Bolsonaro
Moisés Naím: O grande descompasso
Os cientistas nunca tiveram dúvidas de que teríamos uma vacina contra a covid19. E não estavam errados. Muito poucos, entretanto, previram que tal vacina estaria disponível tão rápido. Acertaram ao presumir que teríamos uma vacina contra esse vírus, mas erraram em suas estimativas da velocidade com que isso aconteceria. A experiência histórica indicava que levaria anos para a vacina se desenvolver e se tornar disponível em grande escala. Os cientistas começaram a pesquisar a covid-19 em janeiro de 2020 e pouco depois estavam prontos para iniciar a fase 3 dos testes clínicos, a qual avalia a eficácia da vacina em um grande número de pessoas. Normalmente, passam-se anos até que qualquer medicamento ou tratamento esteja pronto para os estudos de fase 3. Nesse caso, foram seis meses.
O mesmo está acontecendo com as mudanças climáticas e a revolução digital baseada na inteligência artificial. Os especialistas identificam corretamente as tendências das mudanças, mas subestimam a velocidade com que ocorrem.
O desenvolvimento científico e tecnológico é uma das tendências que sempre definiram a humanidade. Outra tendência histórica é que as novas tecnologias tendem a ter consequências imprevistas na sociedade, na economia e na política. E, claro, nos governos, que estão sempre desatualizados e atrasados nas mudanças tecnológicas.
O que aconteceu com a vacina contra a covid-19 – sua invenção, produção e distribuição – é um exemplo revelador desse perigoso descompasso entre tecnologia e política. Se o esforço científico foi global, a resposta dos governos foi local. Se laboratórios de diferentes países compartilharam dados e informações, governos importantes, como o chinês, por exemplo, os ocultaram ou desconversaram.
Os cientistas mostraram visão, flexibilidade e velocidade, os governos foram míopes, rígidos e lentos. Tudo isso não quer dizer que não tenha havido rivalidades entre alguns cientistas e acirrada competição entre as empresas farmacêuticas. Mas todos nós vimos como, enquanto os cientistas respondiam efetivamente à crise, políticos e governos de muitos países negavam a própria existência da pandemia ou a minimizavam, ridicularizavam o uso de máscaras ou a necessidade do distanciamento social, promoviam tratamentos fraudulentos e o uso de medicamentos milagrosos.
As normas, regras e valores que orientam o comportamento dos políticos são, por certo, muito diferentes daqueles que orientam os cientistas. Se, para os cientistas, o mérito individual é muito importante, os políticos privilegiam a lealdade de seus colaboradores e seguidores. Para os cientistas, as decisões devem se basear em dados e evidências, enquanto os políticos tradicionais se fiam muito em suas experiências, passagens e intuições anteriores. Enquanto a pesquisa científica busca mudanças por meio da criação e adoção de novos conhecimentos, a política muitas vezes privilegia ideias e formas de agir conhecidas – mesmo que, em seus discursos, todos os políticos se apresentem como agentes da mudança. Por fim, o método científico se fundamenta na razão e na verificação empírica de afirmações cuja validade pode ser verificada e replicada por outros. Na política, por outro lado, prevalecem as paixões e crenças pessoais, bem como as crenças religiosas e o pensamento mágico.
Tudo isso não significa, é claro, que entre os cientistas não existam comportamentos influenciados por paixões, interesses e preconceitos, ou que entre os políticos não existam casos de meritocracia, racionalismo e promoção da mudança. Mas o que esse contraste revela são algumas das fontes do descompasso entre ciência e política.
O atraso da política se manifesta brutalmente na estagnação dos governos, em seu funcionamento e, principalmente, nos processos de tomada de decisão em matéria de políticas públicas. Os políticos fariam bem em adotar o espírito de experimentação que sempre definiu a ciência. Isso, ao lado da abertura a novas ideias, a avaliação imparcial das evidências e a força da realidade empírica, poderia começar a reconstruir a credibilidade das democracias diante das múltiplas crises que as ameaçam. A alternativa – o status quo – oferece apenas o aprofundamento da crise de desgoverno que tem assolado tantas democracias ocidentais.
Fonte:
O Estado de S. Paulo
https://internacional.estadao.com.br/noticias/geral,o-grande-descompasso,70003701855
Gustavo Loyola: Incertezas crescentes, economia estagnada
A “solução” para a questão do orçamento federal de 2021, por meio de alteração na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), configura um atentado grave à responsabilidade fiscal. Foi criado um monstro orçamentário que abre espaço para a violação sistemática do teto de gastos estabelecido pela Emenda Constitucional 95, que tende a virar letra morta como mais uma das leis que não pegaram no Brasil. Tudo resultado de um processo orçamentário caótico, em que falharam a equipe econômica e a articulação política do governo, agravado pelo pouco compromisso do Congresso com a higidez e qualidade das contas públicas.
Há pelos menos dois problemas sérios com o orçamento aprovado para 2021. O primeiro decorre do volume extraordinariamente elevado de despesas – mais de R$ 100 bilhões – que ficam fora do teto de gastos, por estarem ligadas ao enfrentamento da pandemia (gastos com saúde e com programas como o Pronampe) e que serão cobertas por créditos extraordinários. O segundo deriva dos vetos do Executivo que foram necessários nas rubricas relativas às despesas discricionárias, com vistas a acomodar o exagerado volume de emendas introduzidas pelo Legislativo, que podem inviabilizar o funcionamento da máquina estatal e a continuidade de políticas públicas essenciais ao país.
Foi criado um monstro orçamentário que abre espaço para a violação sistemática do teto de gastos
Ambos problemas são péssimas sinalizações para o futuro. De um lado, repete-se o duvidoso expediente do qual abusou o governo Dilma, quando deixava de fora da meta do resultado primário certas despesas associadas a investimentos do setor público. Tal como ocorreu no governo petista, deixar de contabilizar gastos na meta fiscal não tem o condão de reduzir as necessidades de financiamento do setor público. Artifícios contábeis apenas contribuem para a diminuição da transparência das contas do governo. De outro, o corte irrealista, por meio de veto presidencial, de despesas discricionárias, assim como a necessidade de contingenciamento orçamentário, antecipa uma piora ainda maior na qualidade dos gastos, como já o demonstram o novo adiamento do Censo, que deveria ter ocorrido no ano passado, e a míngua de recursos para as atividades de preservação do meio ambiente.
Mas há outros prejuízos e incertezas trazidos pela caótica tramitação orçamentária. A começar pela perda adicional de credibilidade na gestão do Ministério da Economia e na capacidade do ministro Guedes de influenciar as decisões relevantes do governo Bolsonaro com impactos sobre temas econômicos.
A influência deletéria de alguns setores do governo sobre o relator do Orçamento no Congresso, com objetivo de amealhar verbas para seus ministérios à revelia da área econômica, aparentemente com o beneplácito presidencial, dá a medida da pouca força que resta ao ministro da Economia, que outrora foi rotulado pelo próprio Bolsonaro como o “posto Ipiranga” do seu governo. Este tipo de episódio leva de maneira inevitável os agentes econômicos a anteciparem dificuldades futuras para a política econômica, notadamente na área fiscal, sujeita a pressões de toda sorte, vindas de dentro do próprio Executivo, mas também do Congresso Nacional.
Por outro lado, iniciativas ventiladas pelo ministério da Economia na busca de uma solução para o impasse orçamentário, principalmente o da emenda “fura teto”, desgastaram ainda mais a imagem da atual gestão econômica junto ao mercado e aos formadores de opinião, afetando negativamente as expectativas e a própria precificação do prêmio de risco soberano.
Ao quadro adverso no campo fiscal somam-se outras incertezas associadas ao ambiente político e ao desempenho da atividade econômica nos próximos meses. A “solução” trazida para o imbróglio do orçamento revelou a força política do Legislativo, com destaque para o Centrão, sempre ávido por cargos e recursos públicos. O início dos trabalhos da CPI da Covid no Senado – na qual o governo não dispõe de maioria – antecipa momentos políticos difíceis para Bolsonaro, que podem ter reflexos sobre as expectativas e sobre o desempenho do governo em áreas relevantes para a economia. Ademais, a reconquistada elegibilidade de Lula pôs no horizonte o risco de uma eleição plebiscitária no ano que vem entre dois extremos que podem igualmente serem danosos para o país.
Além disso, a situação da pandemia continua bastante grave, em que pese a redução recente no número de infectados e de óbitos. Tal redução, afirmam os especialistas, decorreu em grande parte das medidas restritivas adotadas em boa hora pelos governos locais, mas que cobram seu preço em termos da atividade econômica. Sem a aceleração da vacinação, corre-se o risco de ficarmos presos na armadilha do “abre-e-fecha” até pelo menos o final do ano, com consideráveis impactos negativos sobre a economia. O recrudescimento da pandemia na Índia ameaça-nos não apenas com novas cepas do coronavírus, como também com o risco de falta de insumos para a produção de imunizantes necessários à manutenção de um ritmo mínimo de vacinação no Brasil.
Assim, o cenário de incertezas crescentes e de economia estagnada vai se tornando o mais provável para o biênio 2021-2022, após a forte recessão do ano passado e o desempenho anêmico nos anos anteriores. Com isso, torna-se, infelizmente, pouco provável a recuperação do emprego e a melhora dos indicadores sociais nos horizontes de curto e médio prazo.
*Gustavo Loyola é doutor em Economia pela EPGE/FGV, ex-presidente do Banco Central e sócio-diretor da Tendências Consultoria Integrada, em São Paulo
Fonte:
Valor Econômico
https://valor.globo.com/opiniao/coluna/incertezas-crescentes-economia-estagnada.ghtml
Bruno Carazza: A volta dos que não foram
No ciclo de 2013 a 2018, as estruturas da política brasileira foram sacudidas por três fenômenos consecutivos e de certa forma inter-relacionados. Os movimentos sísmicos começaram com as manifestações de junho de 2013 e a ascensão do discurso do “não me representam”. Na sequência, muitas lideranças partidárias desabaram diante do terremoto que foi a Operação Lava-Jato. Por fim, nas eleições de 2018, o bolsonarismo chegou como um tsunami, derrubando quase tudo o que restou da velha ordem da Nova República.
