada financiada majoritariamente pelo empregador e ligada, portanto, ao vínculo laboral. Então essa visão do SUS ao longo dessas décadas sofreu, digamos assim, algumas fragilizações.
A primeira para a qual eu queria chamar a atenção é uma certa visão que se consolidou na sociedade do SUS como muito importante para as pessoas pobres, para os mais pobres. Trata-se de um desvio, uma visão equivocada. Porque, na verdade, o SUS prescrito na Constituição reflete a visão da construção de um sistema universal para todos os brasileiros.
A segunda, que também se difundiu de maneira muito forte na sociedade, é essa visão de que ter um plano de saúde faz parte do processo de ascensão social, e de que a medicina privada, portanto, terá um padrão de qualidade superior à da medicina pública – o que, aliás, não se sustenta em nenhum ponto de vista analítico. Temos hospitais, instituições, programas e políticas de excepcional qualidade no SUS e no setor privado. Temos problemas dramáticos de qualidade no SUS e no setor privado. A discussão está equivocada, porque, quando a pandemia começa e o impacto dela na sociedade se expressa dessa maneira tão pungente, real e concreta, uma série de setores da sociedade que, antes via o SUS um pouco assim à distância – como “uma coisa que não faz parte do meu cotidiano, do meu dia a dia, talvez tenha muito peso para os meus empregados, ou para as pessoas que trabalham na minha casa” – passou a avaliá-lo em uma dimensão distinta. Basta imaginar, como mera hipótese, o que seria dos praticamente 50 milhões de brasileiros que não têm nenhum tipo de proteção social estruturada, subempregados, que trabalham por conta própria, e os 15, 16 milhões de desempregados, portanto a grande maioria da população brasileira, sem o SUS?
Felizmente, essa avaliação de senso comum da sociedade se expressou também na grande mídia. Nunca se falou tanto nos jornalões, nas TVs abertas e nos programas de TV fechada sobre o SUS, sobre suas dificuldades, suas qualidades, um reconhecimento do trabalho importantíssimo dos profissionais que ali labutam todos os dias. Atingiu inclusive setores com uma visão desenvolvimentista, progressista, mas que viam também o SUS um pouco distante. Registrou-se todo um movimento da área da ciência brasileira de aproximação com o SUS. Multiplicaram-se as experiências de articulação, integração e de reflexão conjuntas entre instituições e entidades do campo da saúde pública, da medicina, da ciência brasileiras no sentido de buscar orientar a população, esclarecer a sociedade, reivindicar, criticar o governo.
Estou seguro, assim, de que, apesar das dificuldades estruturais que o SUS enfrenta, ganhamos espaço político e temos de saber como aproveitar isso para fortalecê-lo no futuro. Essa questão do SUS e do que eu chamo da construção de uma consciência política, de uma consciência coletiva, de uma consciência social do valor dos sistemas universais e do SUS, é uma questão central da nossa agenda nos próximos tempos.
Isso vem junto com a questão da ciência. Em maio do ano passado, já ressaltávamos em debates que só conseguiríamos sair dessa situação quando tivéssemos uma ou mais vacinas que funcionassem. Mas ouvíamos: “vacina?, esquece. Vacina, só em 2021, 2022. É coisa para um ano e meio, dois anos”. Citava-se o caso anterior do período mais curto de desenvolvimento de uma vacina, a da caxumba, que levou quatro anos para chegar ao mercado. E a ciência nos colocou não uma, mas várias vacinas antes de um ano do início da pandemia.
A ciência mostrou seu valor, sua importância. No caso brasileiro, com algumas singularidades. Fomos o terceiro país do mundo a fazer o sequenciamento genético do vírus; cinco dessas vacinas, que já estão no mercado, foram testadas na população brasileira, em que foram realizados ensaios clínicos. Nós sabemos que, para fazer ensaio clínico, você tem de ter uma estrutura de ciência e de hospitais de ensino e pesquisa; uma estrutura regulatória – nós temos uma das melhores agências reguladoras do mundo, a ANVISA. E os brasileiros publicaram inúmeros artigos, e participaram de inúmeras iniciativas no campo da ciência extremamente importantes no enfrentamento dessa doença.
Outra dimensão que tem muito a ver com ciência, embora não se limite a ela, na verdade a transcende, é a questão do desenvolvimento tecnológico que depende da ciência e que entrou de novo na agenda. Todos nos lembramos do que aconteceu em março do ano passado: não tínhamos testes, não tínhamos respiradores, nem equipamentos de proteção individual, e a nação perplexa chegou à seguinte conclusão: a gente compra tudo da China. Ora, por que não fazemos aqui? Existiriam barreiras tecnológicas ou de conhecimento intransponíveis? De maneira alguma. Isso é reflexo de décadas de uma visão totalmente equivocada do que deva ser o processo de desenvolvimento brasileiro, o que se repetiu no início deste ano, quando se tentou justificar a falta de vacinas pela dependência da importação da China dos princípios ativos para produzi-las.
