Bolsonaro

Hélio Schwartsman: A CPI da Covid será um sucesso?

Se fixarmos o objetivo no impeachment, receio que a resposta seja não

Com o passar dos anos, tornei-me cético em relação a CPIs. Há tempos que eu não vejo uma delas produzindo bons resultados.

Uma das razões para isso é que investigar é uma tarefa técnica, que requer uma expertise só raramente encontrada entre parlamentares. O ambiente escancaradamente público e politicamente carregado do Parlamento tampouco ajuda em apurações, que costumam avançar mais quando conduzidas com discrição e objetividade.

CPI da Covid, porém, é diferente. E é diferente porque a investigação já está pronta. Aliás, dizer "está pronta" é um eufemismo. Tanto o TCU como o MPF já analisaram a atuação do governo na pandemia e produziram documentos pouco abonadores à conduta das autoridades do Executivo. A imprensa também fornece boas peças.

Nos últimos dias, o próprio governo, em mais uma demonstração de inabilidade, deu de mão beijada para a CPI um roteiro com 23 vulnerabilidades a explorar. No que talvez seja inédito, existem até estudos acadêmicos a subsidiar o trabalho dos parlamentares, apontando falhas graves na gestão da epidemia e correlacionando falas negacionistas do presidente a aumentos nos óbitos. O relator da CPI precisará só juntar tudo isso e selecionar as melhores partes.

Isso significa que a CPI da Covid será um sucesso? Depende do que se define como sucesso. Se considerarmos que a meta é apenas gerar um relatório poderoso, a resposta é provavelmente sim. Mas, se formos um pouco mais ambiciosos e fixarmos o objetivo no impeachment, aí eu receio que a resposta seja não.

O que manda é a política. E o mais provável é que as correntes majoritárias no Parlamento prefiram usar a CPI para manter uma espada de Dâmocles sobre a cabeça de Bolsonaro e arrancar vantagens do governo.

É pena, porque qualquer coisa menos que o impeachment significará que a sociedade acha normal e aceitável ter um presidente que fez tudo o que Bolsonaro fez.


Elio Gaspari: O caos de Bolsonaro

No Brasil, ao padecimento sanitário juntou-se um governo negacionista e caótico

Outro dia, o capitão perguntou:

— O que eu me preparo?

E respondeu:

— Não vou entrar em detalhes, um caos no Brasil.

Em março do ano passado, Bolsonaro reclamava da “histeria” diante do vírus, levantava o estandarte do Apocalipse, com uma frase que explica seu comportamento diante da pandemia:

— Vai ter um caos muito maior se a economia afundar. Se a economia afundar, afunda o Brasil. (...) Se acabar a economia, acaba qualquer governo. Acaba o meu governo.

Entre as duas referências de Bolsonaro ao caos, morreram perto de 400 mil pessoas, e a população aguentou o tranco com sofrimento e paciência.

Todos os povos e governos sofrem com a pandemia. No Brasil, ao padecimento sanitário juntou-se um governo negacionista e caótico. Fritou três ministros da Saúde, combateu o distanciamento, menosprezou as máscaras e enalteceu as virtudes da cloroquina.

Uma coisa é um governo que se acautela diante do risco de um caos. (Nesse caso, os detalhes são bem-vindos.) Bem outra é apreciar o caos, até mesmo desejando-o.

Em apenas uma semana, o governo de Bolsonaro produziu alguns episódios sinalizadores de um governo que, até mesmo por inépcia, patrocina o caos.

O programa Pátria Solidária, aninhado no Palácio do Planalto com o objetivo de recolher doações para enfrentar a pandemia, gastou R$ 9,6 milhões para fazer propaganda de si e arrecadou R$ 5,89 milhões.

A Secretaria de Comunicação do Planalto não comentou a discrepância. Até há bem pouco tempo, ela era dirigida pelo doutor Fabio Wajngarten. Ele acabara de dar uma entrevista contando que, em setembro, tentou apresentar ao Ministério da Saúde uma proposta do laboratório Pfizer. Já haviam morrido 123 mil pessoas:

— Se o contrato da Pfizer tivesse sido assinado em setembro ou outubro, as vacinas teriam chegado no fim do ano passado. (...) Incompetência e ineficiência.

Dias depois, o ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello foi fotografado num shopping center de Manaus sem máscara, fazendo piada com a transgressão:

— Onde se compra isso?

O general estava nas redes, e seu sucessor, Marcelo Queiroga, de máscara, contava que faltavam vacinas para a segunda dose em alguns estados porque eles seguiram a recomendação do ministério de avançar sobre os estoques.

Bolsonaro sonhava com crises antes mesmo da pandemia. Com ela, transmutou-se num São Jorge cavalgando o cavalo branco para matar o dragão e salvar a princesa. Ela está lá, de máscara, e o dragão não apareceu. Os desconfortos que afligem o governo decorrem da armadura desconjuntada do Santo Guerreiro, de sua lança torta e de uma sela visivelmente desconfortável.

A marquetagem do Pátria Solidária, as revelações de Wajngarten, a conduta de Pazuello e a falta de vacinas refletem um caos que está no governo, não vem de fora dele.

A Subchefia de Articulação e Monitoramento da Casa Civil de Bolsonaro encaminhou a 13 ministérios uma pauta de 23 perguntas que poderão aparecer na CPI da Covid, pedindo pronta resposta.

Lê-las é um passeio pelo caos da desarticulação e da falta de gestão do governo. Algum membro da CPI bem que poderia devolvê-las, perguntando por que a curiosidade só surgiu agora.

Nas próximas quatro quartas-feiras, o signatário usufruirá o isolamento e o ócio, sempre pesquisando as virtudes da cloroquina.


