Bolsonaro
Vera Magalhães: O Brasil involuiu 20 anos
O isolamento brasileiro diante da histórica decisão do governo dos Estados Unidos de apoiar a suspensão temporária de patentes de vacinas para Covid-19 é especialmente emblemático porque nos permite fazer um retrato de hoje e de exatos 20 anos atrás, quando vivemos uma epopeia oposta da diplomacia brasileira e cravamos uma das nossas principais vitórias em organismos multilaterais, justamente no tema de patentes para remédios.
Foi em novembro de 2001, ainda sob os escombros do 11 de Setembro, que a mesma OMC, palco da guinada de Joe Biden, aprovou, em sua 4ª Conferência Ministerial realizada em Doha, no Qatar, uma resolução proposta inicialmente pelo Brasil prevendo que, em casos de epidemias, os países-membros da organização poderiam flexibilizar as regras de patentes previstas no Acordo de Direitos de Propriedade Intelectual Relacionadas ao Comércio e Saúde Pública (conhecido como Trips).
A resolução foi o marco final do que ficou conhecido como “guerra das patentes”, uma ofensiva do governo FHC em várias frentes (diplomática, econômica e de comunicação) para pressionar a indústria farmacêutica a baixar preços dos medicamentos que compunham o coquetel anti-Aids, fornecido gratuitamente pelo Ministério da Saúde, ameaçando com a quebra das patentes.
Corta para 2021, quando um desarvorado Itamaraty foi pego totalmente de surpresa pela mudança de posição dos Estados Unidos, que passaram a apoiar a proposta encabeçada pela Índia e pela África do Sul no fim de 2020, e apoiada por mais de 100 países, para a suspensão das patentes de vacinas contra a Covid-19 enquanto durar a pandemia.
Isso ajudaria a aumentar a produção de vacinas e a equalizar sua aplicação no mundo. Dados mostram que mais de 80% das doses aplicadas até hoje se concentram em países ricos.
O Brasil, que nem é rico nem está bem na fila da vacina, achou por bem fincar pé na posição anterior e ver a caravana global passar diante dos seus olhos, com grande possibilidade de até a União Europeia evoluir para acompanhar a posição americana.
Uma coisa era a discussão posta até o anúncio da posição dos Estados Unidos, em que o Congresso brasileiro discutia a quebra das patentes em território nacional: essa medida, isoladamente, teria pouco efeito prático, pois nossa capacidade de produção própria de vacinas, como temos visto, é pequena, ainda mais sem transferência de tecnologia. Além disso, havia setores fortes da diplomacia defendendo que isso poderia nos criar embaraço com os grandes fabricantes, atrasando ainda mais a chegada de imunizantes ao país.
Mas o cenário muda drasticamente com o apoio da Casa Branca à suspensão temporária das vacinas, ainda mais porque ele levará a uma pressão dos demais países também sobre os Estados Unidos e demais países ricos para a disponibilização imediata do excedente de vacinas que compraram, para a transferência de tecnologia a países pobres e para o fim de medidas protecionistas para a exportação de insumos destinados à produção desses imunizantes.
É desesperador que o Brasil opte por ficar falando sozinho diante de uma resolução com tamanho impacto histórico, geopolítico e econômico.
A desorientação demonstrada pela diplomacia brasileira nesse episódio é fruto e sinal do desmonte da política externa promovida pela nuvem de gafanhotos bolsonarista. É da mesma cepa dos sucessivos surtos que fazem o presidente insistir em brigar com a China neste momento grave em que dependemos dos chineses para a chegada de insumos para nossas poucas vacinas.
Vinte anos depois de brilharmos nos palcos internacionais com políticas de saúde pública e de diplomacia internacional arrojadas e inovadoras, estamos no cantinho da vergonha.
Fonte:
O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/vera-magalhaes/post/o-brasil-involuiu-20-anos.html
Beatriz Della Costa: A sociedade civil tem que pautar a política
Umas semanas atrás fui entrevistada por uma jornalista que me perguntou assim: “Como mudar a situação do Brasil?”. Minha primeira reação foi partir para o óbvio: lockdown, vacina e auxílio emergencial. “Mas o que podemos fazer hoje para transformar esse cenário amanhã?”, ela insistiu. Fiquei aflita, pois não tenho a resposta. O que pude dizer foi que não há solução imediata, que a ideia do impeachment se esvai a cada dia e que já está bem claro que somos triplamente reféns: do vírus, do Governo negacionista e de políticos fisiologistas.
A conversa me deixou reflexiva. Primeiro pela essência da pergunta em si, que enfatiza o quanto estamos todos ansiosos para sair do buraco. Depois, pela constatação da inexistência de uma saída rápida. O bolsonarismo está por aí desde antes de 2018 e, de uma forma ou de outra, vai persistir para além de 2022 ou 2026. Ele representa um pensamento com o qual 30% da população de certa maneira se identifica. Então, querer mudar o futuro é, primeiro, ser capaz de olhar para este presente e entendê-lo a partir das heranças do passado, boas ou ruins. Precisamos lembrar que o bolsonarismo apenas vocaliza o comportamento de um país que se desenvolveu a partir do autoritarismo, da escravidão, da violência, do extrativismo.