"Temos hospitais, instituições, programas e
políticas de excepcional qualidade no SUS e no
setor privado. Temos problemas dramáticos de
qualidade no SUS e no setor privado"
Foto: Antonio Cruz/Agência Brasil
Espero que se recoloque de vez na agenda a visão da ciência como questão central e se discuta a necessidade de um projeto nacional de redução da dependência tecnológica brasileira no campo da saúde. Quando eu estava no ministério, entre 2007 e 2010, implementamos, de maneira pioneira, durante o segundo mandato do presidente Lula, uma política voltada exatamente para essa prioridade: como internalizar e aumentar a capacidade brasileira de produzir aqui tecnologias que até então importávamos. Fizemos isso no campo das vacinas, de medicamentos para transplante, de medicamentos para distúrbios psíquicos, de medicamentos para doenças reumatológicas, de testes para diagnóstico. Chegamos a desenvolver cerca de 80 projetos de parcerias entre laboratórios de capital nacional, multinacionais e laboratórios públicos. Mas, a partir de 2016, tudo se interrompeu, e agora no governo Bolsonaro, simplesmente não temos a menor perspectiva de que esse projeto possa seguir adiante. Em resumo: SUS na agenda, ciência na agenda e a redução da vulnerabilidade tecnológica da saúde brasileira na agenda dos próximos anos.
RPD: Para quem não é da área, é grande a influência das versões difundidas pela imprensa e redes sociais, essencialmente que estamos em uma situação catastrófica e que vamos bater todas as marcas negativas em relação a essa pandemia. É procedente essa visão? Como chegamos a esse quadro? Onde erramos? Onde o governo federal, os governos subnacionais, a sociedade civil, enfim, erraram? E o que fazer para superar isso no curto prazo, para, senão superar, pelo menos minimizar os estragos que se anunciam?
JGT: Havia, no início do ano passado, uma expectativa nacional e internacional sobre o desempenho do Brasil no contexto da pandemia, que eu qualificaria de positiva. Baseava-se na existência do SUS, um sistema universal que ampliou muito o acesso da população aos serviços – claro, com todas as dificuldades que conhecemos. Incorporava, também, a percepção internacional, construída ao longo de muitas décadas, da liderança que o Brasil exercera em alguns foros multilaterais, na área da saúde global. A Organização Panamericana da Saúde foi dirigida ao longo de décadas por brasileiros. O primeiro diretor geral da Organização Mundial da Saúde foi brasileiro, o Marcolino Candau, que ficou lá mais de dez anos. O Brasil teve papel importantíssimo na aprovação da legislação de TRIPs, na OMC, que regula a proteção patentária em medicamentos e produtos de saúde. O Brasil foi líder na aprovação da Convenção-quadro para o controle do tabagismo, o primeiro tratado de saúde pública internacional. Ou seja, o Brasil era visto como país dotado das ferramentas e as condições necessárias para enfrentar a pandemia.
Faltou nessa análise, porém, considerar um componente que terminaria por evidenciar a grande vulnerabilidade brasileira. É bem distinto mobilizar o sistema de saúde, mobilizar a ciência e ter um governo que enfrente uma situação como essa de maneira competente ouvindo a ciência e saúde públicas se você tem uma grande homogeneidade social – caso da Europa. Mas, em um país estruturalmente desigual, como o Brasil, a complexidade das ações requeridas é bem maior. Teríamos de ter tido algumas iniciativas, decisões, o que não ocorreu.
Por exemplo: desde o início, uma política econômica a serviço da saúde e a serviço da defesa da vida. Contamos, na verdade, única e exclusivamente com o benefício emergencial de R$ 600, graças ao Congresso Nacional, e que foi interrompido em dezembro. Isso foi pouco. Houve muitas iniciativas da sociedade civil, organizações não governamentais, movimentos culturais, movimentos de mulheres, população negra e jovens, para tentar enfrentar de alguma maneira, minimizar o impacto dramático dessa doença e, inclusive, de viabilizar que esses estratos mais vulneráveis da população pudessem manter distanciamento e permanecer em casa. Mas foram claramente insuficientes. O setor privado também ensaiou um apoio, em situações localizadas, desestruturado, desorganizado.
Além disso, deveríamos ter tido, também desde o começo da pandemia, como implementei quando dirigi o ministério da saúde em 2009 e 2010 ante o surto do H1N1, a liderança do governo federal para coordenar e elaborar um plano de ação, elaborado por um comitê permanente onde o governo federal, os estados e os municípios juntos com a ciência e a saúde pública, construíssem as estratégias. O objetivo seria mobilizar a sociedade, com base em um projeto de comunicação pesado, para orientar, informar, educar, segundo as prescrições da saúde pública e da ciência, vale dizer: evitar aglomerações, manter o distanciamento, uso universal de máscaras, higiene das mãos, e agora as vacinas.
