Bolsonaro
O Globo: ‘Tenho que lutar dez vezes mais do que pensei’, diz Guedes
Thiago Bronzatto,, Marcello Corrêa e Manoel Ventura, O Globo
BRASÍLIA — O ministro da Economia, Paulo Guedes, costuma medir em percentual o apoio de Jair Bolsonaro à agenda liberal. Nas eleições de 2018, era 100%. Depois, passou para 99% — e, aos poucos, essa taxa foi caindo. Até que, agora, está em 65%, embora nos momentos mais críticos o presidente tenha bancado o seu Posto Ipiranga no cargo.
Em entrevista ao GLOBO, Guedes reconhece que a aderência ao seu plano de trabalho em Brasília é menor que imaginava. “Estou tendo que lutar dez vezes mais do que eu pensei que fosse lutar”, afirma o ministro.
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Apesar disso, ele diz que não pensa em desistir. “Eu tenho um senso de responsabilidade muito grande”, afirma. E garante que não ficará só na defensiva — quer partir para o ataque com a sua equipe, colocando em prática medidas para reduzir o desemprego e a pobreza.
Guedes entrou na mira de senadores oposicionistas da CPI da Covid-19. Para ele, a comissão parlamentar de inquérito faz parte do jogo democrático, mas pode atrapalhar o andamento das reformas no Congresso.
Nesta entrevista, o ministro também antecipou medidas para incentivar a geração de empregos no país e criticou o questionamento no Supremo Tribunal Federal (STF) da autonomia do Banco Central.
Como o senhor vê o andamento da agenda econômica?
Eu tinha três hipóteses quando eu vim para cá. Uma, que o presidente ia apoiar o programa de uma aliança de conservadores e liberais. O presidente ia apoiar o programa liberal na economia. O presidente mesmo brinca que já foi 99%, agora é 97%, ele fala. Aí eu brinco: “Não, presidente, o senhor está em 65%”. A segunda hipótese é que temos um Congresso reformista, que ia nos ajudar a fazer as reformas. E não era só o Congresso. É o Congresso, o Supremo e a mídia, que era a minha terceira
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Como o seu trabalho se adapta a esse processo de reavaliação?
Na nossa democracia, eu continuo apostando. Eu só estou recalibrando. Eu tinha uma fé um pouco ingênua de que tudo seria muito mais rápido e de que as transformações seriam muito mais profundas. Eu estou só recalibrando tudo um pouquinho para baixo, mas sem mudar em nada a direção, a esperança. Só está me dando mais resiliência. Estou tendo que lutar dez vezes mais do que eu pensei que fosse lutar. Porque a aderência é um pouco menor do que eu pensei. Mas sem reclamação. É a democracia. Nas horas críticas, o presidente sempre nos apoiou. E o Congresso reformista tem nos ajudado também. Eu acredito na dinâmica de uma grande sociedade aberta.PUBLICIDADE
Mas por que a aderência é menor?
No capítulo um, o presidente está atento a dimensões políticas que arrefecem os impulsos de transformação. Você quer fazer uma transformação rápida, privatizar rapidamente. (Alguém diz) “Espera aí, tem um efeito político, uma reclamação aqui, outra ali”. Isso não é uma reclamação. É um reconhecimento de que quem manda é a política. E não é só o presidente. Eu, por exemplo, parti para uma reforma que teria capitalização na Previdência, e o Congresso disse “não”.
Por isso que eu atenuei um pouco o entusiasmo inicial. Porque tanto o presidente quanto o Congresso e a mídia vieram com menos ímpeto na direção das transformações. Aí o trabalho tem que ser muito maior para um resultado menor. Talvez essa seja a experiência de todo mundo que já passou pelo governo um dia. Quem está de fora olhando acha que tudo é mais simples.
Para o senhor, esse esforço vale a pena?
Sem falsa modéstia, eu sei que fui crucial em momentos decisivos. Eu tenho um senso de responsabilidade muito grande. Não só com a pessoa que confiou em mim, que foi o presidente. Mas principalmente com quem ele representa, que são 200 milhões de brasileiros. A nossa velocidade de resposta à crise, a nossa capacidade de fazer uma política econômica integrada, tudo isso só foi possível porque tinha esse comando único na economia.
O senso de responsabilidade e o compromisso com os brasileiros que estão lá fora são muito maiores que a preocupação de ficar bem na fotografia. É muito simples falar: “Não privatizaram duas ou três empresas, vou sair porque não estão me atendendo”. Como é que vai sair no meio de uma pandemia, com pessoas morrendo? Você está no meio de uma guerra e vai pensar: “Não estou bem na foto”?.
Não é razoável. Se tem gente que diz que eu fui avalista, tenho que ter um compromisso de entregar isso na próxima eleição do jeito que peguei. Eu peguei uma democracia e entregarei uma democracia. Peguei uma inflação alta e entregarei uma inflação mais baixa. Peguei o país crescendo 1% e o entregarei crescendo 3%. Peguei o país com 12 milhões de desempregados e o entregarei com dez. Temos que ter compromisso de melhorar o país.
Como o senhor recebe as críticas de que o seu plano não saiu do papel?
É um negacionismo dizer que não temos plano, que não estamos fazendo nada, que promete e não entrega. Isso dói. Isso é uma falta de reconhecimento ao trabalho, uma negação de coisas que são autoevidentes e empíricas. “Eles não fizeram”. Não fizeram o quê? A reforma da previdência? “Ah não, mas o Temer ia fazer”. Por que não fez? É uma negação dos nossos méritos. Nosso programa é reconhecido por todos e dizer que não o conhece é negacionismo ou uma desonestidade intelectual. Até as pedras sabem do nosso programa.
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O senhor perdeu os seus principais secretários. Por que houve mudanças em sua equipe?
Nós jogamos dois anos na defesa. Agora nós vamos para o ataque. Quais foram os dois anos na defesa? Controle na dinâmica de gastos do governo. Fizemos a reforma da Previdência, derrubamos a dívida/PIB e o déficit no primeiro ano. No primeiro ano de governo, o déficit primário era 2% do PIB e caiu pela metade. A dívida era 76,4% do PIB e caiu para 75,4%.
Não demos aumentos de salários por três anos e nenhum governo fez isso. Jogamos na defesa, travando as despesas. Depois de dois anos jogando assim, há desgastes naturais na equipe. O que aconteceu agora foi uma reavaliação do grupo, o que no setor privado acontece com uma frequência. Isso estava marcado para acontecer no início de 2020, mas a pandemia chegou. Nós não recuamos na nossa política e não nos retiramos de combate.
Nós podemos ser derrotados, mandados embora, aniquilados, vencidos. Mas não tem rendição. O lema do grupo é: “Não desistimos”. Então, se alguém desistir sai do grupo. O Salim (Mattar, ex-secretário de Desestatização) desistiu.
Há uma pressão política para recriar o Ministério do Planejamento?
Durante a campanha e logo depois da eleição do presidente, houve um esforço enorme para não deixar juntar os ministérios. Houve muito lobby contra a fusão dos ministérios, particularmente em relação ao Ministério da Indústria e Comércio. Agora, há, sim, algumas pressões para desmembrar.
Mas o presidente não conversa sobre isso comigo. Ele nunca conversou sério disso comigo. Ele só brinca. Fala: “Olha, você sabe que, volta e meia, tem pressão política aí para fazer isso”. Eu falo: “Eu sei, presidente”. Mas a nossa capacidade de implementar uma política consistente, como estamos fazendo, depende de estar junto. Se tiver comando duplo, triplo na economia, rapidamente vamos para a desorganização. Aí, você diz assim: “Bom, o Ministério do Planejamento não fez falta no Orçamento?”. Nenhuma.
E qual foi o problema do Orçamento?
O governo achou o eixo político de sustentação e começou a avançar. Aí veio o primeiro exercício de fazer o Orçamento juntos. Nesse exercício conjunto, o time mostrou seu desentrosamento. Eu falo que toda informação tem um sinal e um barulho. O barulho é que tem uma crise terrível, tremenda. A informação é que é o primeiro Orçamento elaborado por uma nova configuração política. É uma coalizão política tentando dar seus primeiros passos juntos. E isso está muito claro hoje. Alguns atores se excederam durante a elaboração do Orçamento.PUBLICIDADE
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O senhor disse que os chineses teriam ‘inventado’ o vírus da Covid-19. Essa declaração criou um ruído e o colocou no foco da CPI da Covid…
Criou. Desde o início do governo, falei que o Brasil ia dançar com todo mundo. Nunca houve movimento meu contra a China. Eu considero aquele comentário meu dentro de um contexto. Eu quis dar o exemplo de quando a economia de mercado é forte e robusta, ela consegue se adaptar em pouco menos de um ano e criar uma vacina ainda mais eficiente do que as vacinas produzidas na própria região que está muito mais habituada a esse tipo de doença. Aí desvirtuam tudo. Eu, aliás, tomei a CoronaVac.
Como o senhor vê a possibilidade de ser convocado pela CPI da Covid?
Eu fui nove vezes ao Congresso em tempo real durante a pandemia. Se me chamar, vai ser a décima vez. Eu quero elogiar a comissão mista (da Covid-19)do Congresso sob orientação do senador Confúcio Moura e do deputado Francisco Júnior. A CPI é parte do jogo democrático. Dito isso, usar isso que eu falei para confundir com CPI, eu acho um oportunismo. Quero fazer uma reflexão.
Estamos em meio à pandemia. Isso é equivalente a fazer um tribunal de guerra durante a guerra contra o vírus. Para mim, é inédito. Você acha que a classe política vai sair bem disso? Foi o que eu sempre falei: subir em cadáveres para fazer política numa hora dessas… Acho que a população brasileira não vai apreciar isso. Ela quer resolver o problema. Ela quer a preservação da vida e dos empregos.
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A investigação da CPI não é importante para corrigir os rumos das políticas públicas contra a pandemia?
Eu acho que levantar o tema, de que nós vamos fazer uma CPI, já estimularia a correção de rumos. Temos um desafio difícil pela frente: evitar que a politização da crise piore a gestão da crise. Vacinação em massa e reformas é o ganha-ganha. Acho que precisa desse equilíbrio: de um lado, vamos fazer a CPI que eles acharem que é oportuno fazer, mas, por outro, não paralisem as reformas.
Temos nos próximos 90 dias as reformas administrativa e tributária e os marcos regulatórios para destravar os investimentos. Quer fazer a agenda de CPI, pense que estamos no meio de uma pandemia. Faça, mas com alguma moderação para não desorganizar tudo. Tanto as medalhas quanto as avaliações nos tribunais de guerra são feitas logo após a guerra.