Por condenações judiciais ou derrotas impostas pelos eleitores, a lista das vítimas é imensa. Para ficar apenas nos nomes mais significativos que tiveram suas carreiras interrompidas nesse processo estão os petistas Dilma Rousseff, Antonio Palocci, Fernando Pimentel, Jorge Viana e Delcídio do Amaral. Entre os tucanos, não conseguiram ser eleitos ou perderam seus cargos Geraldo Alckmin, Marconi Perillo e Beto Richa.
No MDB tombaram Romero Jucá, Eduardo Cunha, Eunício Oliveira, Garibaldi Alves, Valdir Raupp, Edison Lobão e Geddel Vieira Lima. Entre os membros do DEM, foram abatidos José Agripino, Heráclito Fortes e José Carlos Aleluia. No Centrão caíram ainda Valdemar da Costa Neto e Alfredo Nascimento (PL), além de Roberto Jefferson (PTB), entre muitos outros “peixes pequenos”.
Jair Bolsonaro assumiu a Presidência da República, portanto, com um Congresso em terra arrasada. Além da diminuição no número de políticos experientes, o índice de “senioridade” na atual legislatura caiu (nas minhas contas, 82 deputados eleitos nunca haviam disputado uma eleição sequer na vida) e o grau de pulverização elevou-se – PT e PSL, os dois partidos com maior representatividade no plenário da Câmara, possuem pouco mais de 10% das cadeiras.
Esse cenário era perfeito para Bolsonaro nadar de braçada, pois além de não contar com um exército de parlamentares tarimbados na oposição, boa parte dos novos e antigos congressistas comungava de suas visões sobre a sociedade e a economia – afinal, o atual presidente moldou-se no mesmo barro que constitui o Centrão.
Bolsonaro, porém, abriu mão de liderar, seja por falta de agenda ou de cabeças coroadas na sua equipe (seu ministro com maior rodagem, Onyx Lorenzoni, nunca havia ocupado um cargo na Mesa Diretora da Câmara). Antes de seu governo ser engolido pela pandemia, a única entrega significativa foi a Reforma da Previdência – e ainda assim tendo contado com um belo empurrão da administração Temer. Fora isso, poucas propostas legislativas compensadas por muitos decretos tentavam contornar a falta de uma base governista.
Em nossa história recente, é alta a probabilidade de presidentes fracos no Congresso terem em algum momento que enfrentar um processo de impeachment ou uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que seja capaz, senão de matá-lo, pelo menos de fazê-lo sangrar por alguns meses.
O capitão parece não ter aprendido nada em seus sete mandatos como deputado federal. Quando acordou para o fato de que, para governar, é preciso fazer alianças, já era tarde demais. O ideal seria evitar a criação da CPI; não conseguindo contorná-la, poderia ter manobrado para que ela fosse mista, contando com a ajuda de Arthur Lira pelo lado da Câmara; restrita ao Senado, com algum jogo de cintura daria para ter a maioria dos membros. Perdeu em todas.
A CPI da covid dará trabalho a Bolsonaro não apenas por estar em minoria. Pior do que contar com um apoio restrito é ver emergirem forças que desde o início do mandato vagavam à procura de uma oportunidade para retomar o protagonismo que detiveram no passado.
A composição da CPI é mais um sinal do movimento de refluxo na política brasileira, já captado no resultado das urnas em 2020. Entre seus titulares e suplentes estão alguns dos sobreviventes da sucessão de ondas destruidoras das jornadas de 2013, da Lava-Jato e do bolsonarismo.
Em 2018, quando a avalanche soterrou boa parte dos figurões que deram as cartas nas últimas décadas, poucos foram poupados. Cada um a seu modo, Renan Calheiros (MDB-AL), Jader Barbalho (MDB-PA), Eduardo Braga (MDB-AM), Humberto Costa (PT-PE) e Ciro Nogueira (PP-PI) foram importantes lideranças durante as presidências do PSDB e PT que escaparam tanto dos processos criminais quanto da sede de renovação do eleitor.
A eles se juntam Tasso Jereissati (PSDB-CE) e Otto Alencar (PSD-BA), que por terem sido eleitos em 2014 (o mandato de senador é de oito anos), não foram colocados à prova no mesmo pleito que elegeu Bolsonaro.
Com o couro curtido por décadas de embates em CPIs – atuando ora como investigados, ora como inquisidores -, esse grupo de parlamentares ditará, para um lado ou para o outro, o ritmo da devassa sobre a responsabilidade do chefe do Poder Executivo sobre as mais de 400 mil mortes causadas pela pandemia até agora.
A volta dos que não foram coloca em jogo muito mais do que o destino do atual presidente. Cada um desses membros da velha guarda tem objetivos próprios ou coletivos bastante concretos e usarão a CPI para torná-los mais próximos de serem alcançados.
Jereissati e Alencar buscarão em 2022 a reeleição ou tentarão alçar outros voos. As sessões da comissão, portanto, serão um palanque de luxo que será explorado à exaustão visando ampliar seu capital eleitoral.
Os demais, tendo à frente Renan Calheiros como relator e Ciro Nogueira como principal representante governista, tentarão fazer da CPI a base para a reconstrução da ordem política, da qual almejam ser protagonistas dependendo de quem vier a ocupar o Palácio do Planalto em 2023.
Bolsonaro errou muito desde o seu governo, mas já percebeu que não pode ficar refém das velhas raposas que tentarão acuá-lo a partir desta semana, com o início dos depoimentos. Para isso vai buscar se blindar com o apoio popular, como demonstraram as manifestações desse último final de semana.
Os próximos capítulos prometem.
*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.
Fonte:
Valor Econômico
https://valor.globo.com/politica/coluna/a-volta-dos-que-nao-foram.ghtml
Correio Braziliense: ‘Muito poderia ter sido feito para evitar tantas mortes’, diz Gilmar Mendes
Ao ministro do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, a pandemia conta uma história e deixa lições. Impossível passar por ela e não ver uma imensa janela aberta, mostrando a realidade que descortina um Brasil em pleno luto: “A pandemia escancarou erros e omissões históricas do Estado brasileiro na área social”. Não só isso. Para ele, fica demonstrada de forma inequívoca a importância da ciência e a necessidade ampliar investimentos no setor.
Lamentando a marca de mais de 400 mil mortos por covid-19, o ministro percebe que a dimensão absurda que a pandemia tomou no Brasil não se deve apenas a uma questão de agilidade: “Olhando para tudo que foi feito até agora, é possível dizer que não foi apenas uma questão de decisões tomadas fora do tempo ideal. Há uma série de outras questões que nos conduziram a essa tragédia.” Seria fundamental, a seu ver, a consistência da atuação do governo, a coordenação entre órgãos, o respeito aos critérios técnicos e à ciência, a boa comunicação com a população.
Nesta entrevista à coluna, o ministro também fala sobre as adaptações da Justiça frente à pandemia, a tecnologia, a noção de prazer e o conceito de liberdade. Acredita que é preciso manter acesa a esperança. E, no fim de tudo, haverá algo de positivo: “Entendo que ficará o legado e o exemplo daqueles que renunciaram a vários prazeres da vida em prol de um objetivo maior, que foi o de salvar vidas”.
Como a Justiça e o Direito se adaptaram para as novas demandas da sociedade diante da pandemia?
É preciso falar, aqui, que o Direito e a Justiça tiveram que se adaptar sob dois aspectos. O primeiro deles, é claro, foi a necessidade de manter as atividades do Judiciário mesmo no contexto da pandemia. Vimos uma atuação bastante relevante de todos os tribunais para possibilitar julgamentos, despachos, audiências, em suma, toda sorte de atos necessários à jurisdição em meio virtual. Felizmente, o nosso Judiciário já contava em grande medida com estrutura para tanto, dada a difusão do processo eletrônico nos tribunais do país.
O segundo aspecto tem relação com o próprio modo de fazer da atividade jurisdicional. Vimos o impacto da pandemia nas próprias demandas que chegam ao Judiciário. E, nesse caso, um dos grandes desafios foi responder a uma série de questões jurídicas, de certo modo, inéditas.
No início da pandemia, não se sabia a dimensão real do problema. Foi necessária uma grande sensibilidade do sistema de Justiça para enfrentar essas situações que se multiplicaram em todo o país. Como lidar com contratos durante esse período? Como fica a questão de eventuais inadimplementos por pessoas e empresas severamente impactadas pelas medidas restritivas? Como devem ser tratados os presos, principalmente os pertencentes aos grupos de riscos, nesse período? Essas foram algumas das questões que os Tribunais tiveram que responder.
No âmbito do Supremo Tribunal Federal, tivemos uma série de ações sobre temas relevantíssimos da pandemia. Diante dos conflitos entre estados e União, principalmente, o tribunal conseguiu delinear importantes diretrizes para a atuação desses entes. Retirou-se também as amarras financeiras e fiscais para as ações de combate à covid-19 e de socorro à população mais severamente atingida. Atuamos, inclusive, no âmbito das vacinas.
Como a pandemia pode reforçar os valores humanistas da sociedade?
A pandemia mostrou a importância da ação coletiva e da união das pessoas. Acredito que, neste momento, foram reforçados os laços de solidariedade e respeito e abandonadas posturas egoístas. É claro que houve infelizes casos de desrespeito às medidas de contenção ao vírus. Mas, no geral, entendo que ficará o legado e o exemplo daqueles que renunciaram a vários prazeres da vida em prol de um objetivo maior, que foi o de salvar vidas.
É possível ter um olhar poético diante desse momento difícil? Como faz para aliviar a tensão?
Acredito que seja difícil diante de tanto sofrimento, mas é importante manter, na medida do possível, a esperança. Para aliviar a tensão eu tento manter a rotina de trabalho no Supremo e no IDP, como professor. Além disso, busco me exercitar e me manter atualizado nos livros.
O que mudou na sua rotina neste ano de pandemia?