E o que tivemos? Tivemos uma fragmentação da federação brasileira. O governo federal, na verdade, se transformou em um polo de resistência às medidas prescritas pela ciência e pela saúde pública. O presidente liderou esse processo criminoso repetidas vezes, como o atestam dezenas de exemplos, fatos, declarações e comportamentos públicos.
Somente em dezembro último, o presidente aceitou, a contragosto, a inclusão da vacina do Butantan no PNI e nunca cessou de prescrever falsos tratamentos, estimulando as pessoas a um comportamento irresponsável. Minimizou a gravidade da pandemia e apostou na curta duração de seus efeitos, para fortalecer sua oposição ao isolamento social e abrir espaço à difusão de fake news. Debilitou o comando as operações do governo no campo da saúde pública ao militarizar o ministério da Saúde, comprometendo sua capacidade técnica, sua respeitabilidade e credibilidade. Deixou o país um ano à deriva, sem ministro e sem ministério. Construiu, na prática, uma autoridade sanitária paralela informal. Quebrou uma das pernas centrais da nossa capacidade de enfrentamento, ao debilitar o pacto federativo, jogando a responsabilidade sobre os governadores e prefeitos. Não orientou nem cobrou uma política econômica que estivesse em total sintonia com a política de saúde.
Esse comportamento do presidente não deve ser julgado de maneira isolada. Juntam-se, cúmplices, o ministro da saúde, o ministro da economia e o conjunto do governo como um todo, que devem também solidariamente ser responsabilizados pela tragédia que nos levou a mais de 330 mil óbitos, em começos de abril (País superou a marca de 350 mil mortes em 12/04/2021). É o epílogo sangrento, dramático, pungente de um ano de negação, de mentiras, de quebra da federação, de ataque à ciência, à saúde pública e a Organização Mundial da Saúde.
RPD: Como vê o horizonte da vacinação no Brasil?
JGT: Tivemos as primeiras vacinas chegando ao mercado internacional em dezembro do ano passado, e o Brasil tem dois dos maiores produtores de vacinas do mundo, resultado, inclusive, de décadas de investimento na Fundação Oswaldo Cruz e no Butantan. O Butantan por conta própria, e em uma luta incrível, insana, contra o presidente da República, fechou acordo com os chineses e desenvolveu sua vacina usando plataforma que o Butantan já domina há muito tempo, a mesma plataforma tecnológica da vacina da gripe que usamos todos os anos, a vacina da influenza. E a FIOCRUZ optou por algo mais ousado: fez um acordo de transferência de tecnologia com a AstraZeneca e a Universidade de Oxford de uma plataforma tecnológica nova: é a primeira vacina no mundo que usa essa plataforma tecnológica, que usa o veículo adenovírus de chimpanzé, que coloca a proteína da espícula do vírus no nosso organismo, e, a partir daí, a gente desenvolve os anticorpos. Dispomos, assim, de duas grandes fábricas de vacinas, mas uma limitação: ainda dependemos da importação dos princípios ativos.
Considerando esse contexto, o que deveríamos ter feito? Erramos onde não poderíamos ter errado, para além dos erros que já listei aqui, mas no campo das vacinas, especificamente. Sabedores de que tanto o Butantan como FIOCRUZ teriam dificuldades no início do ano de produzir em larga escala por essa dependência de insumos, e também porque o processo de transferência de tecnologia é complexo – é normal não se cumprirem prazos restritos do cronograma –, deveríamos ter feito três coisas que não fizemos:
- Desde abril do ano passado, o PNI – considerado como um dos melhores do mundo, que vacinou, em 2010, 90 milhões de brasileiros contra o H1N1 em três meses – deveria ter liderado articulação entre Butantan, FIOCRUZ e os laboratórios estrangeiros que estavam desenvolvendo novas vacinas e fechado acordos de compra ainda em meados de 2020. Não só não fizemos isso, mas também rejeitamos a oferta da Pfizer de 70 milhões de doses. Isso ocorreu no tempo em que o presidente atacava as vacinas o tempo todo.
- O mecanismo Covax, administrado pela Organização Mundial da Saúde, constituído por um pool de produtores, um fundo financiado por doações e com recursos de países desenvolvidos, foi de início rechaçado pelo Brasil. Quando o governo aderiu, optou apenas pelo número mínimo de doses, que é de 10% da população. Receberemos, assim, 20 milhões de doses, suficientes para vacinar 10 milhões de pessoas. Só que teríamos direito, e não exercemos, de pleitear até 80 milhões de doses, em benefício de 40 milhões de brasileiros.