Cristiano Romero: Construção - No meio do caminho tinha uma pedra

Oligopólios jogam preços nas alturas e freiam setor

Responsável por cinco a 6% do Produto Interno Bruto (PIB) do país, a construção civil foi o setor que mais gerou empregos formais no ano passado - 106 mil. Considerando toda a cadeia produtiva da construção, o setor representa 10% de tudo o que economia brasileira produz. Em 2014, quando se verificou o pico recente do setor, chegou a 11,5%.

A participação da cadeia da construção no PIB só é menor que a da agroindústria. Outro dado relevante é a fatia do setor na Formação Bruta de Capital Fixo (FBCF), isto é, na taxa de investimento da economia em bens de capital (máquinas e equipamentos) e construção: 50%, segundo a média histórica.

O setor de construção, como se sabe, é o que mais gera empregos no país: 12,5 milhões no total. Seu efeito multiplicador na economia é formidável. Estima-se que cada R$ 1,00 investido na construção civil gere R$ 1,88 na atividade. Para cada 10 empregos diretos gerados no setor, são gerados outros cinco indiretos. Embora seja um setor pouco importador de materiais e serviços, é exportador de bens e serviços.

A cadeia da construção compreende quatro áreas. Na primeira, estão as construtoras, incorporadoras e prestadoras de serviços auxiliares de construção, responsáveis por realizar obras de edificação e infraestrutura. Na segunda, estão as indústrias que produzem materiais de construção, máquinas e equipamentos.

Na terceira parte da cadeia, está o comércio varejista e atacadista. Por fim, há as atividades de prestação de serviços, tais como serviços técnico-profissionais, financeiros e de seguros.

Abrindo-se a participação de cada segmento, temos aproximadamente o seguinte: a construção responde por 61% do setor, seguida pela indústria de materiais (11,4%), o comércio de materiais (9%), os serviços (5%), o segmento de máquinas e equipamentos (0,6%) e por outros fornecedores (13,1%). Em termos de fatia do PIB, a construção lidera com 6,4%, seguida de materiais de construção (2,8% do PIB), serviços (0,7%), máquinas e equipamentos (0,2%) e outros materiais (0,1%).

Há uma forte correlação positiva entre a variação do PIB brasileiro e o setor de construção. A história mostra que, quando o PIB sobe, o PIB da construção cresce acima de sua variação; quando o primeiro cai, o do setor cai abaixo da queda da economia.

Depois de atingir o pico em 2014, primeiro ano da grande recessão brasileira (2014-2016), que nos subtraiu mais de 7% do PIB e desorganizou a economia de tal maneira que, até hoje, não houve efetivamente recuperação digna desse nome, o setor da construção amargou longo e penoso declínio. No fim do ano passado, estava 36,18% abaixo do pico.

Mas, foi em 2020, o primeiro ano da pandemia _ nenhum cidadão imaginou que, na Ilha de Vera Cruz, não teríamos vacina após 14 meses de tragédia _, que o setor começou a reagir graças a dois fatos inusitados: brasileiros de praticamente todas as classes sociais aproveitaram a economia forçada de dinheiro, provocada pelo isolamento social, para fazer reformas e também para construir e o fato de a taxa de juros dos financiamentos imobiliários está nos menores níveis da história.

Números da Câmara Brasileira da Indústria da Construção (CBIC) mostram que, no quarto trimestre de 2020, os lançamentos de novas unidades avançaram 33,2% em relação ao trimestre anterior, enquanto as vendas aumentaram 3,9%. Quando comparado ao quarto trimestre de 2019, lançamentos e oferta final caíram, mas isso não é necessariamente ruim.

"O mercado imobiliário vendeu mais 10 % em 2020, comparado com 2019; os lancamentos reduziram 13 %, logo, precisaremos construir o que foi vendido e repor o estoque, portanto, 2021 seria um ano para trabalhar à vontade", explica Luiz Carlos Martins, presidente da CBIC. "No caso de obra pública, os governos estaduais estão com dinheiro, estão contratando e pagando em dia."

O bom desempenho gerou confiança no setor, como demonstra o gráfico. Índice acima de 50 pontos mostra expectativa dos participantes do mercado de crescimento nos próximos meses. Mas, já começou a cair e a razão é uma só: a explosão dos preços dos insumos. Até as pedrinhas da rua sabem que o custo de insumos cresceu uma barbaridade porque tanto a sua produção doméstica quanto a internacional recuaram no início da pandemia.

Olhando a situação mais de perto, porém, o que se vê é muito feio: aprveitando-se de seu poder de mercado, isto é, do grau de concentração e das barreiras que Brasília impõe a concorrentes estrangeiros, várias indústrias, a siderúrgica e a de resinas à frente, estão tirando proveito do momento para elevar suas margens de lucro. O problema é que a prática asfixia o setor e o inviabiliza.


Adriana Fernandes: Com trocas em ministério, Guedes quer melhorar diálogo com o Congresso

Mudanças podem melhorar o ambiente de negociação, mas o Centrão segue com a pressão pela diminuição dos domínios de Guedes

A possibilidade de formação de um novo trio na linha de frente da política fiscal – Bruno Funchal, Jefferson Bittencourt e Ariosto Antunes Culau – é a aposta do Ministério da Economia para melhorar o diálogo com o Congresso, a Esplanada dos Ministérios, o mercado e também a sociedade.

Os três têm em comum o fato de serem técnicos com robusto conhecimento na área fiscal, mas também contam com experiência de diálogo – habilidade que faltava ao secretário Especial de Fazenda, Waldery Rodrigues.

Waldery deixará o cargo em mais uma reformulação da equipe econômica, na sequência da saída de vários secretários que integraram o time original, formado na transição de governo no final de 2018.