Não se pode negar o fenômeno das “lives”. Esse momento nos mostrou que podemos quebrar a barreira da distância — e, aqui, a tecnologia assume um importante papel — através de eventos on-line. Tenho participado de inúmeros e frutuosos debates na modalidade virtual. Até mesmo, passei por uma situação inusitada de, sem querer, soltar uma reclamação ao final de um desses encontros virtuais. O constrangimento, de alguma maneira, deu lugar à piada. Além disso, vemos, é claro, que houve uma completa mudança na dinâmica do Supremo. Os julgamentos virtuais ganharam maior relevo, e as sessões por videoconferência inauguraram uma nova era não só no STF, mas em todo o Poder Judiciário. Com certeza, sem os avanços tecnológicos, nada disso seria possível e, nesse particular, devemos celebrar essas inovações que permitiram que os tribunais continuassem em pleno funcionamento.
Como ficam as grandes questões da humanidade no pós-pandemia?
Acredito que a pandemia não vá alterar o que podemos dizer como as “grandes questões da humanidade”. Mas é certo que ela impactará a forma como as enxergamos. A covid-19 escancarou diversos de nossos problemas e criou novos olhares para analisá-los. Um exemplo claro é o de como tratamos questões tão relevantes como a desigualdade social, a desigualdade entre países e o próprio nacionalismo e todas suas implicações. Diante de uma ameaça global, na qual o descontrole da pandemia em um país pode gerar mutações mais agressivas e resistentes, é evidente que o debate sobre esses temas será afetado. Talvez a pandemia traga a eles uma perspectiva mais solidária e menos cínica. Outro caso interessante é o da liberdade, tema que sempre esteve presente nos mais diversos momentos históricos. Vejo o tanto que a pandemia da covid-19 deu a essa questão novas perspectivas. Refiro-me aqui às variadas discussões que surgiram a partir do tema liberdade, como a de locomoção, a de se vacinar (ou não), a de se manifestar (em redes sociais ou não), a de celebrar cultos, como vimos recentemente.
Que ensinamento este momento nos deixa?
Acredito que, enquanto sociedade, a covid-19 nos deixa uma série de ensinamentos que certamente poderiam ter sido aprendidos de forma menos dura, sem a perda de tantas vidas. Mas gostaria de destacar, em primeiro lugar, o quanto a pandemia demonstrou a importância da ciência e a necessidade de se ampliar o investimento nesse setor. Em segundo lugar, creio que ela escancarou erros e omissões históricas do Estado brasileiro na área social. A pandemia demonstrou e cresceu frente a um sistema de saúde frágil, à falta de estrutura urbana e de morada, às deficiências de nossa educação e a um sistema de seguridade social que até mesmo desconhecia uma quantidade gigantesca de trabalhadores brasileiros, os chamados “invisíveis”. Aqui, talvez, haja uma pontada de esperança de que fique o ensinamento a toda a classe política de que esses temas são urgentes e devem ser tratados com rigor.
Como o senhor vive em Brasília depois de mais de três décadas de convivência? Como “sentiu” a cidade neste ano de pandemia?
Apesar de ter nascido no Mato Grosso e de ter um vínculo muito forte com o estado, toda minha vida se encontra e foi em grande parte desenvolvida aqui em Brasília. Gosto da cidade, das pessoas que aqui conheci e das oportunidades que ela me proporcionou. E, mesmo estando acostumado ao estilo diferente da cidade, com seus grandes espaços abertos, poucos pedestres etc., é impossível não notar a diminuição do número de pessoas na rua, a redução drástica de eventos culturais, especialmente nos períodos mais graves da pandemia.
Como vê a perda de tantos brasilienses na pandemia? Os governos deveriam ter sido mais céleres nas decisões? Que exemplo no mundo poderia ser usado no Brasil?
O sentimento predominante é, certamente, de tristeza e consternação por tantas vidas perdidas. E, claro, também sinto que muito poderia ter sido feito para evitar tantas mortes. Aqui, não acredito que a questão seja simplesmente de “celeridade” na atuação do governo. É evidente que, em se tratando de vacinas, a velocidade importa. Mas, pensando na pandemia como um todo, acredito que, além da velocidade na tomada de decisões, é fundamental a consistência da atuação do governo, a coordenação entre órgãos, o respeito aos critérios técnicos e à ciência, a boa comunicação com a população, entre outras coisas. Olhando para tudo que foi feito até agora, é possível dizer que não foi apenas uma questão de decisões tomadas fora do tempo ideal. Há uma série de outras questões que nos conduziram a essa tragédia.
A importância da união em torno de um projeto suprapartidário para mitigar os efeitos da pandemia nos próximos anos é possível?
Certamente. Desde o início da pandemia venho defendendo a importância de uma atuação coordenada entre todos os entes federados e partidos para que haja um combate ao vírus mais eficaz. Para isso, são necessárias políticas públicas voltadas para a implementação de medidas sanitárias em todo o território nacional, bem como para ações focadas na vacinação em massa e na garantia da subsistência de toda a população. Da mesma forma, será necessário envidar todos os esforços para mitigar os severos impactos que a pandemia tem causado na economia e na vida de cada um dos brasileiros. Eu tenho para mim que, apesar das desavenças e de nossas “fraturas expostas”, esses temas devem ser assuntos prioritários nas pautas do nosso Poder Legislativo.
Fonte:
Correio Braziliense
Gilmar Mendes: “Muito poderia ter sido feito para evitar tantas mortes”
Marcelo Godoy: Em dois anos, militares da ativa postaram 3,4 mil tuítes políticos
Pesquisa feita em contas de 115 militares da ativa ligadas ao ex-comandante do Exército general Eduardo Villas Bôas localizou 3.427 tuítes de caráter político-partidário, entre abril de 2018 e abril de 2020. Eles estavam nas contas mantidas na rede social por 82 integrantes das Forças Armadas, entre os quais 22 oficiais-generais – 19 generais, dois almirantes e dois brigadeiros.
São casos como o do coronel Ricardo. Era 7 de outubro de 2018, dia do primeiro turno da eleição presidencial, quando a conta do militar no Twitter fez propaganda do então candidato Jair Bolsonaro: “É dia de mudar o Brasil. Vote consciente. Brasil acima de tudo! Deus acima de tudo!” Outro oficial – um tenente-coronel de Cavalaria – escreveu: #MitoPrimeiroTurno.
A maioria dos tuítes é de apoio ao governo, mas há exceções. Um general disse sobre o caso das “rachadinhas”, no gabinete de Flávio Bolsonaro quando o hoje senador pelo Republicanos era deputado estadual no Rio: “Ventos novos exigem posturas novas”. Um dia depois da saída de Sérgio Moro do Ministério da Justiça, um coronel escreveu: “A minha melhor continência a esse patriota!” E repetiu a frase do ex-juiz da Lava Jato: “Faça a coisa certa, sempre”.
Um general chegou a mudar o nome de seu perfil, adotando outra identidade na rede, após a demissão de Moro, e passou a tuitar contra Bolsonaro, criticando-o pela atuação no combate à pandemia de covid-19.
Para o cientista político Eliezer Rizzo de Oliveira, as publicações dos militares demonstram a existência de um “ativismo militar”. As manifestações político-partidárias de integrantes da ativa são proibidas pelo Estatuto dos Militares e pelos regimentos disciplinares e portarias das três Forças Armadas. Na avaliação de Eliezer, é importante controlar esse fenômeno, pois “a aplicação das normas republicanas confronta o partido fardado, ao passo que a impunidade reforça a autonomia militar”.
Punições
O Ministério da Defesa disse que Marinha, Exército e Aeronáutica têm “manuais e cartilhas que normatizam e orientam adequadamente a conduta e o uso de mídias sociais por parte dos militares”. O uso incorreto de redes já levou à punição de militares da ativa. O Exército cita casos de violação da segurança de unidades, mas não revelou o total de punidos.
A Força Aérea informou que registrou “17 procedimentos para apuração de suposta transgressão por ‘mau uso’ de redes sociais, dos quais dez praças foram punidos disciplinarmente” – seis deles em 2019 e quatro em 2020. Nenhum oficial foi punido. Entre os que fizeram postagens políticas está o brigadeiro Carlos Baptista Júnior, com 80 publicações políticas, todas em apoio ao presidente e ao bolsonarismo antes de ser nomeado comandante da Aeronáutica.
A Marinha respondeu que, em 2019, foram determinadas 17 punições a 17 militares pelo uso de redes. Em 2020, esse número subiu para 20 punições a 20 militares. Os dados foram obtidos pelo Estadão por meio de Lei de Acesso à Informação.
Para o Exército, atualmente o problema está sob controle. A reportagem apurou que uma dezena dos perfis de militares que publicavam manifestações políticas apagou os tuítes, fechou suas contas ou abandonou a rede social. A questão foi disciplinada pela portaria de 2019 feita pelo ex-comandante da Força, general Edson Leal Pujol. Ela criou critérios para a manutenção de contas nas redes sociais pelos militares, proibindo sua vinculação delas com perfis institucionais, à exceção dos integrantes do Alto Comando.
O uso do Twitter por militares voltou a ser debatido após o novo comandante do Exército, general Paulo Sérgio de Oliveira, congelar sua conta para priorizar a comunicação institucional no YouTube. Ele criara o perfil em abril de 2018, depois dos tuítes de Villas Bôas às vésperas do julgamento de Luiz Inácio Lula da Silva, então preso na Lava Jato. Além dele, outros 30 generais e coronéis abriram contas de abril de 2018 a abril de 2020, período abrangido pela pesquisa, publicada no livro Os Militares e a Crise Brasileira. Entre os tuiteiros, um quinto dos posts políticos critica a oposição e a imprensa e 35% traz mensagens de apoio ao governo ou reproduz opiniões de bolsonaristas, como as deputadas Bia Kicis (PSL-DF) e Carla Zambelli (PSL-SP).
Especialistas apontam a volta do ‘partido fardado’
A presença de militares no governo Jair Bolsonaro e o comportamento deles reanimaram o interesse na atuação política dos militares e sobre obras como as dos antropólogos Celso Castro e Piero Leirner e as de cientistas políticos como José Murilo de Carvalho e Oliveiros S. Ferreira, autor de Vida e Morte do Partido Fardado e Elos Partidos. Um dos centros do debate atual é o conceito de “partido fardado”, usado por Oliveiros e pelo cientista político francês Alain Rouquié.