- Tivéssemos fechado acordos de compra com Pfizer, Moderna, Sputinik V e outros produtores lá atrás e garantido um volume de doses que se somariam a ainda incipiente capacidade brasileira do Butantan e FIOCRUZ, neste momento praticamente 10% da população brasileira receberiam a primeira dose, isto é, de 19 a 20 milhões de pessoas. Tivéssemos vacinas a partir de janeiro, já poderíamos estar com 100 milhões de pessoas vacinadas. E o impacto disso na redução da circulação do vírus, das pessoas infectadas, internadas, mortas teria sido dramática. Por isso, afirmo: a sociedade brasileira, o povo brasileiro foi objeto de um ataque criminoso organizado do governo federal, que destruiu a capacidade brasileira de enfrentar adequadamente essa pandeia.
RPD: Diante disso tudo, da má gestão política, sanitária, diplomática e econômica, como responsabilizar a quem de direito e evitar que esses crimes fiquem impunes?
JGT: Já são inúmeras as iniciativas, dentro e fora do país. Eu, mesmo, ao lado de vários outros ilustres sanitaristas e cientistas, subscrevi um pedido de impeachment do presidente da República, pedido que se adiciona a mais de uma centena de outros ora hibernando na gaveta do presidente da Câmara dos Deputados, para não mencionar a representação de ex-ministros da saúde, ex-juristas, juristas advogados, apresentada ao Tribunal de Haia contra o presidente Jair Bolsonaro. O número de crimes tipificados no Código Penal e na Constituição brasileira que o presidente e seu governo cometeram contra a população brasileira são inúmeros, incontáveis.
Mas o governo federal cooptou, para usar um termo educado, o chamado Centrão para impedir que esses processos avancem. Por isso, não conseguimos garantir que essas iniciativas conduzam à abertura de um processo de impedimento do presidente, o principal obstáculo a um adequado, responsável e sério manejo do enfrentamento da pandemia, onde a ciência e a saúde pública têm que prevalecer. Não conseguimos até o momento transformar esse conjunto de denúncias inclusive junto ao Ministério Público, a Advocacia Geral da União e ao Supremo, em fatos que transcendam a decisão política da denúncia em si. Não conseguimos sequer abrir o processo de impedimento, porque, segundo nossa Constituição, cabe ao presidente da Câmara a decisão monocrática de submeter a matéria à apreciação de seus pares no plenário, o que não ocorreu na gestão do Rodrigo Maia nem parece vir a ocorrer na da Artur Lira. O Ministério Público tem sido omisso diante das dezenas denúncias recebidas não se manifestando. No âmbito do Tribunal de Haia, ainda não se decidiu sobre o acolhimento da representação.
Não tenho dúvida, porém, de que as evidências são muito contundentes: os crimes estão aí, os números estão aí, os vídeos estão aí, as manifestações estão aí; a tipificação de crimes contra a Constituição e o Código Penal está aí. E todos esses senhores e senhoras serão responsabilizados pelos crimes cometidos contra a população brasileira, contra a segurança nacional. Inclusive, contra o próprio desenvolvimento da nação e a frustração no campo da educação; a fome voltou; a mortalidade por doenças que tinham sido reduzidas, aumentou. Os responsáveis terão de ser punidos. Não apenas nas urnas em 2022: punidos criminalmente por cometimento de crimes contra a vida e a saúde da população.
RPD: É muito preocupante quando se fala da perda da liderança do Brasil no sistema de saúde global. Mas também é possível dizer que o sistema global também está muito frágil, mesmo com as declarações quase diárias e emocionais, dramáticas, muitas vezes, do diretor geral da OMS. Falta uma coordenação global. Tudo indica que esta não será a última pandemia. Outras virão, no rastro de novos desastres sanitários e sociais, no rastro da questão da migração e do desrespeito à questão ambiental. Tudo isso prenuncia novas pandemias. Para que não sejam tão devastadores como o atual, será necessária uma coordenação sob uma liderança global. O que pensa a esse respeito?
JPT: Essa é uma questão fundamental para nosso futuro. Começo com o que Brasil conseguiu fazer no exterior no cenário da saúde global. Estive há dois anos em Maputo, em Moçambique, e visitei um projeto desenvolvido pela FIOCRUZ, no âmbito de ações semelhantes lançadas para os países portugueses africanos lusófonos. Era o Instituto de Saúde Pública local, um prédio imponente, construído pelos Estados Unidos, cheio de equipamentos de última geração, fornecidos pela China, e operado por mestres, doutores e especialistas, treinados no Brasil. A importância do projeto refletia a diferença da abordagem da ajuda prestada pelos Estados Unidos e pelo Brasil na capacitação do sistema de saúde. Enquanto os Estados Unidos priorizaram doações para a montagem de programas verticais de combate a doenças escolhidas, como malária, chagas ou tuberculose, o Brasil privilegiava um olhar da cooperação em saúde estruturante, vale dizer, ajudando os países a organizar seu sistema de saúde, suas instituições permanentes de saúde.