Entre os técnicos do Ministério da Economia que lidam diariamente com o “chão de fábrica” dos crescentes problemas orçamentários e fiscais, a troca é considerada bem-vinda, e os nomes dos substitutos considerados muito bons. Uma janela para diminuir o desgaste sofrido ao longo do ano no embate orçamentário e das medidas econômicas de combate à pandemia, como o auxílio emergencial

O momento é particularmente difícil porque os próximos meses serão de arrocho nas contas do governo depois do corte no Orçamento para atender ao acordo político com o Congresso e manter o aumento das emendas parlamentares. Se não segurarem esse rojão, o acordo não vai funcionar.

A pressão é grande porque há risco de paralisação de programas importantes, como o Censo de 2021 e tantos outros, o que tem ampliado o desgaste do ministro da Economia, Paulo Guedes, e da sua equipe.

Há também um clima de revolta entre os demais ministros com o corte das despesas e pressão política para divisão do “Superministério da Economia”, criado no início do governo.

O diagnóstico é que Guedes precisa ganhar tempo até que a situação fique mais favorável para começar a reversão do bloqueio nos gastos que foi feito no Orçamento. Esse aperto fez parte do acordo fechado entre o Planalto e as lideranças do Centrão para a sanção do Orçamento (com vetos parciais).

No meio da briga por recursos e discussões eternas sobre regras fiscais para liberação de gastos fora do teto de gastos, que se prolongam desde o ano passado, lideranças governistas e ministros da ala política do governo pediram a cabeça de Waldery. Os políticos não o enxergavam como interlocutor e reclamavam da falta do antigo Ministério do Planejamento para uma negociação mais “olho no olho”. 

No Ministério da Economia, já tem tempo que ninguém mais escondia os problemas dentro da equipe com Waldery, antes mesmo de o presidente Bolsonaro o ter “demitido” por ter antecipado medidas não acordadas internamente sobre o congelamento de benefícios previdenciários para abrir espaço para medidas de corte de gastos. 

A relação com Waldery sempre foi conflituosa e o ministro, na realidade, perdeu o timing dessa troca no final do primeiro ano do governo. Como não o fez, a história ficará pelo último ato. As mudanças podem melhorar o ambiente de negociação, mas as lideranças do Centrão seguem com a pressão pela diminuição dos domínios de Guedes.

*REPÓRTER ESPECIAL DE ECONOMIA EM BRASÍLIA


Fernando Exman: O receituário do diversionismo

Agenda positiva visa proteger imagem de um governo acossado

Acossado por uma comissão parlamentar de inquérito, em tensão permanente com os outros Poderes e em meio a dificuldades para combater tanto a pandemia quanto seus efeitos econômicos, o governo fará de tudo para lançar, dia após dia, notícias que busquem desviar a atenção dos problemas que acometem o país.

O programa de governo deu lugar a um plano de sobrevivência política. Este, por sua vez, permanece a reboque das turbulências que a própria administração Jair Bolsonaro cria.

Começaram a usar a receita do bolo mais servido na capital federal em tempos de crise: quando há algo errado, coloca-se a culpa na comunicação. Em seguida, é retirada do bolso do paletó uma lista com medidas concretas ou propostas genéricas, muitas das quais com poucas chances de prosperar sem o uso de fermento. Pouco importa. A finalidade é agradar o paladar do investidor ou melhorar a imagem do Brasil na vitrine.

Arremata-se culpando inimigos imaginários ou terceirizando responsabilidades. E isso é feito sem pudor, mesmo que riscos tenham sido identificados previamente e soluções, sugeridas.

Já foi recuperada da geladeira a reforma tributária. É tarefa inglória encontrar algum governador que vislumbre um debate sereno da proposta ou até mesmo a sua aprovação no curto prazo.

Outras ideias começam a ser colocadas em prática. Bolsonaro assinou, enfim, a medida provisória que reinstitui o Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda (BEm). Não eram poucas as críticas, entre empresários, à demora na reedição do pacote. Ao promover uma reunião extraordinária do Conselho do Programa de Parcerias de Investimentos (PPI), colegiado responsável pela implementação de medidas de desestatização, o Executivo tenta também iluminar novamente a agenda liberal, que vem perdendo sua luz própria.

O mesmo esforço se vê na área ambiental, onde o governo Jair Bolsonaro esboça uma inflexão. Mas precisa correr contra o tempo, se de fato estiver decidido a calibrar as políticas públicas voltadas ao setor.

A cúpula organizada pelos Estados Unidos acabou por mostrar ao governo o que já era evidente para a iniciativa privada. Sem ter acesso direto ao colega americano, o presidente Jair Bolsonaro precisou registrar por escrito a nova abordagem que pretende dar ao tema. Acabou tendo uma passagem apenas protocolar pelo encontro, onde fez uma série de promessas que passarão a ser objeto de monitoramento.

No entanto, além de lidar com suas próprias idiossincrasias, o governo brasileiro vai precisar se apressar para implementar novas ações e torná-las perceptíveis ao público. Isso porque não demorará a chegar o período do ano em que ocorrem as queimadas na Amazônia e em biomas como o Cerrado ou o Pantanal. Existe ainda a preocupação com a possibilidade de haver alguma descontinuidade das ações das Forças Armadas na Amazônia.

A Operação Verde Brasil 2, voltada a combater ilícitos ambientais e focos de incêndio, expira na sexta-feira. Setores do governo defendem a edição de um decreto instituindo uma nova operação de garantia da lei e da ordem, com o intuito de assegurar que o Estado permaneça presente na região. Até ontem, esse ato insistia em ficar de fora das páginas do “Diário Oficial da União”.