Oliveiros pensava que as reformas do presidente Castelo Branco, limitando o tempo de permanência de generais na ativa, teriam levado ao fim do partido fardado, deixando-o acéfalo. Generais se candidatavam, exerciam cargo político e depois voltavam aos quartéis. Eles simbolizavam o fenômeno. Para o cientista político Eliezer Rizzo de Oliveira, que prepara um livro sobre o tema, o governo Bolsonaro mostra que o partido fardado não havia morrido, só estava hibernando, sobretudo no Exército. “Estamos diante de um ativismo militar, de um partido verde-oliva.”
Segundo a pesquisadora Ana Penido, do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (Gedes), para Oliveiros, o partido fardado não é algo formal para disputar eleições, mas uma organização temporária, que só se evidencia em momentos de tensão interna nas Forças Armadas ou de desencontro entre a instituição e o governo, precisando de situação favorável à politização militar.
A pesquisadora adota, porém, o termo “partido militar” para designar o fenômeno. “Pertencem ao partido aqueles militares que se julgam no direito de interpretar a Constituição e, na condição de defensores da lei e da ordem, estabelecem, por si mesmos, como e quando agirão. Integram o estabelecimento militar aqueles que agem subordinados às leis e regulamentos, pautados pela hierarquia e disciplina.”
Para o coronel da reserva Marcelo Pimentel, que analisa o fenômeno no livro Os Militares e a Crise Brasileira, o atual processo de politização dos militares começou em meados da última década. “A politização dos militares não se confunde com a mera expressão pessoal de opiniões políticas.” O partido militar se coloca em um dos polos da política e cria o risco de divisões nas Forças, com a volta ao estado de indisciplina crônica, vivido nos quartéis antes de 1964. “O que preocupa é a atual geração de tenentes em razão do exemplo dos chefes. O mau uso de redes sociais é um meio de politização do Exército.”
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Fonte:
O Estado de S. Paulo
Terrence McCoy: Bolsonaro insultou grande parte do mundo. Agora, o Brasil precisa de ajuda
RIO DE JANEIRO – Dois países em desenvolvimento, enormes em população e em extensão geográfica, são vítimas da devastação do coronavírus. Os hospitais esgotaram seus suprimentos. Pacientes são mandados de volta. Em todo lugar, uma nova variante. Precisa-se desesperadamente de ajuda externa.
No caso da Índia, derrubada por taxas recordes de infecção, o mundo se apressou a responder. Esta semana, a Casa Branca divulgou a entrega de mais de US$ 100 milhões em equipamentos e material hospitalar. Cingapura e Tailândia enviaram oxigênio. O primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, anunciou que o Reino Unido fará “tudo o que puder”.
Mas no caso do Brasil, que enterrou 140 mil vítimas nos dois últimos meses, a resposta internacional tem sido mais moderada. Em março, o presidente Jair Bolsonaro solicitou a ajuda das organizações internacionais. Um grupo de governadores pediu à ONU “ajuda humanitária”. Há duas semanas, o embaixador brasileiro na União Europeia implorou por ajuda. “É uma corrida contra o tempo para salvar muitas vidas no Brasil”.
Mas a resposta tem sido em grande parte ou falta de interesse, ou críticas aos erros do Brasil – e muito pouca ação, até o momento.
“O que está acontecendo no Brasil é uma tragédia que poderia ter sido evitada,” afirmou um membro do Parlamento Europeu ao embaixador brasileiro em uma audiência, este mês. “Mas esta tragédia foi baseada em decisões políticas erradas”.
“Em lugar de declarar guerra ao coronavíurs”, afirmou outro, “Bolsonaro declarou guerra à ciência, à medicina, ao senso comum, à vida”.
Desde terça-feira, a presidente do Parlamento Europeu, Ursula von der Leyen, tuitou três vezes sobre a ajuda à Índia. No entanto, pouco ela falou sobre o Brasil.
O contraste entre o tratamento dispensado pela comunidade internacional ao enfrentamento da crise na Índia e no Brasil mostra que as crescentes batalhas diplomáticas de Brasília complicaram a resposta do país contra o coronavírus. A imagem internacional que o Brasil passou décadas cultivando – focalizada no respeito do meio ambiente, amistosa, multilateral – foi solapada por um presidente cuja administração insultou grande parte do mundo no momento em que mais necessitava de ajuda.
Bolsonaro, um nacionalista de extrema direita, que chegou ao poder zombando do globalismo, acusou países europeu inclinados ao respeito do meio ambiente de colonialismo e desmatamento ilegal. Amplificou uma mensagem nas redes sociais usando termos depreciativos contra a aparência da esposa do presidente francês Emmanuel Macron. Reiterou as afirmações infundadas do presidente Donald Trump sobre fraude eleitoral, e foi o último líder do G-20 a reconhecer a vitória do presidente Joe Biden. Durante meses, membros do seu governo e apoiadores dispararam ataques racistas contra a China e zombaram de sua vacina. Na terça-feira, seu ministro da Economia afirmou que a China “inventou o vírus”.
Desde o começo da pandemia, o governo federal do Brasil menosprezou a gravidade de um vírus que aleijou este país de 210 milhões de habitantes. Bolsonaro conclamou as pessoas a viverem sua vida normalmente. Muitos lhe deram ouvidos – por causa da pobreza, da política ou do cansaço – o suficiente para comprometer medidas de contenção pouco uniformes. Mais de 400 mil brasileiros já morreram de covid-19, o pior desastre humanitário da história da nação, e o segundo maior do mundo, depois dos Estados Unidos.
Agora, ainda mergulhado no período mais mortal de sua pandemia – outros 3.001 morreram na terça-feira, segundo informações – um país que há muito gabava de ser amigo de quase todo mundo, agora se encontra em grande parte sem amigos.
“O mundo inteiro está tentando ajudar a Índia”, disse Maurício Santoro, cientista político da UERJ. “Mas Bolsonaro tornou-se um problema internacional tão grande que ninguém está disposto a ajudá-lo.”
“Ninguém fala em dar grande ajuda ao Brasil.”
À pergunta da razão pela qual os Estados Unidos não se mexeram para ajudar o Brasil com a urgência demonstrada em relação à Índia, um porta-voz do Departamento de Estado apresentou uma lista de contribuições dos EUA ao Brasil antes da fase pior da pandemia, por um total de mais de US$ 20 milhões em assistência fornecida pelo governo. O porta-voz acrescentou ainda os US$ 75 milhões de “ajuda do setor privado”. A contribuição, grande parte da qual foi enviada durante a administração Trump, incluiu mil ventiladores e 2 milhões de comprimidos de hidroxicloroquina.
“Continuamos ativamente dispostos a discutir com o governo brasileiro suas necessidades e a encontrar maneiras de continuarmos nossa parceria com o Brasil a fim de ajudar a satisfazer as suas necessidades”, afirmou o porta-voz do Departamento de Estado.
Outros países também contribuíram. A Alemanha enviou ventiladores depois que o sistema médico da cidade de Manaus fracassou. A Organização Mundial da Saúde começou a enviar vacinas por meio de um programa que visa sanar as de imunizantes. A União Europeia e seus países membros concederam cerca de US$ 28 milhões em doações desde o início da pandemia, segundo um porta-voz. Em resposta a uma solicitação do Brasil em março, o bloco contribuiu para o envio de “80 mil unidades de medicamentos criticamente necessários” ao Brasil.
Mas a falta de mais assistência internacional – ou mesmo de uma maior expressão de solidariedade – durante os meses de maior desespero no Brasil, confirmou os temores de que o país venha a pagar um preço internacional pela atitude de confronto de Bolsonaro em matéria de política externa e de zombaria em relação às medidas contra o coronavírus aceitas pelos líderes globais.
“O País perdeu influência em inúmeros níveis”, afirmou Oliver Stuenkel, professor de relações internacionais da Fundação Getúlio Vargas em São Paulo.
O Brasil nunca irritou o mundo. Vasto, tranquilo e em desenvolvimento, seguiu tradicionalmente o que Stuenkel descreveu como uma política externa “previsível”, baseada na construção de alianças. Ano após ano, procurou estender o seu corpo diplomático, um dos maiores do mundo em desenvolvimento.
Voltar-se contra a sua história foi uma jogada que o Brasil não podia se permitir.
“Os EUA conseguiram tirar um Trump porque não precisam tanto do mundo”, disse Stuenkel. “Eles podem produzir suas próprias vacinas. Mas no Brasil, tal comportamento foi particularmente imprudente porque dependia da comunidade internacional. Nós não temos poder forte. Nós precisamos de multilateralismo“.
Em vez disso, o governo Bolsonaro menosprezou a fé na China e em suas vacinas ao mesmo tempo em que o Brasil dependia do país para obter material para as vacinas. Em abril passado, o ex-ministro da Educação de Bolsonaro tuitou uma mensagem racista provocando uma violenta censura da China e da Suprema Corte brasileira. O filho do presidente, membro do Congresso brasileiro, culpou a China pela pandemia, depois a acusou de usar o sistema 5G para espionagem.
O governo chinês advertiu que haveria “consequências negativas” se tal retórica continuasse. Em janeiro, o embarque de material da China para a produção de vacinas sofreu um considerável atraso, provocando uma série de especulações. Para alguns veículos de informação, os insultos do governo tiveram consequências.
Esta semana, enquanto as autoridades de saúde do país recusavam a vacina Sputnik V da Rússia, alegando falta de transparência, o ministro da Economia, Paulo Guedes, criticou a vacina chinesa que o Brasil tem.
“Os chineses inventaram o vírus”, afirmou, “e sua vacina é menos eficiente do que a americana”.
O embaixador chinês revidou: “Até este momento, a China é a principal fornecedora de vacinas e de material básico ao Brasil”.
Os que estão pagando o custo destas disputas diplomáticas são os brasileiros comuns, afirmou Michael Shifter, presidente do Diálogo Interamericano sediado em Washington.
“O povo brasileiro está sofrendo e morrendo a taxas absurdas,” ele disse. “E esta é a parte mais trágica”. /
Tradução de Anna Capovilla
Fonte:
O Estado de S. Paulo/ The Washington Post
Celso Rocha de Barros: Não há mais governo, e ninguém se dispõe a derrubar quem já desistiu de governar
No sábado (1º), velhos vacinados pelo Doria foram às ruas em apoio a Bolsonaro. Parabéns para os chineses: os manifestantes pareciam bem fisicamente, e seus evidentes problemas mentais eram claramente preexistentes.