Isso foi alcançado pela associação entre o Ministério da Saúde, pelo menos de 2000 à gestão do ex-ministro Serra até 2016, e do Itamarati, por intermédio da ABC – Agência Brasileira de Cooperação. E nós perdemos tudo isso quando o Michel Temer entra, e principalmente agora com o Bolsonaro. O ministro das Relações Exteriores virou motivo de chacota nos corredores do Itamarati e acabou saindo, não sem antes contribuir para destruir a projeção visão internacional do Brasil, também no campo da saúde. Teríamos podido ajudar muito mais os países em desenvolvimento.
Não devemos esquecer, por outro lado, que, a reboque da visão de Trump, Bolsonaro atacou frontalmente a OMS justo quando o mundo precisava de uma agência forte, nos planos técnico, financeiro e político. Falando em coordenação internacional, a OMS é absolutamente fundamental, haja vista a realidade nua e crua das vacinas. Atualmente, a questão da distribuição e consumo, a disponibilização de vacinas em termos globais, repete o mesmo padrão de desigualdade das outras tecnologias da saúde ao longo de décadas. Mais de 60% de todas as doses de vacinas destinam-se a atender cerca de 15 países, os países ricos.
Tudo isso clama por uma OMS fortalecida. Fortalecida, inclusive para começar a discutir outros temas: a questão de patentes. A proteção patentária está na OMC, mas deveria estar na agenda de discussão e trabalho da OMS. Não há dúvida de que teremos situações de vulnerabilidade sanitária e outras pandemias no futuro. Impõe-se, portanto, uma OMS cada vez mais forte. E que o Brasil reocupe o papel tão importante que ocupou ao longo das últimas décadas, infelizmente, conspurcado, apagado pelo governo Bolsonaro.
Saiba mais:
*José Gomes Temporão é médico sanitarista, membro da Academia Nacional de Medicina, ex-ministro da Saúde e pesquisador da Fiocruz.
*Luiz Antonio Santini é médico, professor da UFF de Cirurgia e de Saúde Pública, ex-diretor do INCA e pesquisador associado da Fiocruz.
*Caetano Araújo é consultor legislativo do Senado Federal, sociólogo. É diretor da Fundação Astrojildo Pereira (FAP).
*Renato Ferraz é jornalista profissional desde 1988. Trabalhou em veículos como Veja, Correio Braziliense, Congresso em Foco e outros. É pós-graduado pelo UniCeub e pela ISE Business School/Universidad de Navarra.
- ** Entrtevista realizada para publicação na Revista Política Democrática Online de abril (30ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
- *** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.
Monica de Bolle: O plano Biden
Nada mais em linha com o papel indutor do Estado no desenvolvimento de longo prazo do que o plano recém-anunciado pelo atual presidente
Diretamente de Washington D.C., vejo com curiosidade a maneira como a imprensa brasileira tem repercutido o plano do presidente Joe Biden para aprimorar a infraestrutura do país e deslanchar sua dupla agenda de proteção social e combate às mudanças climáticas. Curiosidade e também alguma graça. Persiste no Brasil a ideia de que os Estados Unidos são o exemplo de país em que o desenvolvimento se deu pela iniciativa privada, sem protagonismo do Estado. A ideia é errada e mostra um profundo desconhecimento da história do país. E o desconhecimento histórico, nesse caso, não é inofensivo, porque acaba servindo para afastar os aspectos positivos do Estado indutor, em argumentos simplórios, que apresentam apenas seus aspectos negativos, que de fato existem. Tenta-se revitalizar, com esse tipo de construção, a noção de que o Estado protagonista só traz ineficiências, como se o mundo pudesse ser simplificado para caber no que tenho chamado de “liberalismo à brasileira”.
Os Estados Unidos se industrializaram tardiamente, assim como a Alemanha e o Japão, quando se tem o Reino Unido como termo de comparação. A industrialização americana aconteceu na segunda metade do século XIX e foi extremamente rápida: no fim do século, os EUA já rivalizavam com o Reino Unido no comércio internacional. A industrialização no país seguiu alguns dos princípios estabelecidos por Alexander Hamilton — o primeiro secretário do Tesouro — no final do século XVIII. Em sua obra Report on the subject of manufactures, publicada em 1791, Hamilton elabora os princípios da industrialização destacando que o desenvolvimento nacional requeria medidas que discriminassem a favor dos produtores locais.
Portanto, argumentava Hamilton, o processo de industrialização teria de se ancorar em dois eixos principais: o protecionismo e a substituição de importações. Alguns anos mais tarde, Friedrich List iria se valer de argumentos semelhantes para tratar da industrialização alemã. O interessante é que List o faria a partir de suas observações em relação ao que se passava nos Estados Unidos, onde residira antes da publicação de Sistema nacional de economia política, em 1841. Tanto Hamilton quanto List exerceram grande influência sobre o papel do Estado na industrialização americana. Ao final do século XIX, os grandes conglomerados industriais deveriam sua existência ao Estado indutor do desenvolvimento.