O que já se sabe é que pelo menos será feita uma transição baseada no “Plano Amazônia 2021/2022”, documento aprovado depois de discussão no Conselho Nacional da Amazônia Legal.

Quem comanda o colegiado é o vice-presidente Hamilton Mourão, que deu maior peso institucional às discussões e reforçou, por exemplo, a percepção sobre a necessidade de se proporcionar maior protagonismo à Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA). Essa é uma ideia defendida há tempos tanto por diplomatas como por militares, a despeito das diferenças políticas existentes entre os governantes dos oito países que integram a instituição - Bolívia, Brasil, Colômbia, Equador, Guiana, Peru, Suriname e Venezuela.

Na visão deles, depois da implosão da União das Nações Sul-Americanas (Unasul) e do Conselho de Defesa Sul-Americano, a OTCA poderia servir de plataforma institucional para coordenar as políticas regionais, inclusive quanto a iniciativas de segurança, controle fronteiriço e combate a ilícitos transnacionais.

Curiosamente, a organização é sediada em Brasília, mas o país vinha desdenhando de sua potencialidade. Se aproveitada na plenitude, a OTCA pode recolocar o Brasil no debate ambiental, fortalecendo sua posição na região e dando eco ao discurso nacional nos organismos multilaterais.

A instituição vem mantendo contato direto com a União Europeia, instituições financeiras e agências das Nações Unidas. Pretende ainda atuar como entidade observadora na Assembleia-Geral da ONU. Ou seja, a ideia é promover o posicionamento conjunto dos países amazônicos nos ambientes multilaterais, inclusive defendendo bandeiras caras ao Brasil, como o aumento das contribuições financeiras de países desenvolvidos.

Enquanto isso, ela já tem agido, no limite de suas capacidades, na promoção do desenvolvimento sustentável. Desenvolve projetos voltados à água, ao saneamento básico, à proteção das florestas e ao combate a incêndios, mas precisa de um impulso político ainda maior para ampliar seus horizonte de atuação.

Isso consta do mapa estratégico produzido sob a coordenação de Mourão, que acabou sem os instrumentos executivos necessários para assegurar a implementação dessas e de outras diretrizes definidas no âmbito do Conselho Nacional da Amazônia Legal. Seu papel nunca agradou alguns ministros, mas agora isso pode até ser útil para Bolsonaro. Não será surpresa se o vice for injustamente responsabilizado pelos problemas que possam surgir, até porque o destino eleitoral de Mourão já está excluído dos planos do presidente.


Ricardo Noblat: CPI da Covid-19 decola e ameaça abater o governo que voa baixo

Um bando de amadores

Sem querer ofender os pets, 27 de abril de 2021 ficará marcado como mais um dia de cão para o presidente Jair Bolsonaro e seus filhotes. Tudo aconteceu no período da manhã, a saber:

1) O Senado instala a CPI da Covid-19 com Renan Calheiros (MDB-AL) como relator e o governo em minoria;

2) O general Luiz Eduardo Ramos, chefe da Casa Civil, confessa que se vacinou às escondidas para que não pegasse mal para ele;

3) O ministro Paulo Guedes, da Economia, diz que o vírus é chinês e que a vacina americana é melhor do que a vacina chinesa.

Enquanto isso, distraído, Bolsonaro confraternizava bem humorado com devotos nos jardins do Palácio da Alvorada e plantava mais uma notícia falsa, desta vez contra o PT.

Segundo ele, há um vídeo que mostra Lula, Dilma, Haddad, e atrás deles, dois homens se beijando. “Beijo de língua”, garantiu, “coisa que nem homem e mulher fazem em público”.

Pensando melhor, talvez não tenha sido mais um dia de cão para Bolsonaro e seus descendentes, mas um dia normal na vida de um governo radicalmente diferente dos que o antecederam.

O senador Flávio Bolsonaro (Patriotas-RJ) chamou de “ingrato” Rodrigo Pacheco (DEM-MG) porque ele pouco fez de fato para barrar a criação da CPI.

Lembrou que Pacheco teve a ajuda do seu pai para se eleger presidente do Senado, e que por isso “deveria ter nos procurado” para avaliar a conveniência ou não da CPI.

Ingrato foi Flávio. Pacheco só concordou com a instalação da CPI por ordem do Supremo Tribunal Federal. O Tribunal Regional Federal derrubou a liminar de um juiz que tentou abortar a CPI.

Bolsonaro, pai, e seus filhos zero estão convencidos de que Pacheco cobiça a presidência da República nas eleições do ano que vem, e que por isso se distancia deles.

“Vão usar os caixões dos quase 400 mil mortos para fazer política contra o governo federal”, acusou Flávio. Como se seu pai não usasse a pandemia para fazer política também.

O senador da rachadinha teve que engolir uma invertida que levou de Calheiros: “É a primeira vez que [Flávio] se preocupa com aglomeração… Deve estar saindo do negacionismo”.

Nada superou, porém, as intervenções do general Ramos e de Guedes durante a reunião do Conselho de Saúde Suplementar, transmitida ao vivo no site do Ministério da Saúde.

Os dois não sabiam da transmissão. Quando souberam, já era tarde. O vídeo foi retirado do site, mas se espalhou nas redes sociais, o que dá a medida do amadorismo dessa gente.

Primeiro, Ramos afirmou:

“Tomei escondido, porque a orientação era para não criar caso, mas vazou. Eu não tenho vergonha, não. Tomei e vou ser sincero. Como qualquer ser humano, eu quero viver, pô. E se a ciência está dizendo que é a vacina, como eu posso me contrapor?”.

Não satisfeito, acrescentou:

“Eu estou envolvido pessoalmente tentando convencer o nosso presidente [a tomar a vacina], independente de todos os posicionamentos. Nós não podemos perder o presidente por um vírus desse. A vida dele, no momento, corre risco”.