De que maneira o atraso da vacinação em massa penalizou a retomada do crescimento econômico?
É claro que durante uma guerra há falhas. Nós, por exemplo, lançamos um programa de crédito no início que não funcionou bem.
A autonomia do Banco Central, já aprovada, está sendo questionada no STF por PT e PSOL e até mesmo pela Procuradoria-Geral da República (PGR). Como o senhor vê isso?
Acho que merece um alerta muito sério. Estamos dessincronizando o ciclo político da gestão monetária. Há muitas acusações a governos passados que usaram o Banco Central para reeleição. Você vê a ironia. Quando você faz uma política de Estado, vem a própria oposição, o PT, e questiona a política de Estado. Eu não vou questionar a PGR. Com Justiça, a gente não fala nada, só olha. Mas eu acho que merece uma profunda reflexão. Quando há aumentos setoriais e transitórios de preços, como que impede que se transformem em alta generalizada de preços? É justamente um Banco Central independente.
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O governo pretende ampliar o Bolsa Família, mas ainda há o desafio dos trabalhadores informais. Qual é o plano para lidar com o desemprego e o aumento da pobreza?
A primeira coisa é a vacinação em massa. A segunda medida estamos chamando de Bônus de Inclusão Produtiva (BIP). Da mesma forma que se dá R$ 200 para uma pessoa que está inabilitada receber o Bolsa Família, por que não poderia dar R$ 200 ou R$ 300 para um jovem nem-nem? Ele nem é estudante nem tem emprego. Ou seja, é um dos invisíveis.
Agora, esse jovem vai ter que bater ponto e vai ser treinado para o mercado de trabalho. Ele vai ser servente de pedreiro, mecânico… É uma oportunidade. Ele é a vítima da nossa legislação trabalhista. Quando você bota lá o salário mínimo, um rapaz filho de uma classe média, que estudou em uma boa universidade, fala duas línguas, ele consegue emprego com salário mínimo.
Qual seria a contrapartida da empresa?
Zero. Ajuda o Brasil, treina o menino. Estamos estudando. Isso deve vir rápido para esse segmento dos invisíveis. Temos que erradicar a miséria. A grande lição do ano passado foi que, com o dinheiro que vai direto para quem precisa, tivemos a maior redução de pobreza em 40 anos. Essa lição não pode ser esquecida. Vamos ter que reforçar o Bolsa Família e criar os programas de inclusão produtiva.
O maior exemplo de compromisso com a saúde é que eu falei que tem que criar voucher. Acho natural que, com as novas tecnologias, as pessoas queiram viver 100 anos. O grande desafio é como ajudaremos nesse sentido as camadas mais frágeis. Por que um sujeito rico se interna no (hospital) Albert Einstein e o pobre tem que ficar numa fila do SUS durante dez dias? Se o pobre tiver um voucher e não tiver vaga no SUS, ele vai na rede privada. São soluções privadas efetivas para problemas públicos gravíssimos.
O ministro Marco Aurélio Mello, do STF, determinou a realização do Censo pelo IBGE. Como o senhor vai responder a isso?
O nosso Orçamento enviado ao Congresso tinha previsão dos recursos para o Censo. O Congresso, acredito que pensando na pandemia, e não nas verbas, deve ter achado sensato tirar (do Orçamento). Se fizemos a previsão é porque sabemos a importância de ter o Censo para orientar políticas públicas. E esperamos agora, depois da decisão do ministro Marco Aurélio, a orientação da Advocacia-Geral da União (AGU). Imagino que o Congresso tenha visto o Censo como elemento de risco para a pandemia. Mandar um pesquisador de casa em casa para fazer perguntas pode criar um agente de transmissão do vírus.
Fonte:
O Globo
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Nesses depoimentos, o que mais se ouve são duas palavras: liderança e governança. O comentário é de José Augusto Coelho Fernandes, pesquisador que conduz as trinta entrevistas com formuladores e gestores de políticas públicas que compõem a série de podcasts sobre a “arte da política econômica no Brasil”, a ser lançada na próxima semana pelo IEPE/ Casa das Garças, um dos principais think tanks do país.
Na série, temos depoimentos importantes que podem ser usados para comparação com o que está sendo feito no atual momento. A negociação incessante com o Congresso, no lançamento do Plano Real, e a atuação em equipe com autonomia na crise energética de 2001, são exemplares.
Atores importantes da cena econômica nos anos recentes, Maílson da Nóbrega, Edmar Bacha, Pérsio Arida e Gustavo Franco abrem o primeiro mês da série, com relatos sobre os anos de aprendizado dos planos e reformas, com o fim da conta movimento entre Banco do Brasil e Banco Central, a criação da Secretaria do Tesouro, até desembocar no Plano Real, suas reformas econômicas e privatização, regime de metas de inflação e câmbio flutuante.
No desenrolar da série, ouvem-se relatos sobre gestão de crises, desafios de governança, construção e desenho de instituições. A série se encerra com o depoimento do ex-ministro da Fazenda Pedro Malan. Inaugurando a série específica sobre o Plano Real, o economista Edmar Bacha, presidente da Casa das Garças e membro da Academia Brasileira de Letras destaca o papel do Departamento de Economia da PUC RIO nas discussões sobre as causas da inflação e as políticas para o seu controle, o aprendizado com as experiências fracassadas de estabilização no Brasil e no mundo, como o Plano Cruzado.
O Plano Real foi produto de muitas discussões acadêmicas que desaguaram num conjunto de etapas que se inicia pela consolidação fiscal e termina com o lançamento da nova moeda, o Real. No caminho, um plano intensivo em negociações com o Congresso, principalmente para a aprovação das medidas de transição para a nova moeda e a criação do fundo social de emergência.
A tarefa ficou a cargo de Bacha, que era chamado de “senador” pelos companheiros de equipe, a tal ponto chegou sua dedicação. Ele diz que o grande trunfo negociador esteve na oferta de um produto de alta demanda da população – a inflação baixa- e, na expectativa dos efeitos desse novo ambiente sobre o crescimento do salário real e a popularidade dos políticos que o apoiavam.
Engenheiro eletrônico e ex-chefe da Casa Civil da Presidência da República, Pedro Parente relata a sua experiência na administração pública brasileira, especialmente na crise de energia em 2001, que ele admite ter acontecido por desconhecimento do governo da complexidade do sistema hidroelétrico brasileiro.
O conhecimento da real situação teve impacto sobre as expectativas, queda de popularidade do governo e gerou forte preocupação na sociedade. A primeira percepção é que a reação exigia uma coordenação geral, que ficou a cargo de Parente, visto que não se tratava apenas de um contratempo no Ministério de Minas e Energia, e sim de um fato com impacto geral na economia e sociedade.
A mesma percepção não teve o governo Bolsonaro, embora estivesse mais bem informado sobre as consequências da pandemia da COVID-19. Nos debates, ficou demonstrada a importância da autonomia, já que sem ela não se poderia resolver o problema. Em segundo, era preciso ter poder, ou seja, as propostas seriam terminativas, de modo que não sofressem o processo de análise comum no governo.
Por fim, propunha-se a criação de uma câmara de gestão da crise, a qual viria a ser importante no processo de comunicação com a sociedade. A ideia era, sob a gestão de Parente, reunir representantes dos órgãos federais que tivessem relevância no assunto, como do Ministério da Fazenda e do Planejamento, da ANEEL e da ONS. Convocou-se também o professor e consultor empresarial Vicente Falconi, bem como Mauro Arce, secretário de energia de São Paulo. A decisão inicial foi a de o governo assumir a responsabilidade da falha e, a partir dessa medida, buscar, a todo custo, a transparência e disponibilidade diária para responder às indagações da imprensa sobre a crise de energia.
Fonte:
O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/merval-pereira/post/historias-exemplares.html
Míriam Leitão: Centro não é o ponto entre dois extremos
Na disputa entre Lula e Bolsonaro não há dois extremistas. Há um: Bolsonaro. O centro deve procurar seu espaço, seu programa, seu candidato, ou seus candidatos, porque o país precisa de alternativa e renovação. Mas não se deve equiparar o que jamais teve medida de comparação. O ex-presidente Lula governou o Brasil por oito anos e influenciou o governo por outros cinco. Não faz sentido apresentá-lo como se fosse a imagem, na outra ponta, de uma pessoa como o presidente Jair Bolsonaro.
O PT jogou o jogo democrático, Bolsonaro faz a apologia da ditadura. A frase que abre esse parágrafo eu disse em 2018, em comentários e colunas, no segundo turno das últimas eleições. Era a conclusão da análise dos fatos e das palavras dos grupos políticos que disputavam a eleição. Fui hostilizada por dirigentes petistas do Rio dentro de um avião, processei por difamação um servidor do Planalto no governo Dilma. Sou vítima de constantes fake news e agressões do gabinete do ódio do governo Bolsonaro. Já fui criticada em público pelo ex-presidente Lula mais de uma vez e fui vítima de mentiras sórdidas ditas pelo presidente Jair Bolsonaro. Poderia com base nisso afirmar que os dois são iguais? Objetivamente, não. Seria falso. Posso concluir que ambos não gostam de mim, mas isso é o de menos. Não é uma questão pessoal.
Em dois anos e quatro meses, Bolsonaro superou as piores expectativas. Na pandemia, ele mostrou seu lado mais perverso. A lista é longa. Deboche diante do sofrimento alheio, disseminação do vírus, criação de conflitos, autoritarismo. O país chegou ao número inaceitável de 400 mil mortos com um presidente negacionista ameaçando usar as Forças Armadas contra a democracia. Em Manaus, no último fim de semana, ele repetiu que poderia lançar os militares contra as ordens dos governadores. “Se eu decretar, eles vão cumprir”. Esse clima de beligerante intimidação prova, diz um general, uma “necessidade doentia de demonstrar ter poder”. Segundo essa fonte, “cada vez que se declara detentor dessa suposta força, demonstra na verdade não tê-la”. Seja qual for a análise da mente distorcida do presidente, o fato é que ele ameaça o país com a ruptura institucional no meio de um doloroso sofrimento coletivo.
O ex-presidente Lula teve uma política ambiental de excelentes resultados na gestão da ministra Marina Silva e do ministro Carlos Minc. O país viu avanços na inclusão de pobres e negros. Na economia, houve erros e acertos. No campo institucional, escolheu ministros do Supremo qualificados e nomeou procuradores-gerais da lista tríplice. Bolsonaro quer devastar a floresta, capturar as instituições e seu governo exibe preconceito como se fosse natural.