Mesmo a maior manifestação, no Rio de Janeiro, não reuniu mais do que quatro ou cinco dias de brasileiros mortos durante a pandemia por culpa do governo Bolsonaro. Se a ideia era dizer “se tentarem derrubar Bolsonaro, terão de se ver conosco”, ninguém ficou assustado.
A demonstração de força dos bolsonaristas fracassou, mas o que interessa é que precisaram tentá-la. Eles sabem que Bolsonaro está perdendo.
O governo dos extremistas se desfaz a olhos vistos. Pela primeira vez na história, os chefes das Forças Armadas renunciaram conjuntamente em protesto contra o presidente da República. Logo depois, o Supremo Tribunal Federal tomou coragem e cumpriu seu dever constitucional obrigando o Senado a abrir a CPI do assassinato em massa. Bolsonaro manobrou para barrar a CPI, fracassou; manobrou para tirar Renan Calheiros da relatoria da CPI, fracassou.
A equipe econômica está se desintegrando em plena luz do dia, com demissão após demissão, uma fila puxada pelos melhores que só não termina em Guedes porque existe o inacreditável Adolfo Sachsida. O extremista Ernesto Araújo perdeu o Itamaraty e agora xinga o governo no Twitter. O vice-presidente Mourão deu uma entrevista ao jornal Valor Econômico em que declarou que não deve continuar na chapa na campanha da reeleição; defendeu, inclusive, a união em torno de uma terceira via para 2022.
Não há precedente para nada disso. Todo governo brasileiro que chegou perto desse ponto caiu antes de atingir esse grau de degeneração. E, no entanto, o governo Bolsonaro não cai.
No fundo, quem sustenta o governo Bolsonaro no momento é a Covid-19. O vírus impede manifestações de rua dos 70% do eleitorado que rejeitam Bolsonaro. E a mortandade causada pelo governo está tão fora de controle que as forças que poderiam organizar o impeachment não querem assumir responsabilidade pelo número imenso de mortes que Bolsonaro já contratou.
Mas se a Covid-19 segura Bolsonaro no Planalto, também impede que seu governo seja funcional, o que, sejamos honestos, já não seria fácil de qualquer maneira. O Brasil tem um grande problema de cuja solução depende a solução dos outros, a pandemia. Foi justamente esse o problema que Jair Bolsonaro desistiu de solucionar, porque já não comprou a vacina, já sabotou o isolamento social, e, a esta altura, não saberia corrigir-se se o quisesse.
Daí em diante, não há mais governo, só a mímica da rotina administrativa, a máquina rodando no vazio. A grande realização de Bolsonaro em 2021 foi aprovar o orçamento antes de maio.
Não há mais governo, e ninguém se dispõe a derrubar quem já desistiu de governar.
Resta-nos confiar no que ainda temos de burocracia profissional, no SUS, na Anvisa, nos governos estaduais, no Butantã, na Fiocruz. Que o medo da CPI pelo menos impeça Bolsonaro de continuar atrapalhando essa gente.
Minha aposta é que, depois do governo Bolsonaro, alguma palavra do português brasileiro entrará para as outras línguas como sinônimo de desastre.
Fonte:
Folha de S. Paulo
Eduardo Sombini: Bolsonaro vive paradoxo entre radicalizar sua base e governar, dizem professores
Retrocesso —esta é a palavra a que mais de 40 autores de uma coletânea recém-lançada recorrem para sintetizar o que aconteceu no Brasil nos dois primeiros anos do governo de Jair Bolsonaro (sem partido).
No episódio desta semana do Ilustríssima Conversa, o repórter Eduardo Sombini recebe os cientistas políticos Fábio Kerche, professor da Unirio (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro), e Marjorie Marona, professora da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais).
Kerche e Marona são organizadores, com o professor da UFMG Leonardo Avritzer, do livro “Governo Bolsonaro: Retrocesso Democrático e Degradação Política”, publicado pela editora Autêntica.
Na conversa, eles discutiram a contradição entre o bolsonarismo como movimento político, que demanda a radicalização do discurso para engajar suas bases, e a construção da governabilidade do presidente, que requer a negociação com outros Poderes e partidos.
Na avaliação dos convidados, Bolsonaro tentou governar contornando o presidencialismo de coalizão —o conceito faz referência à necessidade de os presidentes brasileiros formarem alianças para garantir maioria no Congresso.
Mesmo depois da aproximação com o centrão, Bolsonaro não joga de acordo com essas regras, e a CPI da Covid no Senado sem maioria governista, para eles, é reflexo da transformação do Palácio do Planalto em campo de batalha e da destruição de pontes com outras instituições.
Kerche e Marona também falaram sobre as ameaças do presidente ao Supremo Tribunal Federal e a indicação do ministro Kassio Nunes Marques, a corrosão da autonomia do Ministério Público Federal com a nomeação de Augusto Aras para a Procuradoria-Geral da República, as relações com os militares e as perspectivas para a segunda metade do mandato de Bolsonaro.
As ameaças [do presidente] foram cada vez mais se aproximando de bravatas. Tenho a impressão que Bolsonaro vai conduzir esses últimos dois anos de governo para tentar chegar às eleições de 2022 com alguma condição de se colocar como candidato com uma base social de 20%. Tenho a impressão que isso foi tudo que restou a ele.
Bolsonaro já esteve mais forte no passado, junto aos militares, por exemplo. Acho que as instituições, que estão sob tensão, vão se organizar caso Bolsonaro seja derrotado e a gente vai ter uma transição, com a expectativa de retomar a qualidade da nossa democracia. Acho que quem ganhar a eleição presidencial [de 2022] assume Fábio Kerche.
O Ilustríssima Conversa está disponível nos principais aplicativos, como Apple Podcasts, Spotify e Stitcher. Ouvintes podem assinar gratuitamente o podcast nos aplicativos para receber notificações de novos episódios.
O podcast entrevista, a cada duas semanas, autores de livros de não ficção e intelectuais para discutir suas obras e seus temas de pesquisa.
Já participaram do Ilustríssima Conversa Regina Facchini e Isadora Lins França, organizadoras de coletânea sobre direitos LGBTI+ no Brasil, Alessandra Devulsky, autora de livro sobre racismo e colorismo, Idelber Avelar, que discutiu a ascensão do bolsonarismo, Christian Dunker, psicanalista que reconstituiu a história da depressão, Lira Neto, que narrou a saga dos judeus sefarditas até o Recife, Roberto Simon, autor de livro sobre o apoio da ditadura brasileira ao golpe contra Allende, no Chile, Heloisa Buarque de Hollanda, que situou as principais tendências do pensamento feminista contemporâneo, Ilona Szabó, que discutiu as ameaças à democracia no Brasil, Luiz Simas, que apontou os conflitos do Brasil institucional e da brasilidade, Malu Gaspar, repórter que investigou os escândalos de corrupção e a derrocada da Odebrecht, Flavia Rios, coorganizadora de coletânea da intelectual Lélia Gonzalez, Karla Monteiro, biógrafa do jornalista Samuel Wainer, Vinicius Torres Freire, que tratou de medidas econômicas durante a crise do coronavírus, Muryatan Barbosa, pesquisador da história do pensamento africano, e Júlio Delmanto, autor de livro sobre a história social do LSD no Brasil, entre outros convidados.
A lista completa de episódios está disponível no índice do podcast. O feed RSS é https://folha.libsyn.com/rss.
Fonte:
Folha de S. Paulo
Rodrigo Augusto Prando: O bolsonarismo na mira da CPI
Teve início, no Senado, a CPI que investigará as responsabilidades do Governo Federal, bem como de estados e municípios, no que tange à crise pandêmica que ora vivenciamos. Embora outros entes federativos possam ser trazidos à tona, não nos enganemos, pois, a comissão parlamentar de inquérito mira, sim, o bolsonarismo no bojo do Governo.
Há, neste sentido, um bolsonarismo militante – nas redes e nas ruas – e o bolsonarismo governamental, daqueles que, ideologicamente e nos valores, ocupam funções na estrutura estatal e imprimem, em suas falas e ações, facetas do presidencialismo de confrontação. Nos primeiros meses do mandato do presidente Jair Bolsonaro, após sucessivas declarações, principalmente, do próprio presidente, asseverei, alhures, que as vontades e suas realizações trazem consequências. A situação em tela: quase 400 mil mortos e uma CPI em funcionamento são, portanto, os resultados de uma escolha deliberada de Bolsonaro e seus ministros de alicerçar discursos e condutas sobre os pilares do negacionismo, do desprezo à ciência, das teorias da conspiração e das fake news.
A CPI, como se sabe, é instrumento político das minorias parlamentares e que objetivam desnudar determinadas responsabilidades, podendo estas serem, também, políticas, jurídicas, e até criminais. No conjunto dos senadores que compõem a comissão, o governo se encontra em minoria e, por isso, a situação já é, na largada, difícil. Manobras jurídicas tentaram impedir que Renan Calheiros fosse indicado como o relator, cuja posição é de suma importância dado ao fato de produzir o relatório final. No palco da CPI, os atores serão: o presidente eleito Omar Azis (PSD-AM), o vice-presidente Randolfe Rodrigues (Rede-AP) e, na sequência, Azis indicou Renan Calheiros (MDB-AL) como relator. Há, ainda, os senadores Humberto Costa (PT-PE), Otto Alencar (PSD-BA), Tasso Jereissati (PSDB-CE), Marcos Rogério (DEM-RO), Eduardo Braga (MDB-AM), Eduardo Girão (Podemos-CE), Ciro Nogueira (PP-PI) e Jorginho Mello (PL-SC).
Renan Calheiros é, na política, daqueles adversários que ninguém deseja. Um amigo e interlocutor frequente nos assuntos atinentes à política disse-me que “Renan é dos poucos que sabem fazer o mal com tanto carinho”. Na instalação da CPI, a fala de Calheiros foi dura. “Não foi o acaso ou o flagelo divino que nos trouxe a este quadro. Há responsáveis, há culpados, por ação, omissão, desídia ou incompetência e eles serão responsabilizados”, disse. E, ainda: “Os crimes contra a humanidade não prescrevem jamais […]. O país tem o direito de saber quem contribuiu para as milhares de mortes. E eles devem ser punidos imediatamente e emblematicamente”. Se muitos políticos, metaforicamente, podem atirar para todos os lados, Renan é um atirador de elite, um sniper.