Entre os 3.500 servidores da presidência da República, 460 já se infectaram com o vírus, o que representa uma taxa de contaminação de 13% – maior do que a média brasileira, de 6%.

A China é o maior parceiro comercial do Brasil no mundo. Mexeu com ela, mexeu com o agronegócio. A Coronavac representa 84% das vacinas aplicadas no Brasil até agora. Guedes tomou.

Mas isso não o impediu de acicatar os chineses:

“O chinês que inventou o vírus. E a vacina dele é menos efetiva do que a americana. O americano tem 100 anos de investimento em pesquisa. Então, os caras falam: ‘Qual é o vírus? É esse? Está bem, decodifica’. Está aqui a vacina da Pfizer. É melhor”.

A vacina da Pfizer não foi desenvolvida por americanos, mas por alemães de origem turca – o casal de cientistas que é dono da empresa BioNTech. Guedes não sabe o que diz.

Quanto à suposição de que o vírus foi inventado por chineses, a Organização Mundial da Saúde considera a hipótese improvável. Como Bolsonaro, Guedes admira tudo que seja “Made in USA”.

O Brasil registrou 3.120 mortes pela Covid-19 nas últimas 24 horas, totalizando 395.324 óbitos desde o início da pandemia. Faltam vacinas e o Ministério da Saúde está perdidinho da Silva.

Anunciou que em breve estaria vacinando 1 milhão de pessoas por mês. Depois recomendou que se aplicasse a 2ª dose em quem não tomou a 1ª. Recuou mais tarde, e agora voltou a recomendar.


Rosângela Bittar: Sinfonia em meio à barbárie

Livro de Aldo Rebelo transforma releitura da história política em instantâneo da atualidade.

No capítulo 12 do seu livro O Quinto Movimento – propostas para uma construção inacabada, a ser lançado nos próximos dias, o ex-ministro da Defesa Aldo Rebelo transforma o que seria uma releitura da história política brasileira em um instantâneo da atualidade. Sua visão sobre os desafios impostos à democracia revela que não tem sido fácil mantê-la sob Jair Bolsonaro.

Sem citá-lo nominalmente, traça um retrato da ameaça à República exercida pelo comandante supremo das Forças Armadas, o presidente. As instituições democráticas, na sua avaliação, perdem prestí- gio, identidade e substância.

Bem escorado na disciplina de sua formação marxista, a que agrega experiência e trânsito entre políticos de todas as tendências, Rebelo defende, entre suas principais teses, a construção de um governo forte. Tão forte quanto democrático, com equilíbrio entre os poderes.

O problema não está só no Executivo. A situação crítica em que se transformou a atuação do Supremo Tribunal Federal (STF), alvejado por todos os lados tanto pelo Executivo quanto pelo Legislativo, está arrolada como um dos maiores desafios. “Após a constituinte de 88, quando os militares se afastaram, procedeu-se à judicialização da política e, por consequência, a politização do Judiciário.”

Este desequilíbrio permanece e se amplia a cada dia, em meio à turbulência de um país de política convulsionada, em que recrudesce e se aprofunda o confronto entre parlamentares, magistrados e presidente da República. Problemas claramente expostos nos episódios mais recentes, que culminaram, ontem, com a instalação da CPI da Covid, no Senado, e a abertura, na Câmara, do debate sobre o episódio da apreensão de madeira ilegal na Amazônia. Uma reação do Congresso ao massacre de ignorância que o governo Bolsonaro impõe à sociedade.

Enquanto se desenvolve esta luta de campo aberto, surge, da quarentena da pandemia que nos esmaga, o inesperado livro de testemunhos e reflexões de Aldo Rebelo, um roteiro completo para debater o Brasil.

Político que viveu, em extensão e profundidade, como protagonista, diferentes facetas da política brasileira, Rebelo reúne uma experiência singular. Líder estudantil da época da ditadura, exerceu a presidência da UNE, seis mandatos de deputado federal e a presidência da Câmara. Foi ministro da Defesa, do Esporte, da Ciência e Tecnologia, da Coordenação Política, funções em que entrou e de que saiu sem acusações ou processos.

Aldo Rebelo sistematiza os episódios, em seu livro, com a criatividade de quem escreve uma sinfonia. Mais do que um nacionalista, como definido por todos, desde sempre, é um patriota apaixonado. E amplia, a cada dia, a confiança no seu estilo de fazer política: rigor na atenção aos diagnósticos e tolerância nas soluções.

Os sentimentos que criou com relação ao Brasil e aos brasileiros se forjaram na cena de abertura do livro. “A primeira vez que me dei conta do mundo, estava sobre um cavalo. Meu pai trabalhava em uma fazenda. Lembro que ele chegou a cavalo e me pôs montado. Eu devia ter uns três anos e vi outra dimensão do mundo. O mundo visto de cima: o rio, o horizonte, os campos. Data dessa época minha admiração, respeito e paixão pelos cavalos.”

Escrito durante a quarentena da pandemia, que Aldo Rebelo passou no Sítio Amazonas, em Viçosa, Alagoas, em companhia de sua mãe e sua mulher, o livro, de 249 páginas, tem bela ilustração de Elifas Andreato e Agélio Novaes e edição da JÁ, de Porto Alegre. Os 21 capítulos de O Quinto Movimento permitem uma visão otimista da história do Brasil, com intervenções de fatos do presente que lhe dão dinamismo.

No repertório que apresenta, com argumentos de plataforma, figuram economia e futebol, mulheres e índios, militares e diplomacia, educação e desigualdade, agricultura e Amazônia, campos nos quais se especializou nos últimos mandatos.