Bolsonaro faz ataques sistemáticos aos veículos de imprensa e aos jornalistas. Lula ameaçou impor o que ele chamou de “regulação da mídia”, mas recuou diante da resistência dos órgãos de comunicação. Ameaças nunca devem ser subestimadas, mas as instituições sabem lidar com um governante que tenha um mau projeto. Mais difícil é se defender de um inimigo da democracia como Bolsonaro.
As decisões recentes do Supremo Tribunal Federal tiraram as penas que recaíram sobre Lula e ele tem dito que foi inocentado. Tecnicamente sim, porque não é mais um condenado pela Justiça. O PT defende a tese de que foi tudo uma conspiração contra o partido. Falta explicar muita coisa, mas principalmente a materialidade do dinheiro que foi devolvido por corruptos e corruptores ao poder público.
Bolsonaro usou o sentimento anticorrupção sem o menor mérito, como se vê na sucessão de rachadinhas, funcionários fantasmas, pagamentos em dinheiro vivo e transações imobiliárias que rondam a família. Isso sem falar nas relações estreitas com personagens obscuros, como o miliciano Adriano da Nóbrega.
Partidos de outras tendências políticas devem trabalhar para oferecer alternativas ao eleitor brasileiro, porque a democracia é feita da diversidade de ideias e de propostas. O erro que não se pode cometer é dizer que essa é a forma de fugir de dois extremos. Isso fere os fatos. Não existe uma extrema-esquerda no país, mas existe Bolsonaro, que é de extrema-direita. No governo, ele multiplicou as mortes da pandemia e sempre deixa claro que se puder cancela a democracia.
Fonte:
O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/miriam-leitao/post/centro-nao-e-o-ponto-entre-dois-extremos.html
Eliane Cantanhêde: Fechando as porteiras
A lógica se inverteu. Não é mais o governo que aproveita a “distração” do Brasil e da mídia com a pandemia e os já mais de 400 mil mortos para passar suas “boiadas”. Agora, são o Supremo, o Congresso e a sociedade que se unem para resistir às “boiadas” governistas, enquanto o presidente Jair Bolsonaro, seus ministros e assessores estão muito ocupados com a CPI da Covid.
Um bom exemplo é o próprio meio ambiente. Foi o ministro Ricardo Salles quem avisou, naquela reunião ministerial histórica, que o governo estava aproveitando a pandemia para passar a “boiada” e pisotear o Ibama, o ICMBio, a legislação ambiental e, portanto, toda a estrutura de fiscalização e acompanhamento de florestas, rios, santuários. Mas a resistência cresce, e é sólida.
O delegado Alexandre Saraiva foi afastado da PF no Amazonas ao denunciar Salles por se aliar a madeireiros ilegais e, em vez de proteger a Amazônia, operar para destruí-la. Com essa denúncia, mais as ações de Ministério Público, ex-ministros, ONGs e entidades contra Salles e a política ambiental, a oposição colhe assinaturas para uma nova CPI, a do Meio Ambiente, na Câmara. Pode não ser inteligente, porque divide os holofotes da CPI da Covid, no Senado. Mas mobiliza.
Como há “fatos determinantes” abundantes para a da covid, também não faltam para uma eventual CPI do Meio Ambiente. Há montes de cinzas, madeira ilegal, dados e evidências de destruição. Aliás, Bolsonaro anunciou na cúpula do clima que estava dobrando os recursos para a fiscalização ambiental. No dia seguinte, veio o anúncio do Orçamento da União com cortes de R$ 240 milhões exatamente aí.
Funcionários do setor denunciaram “o colapso da gestão ambiental”, mas o desmanche não se resume a Ibama e ICMBio, resvalando para o Inpe. Nem a reação a ele. Sete ex-ministros da Educação, por exemplo, lançaram manifesto a favor do Inep, que cuida de Enem (ensino médio) e Ideb (ensino básico). Segundo eles, “o Inep está gravemente enfraquecido e isso coloca em risco políticas públicas cruciais”.
O que dizer da Cultura, que já teve secretário de alma nazista, mantém um negro racista na Fundação Palmares, persegue os ícones do teatro (como Fernanda Montenegro) e da música (como Chico Buarque), além de investir contra a Ancine e o Conselho Superior do Cinema?
E, por falar em “risco a políticas públicas cruciais”, ainda não está claro quem e por que, efetivamente, impediu o Censo de 2021. O IBGE pediu R$ 2 bilhões, Congresso destinou R$ 71 milhões e, com o corte do Planalto, sobraram R$ 58 milhões. Sem dinheiro, sem Censo. Sem Censo, como avaliar e planejar o País? Será que Bolsonaro temia a foto do “seu” Brasil na campanha à reeleição?
Na política externa, o chanceler Ernesto Araújo caiu, mas os escombros se espalham por toda parte, na forma de má vontade com insumos das vacinas, críticas de governos, parlamentos, entidades, sociedades. Até integrantes do Parlamento Europeu condenaram o “negacionismo” e a “necropolítica”, ou “política da morte”, no Brasil.
E na economia? O ministro Paulo Guedes não caiu, mas não sobra pedra sobre pedra de sua equipe, seus planos, suas reformas e seus propósitos liberais. E não por culpa da esquerda, da oposição ou da mídia, e não adianta dizer que foi por causa do Congresso. Quem não assume, e inclusive sabota, a política de Guedes é… Jair Bolsonaro.
Agora, o presidente só pensa em soterrar a CPI da Covid, mas continua em campanha por aí e proibindo máscaras, álcool em gel e – pelo que se deduz da revelação do general Luiz Eduardo Ramos – até vacinas. Enquanto isso, as boiadas enfrentam cada vez mais resistência. A turma dos atos golpistas insiste em defender o indefensável, mas a reação é firme e só aumenta.
Fonte:
O Estado de S. Paulo
https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,fechando-as-porteiras,70003701080
Vinicius Torres Freire: Paulo Guedes não sabe o que diz sobre saúde, pobres e não sabe o que faz
“Pobre? Está doente? Dá um voucher para ele. Quer ir no Einstein? Vai no Einstein. Quer ir no SUS, pode usar seu voucher onde quiser”, disse Paulo Guedes em seu mais recente surto de ignorância e horror a pobre.
Estritamente falando, um voucher é um vale, como um vale-refeição. No desvario de Guedes, “um pobre” receberia um vale-saúde para se tratar onde quisesse, no SUS ou no Einstein, um dos grandes e excelentes hospitais privados de São Paulo. Nem Guedes deve acreditar estritamente nessa idiotice. Mas argumente-se por absurdo e a favor do ministro.
O setor público gasta por ano 3,9% do PIB em saúde (na média trienal até 2017, do IBGE, ou até 2018, da OMS). Equivale a uns R$ 1.380 por pessoa, R$ 115 por mês. Dá para pagar um plano de saúde dos mais baratos, sem contar coparticipação, com serviço inferior ao do SUS. Daria um pouco mais por pessoa caso o dinheiro todo fosse reservado para quem ora não tem plano de saúde (71,5% da população, segundo o IBGE).
O vale-plano-de-saúde não daria para escolher o Einstein, ocioso ressaltar, nem o SUS. Não haveria mais SUS. O dinheiro da saúde pública teria sido confiscado pelo vale-guedes. Não haveria mais serviço público de vacina, de emergência (ambulância, PS), remédio, exame, nada. Se o seu plano baratinho não cobrisse certos tratamentos ou se você se arrebentasse em um local descoberto (quase todos), que você pagasse ou morresse.
Obviamente esse argumento é louco, simplificação da mais grosseira. Serve apenas para sugerir que a coisa não funciona assim, aqui ou alhures.
O gasto em saúde no Brasil já é majoritariamente privado (famílias, empresas, filantropia): 58% do total. Não é assim na Argentina (38%) ou no México (48,7%), menos ainda é o caso de França (27%), Reino Unido (21%) ou Alemanha (22%) e nem mesmo o do Chile (49,7%) e o dos EUA (49,6%). Na mão de um Guedes da vida (ou da morte) iremos na direção dos EUA, que tem um dos gastos em saúde mais ineficientes da OCDE (clube de três dúzias de países ricos).
Mas, afora para ricos, e olhe lá, o SUS é o recurso de primeira ou última instância, que banca tratamentos que muito plano não cobre, por falta de dinheiro ou competência. O SUS é uma rara preciosidade nacional, com problemas de administração, sim, mas não é conversa para o bico de Guedes.A discussão não cabe em poucas colunas de jornal. A comparação entre sistemas nacionais de saúde, muito diversos, é complexa. Existem vários esquemas de financiamento público, com serviços quase todos prestados pelo setor privado, mas inteiramente pagos e vigiados pelo governo (Canadá), ou como o SUS original, estatal, do Reino Unido. Em geral, voucher, no sentido estrito, é alternativa parcial onde o sistema de saúde é tão precário que se dá um vale aos muito pobres de país muito pobre, naÁfrica ou na América Central.
O problema aqui é Guedes e seu mundo de caricaturas reacionárias. Não trata de assuntos de modo técnico: adora dar aulas magnas genéricas baseadas em suas fantasias liberalóides apodrecidas. Não propõe políticas públicas específicas e fundamentadas, com planos e apoio político para implementá-las.
Vive de tiradas, truques com os quais pensa engambelar o Congresso e mentiras lunáticas (trilhão de privatização, 44 milhões de testes de Covid, déficit público zero em um ano etc.). Adora velhos mitos extremistas da direita americana e tem saudade do Chile de Pinochet.
Essa barbaridade guedista, variação pedante do bolsonarismo dá mais pano para a manga. Vamos voltar a tratar disso.
Fonte:
Folha de S. Paulo
Janio de Freitas: Piora nos índices sociais vai se acelerar em número e desumanidade
Jair Bolsonaro quer mais cortes em gastos sociais previstos no Orçamento para este ano. As mutilações já feitas foram brutais, mas Bolsonaro quer mais alguns bilhões para o que se mostra no governo como o segundo gasto na ordem de nobreza: a compra de parlamentares com a liberação de bilhões para suas propostas de obras, que são catapultas eleitorais. O único gasto mais nobre no Planalto é o dos militares, cujo montante inicial perdeu apenas 3%.
As reduções são o oposto do requerido pelo forte agravamento das condições de sobrevida da maioria dos brasileiros. A retenção por mais de três meses do também mutilado auxílio emergencial anulou o alívio trazido pelas parcelas do ano passado, concedidas pelo Congresso.