Senadores aliados do governo buscaram, no Supremo Tribunal Federal, barrar a função de Renan na relatoria da CPI. E isto indica que o senador alagoano é deveras temido pelo Planalto. Muito se comentou acerca de um relatório produzido pelo governo que, para antecipar sua defesa, destacou ações e omissões que nem mesmo se tinha aventado na CPI e, pior, foi este relatório ter vazado. Mas, para quem acompanha a cena política, lê os jornais e revistas e, ainda que panoramicamente, frequente as redes sociais, Bolsonaro, seus ministros, seus filhos, aliados políticos já produziram material fartamente registrado sobre praticamente todas as falas, entrevistas, lives e ações, desde março de 2020 até agora.
O ponto alto em toda a CPI é, sem dúvida, tirante o relatório final, as sessões com depoimentos aos parlamentares. E, neste caso, os parlamentares, dotados de retórica política, submetem os depoentes a um ambiente de tensão, enorme exposição e saraivada de perguntas e argumentações que podem produzir peças explosivas. Deem um microfone ao ex-ministro da Saúde, Henrique Mandetta, médico e político e, depois, ao ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello. Submetam os dois à pressão. Já conseguem imaginar o resultado? Coloquem cientistas e pesquisadores como, por exemplo, Natalia Pasternak, Atila Iamarino, Margareth Dalcolmo e Miguel Nicolelis de um lado e, do outro, Ernesto Araújo, Paulo Guedes, Carla Zambelli e Flavio Bolsonaro. É, por isso, que muito se afirma que todos sabem como começa uma CPI e nunca como ela termina.
O presidente Bolsonaro e o seu governo serão desgastados ao longo deste processo de investigação. O resultado, por enquanto, será difícil de prever, todavia, numa perspectiva de construção de cenários futuros, nenhum deles é favorável para o bolsonarismo. Acuado, Bolsonaro continua a atacar, ameaçar e menosprezar a CPI, chamando-a de “carnaval fora de época”. Felizmente, para o governo, não é carnaval e, por conta disso, não há o povo nas ruas. Dialeticamente, a pandemia que fragiliza o governo também o protege de protestos massivos.
*Rodrigo Augusto Prando é professor e pesquisador da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Graduado em Ciências Sociais, mestre e doutor em Sociologia, pela Unesp
Fonte:
O Estado de S. Paulo
https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/o-bolsonarismo-na-mira-da-cpi/
Ricardo Antunes: 1º de Maio – O que comemorar?
Chegamos neste 1º de Maio de 2021 com o pior retrato de toda a história republicana. Nem durante a Primeira República vivenciamos uma situação tão trágica.
O desemprego hoje, segundo o IBGE, é de mais de 14 milhões. E, se a ele somarmos quase 6 milhões em desalento, ultrapassamos 20 milhões. Em fins de 2019, somávamos 17 milhões de desempregados e desalentados. Assim, é ilusório imaginar que tudo isso foi causado pela pandemia. A praga sanitária desnudou e exasperou uma realidade que vem se acumulando há tempos, mas se acentuou com Michel Temer e Jair Bolsonaro, com suas visíveis afinidades destrutivas.
O principal causador dessa devastação social se encontra na vigência de uma pragmática neoliberal perversa, que vem derrogando, um a um, a totalidade dos direitos sociais do trabalho. Flexibilização, terceirização, informalidade, negociado sobre o legislado, trabalho intermitente e uberizado, enfraquecimento dos sindicatos e da Justiça do Trabalho: foi este o cenário que a Covid-19 encontrou.
Outro exemplo emblemático: segundo o IBGE, no primeiro trimestre de 2020, constatou-se uma redução na taxa de informalidade quando comparada ao trimestre anterior, o que parecia positivo. Mas, ao contrário, essa constatação estampou outro vilipêndio, uma vez que houve aumento do desemprego dentro da informalidade. Nem isso o “Posto Ipiranga“ e seu chefe conseguiram impedir, aflorando mais um descalabro do desgoverno: o informal-desempregado. Para “comemorar” restou a explosão do desemprego, o “descobrimento” dos milhões de “invisíveis”, o aumento da fome e da miserabilidade, além do empobrecimento de amplos setores da classe média, que estão cada vez mais endividados e engrossando as fileiras dos sem-teto.
Mas é bom recordar que há quem esteja ganhando muito. As grandes plataformas digitais que se utilizam do trabalho intermitente e uberizado não param de crescer no tabuleiro do capital. Quanto mais “incluem” trabalhadores (que redenominaram “empreendedores” para excluí-los da legislação protetora do trabalho), maior é a intensidade do trabalho, mais longevas suas jornadas e menor a remuneração percebida. Os bancos, todos sabemos, seja na bonança ou na crise, garantem sempre o seu quinhão.
Como escrevi neste mesmo espaço (“De novo a Belíndia”; 24/10/16), naquele momento já estávamos caminhando para nos tornar uma nova Índia na América Latina, contando desemprego, informalidade, precarização e miséria aos muitos milhões, seguindo os passos do imenso país asiático
Será difícil, então, imaginar como irão sobreviver aqui os trabalhadores e as trabalhadoras, os negros e as negras, os indígenas, a juventude das periferias, os imigrantes etc.
Algum desavisado poderá afirmar: mas o governo algo fará!
Sua primeira ação já está definida: proibir o novo Censo Demográfico do IBGE. Com o apagão dos dados, pensa que será mais fácil esconder o tamanho do desastre social neste país tão desventurado. Será?
Tudo isso demonstra que, no Brasil de Bolsonaro, o 1º de Maio é um dia de luto. Mas é bom recordar que, historicamente, é também um dia de luta.
*Ricardo Antunes é professor titular de sociologia no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp (IFCH/Unicamp); autor, entre outros, de ‘Os Sentidos do Trabalho’ (ed. Boitempo)
Fonte:
Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2021/05/1o-de-maio-o-que-comemorar.shtml
Agência Pública: A opção Mourão debatida por generais
Vasconcelos Quadros, Agência Pública
Em 27 meses no cargo, o general Hamilton Mourão construiu uma trajetória bem diferente da dos vices nos últimos 60 anos. Ele tem atribuições de Governo e comanda efetivamente nichos importantes da política ambiental e de relações exteriores. É, por exemplo, mediador de conflitos com a China, processo iniciado com um encontro com o presidente do país, Xi Jinping, em 2019, restabelecendo a diplomacia depois de duros ataques feitos por Jair Bolsonaro ainda na campanha.
Mourão esforça-se para não parecer que conspira, mas é visto por militares e especialistas ouvidos pela Agência Pública como um oficial de prontidão diante de uma CPI que pode levar às cordas o presidente Jair Bolsonaro pelos erros na condução da pandemia.
“Como Bolsonaro virou um estorvo, os generais agora querem colocar o Mourão no Governo”, diz o coronel da reserva Marcelo Pimentel Jorge de Souza, um dos poucos oficiais das Forças Armadas a criticar abertamente o grupo de generais governistas que, na sua visão, “dá as ordens” e sustenta o Governo de Bolsonaro.
Ex-assessor especial do general Carlos Alberto Santos Cruz na missão de pacificação no Haiti, Jorge de Souza está entre os militares que enxergam o movimento dos generais como uma aposta num eventual impeachment e ascensão de Mourão ―que, por sua vez, tem fechado os ouvidos para o canto das sereias.
“Mourão jamais vai ajudar a derrubar Bolsonaro para ocupar a vaga. O que ele pode é não estender a mão para levantá-lo se um fato grave surgir. Honra e fidelidade são coisas muito sérias para Mourão”, diz um general da reserva que conviveu com o vice-presidente, mas pediu para não ter o nome citado.
General Sérgio Etchegoyen, ex-ministro do GSI no Governo Michel Temer. Foto: José Cruz/Agência Brasil
A opção Mourão é tratada com discrição entre os generais que ocupam cargos no Governo. Três deles, Braga Netto (Defesa), Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional, o GSI) e Luiz Eduardo Ramos (Casa Civil), formam o núcleo duro fechado com o presidente. Os demais, caso a crise política se agrave, são uma incógnita. Mas são vistos como mais acessíveis à influência dos generais da reserva que romperam com Bolsonaro e articulam a formação de uma terceira via pela centro-direita.
“O que fazer se a opção em 2022 for Lula ou Bolsonaro? É sentar na calçada e chorar”, afirma à Pública o general Sérgio Etchegoyen, ex-ministro do GSI no Governo Michel Temer (MDB).
Embora se recuse a fazer críticas ao presidente, Etchegoyen acha que os sucessivos conflitos entre Executivo e Judiciário criaram no país um quadro grave de “instabilidade e incertezas”, que exigirá o surgimento de lideranças mais adequadas à democracia.
“O Brasil não precisa de um leão de chácara. Precisa de alguém que conheça a política e saiba pacificar o país”, diz o general.
O ex-ministro sustenta que 36 anos depois do fim do regime militar, com a democracia madura, a reafirmação do compromisso das Forças Armadas contra qualquer aventura autoritária a cada surto da política tornou-se desnecessária e repetitiva. E cutuca a imprensa: “Alguém ensinou um modelo de análise à imprensa em que a possibilidade de golpe está sempre colocada”, diz, referindo-se à crise provocada por Bolsonaro na demissão de Fernando Azevedo e Silva, ministro da Defesa, e dos comandantes militares. Para ele, a substituição é parte da rotina de Governo e das crises decorrentes da política. “Ministros são como fusíveis que podem queimar na alta tensão da política. Quem não tiver vocação para fusível que não vá para o Governo”, afirma.
Generais articulam terceira via para eleição
As articulações por uma terceira via são comandadas por generais da reserva, que já ocuparam cargos em governos e, até o agravamento da pandemia do coronavírus, se encontravam com frequência em cavalgadas no 1º Regimento de Cavalaria de Guardas (RCG), sede dos Dragões da Independência, grupamento do Exército sediado no Setor Militar Norte de Brasília, encarregado de guarnecer o Palácio do Planalto.