Carlos Melo: Fragilidade política e ruas definirão jogo

CPI é território em disputa: a oposição quer enfraquecer e, se puder, derrubar o governo; governistas agem na contenção de desgastes do Executivo. As condições iniciais tampouco independem de circunstâncias mais gerais, localizadas no governo e no país. Ao final, serão as condições de contorno – a insatisfação popular e a fragilidade política – que definirão o jogo.

Sempre houve abuso na utilização de CPIS. Oposições sem projeto e oportunismo fisiológico as usaram descoladas do contexto mais amplo. Normalmente, “deu em nada”. Mas, o oposto também se deu: a “CPI do PC Farias” derrubou Collor; a “CPI dos Correios” resultou no mensalão e destroçou promissoras lideranças do PT. Nos dois casos, a insatisfação geral se dava para além do objeto da CPI.

Hoje, a população está recolhida ao isolamento social da pandemia. E, por enquanto, não há mobilização de rua, elemento que potencializa as CPIS. Mas, à parte disso, as condições de contorno são notoriamente insatisfatórias.

Em 60 dias, o País chegará a 500 mil mortes, infelizmente. A situação econômica é deplorável: desemprego e fome tomam o cotidiano das famílias. A base governista é arenosa, como se viu no conflito do Orçamento. O governo está internamente fracionado, ministros sob fogo cerrado. Velhos aliados estão ressentidos e a imagem internacional é péssima.

O presidente e seu séquito são máquinas de disparates. Campeões de tiros nos pés, se desviam a atenção, também agravam a situação. A inabilidade política e a incapacidade de articulação atingem patamares inéditos. Não faltam condições de contorno desfavoráveis para que a CPI prospere.

Faltam as ruas. Mas, quanto mais rápido avançar a vacinação, maior a possibilidade de grandes mobilizações. Arrastar a CPI e estender seus ritos será mais um erro. Com quatro senadores e tudo o que ocorre no País, será difícil dominar o território em disputa.

*Cientista Político, professor do Insper


Miguel Caballero: Os recados de Renan para Bolsonaro e os militares na abertura da CPI da Covid

Não faltaram recados e indiretas a Jair Bolsonaro, embora Renan Calheiros tenha evitado citar nominalmente o presidente da República. Em seu discurso na primeira sessão da CPI da Covid, o relator, porém, foi mais direto ao falar das Forças Armadas, botando o dedo diretamente na relação que é uma das principais bases de apoio do governo Bolsonaro.

Em dois anos e meio, os militares apoiaram o presidenciável Jair Bolsonaro, ocuparam muitos postos na administração federal e, em que pesem alguns estremecimentos e rompimento com os que foram demitidos do governo, os principais atritos entre o presidente e os militares se restringiram à preocupação manifestada fora dos microfones de que um mau desempenho do governo contamine a imagem das Forças Armadas. Esse ponto jamais esteve tão em risco como agora, e a CPI será um novo teste da solidez dessa aliança.

Não se trata de esperar que os militares, categoria longe de ser homogênea, abandone ou não o presidente. Mas o Exército, especialmente, dificilmente escapará do escrutínio da CPI, e precisará limitar até que ponto poderá dividir responsabilização sobre erros da crise com o governo.

A fala de Renan tocou em pontos sensíveis na caserna. Citou as “454 mortes em combate na Segunda Guerra Mundial”, episódio quase sagrados para as Forças, lembrando em seguida que diariamente morre um número maior de brasileiros. “O que teria acontecido se tivéssemos enviado um infectologista para comandar nossas tropas?”, perguntou Renan. “Porque guerras se enfrentam com especialistas, sejam elas bélicas ou sanitárias. A diretriz é clara: militar nos quartéis e médicos na Saúde. Quando se inverte, a morte é certa. E foi isso que aconteceu”.

É muito possível, porém, que a CPI tenha de ir além da participação de militares na gestão de Eduardo Pazuello. Embora Renan tenha dito em seu primeiro discurso que “não é o Exército que estará sob análise”, as investigações que a comissão fará sobre propaganda e distribuição de remédios sem eficácia cientificamente comprovada pode alcançar a compra de insumos e produção da hidroxicloroquina pela Força. O Exército, inclusive, já foi instado pelo Tribunal de Contas da União a, juntamente com o Ministério da Saúde, prestar esclarecimento sobre os gastos com a produção e distribuição do remédio.

Uma eventual convocação de um militar da ativa, fardado, a dar depoimento na mesa da CPI, é uma cena com grande potencial de danos à imagem das Forças Armadas.

O último comandante do Exército, general Edson Pujol, perdeu o posto após divergência públicas com o presidente no discurso de combate à pandemia.

No seu retorno ao protagonismo do noticiário político, Renan Calheiros reservou também outros recados. Um dos principais articuladores da resistência da classe política à Lava-Jato, repetiu no discurso ataques ao ex-juiz Sergio Moro — “não vou condenar ninguém por convicção” — e aos procuradores da antiga força-tarefa de Curitiba — “aqui nessa CPI não vai ter PowerPoint”.

Opositor ao governo Bolsonaro, o senador não perdeu a oportunidade de lançar uma alfinetada ao procurador-geral da República, Augusto Aras. Numa referência indireta à inércia da PGR para investigar possíveis crimes do presidente na pandemia, Renan afirmou que “CPIs vicejam quando os canais tradicionais de investigação se mostram obstruídos e isso é um ensinamento histórico”.

Por fim, fez também uma provocação a Bolsonaro, mesmo sem citá-lo. Ao elogiar o Supremo Tribunal Federal (STF) por ter garantido à minoria do Senado o direito de instalação da CPI após atingir as assinaturas necessárias, afirmou que o tribunal foi “terrivelmente democrático”, fazendo questão de usar o advérbio preferido do presidente sempre que afirma, há dois anos, que indicará um evangélico para o Supremo.