A fome aumenta, e se espraia mais. Qualquer oferta de alimento atrai filas enormes, e as coletas de doações recebem ainda quantidade ínfima para a necessidade crescente. A maioria não tem disponibilidades para ser solidária.
Aos que a têm, o que falta, historicamente, é o próprio sentido de solidariedade, até de humanidade mesmo. Fosse diferente, já veríamos, há tempos, forte movimento de socorro aos que têm fome.
Na chegada de Bolsonaro ao poder, considerava-se, com provável otimismo, haver em torno de 24 milhões de brasileiros vivendo com menos de R$ 246 por mês: R$ 8 por dia. Passados dois anos, a FGV e dados do IBGE indicam o aumento desse contingente para 35 milhões de pessoas.
Não só os já habitantes da pobreza descem à miséria mais miserável. O título de reportagem de Fernando Canzian para a Folha sintetiza o que se passa nos intermediários: “Fenômeno dos anos Lula, classe C afunda e cai na miséria”. Eloquência justificada por mais de 30 milhões que “estão despencando diretamente da classe C para a miséria”.A pandemia não é causa única da derrocada social. Desde seu primeiro momento, o governo investiu contra os programas sociais, sem exceção, e os manteve na precariedade quando o vírus se anunciou,se propagou e se impôs.
Nem a mínima atenção foi dada à necessidade de se buscarem modos de atenuar os efeitos socioeconômicos da pandemia. E, em paralelo, fosse preparada a defesa da população com a compra de vacinas, campanhas instrutivas, orientação para as alternativas empresariais e gerais.
Nada disso, era só uma “gripezinha”, a cloroquina a eliminaria. A vaguidão de Paulo Guedes, com os pés no ministério e a cabeça na Bolsa, e o desvario de Bolsonaro associaram-se ao vírus.
Passamos de 400 mil mortes. Esse morticínio atordoa, as crianças e famílias que caem no desamparo, se desorganizam, também perdem a vida por outra que começa e só podem temer.
O vírus não é o causador único dessa imensa desgraça coletiva. Tanto que maio e junho são esperados por cientistas como ainda mais calamitosos no Brasil. E explicam: por decorrência da baixa vacinação até aqui, da falta de vacinas porque o governo chegou tarde, desacreditado e arrogantemente suspeito ao balcão mundial dos imunizantes.Logo, os passos degradantes na escala socioeconômica, mais do que continuar, vão se acelerar em número e em desumanidade. Nenhuma resposta lúcida pode ser esperada do governo que pretendeaté cortar mais gastos sociais.
Se a sociedade, por sua vez, é inerte por preguiça moral maciça ou indolência cultural incapacitante, a alienação é a mesma e mesma a consequência. Então, lamento, o que há a dizer é isto: a perspectiva de futuro próximo é péssima —talvez seja o que nossa paralisia mereça.
Fonte:
Folha de S. Paulo
Dorrit Harazim: Joe, Jair e Modi
Esta semana Joseph Robinette Biden Jr. trocou de roupa e de imagem oficial. Sai de cena “Uncle Joe”, a grife caseira do democrata conciliador, afável e algo distraído por ele cultivada ao longo de 4 décadas de vida pública. Esta semana Joe Biden se apresentou perante o Congresso com nova roupagem — a do arrojado visionário 46º presidente dos Estados Unidos — e detalhou como pretende reformatar já no presente a vida da nação sob seu comando. Também descreveu os planos, metas e projetos com que planeja moldar o futuro das gerações seguintes, sem esquivar-se de alocar cifras concretas a cada item do pacotão. Se aprovada na totalidade pelo Senado, o que é pouco provável, sua agenda de resgate da economia, força de trabalho e seguridade familiar custará astronômicos US$ 4,1 trilhões. Mas, mesmo que venha a ser fatiada, a visão de Biden sobre o papel do Estado ficou clara: o Estado deve funcionar como zelador da infraestrutura humana e do bem-estar social. Soou quase revolucionário e revela quanto o mundo está carente de bom senso.
A surpresa com esse Biden arrojado se justifica, uma vez que, durante a campanha eleitoral, ele se apresentara como mero homem de transição capaz de aquietar o país tarja preta que sobrevivera a Donald Trump. Uma vez sentado no Salão Oval, porém, o mandatário de 78 anos e alguns lapsos já fez saber que não exclui tentar a reeleição dentro de quatro anos. Sai de cena o gestor conciliador, como Biden foi retratado enquanto candidato, para dar lugar a quem pretende ser lembrado como líder mundial transformador. Para tanto, mantém algumas características pétreas — é disciplinado, metódico e prefere ficar abaixo do radar para não escorregar.
Na verdade, por mais que Biden queira envergar simultaneamente o manto do New Deal de Franklin D. Roosevelt, da Grande Sociedade de Lyndon Johnson, importar algumas ideias de Barack Obama e outras mais arretadas de Bernie Sanders, bastará que consiga liderar a urgente arrancada ambiental para fazer um governo de dimensão histórica. Sem isso, o restante de sua visão para uma sociedade menos desigual, de maior justiça racial, econômica e jurídica ficará embaçada. Sem isso, até mesmo a espetacular invertida que imprimiu ao combate e controle da Covid-19 nos EUA, por meio de uma vacinação maciça e ordenada, acabará parecendo natural à medida que a vida por lá retomar alguma normalidade. O vírus pode até ressuscitar em novas ondas, mas nada roubará de Biden a gratidão nacional pela tranquilidade vacinal que injetou no país.
Enquanto isso, Jair Bolsonaro e o primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, terão, para sempre, seus nomes e sobrenomes vinculados ao epíteto Covid-19. Ambos se condenaram à morte política e à desgraça histórica por abandonar suas gentes a morrer sem oxigênio. Abatidos feito moscas, aos montes, milhares, centenas de milhares, mal enterrados ou incinerados em piras humanas, pranteados no medo e em silêncio. Na capital indiana, as autoridades florestais tiveram de emitir uma autorização especial para o abate de árvores, pois a lenha dos crematórios acabara. A ativista política e escritora Arundhati Roy publicou no “Guardian” um testemunho pungente da desolação que tomou conta do país. “No lugar mais baixo da mercadagem pela vida”, escreveu Roy, “você suborna o atendente para poder jogar um derradeiro olhar sobre o embrulho que foi sua pessoa amada, agora estocado na morgue hospitalar”. Há quem venda terras ou propriedades, ou junte as últimas rúpias em busca de atendimento em hospital privado — sem garantia de internação, apenas como depósito.
No último Fórum Econômico Mundial, em janeiro, quando Europa e Estados Unidos mergulhavam na segunda mortandade da pandemia, o líder indiano não expressou nenhum sentimento, empatia ou compreensão com a aflição de seus pares. Ao contrário, arrostou soberba. “Amigos”, discursou na ocasião, “convém não comparar a Índia a qualquer outra nação… Abrigamos 18% da população mundial e salvamos a Humanidade de um imenso desastre, pois conseguimos conter o vírus”. Como se sabe, o país, hoje, mais se assemelha a um inferno de 1,4 bilhão de almas errantes, largadas à própria sorte.
No cômputo dos crimes cometidos por mandatários contra seus povos, será difícil elencar a quem ficará reservado o opróbio maior da era Covid-19 — se a Jair Bolsonaro ou Narendra Modi. Por serem filhos de culturas tão diversas, também suas respectivas formas de desprezo pelo bem comum, a índole autoritária, a ignorância, as medidas repressivas, o escárnio pelo outro, se manifestam de formas díspares. Porém ambos comungam da mesma incapacidade de compreender o que aprendemos a chamar de civilização, felicidade, progresso, humanidade.
Não defendem a vida, qualquer espécie de vida, de quem não lhes seja de imediata utilidade. A Covid-19 apenas serviu de oportunidade para isso ficar claro.
Fonte:
O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/opiniao/post/joe-jair-e-modi.html
Agência Pública: A opção Mourão debatida por generais
Vasconcelos Quadros, Agência Pública
Em 27 meses no cargo, o general Hamilton Mourão construiu uma trajetória bem diferente da dos vices nos últimos 60 anos. Ele tem atribuições de Governo e comanda efetivamente nichos importantes da política ambiental e de relações exteriores. É, por exemplo, mediador de conflitos com a China, processo iniciado com um encontro com o presidente do país, Xi Jinping, em 2019, restabelecendo a diplomacia depois de duros ataques feitos por Jair Bolsonaro ainda na campanha.
Mourão esforça-se para não parecer que conspira, mas é visto por militares e especialistas ouvidos pela Agência Pública como um oficial de prontidão diante de uma CPI que pode levar às cordas o presidente Jair Bolsonaro pelos erros na condução da pandemia.
“Como Bolsonaro virou um estorvo, os generais agora querem colocar o Mourão no Governo”, diz o coronel da reserva Marcelo Pimentel Jorge de Souza, um dos poucos oficiais das Forças Armadas a criticar abertamente o grupo de generais governistas que, na sua visão, “dá as ordens” e sustenta o Governo de Bolsonaro.
Ex-assessor especial do general Carlos Alberto Santos Cruz na missão de pacificação no Haiti, Jorge de Souza está entre os militares que enxergam o movimento dos generais como uma aposta num eventual impeachment e ascensão de Mourão ―que, por sua vez, tem fechado os ouvidos para o canto das sereias.
“Mourão jamais vai ajudar a derrubar Bolsonaro para ocupar a vaga. O que ele pode é não estender a mão para levantá-lo se um fato grave surgir. Honra e fidelidade são coisas muito sérias para Mourão”, diz um general da reserva que conviveu com o vice-presidente, mas pediu para não ter o nome citado.
General Sérgio Etchegoyen, ex-ministro do GSI no Governo Michel Temer. Foto: José Cruz/Agência Brasil
A opção Mourão é tratada com discrição entre os generais que ocupam cargos no Governo. Três deles, Braga Netto (Defesa), Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional, o GSI) e Luiz Eduardo Ramos (Casa Civil), formam o núcleo duro fechado com o presidente. Os demais, caso a crise política se agrave, são uma incógnita. Mas são vistos como mais acessíveis à influência dos generais da reserva que romperam com Bolsonaro e articulam a formação de uma terceira via pela centro-direita.
“O que fazer se a opção em 2022 for Lula ou Bolsonaro? É sentar na calçada e chorar”, afirma à Pública o general Sérgio Etchegoyen, ex-ministro do GSI no Governo Michel Temer (MDB).