Os ex-ministros Etchegoyen e Santos Cruz e o general Paulo Chagas, ex-candidato ao Governo do Distrito Federal, embora em diferentes linhas, fazem parte do grupo. Têm em comum o gosto pela equitação e bom trânsito com o vice, que também gosta do esporte e frequentava o 1º RCG ao lado de outros generais, o ex-comandante do Exército Edson Pujol e civis como Aldo Rebelo, ex-ministro da Defesa, ex-PCdoB, hoje pré-candidato à presidência em 2022 pelo Solidariedade.
Mourão defende Exército e “vai ficar na cara do gol”
Nas ocasiões em que foi sondado para substituir Bolsonaro diante da probabilidade de impeachment ou para se colocar como terceira via, Mourão rejeitou as duas hipóteses. Segundo fontes ouvidas pela Pública, ele “não se furtaria” a assumir, mas só o faria dentro de limites constitucionais, ou seja, em caso de vacância no cargo.
“O Mourão se impôs um limite ético para lidar com a política. Não disputará contra Bolsonaro e nem imporá desgaste a ele. É um homem de visão de mundo diferenciada, entende muito do que fala, compreende o país e tem trânsito confortável na política externa. Seu perfil não é do interesse do presidente e nem oposição”, avalia a fonte próxima ao vice.
Em entrevista à TV Aberta, de São Paulo, na quinta-feira, 22 de abril, Mourão disse que, por lealdade, não disputará com Bolsonaro em 2022 e apontou como seu horizonte a candidatura ao Senado ou simplesmente a aposentadoria. Em janeiro, quando veio à tona notícia sobre um assessor parlamentar da vice-presidência que falava com chefes de gabinete de vários deputados sobre a necessidade de se preparar para um eventual impeachment, Mourão o demitiu, marcando sua postura pública sobre a questão.
Crítico corrosivo de Bolsonaro e um dos mais empenhados na construção da terceira via, o general Paulo Chagas vê Mourão como um reserva preparado tanto para um eventual impeachment quanto como nome viável pela terceira via. “Benza Deus que ele aceite! Mourão tem toda capacidade para colocar ordem na casa democraticamente, mas isso agora não interessa ao presidente nem à oposição, que quer ver Bolsonaro sangrar até o fim do Governo”, diz.
O coronel Jorge de Souza pensa diferente. “Mourão não vai em bola dividida. Ficará na cara do gol”, afirma, referindo-se ao provável desgaste que Bolsonaro enfrentará com o avanço da CPI da Covid, o que, na sua opinião, poderá desengavetar um dos mais de cem pedidos de impeachment parados na Câmara.
Nesta segunda, 26 de abril, em entrevista ao jornal Valor Econômico, o vice defendeu a caserna e antagonizou mais uma vez com Bolsonaro. Afirmou que o Exército não pode ser responsabilizado pela atuação do ex-ministro da Saúde, Eduardo Pazuello. E disse que chegou a aconselhar o ex-ministro a deixar o serviço da ativa quando ele assumiu o combate à pandemia. À tarde, logo depois de ter recebido a segunda dose da vacina Coronavac, se recusou a falar sobre a CPI. “Isso aí não tem nada a ver comigo. Sem comentários”, desvia-se.
A CPI deve pegar Bolsonaro em pontos frágeis: o insistente apelo à população pelo uso de medicação sem eficácia, o boicote ao distanciamento social, a falta de remédios para intubação e de oxigênio para UTIs, a recusa em comprar vacina a tempo de evitar o espantoso aumento de mortes e a demora em prover a saúde de insumos necessários ao combate à pandemia.
Reforça as acusações ―23 delas listadas pelo próprio Governo em um documento encaminhado a todos os ministérios― um pedido de impeachment da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) no qual um parecer do ex-ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Ayres Britto sustenta existirem indícios fortes de crime de responsabilidade cometido pelo presidente. O parecer afirma que Bolsonaro sabotou as medidas que poderiam aliviar a tragédia, o que acabou transformando o vírus numa espécie de arma biológica contra a população. A OAB entretanto ainda não protocolou o pedido, e pode fazê-lo em pleno vigor da CPI.
Bolsonaro não conseguiu barrar a CPI e ainda terá de enfrentá-la em desvantagem, já que o controle da investigação, pelo acordo fechado, será exercido pela oposição.
“A CPI vai render manchetes diárias, mostrará nomes, extratos, vai revolver a política”, alerta o general Etchegoyen, com a experiência de quem teve sob seu controle a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) e enfrentou as muitas crises do Governo Temer.
Na visão de Paulo Chagas, Bolsonaro fracassou na condução do Governo e agora está com a “cabeça na guilhotina” da CPI. Segundo o coronel Jorge de Souza, os generais têm até um plano para a hipótese de uma reviravolta que ponha Mourão no Palácio do Planalto: um pacto para enfrentamento da pandemia e dos efeitos desta na economia, seguido da demissão de ministros tidos como exóticos ou alinhados ao extremismo alimentado pelo presidente. Ele acha, no entanto, que o perfil real do vice é diferente do que é vendido pelo marketing. “Num hipotético cenário de delegacia, em que o preso é torturado para falar, Mourão faz o papel do bom policial. As pessoas gostam dele porque é informal, brinca no ‘gauchal’ e tenta passar para a imprensa a imagem de maleável. Mas que ninguém se engane. Se forçar uma pergunta que não goste, ele explode. Mourão é autoritário”, diz.
“Mourão é autoritário”, diz coronel Jorge de Souza.RODRIGUES POZZEBOM/AGÊNCIA BRASIL
O coronel conta que assistiu, no QG do Exército, em 2016, o hoje vice-presidente, num inflamado discurso à tropa, chamar o coronel Carlos Brilhante Ustra, um dos nomes ligados à tortura nos anos de chumbo, de herói e combatente anticomunista. “Mourão é mais preparado e mais perigoso que Bolsonaro. Ele comanda o Bolsonaro, e não o contrário”, afirma o oficial.
Para Souza, os generais terão a paciência necessária para aguardar que o agravamento da crise “consolide a ideia de Mourão é o cara”.
Em programa semanal, Mourão defende vacina e cita Gilberto Gil
Presidente do Conselho Nacional da Amazônia, Mourão tem se ocupado dos temas que considera relevantes para o país. É de sua lavra o levantamento que levou Bolsonaro a prometer neutralidade na emissão de gases de efeito estufa até 2050 e o fim do desmatamento ilegal na Amazônia até 2030, no discurso de quinta-feira (22/4) à Cúpula do Clima, visto como bom sinal pelos líderes mundiais, mas irreal diante do desmonte dos órgãos de fiscalização e da falta de previsão de recursos.
Dias antes, quando o número de vítimas do coronavírus batia a trágica marca dos 4.000 mortos diários, ele reagiu com aparente perda de paciência com a gestão da saúde: “Pô, já ultrapassou o limite do bom senso”, disse, ressaltando que era necessário um plano para salvar vidas.
Se Bolsonaro tem as já famosas lives das quintas-feiras para falar contra as medidas de combate à pandemia, Mourão tem o Por dentro da Amazônia, um programa semanal gravado às segundas-feiras destinado aos 23 milhões de habitantes da Amazônia Legal. O programa é transmitido pela Rede Nacional de Rádio pelo mesmo sinal da Voz do Brasil, gerido pela Empresa Brasileira de Comunicação (EBC) e chega a regiões sem acesso à internet ou à energia elétrica. Pode ser acessado também pelo YouTube.Mourão antagoniza com Bolsonaro e expõe as contradições do Governo.VALTER CAMPANATO/AGÊNCIA BRASIL
Ali ele lista focos de desmatamento, pede ajuda dos moradores e se diz preocupado com a pandemia, fazendo recomendações que deveriam partir do Palácio do Planalto. “A covid-19 está na esquina, à espreita. Não deixe de se vacinar, mantenha distância e não se aglomere”, repete sempre. Num desses programas, descontraído, se despediu com uma citação que irrita os ouvidos do presidente: “Como diria o grande Gilberto Gil, alô povo da Amazônia, aquele abraço!”. Gil, como se sabe, foi ministro da Cultura de Lula.
Na mesma transmissão, em 29 de março, ele anunciou o fim do programa Brasil Verde II, destinado a combater as atividades ilegais na Amazônia e uma espécie de menina dos olhos do vice, que havia montado uma superestrutura militar para auxiliá-lo.
No dia em que apresentava um balanço que considera positivo ―a queda de 23% no desmatamento entre 1º de junho de 2020 e 31 de março deste ano, a apreensão de 500 mil metros cúbicos de madeira, 335 tratores e mais de mil máquinas de serrarias e mineração ilegal e 3,3 bilhões de reais em multas―, Mourão foi surpreendido com boatos segundo os quais Bolsonaro pretendia criar um ministério para a Amazônia como prêmio de consolação ao ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello, que havia perdido o combate contra o vírus.
O vice desconfiou, no entanto, que o movimento não era só para socorrer Pazuello. Um assessor do Conselho da Amazônia disse à Pública que Mourão reagiu com perplexidade por não ter sido sequer consultado sobre uma opção que, de cara, esvaziaria o órgão que estruturou a duras penas, enfrentando inclusive desconfianças do entorno do próprio presidente. Mas reagiu em público com bom humor, declarando que, se um novo ministério não tivesse como meta dar corpo ao que chama de “bioeconomia”, termo que usa para se referir ao desenvolvimento sustentável, o presidente estaria procurando “deserto para mais um camelo”.
O programa Brasil Verde, uma vitrine ainda embaçada que Mourão tentou vender ao mundo, chega ao fim melancólico neste final de abril, como mais um paliativo governamental de resultado pífio no combate ao desmatamento e às queimadas.
Na contramão do ministro Ricardo Salles ―que chegou a se reunir em seu gabinete com madeireiros de Santa Catarina fornecedores da empresa que foi o principal alvo da apreensão recorde de madeira ilegal na Amazônia, realizada durante a Operação Handroanthus GLO, como revelou a Pública― o general Mourão tem apoiado as ações de repressão e, ao ser obrigado a encerrar o Brasil Verde por falta de recursos, criou o Plano Amazônia 21/22, para tentar estancar a alta incidência de crimes ambientais.