Para o desgosto de alguns no Brasil, o “desenvolvimentismo” marcou, assim, a ascensão da economia americana e continuaria a se fazer presente, em maior ou menor intensidade, nas muitas décadas que se seguiram. Em 1934, estaria lá o Estado para socorrer o país da Grande Depressão. A corrida espacial e o complexo tecnológico que a possibilitou durante a Guerra Fria não teriam sido possíveis sem o papel do Estado. Nos anos 1980 e no início dos anos 1990, a internet foi concebida e desenvolvida pelo governo americano. Todo o setor de tecnologia de informação hoje existente não teria se formado sem o financiamento do Estado. Por fim, e essa não é uma lista exaustiva, os Estados Unidos não seriam dominantes na área de biotecnologia sem o papel do Estado. Esse domínio, hoje, está mais visível do que nunca no desenvolvimento das vacinas contra a Covid-19: as vacinas gênicas da Pfizer e da Moderna, que usam tecnologia mais sofisticada, foram possíveis graças a financiamento e contratos de compra no âmbito da Operação Warp Speed.
É nesse contexto que se insere o Plano Biden. Nada mais em linha com o papel indutor do Estado no desenvolvimento de longo prazo do que o plano recém-anunciado pelo atual presidente.
Ele prevê investimentos maciços em áreas diversas e seu tamanho — todo o PIB do Brasil — deixou alguns assombrados. É curiosa essa reação. Trata-se do país emissor da moeda de reserva internacional, o dólar, anunciando um plano ambicioso e caro, como fez em diferentes momentos ao longo de sua história. Mas, para muitos, parece que essa história não existe, ou foi reinterpretada à luz de um punhado de anos em que reinou suprema a ultraortodoxia da Escola de Chicago, que não mais existe aqui nos Estados Unidos.
Os “liberais à brasileira” vão ter de se conformar com o “desenvolvimentismo” de Biden. O mais saboroso? Serão testemunhas do quão acertado o plano é para o momento atual.
*Monica de Bolle é Pesquisadora Sênior do Peterson Institute for International Economics e professora da Universidade Johns Hopkin
Luiz Carlos Azedo: O favoritismo de Lula
Com a CPI da Covid em funcionamento no Senado, o custo político dos desatinos de Bolsonaro na pandemia e da incompetência dos militares na Saúde será altíssimo
O Supremo Tribunal Federal (STF) confirmou, ontem, a anulação de todas as condenações do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), por 8 a 3, com base no princípio do “juiz natural”, pedra basilar do chamado devido processo legal, invocado pela defesa do petista desde quando o processo começou a andar na 13a Vara Federal de Curitiba, sob a batuta do então juiz Sergio Moro. Quando a revisão do caso do ex-presidente da República começou a ser ventilada nos bastidores do Supremo, o presidente Jair Bolsonaro imaginava que Lula como adversário seria meia reeleição garantida, mas a vida está mostrando, com a pandemia da covid-19, que a roda da Fortuna girou em favor do petista.
Como já era de se esperar, a reação de Bolsonaro e seus aliados será na direção de contestar a decisão do Supremo e desacreditar os integrantes da Corte, além de intensificar a narrativa de que houve fraude nas eleições passadas e de que o voto eletrônico não é seguro. Os propósitos golpistas dessa narrativa são conhecidos, porém não têm encontrado eco nos meios políticos, nem mesmo entre os aliados do Centrão, e também nas Forças Armadas, apesar das insatisfações com a decisão. A ideia de que a polarização com Lula seria a chave da vitórianas eleições de 2022 está furada.
A decisão do Supremo anulou as condenações de Lula por um aspecto formal, o foro de seu julgamento deveria ser o Distrito Federal, e não Curitiba. Isso não significa que Lula tenha sido inocentado, porque o processo terá que ser reiniciado (há controvérsias sobre a anulação de provas). Entretanto a narrativa de que Lula foi injustiçado por Sergio Moro é cada vez mais robusta, pela revelação de suas conversas com os procuradores da força-tarefa da Lava-Jato e, também, por causa da decisão da Segunda Turma que aprovou a suspeição do ex-juiz na condução do processo, por 3 a 2. Esse é outro assunto que terá de ser examinado pelo plenário do Supremo, podendo ter sérias consequências para o ex-magistrado, um pré-candidato à Presidência ainda encabulado.
Mudança de cenário
A presença de Lula na disputa mudou completamente o cenário eleitoral de 2022. A expectativa de poder que a possibilidade de reeleição garante aos ocupantes do Palácio do Planalto, no caso de Bolsonaro, está sendo volatilizada pela pandemia da covid-19, a recessão econômica e o mau desempenho do governo federal em muitas frentes. As políticas públicas que contavam com certo consenso nacional e reconhecimento internacional foram substituídas pela improvisação, pelo obscurantismo e pela incompetência administrativa, além de um viés ideológico reacionário. Isso correu na política externa, no meio ambiente, nos direitos humanos, na cultura e na educação, mas é na saúde pública que o desastre pôs no telhado a reeleição de Bolsonaro em 2022.