Embora se recuse a fazer críticas ao presidente, Etchegoyen acha que os sucessivos conflitos entre Executivo e Judiciário criaram no país um quadro grave de “instabilidade e incertezas”, que exigirá o surgimento de lideranças mais adequadas à democracia.
“O Brasil não precisa de um leão de chácara. Precisa de alguém que conheça a política e saiba pacificar o país”, diz o general.
O ex-ministro sustenta que 36 anos depois do fim do regime militar, com a democracia madura, a reafirmação do compromisso das Forças Armadas contra qualquer aventura autoritária a cada surto da política tornou-se desnecessária e repetitiva. E cutuca a imprensa: “Alguém ensinou um modelo de análise à imprensa em que a possibilidade de golpe está sempre colocada”, diz, referindo-se à crise provocada por Bolsonaro na demissão de Fernando Azevedo e Silva, ministro da Defesa, e dos comandantes militares. Para ele, a substituição é parte da rotina de Governo e das crises decorrentes da política. “Ministros são como fusíveis que podem queimar na alta tensão da política. Quem não tiver vocação para fusível que não vá para o Governo”, afirma.
Generais articulam terceira via para eleição
As articulações por uma terceira via são comandadas por generais da reserva, que já ocuparam cargos em governos e, até o agravamento da pandemia do coronavírus, se encontravam com frequência em cavalgadas no 1º Regimento de Cavalaria de Guardas (RCG), sede dos Dragões da Independência, grupamento do Exército sediado no Setor Militar Norte de Brasília, encarregado de guarnecer o Palácio do Planalto.
Os ex-ministros Etchegoyen e Santos Cruz e o general Paulo Chagas, ex-candidato ao Governo do Distrito Federal, embora em diferentes linhas, fazem parte do grupo. Têm em comum o gosto pela equitação e bom trânsito com o vice, que também gosta do esporte e frequentava o 1º RCG ao lado de outros generais, o ex-comandante do Exército Edson Pujol e civis como Aldo Rebelo, ex-ministro da Defesa, ex-PCdoB, hoje pré-candidato à presidência em 2022 pelo Solidariedade.
Mourão defende Exército e “vai ficar na cara do gol”
Nas ocasiões em que foi sondado para substituir Bolsonaro diante da probabilidade de impeachment ou para se colocar como terceira via, Mourão rejeitou as duas hipóteses. Segundo fontes ouvidas pela Pública, ele “não se furtaria” a assumir, mas só o faria dentro de limites constitucionais, ou seja, em caso de vacância no cargo.
“O Mourão se impôs um limite ético para lidar com a política. Não disputará contra Bolsonaro e nem imporá desgaste a ele. É um homem de visão de mundo diferenciada, entende muito do que fala, compreende o país e tem trânsito confortável na política externa. Seu perfil não é do interesse do presidente e nem oposição”, avalia a fonte próxima ao vice.
Em entrevista à TV Aberta, de São Paulo, na quinta-feira, 22 de abril, Mourão disse que, por lealdade, não disputará com Bolsonaro em 2022 e apontou como seu horizonte a candidatura ao Senado ou simplesmente a aposentadoria. Em janeiro, quando veio à tona notícia sobre um assessor parlamentar da vice-presidência que falava com chefes de gabinete de vários deputados sobre a necessidade de se preparar para um eventual impeachment, Mourão o demitiu, marcando sua postura pública sobre a questão.
Crítico corrosivo de Bolsonaro e um dos mais empenhados na construção da terceira via, o general Paulo Chagas vê Mourão como um reserva preparado tanto para um eventual impeachment quanto como nome viável pela terceira via. “Benza Deus que ele aceite! Mourão tem toda capacidade para colocar ordem na casa democraticamente, mas isso agora não interessa ao presidente nem à oposição, que quer ver Bolsonaro sangrar até o fim do Governo”, diz.
O coronel Jorge de Souza pensa diferente. “Mourão não vai em bola dividida. Ficará na cara do gol”, afirma, referindo-se ao provável desgaste que Bolsonaro enfrentará com o avanço da CPI da Covid, o que, na sua opinião, poderá desengavetar um dos mais de cem pedidos de impeachment parados na Câmara.
Nesta segunda, 26 de abril, em entrevista ao jornal Valor Econômico, o vice defendeu a caserna e antagonizou mais uma vez com Bolsonaro. Afirmou que o Exército não pode ser responsabilizado pela atuação do ex-ministro da Saúde, Eduardo Pazuello. E disse que chegou a aconselhar o ex-ministro a deixar o serviço da ativa quando ele assumiu o combate à pandemia. À tarde, logo depois de ter recebido a segunda dose da vacina Coronavac, se recusou a falar sobre a CPI. “Isso aí não tem nada a ver comigo. Sem comentários”, desvia-se.
A CPI deve pegar Bolsonaro em pontos frágeis: o insistente apelo à população pelo uso de medicação sem eficácia, o boicote ao distanciamento social, a falta de remédios para intubação e de oxigênio para UTIs, a recusa em comprar vacina a tempo de evitar o espantoso aumento de mortes e a demora em prover a saúde de insumos necessários ao combate à pandemia.
Reforça as acusações ―23 delas listadas pelo próprio Governo em um documento encaminhado a todos os ministérios― um pedido de impeachment da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) no qual um parecer do ex-ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Ayres Britto sustenta existirem indícios fortes de crime de responsabilidade cometido pelo presidente. O parecer afirma que Bolsonaro sabotou as medidas que poderiam aliviar a tragédia, o que acabou transformando o vírus numa espécie de arma biológica contra a população. A OAB entretanto ainda não protocolou o pedido, e pode fazê-lo em pleno vigor da CPI.
Bolsonaro não conseguiu barrar a CPI e ainda terá de enfrentá-la em desvantagem, já que o controle da investigação, pelo acordo fechado, será exercido pela oposição.
“A CPI vai render manchetes diárias, mostrará nomes, extratos, vai revolver a política”, alerta o general Etchegoyen, com a experiência de quem teve sob seu controle a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) e enfrentou as muitas crises do Governo Temer.
Na visão de Paulo Chagas, Bolsonaro fracassou na condução do Governo e agora está com a “cabeça na guilhotina” da CPI. Segundo o coronel Jorge de Souza, os generais têm até um plano para a hipótese de uma reviravolta que ponha Mourão no Palácio do Planalto: um pacto para enfrentamento da pandemia e dos efeitos desta na economia, seguido da demissão de ministros tidos como exóticos ou alinhados ao extremismo alimentado pelo presidente. Ele acha, no entanto, que o perfil real do vice é diferente do que é vendido pelo marketing. “Num hipotético cenário de delegacia, em que o preso é torturado para falar, Mourão faz o papel do bom policial. As pessoas gostam dele porque é informal, brinca no ‘gauchal’ e tenta passar para a imprensa a imagem de maleável. Mas que ninguém se engane. Se forçar uma pergunta que não goste, ele explode. Mourão é autoritário”, diz.
“Mourão é autoritário”, diz coronel Jorge de Souza.RODRIGUES POZZEBOM/AGÊNCIA BRASIL
O coronel conta que assistiu, no QG do Exército, em 2016, o hoje vice-presidente, num inflamado discurso à tropa, chamar o coronel Carlos Brilhante Ustra, um dos nomes ligados à tortura nos anos de chumbo, de herói e combatente anticomunista. “Mourão é mais preparado e mais perigoso que Bolsonaro. Ele comanda o Bolsonaro, e não o contrário”, afirma o oficial.
Para Souza, os generais terão a paciência necessária para aguardar que o agravamento da crise “consolide a ideia de Mourão é o cara”.
Em programa semanal, Mourão defende vacina e cita Gilberto Gil
Presidente do Conselho Nacional da Amazônia, Mourão tem se ocupado dos temas que considera relevantes para o país. É de sua lavra o levantamento que levou Bolsonaro a prometer neutralidade na emissão de gases de efeito estufa até 2050 e o fim do desmatamento ilegal na Amazônia até 2030, no discurso de quinta-feira (22/4) à Cúpula do Clima, visto como bom sinal pelos líderes mundiais, mas irreal diante do desmonte dos órgãos de fiscalização e da falta de previsão de recursos.
Dias antes, quando o número de vítimas do coronavírus batia a trágica marca dos 4.000 mortos diários, ele reagiu com aparente perda de paciência com a gestão da saúde: “Pô, já ultrapassou o limite do bom senso”, disse, ressaltando que era necessário um plano para salvar vidas.
Se Bolsonaro tem as já famosas lives das quintas-feiras para falar contra as medidas de combate à pandemia, Mourão tem o Por dentro da Amazônia, um programa semanal gravado às segundas-feiras destinado aos 23 milhões de habitantes da Amazônia Legal. O programa é transmitido pela Rede Nacional de Rádio pelo mesmo sinal da Voz do Brasil, gerido pela Empresa Brasileira de Comunicação (EBC) e chega a regiões sem acesso à internet ou à energia elétrica. Pode ser acessado também pelo YouTube.
Mourão antagoniza com Bolsonaro e expõe as contradições do Governo.VALTER CAMPANATO/AGÊNCIA BRASIL
Ali ele lista focos de desmatamento, pede ajuda dos moradores e se diz preocupado com a pandemia, fazendo recomendações que deveriam partir do Palácio do Planalto. “A covid-19 está na esquina, à espreita. Não deixe de se vacinar, mantenha distância e não se aglomere”, repete sempre. Num desses programas, descontraído, se despediu com uma citação que irrita os ouvidos do presidente: “Como diria o grande Gilberto Gil, alô povo da Amazônia, aquele abraço!”. Gil, como se sabe, foi ministro da Cultura de Lula.
Na mesma transmissão, em 29 de março, ele anunciou o fim do programa Brasil Verde II, destinado a combater as atividades ilegais na Amazônia e uma espécie de menina dos olhos do vice, que havia montado uma superestrutura militar para auxiliá-lo.
No dia em que apresentava um balanço que considera positivo ―a queda de 23% no desmatamento entre 1º de junho de 2020 e 31 de março deste ano, a apreensão de 500 mil metros cúbicos de madeira, 335 tratores e mais de mil máquinas de serrarias e mineração ilegal e 3,3 bilhões de reais em multas―, Mourão foi surpreendido com boatos segundo os quais Bolsonaro pretendia criar um ministério para a Amazônia como prêmio de consolação ao ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello, que havia perdido o combate contra o vírus.