Bernardo Mello Franco: O primeiro milagre da CPI

A CPI da Covid já produziu seu primeiro milagre: transformou Flávio Bolsonaro num defensor do isolamento social. Ontem o senador tentou convencer os colegas a deixar a investigação para depois. “Por que não esperar todo mundo se vacinar?”, sugeriu.

A preocupação tardia com a doença não foi a única surpresa do discurso. Com a pele bronzeada pelas férias no Ceará, o primeiro-filho atacou o presidente do Senado, o relator da CPI e até a bancada feminina. O falatório não virou votos para o governo, mas escancarou o desespero do clã presidencial.

Pelo que se viu ontem, a família tem motivos para temer a comissão. Na sessão inaugural, a tropa bolsonarista levou um baile. Flávio ainda foi obrigado a engolir uma descompostura da senadora Eliziane Gama. Ela avisou que ali não era lugar para chute na porta e ironia machista. Só faltou dizer que o Zero Um não estava em Rio das Pedras.

Quando a reunião começou, os governistas se agarraram à liminar que impedia Renan Calheiros de assumir a relatoria. Foi uma tática desastrada. Como se previa, a decisão foi derrubada rapidamente. O senador se sentou na cadeira e desceu a lenha no Planalto.

“Vamos dar um basta aos suplícios, à inépcia e aos infames”, discursou. Ele atacou o negacionismo e prometeu “apontar culpados”. Num recado a Jair Bolsonaro, citou os genocidas Augusto Pinochet e Slobodan Molosevic. “O país tem o direito de saber quem contribuiu para as milhares de mortes, e eles devem ser punidos”, arrematou.

Renan também criticou a entrega do Ministério da Saúde ao general Eduardo Pazuello, que no domingo passeava sem máscara num shopping de Manaus. “A diretriz é clara: militar nos quartéis e médicos na saúde. Quando se inverte, a morte é certa”, disse.

O emedebista não se limitou à retórica: de cara, apresentou 11 requerimentos. A lista inclui a convocação de quatro ministros da Saúde, a requisição de documentos e o compartilhamento do inquérito das fake news.

No dia em que a comissão entrou em campo, Bolsonaro usou cinco palavras para defender seu desempenho na pandemia. “Eu não errei em nada”, garantiu. O capitão vai precisar de outro milagre para convencer a CPI.


Pedro Fernando Nery: Lula x Bolsonaro - Um guia para não se perder em comparações enganosas

Inevitavelmente, Bolsonaro sairá melhor nas comparações em que mais é mais, e Lula nas comparações em que menos é mais

Já começam as comparações descabidas de indicadores dos governos Lula e Bolsonaro. As comparações enganosas entre candidatos que governaram em períodos diferentes são populares em anos eleitorais, com cada grupo de apoiadores usando da falácia que melhor lhe cabe. Nesta coluna proponho um guia para o leitor não se perder por aí.

Vários indicadores relevantes do Brasil são afetados por tendências de longo prazo. Assim, diferenças entre o governo A e o governo B podem ter menos a ver com qualidades ou defeitos dos governantes e mais com a mera passagem do tempo. Um tipo particularmente popular – e irritante – é a comparação nominal de preços. Ela não faz sentido porque há a tendência de preços crescerem no tempo, e a inflação impede que simplesmente se compare reais em um período com reais muitos anos depois.

Comecemos essa análise sem ajustar valores pela inflação, o que economistas chamariam de valores nominais. Esses valores serão maiores no governo Bolsonaro do que no governo Lula – como era no governo Lula em relação ao governo FHC (objeto preferido de comparação de petistas em eleições passadas). Inevitavelmente, Bolsonaro sairá melhor nas comparações em que mais é mais, e Lula nas comparações em que menos é mais.

Por exemplo, apoiadores de Lula vão gostar de difundir os dados sobre preços de gasolina ou gás, cesta básica ou carne. O tiro sai pela culatra para as variáveis em que valores maiores são positivos. Defensores de Bolsonaro poderão comparar os valores do salário mínimo e do Bolsa Família – nominalmente maiores, até porque foram reajustados para contemplar a inflação.

Mesmo quando se desconta o efeito da inflação, o que chamamos de valores reais, ainda há razão para desconfiança nas comparações. Há um progresso natural em várias políticas públicas, além de uma tendência de aumento do gasto público ao longo dos anos. Dessa forma, a campanha de Bolsonaro poderá apresentar um valor real maior para o salário mínimo (R$ 1.100 x R$ 900) ou para o Bolsa Família/auxílio.

O gasto público como um todo também é maior no governo Bolsonaro – seja em termos absolutos ou seja em relação ao PIB. Isso vale mesmo para antes da pandemia: em Lula em geral esteve abaixo de 17% do PIB, em Bolsonaro sempre acima de 19%. O gasto social (Seguridade) aumentou: R$ 960 bilhões em 2019 x R$ 670 bilhões em 2010. Ao contrário dos estereótipos, o governo Lula apresentava gasto total menor, a dívida era mais baixa e se produziam superávits primários (economia de impostos para abater a dívida). Mesmo antes da pandemia, a projeção era de déficits para todo o “austero” governo Bolsonaro.

Chegamos a um outro tipo de tendência: as demográficas. O envelhecimento da população, que aumenta o gasto com Previdência, explica parte da alta do gasto entre os governos Bolsonaro e Lula (ou entre Lula e FHC, ou até entre Temer e Dilma). A mudança do número de jovens tem impacto ainda no número de homicídios, com tendência de queda (44 mil em 2020, 50 mil em 2010).