Cada dia que passa, as consequências da má gestão do ex- ministro da Saúde Eduardo Pazuello mostram-se mais graves, com o agravante de que o novo ministro, Marcelo Queiroga, embora tenha flexibilizado a narrativa governista, está capotando na área administrativa da pasta. Hoje, é o principal responsável pelo colapso do fornecimento de insumos para tratamento dos casos graves da doença, principalmente os kits de intubação. Como o Ministério da Saúde requisitou toda a produção nacional e não consegue atender à demanda, hospitais de vários estados estão entrando em colapso. Pacientes estão sendo amarrados nas UTIs para não retirarem os tubos de respiração ou deixando de ser intubados, por falta de analgésicos adequados e outros recursos, o que acaba aumentando o número de óbitos.
Com a CPI da Covid em funcionamento no Senado, o custo político dos desatinos de Bolsonaro na pandemia e da incompetência dos militares na Saúde será altíssimo e se prolongará para além da pandemia, por causa do grande número de mortos. Isso significa que Bolsonaro está derrotado e Lula com o caneco na mão? Não, ninguém ganha eleições de véspera. Lula já foi favorito antes e perdeu a eleição, em 1994, para Fernando Henrique Cardoso (PSDB).
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Murillo de Aragão: O momento pré-eleitoral
O ambiente é de total indefinição e surpresas devem acontecer
Uma das lições de 2018 foi tirada do início prematuro da pré-campanha e da curta duração da campanha presidencial em si. A campanha curta decorreu da imposição de limites de gastos por candidatura e do fim das doações milionárias de empresas, bem como da decisão do Congresso Nacional de reduzir pela metade o tempo da campanha.
As decisões do Legislativo e o ambiente polarizado por causa da Operação Lava-Jato e pelo processo de impeachment de Dilma Rousseff aqueceram a pré-campanha. Ao mesmo tempo, a Lava-Jato, com seus acertos e excessos, devastou o mundo político.
Poucos, além de Jair Bolsonaro, perceberam o alcance das mudanças e o início prematuro da corrida eleitoral. No começo de 2017, ele já estava em plena atividade eleitoral. Aproveitava-se de três fatores: não ser levado a sério pelo mundo político como candidato, do desgaste do establishment político com o avanço das investigações de corrupção e o uso intensivo e eficiente das redes sociais.
Fato é que, às portas das eleições de 2018, remanesceram duas narrativas: Bolsonaro como o candidato anti-establishment e Fernando Haddad como o “procurador” do lulismo. O centro e as periferias não conseguiram se posicionar. Ficaram pelo meio do caminho.
“O espaço para candidaturas e alianças potencialmente improváveis ainda está em aberto”
Considerando o quadro atual, como estamos em termos de pré-campanha? Vale lembrar Juan Manuel Fangio, multicampeão argentino de Fórmula 1, que dizia: “Carreras son carreras, y terminan cuando se baja la bandera de cuadros”. A máxima é reforçada pelo fato de as circunstâncias de 2018 não mais estarem presentes. Temos um ambiente político muito diferente. Mas, como sempre, cheio de eventos inesperados.
Dois deles se destacam. O primeiro é a pandemia de Covid-19, tema que entrou na agenda no início de 2020 e que continuará a afetar a política e a economia até as vésperas das eleições. Tanto pelo aspecto sanitário quanto pela questão econômica. O outro é a entrada de Lula no rol de pré-candidatos.
A potencial polarização Bolsonaro versus Lula — que existiu em 2018 — e a desorganização política dos partidos de centro nos remetem a uma história conhecida. Mas, talvez, o cenário não seja tão óbvio.
A demora na queda da taxa de mortalidade e a lentidão no processo da vacinação terão reflexos sérios na construção de narrativas. E a CPI da Pandemia, mesmo que, eventualmente, seja tutelada por uma maioria governista, servirá de palanque para ataques ao governo. O governo, pelo seu lado, ainda enfrenta a indefinição sobre como a economia vai se comportar em 2022. No centro, a falta de um candidato natural e a desunião dos partidos são enigmas a ser resolvidos. A fragmentação da esquerda também é uma questão.
Todos os problemas hoje estão ocorrendo da porta para dentro nos arraiais políticos. Enquanto isso, o eleitor não polarizado assiste ao desenrolar da história e aguarda a passagem do tempo para tomar a sua decisão. O espaço para eventuais candidaturas surpreendentes e alianças potencialmente improváveis ainda está em aberto. Afinal, o Brasil não cansa de surpreender.
Publicado em VEJA de 21 de abril de 2021, edição nº 2734
Folha de S. Paulo: Mulheres representam 72% dos influenciadores brasileiros, mostra estudo
Eduardo Marini, Folha de S. Paulo
O influenciador médio brasileiro é uma mulher cisgênero (que se identifica com o sexo biológico com o qual nasceu), possui entre 25 e 34 anos de idade, nasceu no estado de São Paulo e publica conteúdo sobre maquiagem e cosméticos.