O vice desconfiou, no entanto, que o movimento não era só para socorrer Pazuello. Um assessor do Conselho da Amazônia disse à Pública que Mourão reagiu com perplexidade por não ter sido sequer consultado sobre uma opção que, de cara, esvaziaria o órgão que estruturou a duras penas, enfrentando inclusive desconfianças do entorno do próprio presidente. Mas reagiu em público com bom humor, declarando que, se um novo ministério não tivesse como meta dar corpo ao que chama de “bioeconomia”, termo que usa para se referir ao desenvolvimento sustentável, o presidente estaria procurando “deserto para mais um camelo”.
O programa Brasil Verde, uma vitrine ainda embaçada que Mourão tentou vender ao mundo, chega ao fim melancólico neste final de abril, como mais um paliativo governamental de resultado pífio no combate ao desmatamento e às queimadas.
Na contramão do ministro Ricardo Salles ―que chegou a se reunir em seu gabinete com madeireiros de Santa Catarina fornecedores da empresa que foi o principal alvo da apreensão recorde de madeira ilegal na Amazônia, realizada durante a Operação Handroanthus GLO, como revelou a Pública― o general Mourão tem apoiado as ações de repressão e, ao ser obrigado a encerrar o Brasil Verde por falta de recursos, criou o Plano Amazônia 21/22, para tentar estancar a alta incidência de crimes ambientais.
O plano prevê a sinergia de pelo menos dez órgãos de controle, mas até agora é só uma intenção. Mourão diz que a ideia é organizar concursos públicos para fiscais que se disponham a formar equipes permanentes por seis anos ininterruptos na Amazônia e que atuariam auxiliados por centrais de inteligência baseadas em Porto Velho, Belém e Manaus, em operações deflagradas de acordo com o surgimento de focos de incêndio monitorados por satélite. O vice estima que, com um gasto anual de 100 milhões de dólares, é possível chegar em 2030 com desmatamento zero.
Enquanto não deslancha, o programa Por dentro da Amazônia continua, dando voz semanalmente ao vice-presidente, todas as 2ª feiras às 9h e às 20h30. O último episódio teve pouco mais de 200 visualizações no Youtube.
Analistas veem Mourão desde como “incógnita” até “contradição emulada”
A deputada Tabata Amaral (PDT-SP) enxerga o vice como uma incógnita. “Ainda é cedo para saber de que lado está o general Mourão. Ele tem uma característica que o difere dos demais [militares do Governo], que é ser indemissível. Pode questionar, pode se posicionar, que continuará sendo o vice-presidente da República. De certa forma, ele representa uma parcela dos militares. Mas por mais que tenha um discurso mais moderado, ainda é uma pessoa que defende que não houve golpe militar. Espero que a gente não dependa dele para a sobrevivência da democracia”, diz a deputada à Pública.
Tabata fez um levantamento em parceria com o senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE) mostrando que, além de nove dos 21 ministros serem militares ―todos eles levaram coronéis da reserva e da ativa como assessores―, em outros escalões os cargos de confiança ligados ao Palácio do Planalto mais que triplicaram desde o Governo Dilma (eram 102 e agora são 343), com amplo destaque para o Ministério da Saúde, no qual a presença militar saltou de um para 30 na gestão do ex-ministro Eduardo Pazuello.
O antropólogo Piero Leiner, da Universidade Federal de São Carlos (Ufscar), avalia que as diferenças públicas entre presidente e vice fazem parte de uma estratégia. “Desde a eleição, Mourão faz o papel de um ‘contraditório’: Bolsonaro diz, ele desdiz. Mas é preciso ter em mente que essa é uma contradição emulada. Este é um Governo pensado e executado por militares, e Mourão está lá também para fazer esse papel de subordinação militar, que é a ideia do ‘ele manda, nós obedecemos’. A ideia é que nas várias instâncias fique clara a aparência de que Bolsonaro seria uma coisa, os militares outra. Assim, eles podem aparecer como uma instância de moderação, o que é uma premissa falsa, uma vez que Bolsonaro é obra deles”, afirma.
Um dos maiores estudiosos das Forças Armadas no Brasil, o cientista político João Roberto Martins Filho diz que a conta pelo apoio a Bolsonaro já está chegando aos militares. “As Forças Armadas, em especial o Exército, estão muito comprometidas com esse Governo e pagam o preço com grande desgaste. Tem pesquisa mostrando que já estão em terceiro lugar (18%) entre as instituições que apresentam perda de confiança da população e em último (1%) entre as que apresentaram aumento da confiança”, diz à Pública. Martins Filho se refere à pesquisa Exame/Ideias sobre o efeito da gestão da pandemia nas instituições, com 1.259 entrevistados, feita entre 5 e 7 de março e publicada no último dia 10, portanto antes das mudanças feitas por Bolsonaro no Ministério da Saúde e nos comandos da Defesa e das Forças Armadas.
O pesquisador acha que já há sintomas de insatisfação entre os militares da ativa pelo fato de Bolsonaro ter tentado interferir nos comandos em busca de uma lealdade no conflito com o STF e certa fissura no generalato que ocupa cargos no Governo. Ele, no entanto, não acredita em rompimento. “Vão procurar remendar o que foi feito e estão pensando nas eleições do ano que vem. Se perceberem que Bolsonaro pode cair, vão de Mourão, que faz aquecimento no canto do campo e é palatável”, afirma.
O coronel Jorge de Souza acha que esse desgaste será ainda maior quando a população perceber com mais clareza que os militares “são o Governo”, já que o prestígio da tropa junto à população era motivado justamente pelo distanciamento da política, rompido, segundo ele, pelo envolvimento do Alto-Comando do Exército nos movimentos que antecederam o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff.
Dos 17 oficiais que integravam a cúpula da força à época, 16 estão ou estiveram em funções políticas nos Governos de Michel Temer e de Bolsonaro, que simplesmente militarizou a Esplanada.
“A geração dos anos 70 é o problema. Eles estão gostando do poder”, diz Jorge de Souza, para quem “é necessário fazer regredir a marcha da politização nos quartéis” e desgrudar a imagem das Forças Armadas de Bolsonaro. “Os generais não têm jogo de cintura para exercer funções políticas que são civis.”
Esta reportagem foi publicada originalmente no site da Agência Pública.
Fonte:
El País
https://brasil.elpais.com/brasil/2021-05-01/a-espera-de-mourao.html
Paulo Fábio Dantas Neto: Ciência e política, cem anos depois de Weber
O tema de hoje pode não interessar a muita gente. É provável que pessoas desistam de ler ou ouvir quando virem o “arriar das malas”. Além disso, eu já tratei dele aqui, de um outro modo, há dois meses, na coluna intitulada “Ciência e política, amantes do possível”. Desejava, então, enfatizar a inclinação prudencial ao realismo, comum às duas profissões. Hoje quero tratar é de possibilidades contemporâneas de cooperação entre as duas. Sei que é coisa árida. Desculpem, mas o Bahia perdeu um jogo importante. Hoje, qualquer tema, aos meus cuidados, ficaria árido.
Há pouco mais de um século, o intelectual alemão Max Weber proferiu duas conferências – “A ciência como vocação” (1917) e “A política como vocação” (1919), ensaios escritos separadamente, que, tomados em conjunto, sugeriram, a estudiosos das ciências sociais e das humanidades, um ponto nobre de reflexão. Embora enfrentado por Weber sob impacto dos desafios concretos da Europa daquela época, o tema dos vínculos entre ciência e política transcendeu aquele contexto. Nunca deixou de se destacar entre temas clássicos que conservam crucial atualidade, tanto para iniciados naqueles campos de estudos acadêmicos, como para governantes e cidadãos de todo o mundo. No contexto de uma pandemia, que põe todo o mundo entre parênteses, ele se renova e adquire uma relevância desconcertante.
Tudo bem, o par ciência/política é atual e relevante como tema. Mas qual o sentido de revisitar, especificamente, aquela memorável reflexão de Weber? O mundo não terá mudado bastante – e com ele as ciências e políticas plurais que nele se pratica – de modo tal que o ponto de Weber hoje pertence mais à história das ideias, deixando de ser relevante para a política em ato? Enfim, qualquer comentário sobre aquelas conferências pode parecer uma visita à História e à Filosofia Política talvez um pouco diletante para quem faz um esforço para compreender e opinar sobre a política de hoje e suas conexões atuais com a ciência.
Mantenho, intuitivamente, a crença na potência e atualidade da luz imanente às duas reflexões de Weber. Através delas pode-se ver ciência e política como campos distintos, mas não opostos, porque suas distinções não impedem – e sim sugerem – convergência e conciliação entre elas. Embora em alguns lugares, como em nosso país, uma política insana use um senso comum desesperado e infeliz para tentar desafiar o óbvio, a complementaridade e interdependência forte entre ciência e política hoje reforçam e conectam o ponto de Weber ao mundo real.
Como comentei no texto de março, em ambos os trabalhos, Weber chama de vocação a dedicação a uma profissão. E trata da tensão própria presente na adoção dessa atitude dedicada. De um lado, aceitação realista de um condicionamento social; de outro, aposta do sujeito individual numa possibilidade de ação com sentido de valor.
Prossigo me repetindo: a condição social é sempre o desencantado mundo moderno, fruto de um processo de racionalização de meios para o atingimento de fins. Já a possibilidade que se apresenta à pessoa vocacionada de cultivar valores através de uma profissão é a de escolher um modo de agir que conecte meio e fim a uma “causa”. A ciência e a política, tal como vistas por Weber, são (ou ainda podiam ser, há cem anos) espaços de ação por mobilização de valores, desde que no exercício dessas vocações a pessoa não se rebele contra o que há de inexorável na racionalização que também afeta as duas atividades.
Agora, repito coisas que disse em março, mas desdobro-as e vou além. Fato social e ato individual são facas com dois gumes. A racionalização é esquina entre emancipação e instrumentalização (é racional buscar direitos ou privilégios). Se a esquina for dobrada exacerbando instrumentalização, há redução e amesquinhamento da razão, que virtualmente chega à fronteira com a perversidade. Já a decisão do ator é, por vezes, tomada em esquinas entre autonomia (faço livremente o que posso querer) e despotismo (faço o que quero). Em contextos críticos, como o que vivemos com a pandemia, essas esquinas viraram mobília em nossos cercados. Quando eticamente animada, a razão gera decisões pelas quais readquire amplitude e grandeza. Mas corre risco de se tornar intolerante e dogmática, inspirando atitudes voluntaristas que paradoxalmente levam ao irracional ou, ao menos, à irrazoabilidade. Por exemplo, ficar em casa é racional, expor-se ao vírus por escolha não é. Mas acusar de irresponsável quem é obrigado a sair de casa, sem considerar o contexto dessa pessoa, é usar uma razão – licença aqui para lembrar Leandro Konder – quase enlouquecida.