Na demografia ainda se observou nesse ínterim o crescimento da população em idade ativa. Por conta dessa tendência, por enquanto ainda é normal haver cada vez mais pessoas trabalhando (população ocupada), o que permite a um governante dizer que criou X milhões de empregos em relação a um antecessor. É possível que, mesmo com a pandemia, ao fim do governo Bolsonaro haja mais empregos em relação ao governo Lula, inclusive com carteira assinada. O mesmo para o PIB, espécie de agregado de trabalhadores.

Há outros avanços na sociedade relacionados ao progresso da ciência e tecnologia, da queda da mortalidade infantil ao aumento de acesso à celular.

Como comparar então governos diferentes? A leitura pode ser melhor usando taxas (para a variação de uma variável, como o salário mínimo, ou para uma proporção, como o desemprego). Para parte do eleitorado taxas são menos interessantes, e é então improvável que campanhas abram mão dos paralelos menos sofisticados.

Nesse tipo de análise, economistas se preocupariam também com a influência de fatores externos (como os preços das commodities que exportamos ou os juros internacionais), que podem ajudar ou atrapalhar um governo e responder por muito do seu êxito ou fracasso (como uma correnteza para um remador).

Há assim, na academia, os estudos que tentam isolar dos resultados econômicos de um país diversas influências, na busca pelo “contrafactual” de um conjunto de políticas (para o responder o que teria acontecido se um governo agisse diferente). Um tipo de análise em voga é o chamado “controle sintético”, em que um país é comparado em um período com um grupo de países semelhantes, para conjecturar o que teria acontecido de qualquer jeito ou o que decorre das ações, por exemplo, da política econômica ou do negacionismo em uma pandemia.

Preços aumentam, nosso país envelheceu, a tecnologia progride. Boa sorte ao leitor: a temporada das comparações impertinentes está começando.

*DOUTOR EM ECONOMIA


Ricardo José de Azevedo Marinho: O sutil desprezo de Biden a Bolsonaro

Como se sabe, não há protocolos estabelecidos para reuniões ou conferências de Zoom, ou para cúpulas virtuais de chefes de Estado. Há meses atrás, elas praticamente não existiam. Nem é preciso dizer que houve encontros entre dois ou mais líderes em videoconferências, mas as cúpulas são outra coisa. São encontros onde os governantes de seus países podem se encontrar, ouvir uns aos outros, trocar declarações formais e manter diálogos informais.

Portanto, por si só, a forma como Bolsonaro participou da Cúpula do Clima convocada por Joe Biden, apesar de não ser grave, é no mínimo complicada. Se o presidente brasileiro decidiu que não estava interessado em ouvir as intervenções de seus colegas — com exceção talvez de Biden e quiçá Kamala Harris —, não há regra escrita ou não escrita que ele tenha violado. Claro: ele não foi muito cortês ou respeitoso com os outros vinte chefes de Estado ou de governo — além dos participantes não governamentais — que intervieram no debate. Mas talvez o presidente brasileiro não tenha entendido que deveria ouvir os outros se esperava que eles o ouvissem. Não se tratava de turnos de falas, mas sim de uma mesa redonda. É como se a cúpula tivesse sido presencial, Bolsonaro só esteve presente na sala para sua própria participação.

É verdade que, em outros debates que poderiam ser assemelhados a este — com dificuldades —, os primeiros líderes não se ouvem pessoalmente. É o que ocorre, em particular, no debate geral da Assembleia Geral da ONU no final de setembro de cada ano em Nova York. É bem sabido que, com exceção dos primeiros dez ou quinze oradores, na sequência não há sequer um chefe de Estado, nem mesmo chanceleres, no grande salão da Assembleia.

Tampouco é grave que Bolsonaro tenha feito um discurso totalmente oposto às balizas da nossa política externa, em uma palavra, pró-mercado. Ninguém mais espera muito dele; todos os seus colegas já sabem que o presidente brasileiro está focado nos assuntos internos, que só se interessava pela esfera internacional por ocasião de Trump. Dito de forma clara: não importa muito o que diz ou deixa de dizer.

Mas existe uma tradição nessas questões. O Brasil e os Estados Unidos frequentemente participam de várias cúpulas juntos, como a OEA e vários outras. Não me lembro de nenhuma em que o presidente dos Estados Unidos, principalmente se fosse o anfitrião, não tenha estado na sala quando o brasileiro falava. Minha memória pode falhar, mas pelos mais de quarenta anos em que tenho seguido esses tópicos — eu duvido.

Por isso é grave — agora é — que Biden não estivesse presente durante a intervenção de Bolsonaro. Todos os sábios que previram que não haveria consequências dos vários desprezos de Bolsonaro a Biden por ocasião da eleição norte-americana, por ser um profissional rodeado de profissionais, devem reconhecer que alguém assim não está ausente da “sala virtual” sem saber a quem não vai ouvir. Biden não estava, com pleno conhecimento de causa.

Segundo consta, quando Bolsonaro se conectou à transmissão Biden já não estava mais presente na reunião. O presidente democrata deixou seu lugar após ouvir o representante da ONU e os chefes de estado de China, Índia, Reino Unido, Japão, Canadá, Bangladesh, Alemanha, França, Rússia, Coreia do Sul, Indonésia, África do Sul, Itália e Ilhas Marshall. Biden saiu pouco antes de ouvir Alberto Fernández, da Argentina, o primeiro presidente ibero-americano a falar na cúpula.

Existem níveis entre os países. Pelo menos para os Estados Unidos, o Brasil pertencia ao nível do grupo descrito. Agora ele está na companhia do Argentina, do México e das outras “repúblicas irmãs”. Como Barack Obama sempre disse, as eleições têm consequências; decisões de política externa também.

*Professor da Unyleya Educacional e do Instituto Devecchi