Segundo levantamento feito pela Squid, empresa especializada em marketing de influência, as mulheres são maioria no ramo: representam 72,2% dos influenciadores cadastrados em sua base de clientes, que hoje conta com mais de 50 mil nomes. Homens correspondem a 24,1% e outros gêneros a 3,3% do total.1 5
Infográfico sobre influenciadores da Squid - Dezembro de 2020
O percentual de influenciadores e influenciadoras trans é muito baixo: 0,1% no caso das mulheres, e 0,05% no caso dos homens. De acordo com Rafael Arty, diretor comercial da Squid, esses números devem-se ao fato de que as ferramentas de autodeclaração são muito recentes, além da falta de visibilidade desses grupos dentro da sociedade, incluindo não-binários e outras identidades de gênero.
Neste estudo, a Squid não comparou aspectos étnico-raciais, como a quantidade de influenciadores brancos e não-brancos, mas uma pesquisa de agosto de 2020 da Black Influence, Sharp, Site Mundo Negro, Squid e YOUPIX constatou algumas desigualdades, como no caso dos criadores de conteúdo pretos, que recebem cachês menores mesmo possuindo base e engajamento similares aos brancos e ainda são menos contratados para ações publicitárias, além dos ataques racistas que recebem constantemente.
Ainda assim, diversidade e empoderamento têm sido alguns dos temas que mais cresceram nos últimos anos, em especial durante a pandemia, de acordo com a Squid. Apesar de o carro chefe dos influenciadores ainda ser ligado à estética (maquiagem, moda e beleza detêm quase 28% deles), os temas e nichos estão se diversificando. Feminismo e literatura negra são dois assuntos que são mais fáceis de encontrar conteúdo atualmente. 1 9
A pesquisa abordou ainda a faixa de seguidores dos influenciadores. Na Squid, 77% dos cadastrados têm até 30 mil seguidores, e menos de 1% possuem mais de 500 mil. Esses dados indicam uma mudança no marketing de influência, segundo Rafael Arty.
“Antes, no que a gente chama de marketing de influência 1.0, costumava-se pegar um influenciador macro, alguém que tivesse um número enorme de seguidores, e colocar como representante de certa marca. Depois, começamos a olhar melhor para as métricas de engajamento, não só as expostas publicamente no perfil. Hoje, muitas empresas já preferem fazer campanhas com vários microinfluenciadores ao mesmo tempo, que mesmo pequenos, conversam bem com seu público e conseguem passar a mensagem da empresa de maneira mais assertiva do que um macro influenciador faria com um público massivo.”, conta o diretor da Squid.
Bruno Boghossian: Guedes perdeu a chave do cofre
Ministro acumulou adversários e aprofundou processo de esvaziamento político
Paulo Guedes nunca foi conhecido pela habilidade política. Antes de tomar posse, o ministro despertou a má vontade dos parlamentares ao sugerir que daria "uma prensa" no Congresso para aprovar suas propostas. Já no cargo, ampliou esses atritos e passou a sofrer oposição de outros integrantes do próprio governo. Agora, ele também parece ter perdido a chave do cofre.
A disputa pelo controle do Orçamento é o capítulo mais recente do processo de esvaziamento político de Guedes. Na competição por recursos e emendas, o ministro acumulou adversários dentro e fora do governo. Até aqui, a maior parte desses rivais obteve mais sucesso do que o chefe da equipe econômica.
Dependente do Congresso, o governo fez concessões aos parlamentares na distribuição da verba deste ano. Mas tudo indica que Guedes prometeu mais do que estava disposto a cumprir. O ministro abriu mão do controle de uma fatia adicional de R$ 16,5 bilhões no Orçamento, mas os deputados e senadores aumentaram esse valor para R$ 26,5 bilhões.
Emparedado, o ministro fez uma cobrança ao Congresso. Os parlamentares aceitaram recuar para os R$ 16,5 bilhões originais, mas Guedes pediu mais, sob o argumento de que o valor não cabia nas contas. Ninguém engoliu a manobra. O presidente da Câmara afirmou que o ministro "se excedeu no seu acordo".
Além de ter criado um impasse com o Legislativo, Guedes também foi obrigado a assistir ao fortalecimento de um de seus principais desafetos. Em dobradinha com o Congresso, o ministro Rogério Marinho (Desenvolvimento Regional) triplicou a previsão de despesas de sua pasta. O chefe da equipe econômica quer cortar parte desse ganho.
Agora, Guedes precisa convencer Jair Bolsonaro a vetar os aumentos. Ainda que consiga, o chefe da equipe econômica sai desgastado dessa novela. Depois de contratar brigas com o presidente da Câmara, o presidente do Senado, caciques do Congresso e outros ministros, ele já deve ter percebido que está em minoria.