Na ciência e na política persiste um dilema. O sujeito que pratica uma ou outra vive entre a resignação a uma estabilidade que pode parecer medíocre e depressiva (apego ideológico a uma verdade em matéria de ciência e a uma opinião fixa em matéria de política) e uma insegurança ansiosa diante do imprevisível. Esse dilema, em outras áreas de atividade humana, já foi resolvido em favor da chamada razão instrumental. Vale o objetivo. Se na ciência e na política o dilema entre o que pode e o que deve ser ainda existe, então o ponto de Weber, sobre as vocações, exposto nos textos das duas conferências, segue relevante. A pessoa que adota ciência ou política como vocação não escapa da condição de mover-se num fio de navalha.
Essas são balizas para ver diferenças e até contrastes entre as vocações da ciência e da política, sem criar abismo entre elas. Essa atitude permite especular que não é estranho um diálogo entre essas duas distintas vocações. Um diálogo que se tornou um imperativo civilizatório.
Weber salienta, na ciência, a influência “fora do comum” do acaso, que desafia qualquer valor. Um problema de ação coletiva, por exemplo, no corporativismo das seleções acadêmicas, que pode premiar arrivistas e medíocres. Seguindo seu raciocínio crítico podemos até nos espantar com o fato de haver tanto acertos como erros nessas seleções e não predomínio claro de erros.
O papel influente do acaso na ciência resultaria também de uma dupla exigência da carreira: ser cientista e professor. O critério da “sala cheia” condena a profissão aos ditames do acaso, do ponto de vista científico. Se de um lado a educação científica é uma “aristocracia espiritual”, de outro, a tarefa pedagógica mais difícil – e sem a qual o êxito na missão formativa não é pleno – é saber expor problemas científicos de um modo suficientemente claro para serem apreendidos por espíritos não preparados, embora bem dotados. Isto é um dom pessoal que não se confunde com os conhecimentos detidos pela pessoa. Só por coincidência reúnem-se, numa só pessoa, as duas aptidões. Por interpretação não autorizada do argumento do autor pode-se argumentar que, se queremos combinar ensino e pesquisa, resta apostar em instituições, mais que em compromissos ou talentos de indivíduos. Se reencarnado em nossa época, o espírito de Ortega Y Gasset certamente acharia que era feliz e não sabia, na sua encarnação anterior quando lamentava, antes de Weber, a ascensão dos “homens sem mister”.
Vamos para a política. É célebre a definição weberiana do Estado moderno. Prestemos atenção nela: “Instituto político de atividade contínua, cujo quadro administrativo mantém, com êxito, a pretensão de monopólio legítimo da coação para a ordem”. Prestemos atenção porque o caráter monopólico do poder estatal (que é geralmente lembrado) é tão relevante como o de ser um instituto racional e um empreendimento contínuo, coisa nem sempre valorizada. É a organização burocrática do estado moderno que controla os governantes que, por sua vez, para dirigirem o estado, expropriaram, lá atrás, na História, o poder de poderosos pré-políticos, senhores oligarcas e mandões de todo tipo. Assim, burocratas da política organizam a política como poder continuo, graças ao caráter compulsório da organização do Estado.
Importa tanto a história dessa profissionalização, quanto a de modos economicamente distintos, mas simultâneos, de praticar a política como vocação. Riqueza, por exemplo, segue valendo como atributos de políticos profissionais. Mas não é empecilho à profissionalização específica dos políticos, nem à difusão de novos modos de acesso de pessoas sem propriedade à liderança política, nem ao aperfeiçoamento do mercado de recompensas. Os cargos seguem sendo a forma mais moderna de prebenda e, por isso, a expressão mais ativa da luta dos partidos. Passado o intervalo totalitário vivido no coração da Europa há 80 anos essas difusões voltam a revelar os laços mundanos da democracia. Assim como na ciência, cientistas e professores complementam-se em instituições, para combinar grande e pequena política é preciso apostar em instituições mais que na qualidade individual, ou das elites dirigentes.
Voltemos, com Weber, à ciência. Nas condições “modernas”, a valorização na profissão científica “propriamente dita” está condicionada à especialização. Somente trabalhos de especialistas podem almejar valorização própria no mundo da ciência. Logo, quem não for capaz de usar antolhos e adotar uma exata e determinada ideia como sua razão de vida e salvação da alma deve ficar longe da profissão. Também por interpretação não autorizada, é possível dizer que o que hoje chamamos de multidisciplinaridade só pode se realizar com êxito por articulação de diferentes especialistas, no âmbito de uma instituição. Para propiciar êxito ao cientista individual, a multidisciplinaridade precisaria, ela própria, converter-se em disciplina especializada, reiterando a regra e renunciando à sua pretensão inovadora original.
Agora, de volta à política, mais uma vez. Nada mais atual do que a rejeição social da “política dos cargos”, mesmo da parte de quem não vê relação entre burocracia e integridade. A história da luta entre políticos destacados e funcionários administrativos é antiga e é luta por poder. São antigas também e em ziguezague as coalizões entre funcionários especializados e algum dos poderes diretamente políticos, na maioria das vezes com o Executivo, em menos vezes com o Legislativo. Assim se forma a experiência governamental de um país.
Mas esse campo da experiência está longe de se resumir a tradições e outras balizas historicamente assentadas. O treinamento na luta, de que nos fala Weber, é processo contínuo. Em cada contexto valem como balizas para a ação política tanto fatores (instituições, partidos, lideranças, teorias e práticas) já considerados pelo conhecimento da história, longínqua e recente, de cada lugar, como também fatores casuais, ou mesmo inéditos. Alguns irão se tornar longevas e com isso serão também incorporados a tradições. Outros vão se esgotar ali, naquele momento. Mas nada impede que esses efêmeros sejam mais decisivos num contexto crítico.
Vivemos num país que está passando de uma forma muito severa por essa lição sobre a efetividade do que Wanderley Guilherme dos Santos chamou de “mão invisível do caos”. Ela, essa mão invisível, é que pode, como não-razão que é, levar uma boa razão a se deixar enlouquecer pela pretensão de amputá-la. Numa busca dessa, antecipadamente fracassada, os super-racionais podem julgar inúteis as reflexões realistas de Weber, que nos lembra de que a distinção entre funcionários administrativos e funcionários políticos não é essencial. Nela não há o bem, nem o mal. Ela é uma implicação do treinamento na luta pelo poder.
A possibilidade, que hoje temos, de recorrer com êxito a funcionários da ciência como formuladores de políticas públicas é um recurso prudente quando a lógica da política in natura torna-se refém da face mais negativa do carisma. O ponto que Weber nos traz induz a celebrar como providencial a dependência recíproca entre política e ciência. É essa uma das âncoras práticas a partir da qual uma atitude política prudencial de novo tipo pode se amparar para conter a força recente que a atitude voluntarista adquiriu em nossas democracias.
A moderna organização dirigida por políticos profissionais pode retornar – e tem retornado – a viver nos parlamentos. Poderosas máquinas burocráticas seguem derivando da democracia e do voto de massas, mas deixam de subordinar parlamentares porque eles e os políticos profissionais deixaram de ser coisas diferentes. O papel relevante, político e eleitoral, da liderança democrática volta a mostrar que a prudência é uma face possível do carisma.
Chegamos à última estação da viagem a Weber. Trata-se das éticas da ciência e da política e aqui retorno, uma vez mais, à coluna de março. Nada poderia dizer sobre isso, nem em março nem agora, que substituísse as palavras do próprio. (…) toda obra científica “acabada” não tem outro sentido senão o de fazer surgir novas indagações. Portanto, ela pede que seja ‘ultrapassada’ e envelheça. Todo aquele que pretenda servir à ciência deve resignar-se a esse destino”
Por que ser cientista, se a produção é condenada ao envelhecimento? Weber evoca Tolstói, para dizer que perguntas sobre os sentidos da morte e da vida passaram a defrontar-se com a ideia moderna de progresso (ninguém mais morre “pleno de vida”). A mórbida realidade da nossa hora renova o sentido dessa vocação.
Agora sobre a ética da política, volto a citar: “A impossibilidade de uma ética única, extensiva à política, é tão real quanto a falsidade da afirmação de que a ética da política não possui nexos com qualquer outra ética”. As indicações para quem pretende vocacionar-se à política dirigem-se a uma determinada ética da responsabilidade, contraposta à ética das convicções, própria da fé dogmática. É muito vivo o contraste entre as duas orientações. Enquanto a da convicção sobre os últimos fins faz quem a segue julgar-se distinto da estupidez e da mesquinhez do mundo, a da responsabilidade manda dizer: “Eis-me aqui. Não posso fazer de outro modo”. Daí ser impossível agora, como em março, ignorar o parágrafo final de “A política como vocação”:
“A política é como a perfuração lenta de tábuas duras (…) somente quem tem a vocação da política terá certeza de não desmoronar quando o mundo, do seu ponto de vista, for demasiado estúpido e mesquinho para o que ele lhe deseja oferecer. Somente quem, frente a tudo isso, pode dizer “apesar de tudo!” tem a vocação para a política”
Quem acha – e também comentei isso na coluna de março – que essa oposição radical entre duas éticas que separam o político por vocação do apóstolo de uma fé serve também para distinguir a política da ciência surpreende-se ao não encontrar esse contraponto em “A ciência como vocação”. Se a ética da responsabilidade compete claramente ao político por vocação, não se constata, no texto sobre a ciência uma correspondência entre o profissional da ciência e a ética da convicção. A ambiguidade ética intrínseca à vida política infiltra-se no agir científico, impondo também ao cientista uma “negociação com demônios”. Sua ética também precisa ir além das suas convicções. Talvez não tanto quanto a da política – ou de modo diferente dela – a ética da ciência contrasta a fé dogmática.
Os valores perseguidos por uma e outra vocação são distintos. A verdade na ciência e a legitimidade na política não podem ser alcançadas através de idêntica conduta. Um político não produz ciência, nem se resolve no professor. Mas a distinção não impede a cooperação.
O carisma é a fonte da legitimidade propriamente política e como a política, é ambíguo. Pode conciliar os valores que defende com as regras que limitam sua ação e se for assim atua como energia revigoradora. Mas pode também mobilizar afetos para ameaçar essas próprias regras e nesse caso ser energia destruidora.