O plano prevê a sinergia de pelo menos dez órgãos de controle, mas até agora é só uma intenção. Mourão diz que a ideia é organizar concursos públicos para fiscais que se disponham a formar equipes permanentes por seis anos ininterruptos na Amazônia e que atuariam auxiliados por centrais de inteligência baseadas em Porto Velho, Belém e Manaus, em operações deflagradas de acordo com o surgimento de focos de incêndio monitorados por satélite. O vice estima que, com um gasto anual de 100 milhões de dólares, é possível chegar em 2030 com desmatamento zero.
Enquanto não deslancha, o programa Por dentro da Amazônia continua, dando voz semanalmente ao vice-presidente, todas as 2ª feiras às 9h e às 20h30. O último episódio teve pouco mais de 200 visualizações no Youtube.
Analistas veem Mourão desde como “incógnita” até “contradição emulada”
A deputada Tabata Amaral (PDT-SP) enxerga o vice como uma incógnita. “Ainda é cedo para saber de que lado está o general Mourão. Ele tem uma característica que o difere dos demais [militares do Governo], que é ser indemissível. Pode questionar, pode se posicionar, que continuará sendo o vice-presidente da República. De certa forma, ele representa uma parcela dos militares. Mas por mais que tenha um discurso mais moderado, ainda é uma pessoa que defende que não houve golpe militar. Espero que a gente não dependa dele para a sobrevivência da democracia”, diz a deputada à Pública.
Tabata fez um levantamento em parceria com o senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE) mostrando que, além de nove dos 21 ministros serem militares ―todos eles levaram coronéis da reserva e da ativa como assessores―, em outros escalões os cargos de confiança ligados ao Palácio do Planalto mais que triplicaram desde o Governo Dilma (eram 102 e agora são 343), com amplo destaque para o Ministério da Saúde, no qual a presença militar saltou de um para 30 na gestão do ex-ministro Eduardo Pazuello.
O antropólogo Piero Leiner, da Universidade Federal de São Carlos (Ufscar), avalia que as diferenças públicas entre presidente e vice fazem parte de uma estratégia. “Desde a eleição, Mourão faz o papel de um ‘contraditório’: Bolsonaro diz, ele desdiz. Mas é preciso ter em mente que essa é uma contradição emulada. Este é um Governo pensado e executado por militares, e Mourão está lá também para fazer esse papel de subordinação militar, que é a ideia do ‘ele manda, nós obedecemos’. A ideia é que nas várias instâncias fique clara a aparência de que Bolsonaro seria uma coisa, os militares outra. Assim, eles podem aparecer como uma instância de moderação, o que é uma premissa falsa, uma vez que Bolsonaro é obra deles”, afirma.
Um dos maiores estudiosos das Forças Armadas no Brasil, o cientista político João Roberto Martins Filho diz que a conta pelo apoio a Bolsonaro já está chegando aos militares. “As Forças Armadas, em especial o Exército, estão muito comprometidas com esse Governo e pagam o preço com grande desgaste. Tem pesquisa mostrando que já estão em terceiro lugar (18%) entre as instituições que apresentam perda de confiança da população e em último (1%) entre as que apresentaram aumento da confiança”, diz à Pública. Martins Filho se refere à pesquisa Exame/Ideias sobre o efeito da gestão da pandemia nas instituições, com 1.259 entrevistados, feita entre 5 e 7 de março e publicada no último dia 10, portanto antes das mudanças feitas por Bolsonaro no Ministério da Saúde e nos comandos da Defesa e das Forças Armadas.
O pesquisador acha que já há sintomas de insatisfação entre os militares da ativa pelo fato de Bolsonaro ter tentado interferir nos comandos em busca de uma lealdade no conflito com o STF e certa fissura no generalato que ocupa cargos no Governo. Ele, no entanto, não acredita em rompimento. “Vão procurar remendar o que foi feito e estão pensando nas eleições do ano que vem. Se perceberem que Bolsonaro pode cair, vão de Mourão, que faz aquecimento no canto do campo e é palatável”, afirma.
O coronel Jorge de Souza acha que esse desgaste será ainda maior quando a população perceber com mais clareza que os militares “são o Governo”, já que o prestígio da tropa junto à população era motivado justamente pelo distanciamento da política, rompido, segundo ele, pelo envolvimento do Alto-Comando do Exército nos movimentos que antecederam o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff.
Dos 17 oficiais que integravam a cúpula da força à época, 16 estão ou estiveram em funções políticas nos Governos de Michel Temer e de Bolsonaro, que simplesmente militarizou a Esplanada.
“A geração dos anos 70 é o problema. Eles estão gostando do poder”, diz Jorge de Souza, para quem “é necessário fazer regredir a marcha da politização nos quartéis” e desgrudar a imagem das Forças Armadas de Bolsonaro. “Os generais não têm jogo de cintura para exercer funções políticas que são civis.”
Esta reportagem foi publicada originalmente no site da Agência Pública.
Fonte:
El País
https://brasil.elpais.com/brasil/2021-05-01/a-espera-de-mourao.html
Fernando Henrique Cardoso: Hora de decisão
Há períodos em que se necessita ter muita imaginação, ou o senso de dever aguçado, para cumprir compromissos. Pois bem, olhando em volta, e com minha escassa imaginação, só resta mesmo o senso do dever para escrever este artigo: o desânimo em volta acaba por inibir, se não a todos, a muitos de nós, brasileiros. Será que tal processo só acontece conosco, ou é a pandemia que tira da maioria – queiramos ou não – a vontade de falar, de escrever? Tenho dúvidas. Mas o fato é que o desânimo tolhe muito a imaginação: ao redor, mortes e enfermos; por enquanto há esperança de vencer mais este vírus. Mas escrever sobre política…
Francamente, com o governo atordoado e o povo desinteressado, pois o dia a dia consome as energias e boa parte da população deixa de lado tudo o que existe além do trabalho e da família, parece até estranho que alguém se disponha a conjecturar sobre o futuro ou sobre o mundo. Em meu caso, não fosse o “senso de responsabilidade” (herdado de pais e avós militares), preferiria “flanar”, como se dizia antigamente, a trabalhar sobre tais temas. Mas não há escolha: ao trabalho, portanto.
Para ver mais longe e não choramingar sobre o cotidiano local, convém pensar no positivo e no global. Apesar do encolhimento econômico, os que mais sabem parecem ver caminhos e, bem ou mal, a democracia se manteve onde ela resplandece. Nos Estados Unidos há um novo presidente, eleito pela maioria. Já isso é reconfortante.
Até que ponto a decisão americana nos atinge ou alcança? Por mais que acreditemos que nosso país é grande (somos mais de 200 milhões) e, afinal, a América Latina pesa para os Estados Unidos, é melhor não esquecer o ditado, como se diria em latim: modus in rebus. Ou, mais popularmente, devagar com o andor, pois o santo é de barro. O mais provável é que, descontando as boas palavras e as regras de convivência, como é do feitio diplomático, as mudanças no panorama americano não mudem muita coisa entre nós. E ainda bem.
No mundo internacional os interesses definem mais a ação do que a boa vontade ou mesmo os valores (salvo em casos extremos). Saudemos, pois, a mudança de governo por lá, porque o novo presidente pertence a um partido democrático. Mas paremos por aqui e cuidemos do nosso quintal.
Não sei se é correto falar em “nosso” quintal. O mundo está tão integrado economicamente e as influências cruzadas são tantas que é melhor ser prudente. De qualquer modo, a eventual insatisfação com o rumo das coisas por aqui não afeta os interesses maiores de lá, nem os de lá aqui. Se algo puder acontecer, deverá ser por vontade da maioria daqui mesmo.
Ou seja, o olhar panorâmico ajuda, mas a decisão dos rumos há de ser local. Convenhamos: as maiorias se formam e nem sempre seus resultados são os melhores. Mas quem julga? Na democracia, o eleitorado. E este, se não houver lideranças que abram seus olhos, pode resultar no que, ao ver de alguns, ou mesmo de muitos, seja a escolha de um mau caminho. Paciência. Como tenho escrito nesta página, melhor esperar novas eleições do que tumultuar o processo. À condição de que se preparem alternativas mais consistentes com nossos valores, aqueles em que acreditamos.
Escrevi “nossos valores”. Quais? Há alguns conflitantes e essa é a beleza do jogo democrático: não se sabe de antemão se a escolha foi boa, mas tem-se a certeza de que haverá chance de refazê-la. Desde que a maioria mude de opinião. Convém, portanto, não apenas aceitar resultados eleitorais, mas propor alternativas. É esta a fase em que estamos: os arreganhos de uns e outros deixam entrever que há vários caminhos. É hora para os candidatos se apresentarem e dizer o que propõem. E me refiro aos candidatos de diversos partidos. Além de que, como se sabe, há mais de um candidato em alguns partidos.
Que pelo menos se comprometam a respeitar o jogo democrático; se ocupem de defender nossos interesses, como povo e como cultura; e tenham a capacidade de decidir, qualidade que é indispensável nos regimes presidencialistas. Talvez esta seja a crítica mais geral que se possa fazer a quem ganhou as últimas eleições. Têm-se a impressão de que o eleito foi “uma família”, e não seu chefe. E que este às vezes se cerca mal. E talvez fique, em certos momentos, menor do que a cadeira que ocupa.
Se dentre os candidatos houver um ou dois capazes de cumprir esses requisitos, o barco retornará a andar. O País, nesse sentido, é mesmo grande: é só mostrar o rumo que ele caminha. Isso, se não serve de consolação, pelo menos explica como foi possível chegar aonde chegamos. Com muitas mazelas, é certo, mas caminhando para melhorar as condições de vida. Por enquanto, não de todos, mas talvez de boa parte. Está passando da hora de querer que seja pelo menos a condição de vida da maioria. E venha quem vier, se não enveredar pelo caminho do crescimento econômico e de mais renda para muitos, que encontre, se não a oposição – que seria salutar –, pelo menos o desprezo da maioria.
*Sociólogo, foi presidente da República
Fonte:
O Estado de S. Paulo
https://opiniao.estadao.com.br/noticias/espaco-aberto,hora-de-decisao,70003700766