Na política, exortação à intervenção revitalizadora do carisma; na ciência, a pregação de uma paixão pela rotina. A paixão que leva à dedicação profissional a uma causa é um elo comum entre as distintas dinâmicas da ciência e da política no mundo moderno. Elo que permite a vocação ser cumprida com sentido crítico e inovador. Liame ético que, em vez de estagnar o sujeito em suas convicções, orienta-o a agir com responsabilidade, fazendo seus valores pessoais dialogarem com os limites institucionais e culturais da sua respectiva vocação.
Espero ter argumentado que quando comparamos, hoje, ciência e política, estamos, mais ainda do que há cem anos, diante de uma cooperação possível, que é exigência social da vida prática.
*Cientista político e professor da UFBA
Fonte:
Democracia Política e novo Reformismo
https://gilvanmelo.blogspot.com/2021/05/paulo-fabio-dantas-neto-ciencia-e.html
Demétrio Magnoli: O general que obedecia
“Um manda, outro obedece”. Eduardo Pazuello, o general que logo sentará na cadeira de testemunhas da CPI da Covid, carrega um álibi no bolso, mas pensará duas vezes antes de invocá-lo. A alegação permitiria à CPI saltar as etapas intermediárias, girando seus holofotes diretamente para a suposta fonte das ordens, que é Bolsonaro. Além disso, como revela a história argentina, não seria capaz de livrá-lo da responsabilidade por seus próprios atos.
Sob pressão militar, Raúl Alfonsín, o primeiro presidente da redemocratização argentina, anunciou em março de 1987 a edição de uma lei destinada a interromper inúmeros processos por crimes contra a humanidade. A Lei de Obediência Devida foi antecipada pela sublevação dos “carapintadas”, comandada por um tenente-coronel condecorado na Guerra das Malvinas, na Escola de Infantaria do Campo de Mayo, durante a Semana Santa. Promulgada em junho de 1987, tornou inimputáveis cerca de 500 oficiais indiciados por torturas, “desaparecimentos” e assassinatos durante a ditadura militar.
A lei erguia-se sobre o reconhecimento de que as Forças Armadas operam com base na regra da “obediência devida” —ou seja, os subordinados na cadeia de comando cumprem “atos de serviço”. Contudo, mesmo cedendo à chantagem dos quartéis para estabilizar uma jovem democracia acuada, o presidente eleito introduziu uma cláusula limitante: o benefício da impunidade só seria concedido a oficiais com patentes inferiores a coronel. Pazuello teria que responder por suas ações e omissões até na Argentina abalada pelos motins militares.
O conceito de obediência devida sustentou a defesa do nazista Adolf Eichmann no célebre julgamento em Jerusalém, em 1961. Seu advogado, Robert Servatius, declarou que o coronel da SS responsável pela deportação dos judeus aos campos de extermínio era “culpado diante de Deus, não diante da lei”. Na Argentina, a Lei de Obediência Devida foi derrogada pelo Congresso em 1998 e declarada inconstitucional pela Corte Suprema em 2005. Crimes contra a humanidade não são passíveis de anistia, decidiram os juízes.
Pazuello não cometeu crimes contra a humanidade, mas crimes potenciais contra a saúde pública que se estendem da postergação da compra de vacinas à divulgação de falsos tratamentos milagrosos contra a Covid-19, passando pela distribuição de cloroquina a hospitais de Manaus carentes de oxigênio. Nem assim, porém, o álibi dos “atos de serviço” pode ser admitido na CPI.
O general obediente permaneceu na ativa quando assumiu o cargo de ministro da Saúde, borrando um pouco mais a fronteira democrática que separa as Forças Armadas do governo. Sua deliberação pessoal, contudo, em nada altera o fato institucional de que ministros são auxiliares políticos do presidente, não subordinados numa hierarquia militar. Diante dos senadores da CPI, deporá um político fantasiado em uniforme militar, não um oficial sujeito à cadeia de comando castrense.
Eichmann e os oficiais argentinos estavam submetidos a ordens superiores. Entretanto, não agiam automaticamente, à moda de robôs: cotejavam, numa balança invisível, o peso das hipotéticas punições por desobediência contra os imperativos das suas consciências. Como explicou Kant, eles continuavam a dispor de autonomia e decidiram cumprir ordens abomináveis. Seus crimes resultaram de obediência consentida, não de obediência devida.
Pazuello, como eles, mas encarando consequências muito menores, poderia ter dito “não”.
Alfonsín concedeu bastante, até um certo limite. No Processo das Juntas, em 1985, os chefes militares que emitiram as ordens da “guerra suja” foram sentenciados e encarcerados. A CPI tem o dever de analisar as responsabilidades pessoais do general que obedecia, mas não tem o direito de usá-lo como bode expiatório, fingindo que ninguém emitia as ordens desastrosas.
Fonte:
Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/demetriomagnoli/2021/04/o-general-que-obedecia.shtml
Cristina Serra: Biden, Guedes e a Casa-Grande
Merece ampla discussão o plano do presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, para a retomada pós-pandemia, especialmente pelo que propõe sobre o papel do Estado numa economia capitalista e numa sociedade profundamente desigual como a norte-americana.
Basicamente, o presidente propõe reformas de caráter progressista, que se destinam a melhorar as engrenagens do capitalismo, para que o motor econômico volte a girar sem deixar para trás multidões de desesperados revirando lixo para não morrer de fome.
Biden quer criar empregos para a classe média e trabalhadores com menor qualificação, aumentar o valor do salário mínimo, ampliar a educação pública e melhorar o acesso à saúde, que, segundo ele, deve ser um direito, não um privilégio.
A questão é saber quem vai pagar a conta dos investimentos do Estado. Biden quer elevar a carga tributária das empresas e daqueles que ocupam, digamos, o topo da cadeia alimentar e que engordaram suas fortunas ainda mais durante a pandemia. Ele enunciou seu argumento de forma até singela: “É hora de pagarem a sua parte justa”.
No Brasil, porém, falar em aumento de carga tributária dos mais ricos (inclusive no âmbito de uma reforma sobre o tema) é um debate interditado, sobretudo em parte da grande mídia, que deveria amplificá-lo. Esta parece domesticada pelo “mercado” e se comporta como porta-voz de Paulo Guedes em seu projeto de desossar o Estado e seu papel de indutor da mobilidade social.
Guedes é exemplo extremo de “aporofobia”, expressão cunhada pela filósofa espanhola Adela Cortina para definir a aversão aos pobres e que se manifesta de diversas formas no mundo contemporâneo. A palavra vem do grego áporos (pobre) e fobéo (rejeitar).
Guedes não cansa de demonstrar ódio de classe: empregadas domésticas não podem viajar e filhos de porteiros não merecem estudar. Cada vez que abre a boca, Guedes exala o mau hálito da Casa-Grande.
Fonte:
Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/cristina-serra/2021/04/biden-guedes-e-a-casa-grande.shtml
Marcus Pestana: 2022, cada coisa ao seu tempo
O grande político pernambucano Marco Maciel comentou certa vez com ironia: “O importante é não botar o depois antes do antes”. O ex-presidente e governador de Minas Tancredo Neves, do alto de sua experiência, argúcia e habilidade, cunhou a metáfora; “Só examine a espuma depois que as ondas pararem de bater”.
O tempo da política nem sempre coincide com a percepção e as necessidades da sociedade. A gestão da variável tempo é estratégica no jogo da política. A precipitação não é boa conselheira.
A leitura das pesquisas joga o foco muito mais nas intenções de voto do que no sentimento oculto na alma dos cidadãos comuns. Já assisti viradas eleitorais históricas. A opinião pública é volátil, sujeita a chuvas e trovoadas. Não só as virtudes dos candidatos contam, mas também a sorte, o destino. “Tudo que é sólido desmancha no ar”. O acaso também tem o seu papel. É só lembrar o acidente aéreo que vitimou o talentoso governador de Pernambuco Eduardo Campos, em 2014, ou a absurda tentativa de assassinar Bolsonaro, em 2018. Eleição não é concurso de provas e títulos. A democracia acerta sempre no atacado e no longo prazo, e comete visíveis injustiças no varejo e no curto prazo. É um processo coletivo de aprendizagem permanente.
As decisões do STF que resultaram na reabilitação eleitoral de Lula, sem inocenta-lo, desencadearam a precipitação do debate sobre as eleições presidenciais de 2022.
A agenda da sociedade e o interesse real dos brasileiros, neste exato momento, poderiam ser resumidos em emprego na carteira, vacina no braço e comida no prato.
No entanto, o quadro político-partidário não pode ficar inerte diante de fatos novos que ocorrem. Todo cuidado é pouco para não gerar uma rejeição absoluta do eleitorado a partir da falsa percepção que os políticos só pensam em eleições e não se preocupam com a pandemia, o desemprego, a fome e a miséria.
O quadro parece clarear a cada dia. Bolsonaro será candidato à reeleição e agirá nestes próximos quatorze meses para aguçar a polarização e manter fiel a base social que o apoia. Lula será candidato a reeleição ou lançará novamente Haddad pelo PT e tentará com seu carisma e experiência reverter o desgaste derivado do mensalão, da Lava Jato e do desastroso legado de Dilma. Ciro Gomes dificilmente recuará e tentará construir pontes com o centro democrático visando compensar as perdas à esquerda, mas as convergências com o centro dificilmente cancelarão divergências substantivas que existem em termos programáticos.
A variável ainda não presente à mesa é: qual será a chapa que representará o centro democrático? O PSDB realizará prévias em outubro com seus quatro pré-candidatos: Arthur Virgílio, Eduardo Leite, João Dória e Tasso Jereissati. O DEM tem dois bons nomes, o ex-ministro Luiz Henrique Mandetta e o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco. O apresentador de TV, Luciano Huck, ainda não resolveu se entrará ou não na disputa. João Amoêdo e o NOVO estão flexibilizando seu fundamentalismo liberal e se abrindo para o diálogo. Todos estão conversando e procurando a melhor solução.
Fato é que a polarização dos extremos personificada pelo embate Lula versus Bolsonaro não é uma realidade definitiva e inabalável, como muitos cravam precipitadamente. Há um amplo espaço para a construção de uma 3ª. Via.
*Marcus Pestana, ex-deputado (PSDB-MG)
Fonte:
O Tempo
https://www.otempo.com.br/politica/marcus-pestana/subscription-required-7.5927739?aId=1.2479266