E o que a gente sente é que ninguém, seja no governo ou na oposição, está preocupado em fazer isso, em delinear um projeto de país. Os partidos e os políticos, os tais fisiologistas de que falei, estão ali travando uma disputa de cabo de guerra que nada tem a ver com você ou comigo. De onde, então, pode vir a esperança? A que podemos nos apegar?
Sou cética no que diz respeito a uma oposição que, sem propostas, busca a união pela via do “anti”, mas confesso que aquele primeiro discurso de Lula depois de seu retorno ao jogo político, em março, me fisgou. Vi ali uma chance de enfim fugirmos destes tempos com sabor de 1964. A questão que fica é: para que futuro Luiz Inácio nos levaria? Chegaríamos finalmente à terceira década do século XXI? Ou iríamos para o futuro de 2010, numa continuidade direta de seu segundo mandato? Seja como for, a escolha entre 1964 e 2010 não é nada difícil.
Não tenho dúvidas, entretanto, de que a única maneira de entrarmos de vez no século XXI é nos livrando por completo da ideia de salvadores da pátria. Não existe mágica, não existem personificações puras do bem e da mudança. Qualquer pessoa que se proponha a botar o país nos eixos, a nos reinserir numa linha do tempo próxima à realidade, deve governar pelo diálogo com os mais diferentes grupos da população. Lula talvez esteja dando umas dicas de que está disposto a fazer isso (anda falando de imprensa livre, segurança, relações internacionais, pandemia e de vez em quando até de meio ambiente), mas já conhecemos suas limitações: além de representar um grupo político com visões enraizadas no fim do século XX, também é, de certa forma, parte do problema que vivemos.
No meio disso tudo, a sociedade civil tem a grande missão de começar a pautar a política de maneira menos centralizada e dependente. Precisamos disseminar o diálogo construtivo entre o poder público e, também, entre a população. Desde já, as organizações precisam ouvir brasileiros de todos os tipos, brasileiros que pensam de muitas maneiras, brasileiros que votam em pessoas diferentes. Isso vai decifrar insatisfações e, o mais importante, desvendar os pontos de convergência que podem fomentar um projeto de país e repavimentar a estrada para um Brasil justo e humano. Poucos países têm uma sociedade civil tão sólida, é hora de usarmos isso a nosso favor.
Sei que estamos resolvendo emergência atrás de emergência. Quando o encanamento se rompe e tudo fica debaixo d’água, vamos pensar em chamar um bombeiro hidráulico ou na reforma da casa? É possível lidar com a urgência e ao mesmo tempo se dedicar à construção de um futuro? Só há uma resposta: tem que ser. Estamos diante do grande desafio desta geração, a reconstrução do nosso tecido social. E chegou o momento de enfrentarmos nossos medos e as sombras do nosso passado, estabelecermos conversas, praticarmos a tolerância e sairmos Brasil adentro para construir nossos sonhos para o século XXI.
Beatriz Della Costa é cientista social, cofundadora e diretora do Instituto Update, organização da sociedade civil sem fins lucrativos que lançou em 2020 o projeto Eleitas: Mulheres na Política (www.eleitas.org.br), que mapeou mais de 600 mulheres e entrevistou mais de 100 para mostrar como elas vêm transformando a política, a sociedade e a democracia na América Latina.
Fonte:
El País
https://brasil.elpais.com/opiniao/2021-05-05/a-sociedade-civil-tem-que-pautar-a-politica.html
Alon Feuerwerker: O atraente bidenismo
A política econômica do governo Joe Biden vem atraindo certo entusiasmo nas correntes políticas da oposição, pela esquerda, ao governo Jair Bolsonaro. É compreensível. Após muitos anos de difusão do chamado Consenso de Washington, eis que na capital do mesmo nome surge uma administração a propor, entre outras coisas, emitir moeda, reforçar o papel do investimento estatal e taxar quem tem mais, para distribuir a quem tem menos.
A mudança ali, com as ondas de influência irradiadas mundo afora, soma-se vetorialmente por aqui a uma certa frustração com a colheita das políticas aplicadas desde pelo menos a Ponte para o Futuro de Michel Temer. Na sequência veio a dupla Bolsonaro-Paulo Guedes. É razoável admitir que existe alguma continuidade nas orientações definidas para a economia pelos governos que mandam no Planalto desde a ruptura de 2016.
Claro que a análise objetiva exige levar em conta as circunstâncias. Cada um de nós é ele mesmo e suas circunstâncias. Uma foi o governo Temer ter entrado em modo de sobrevivência por razões da área policial, e depois a pandemia da Covid-19 pegou pela proa a administração Bolsonaro. Mas aí enveredamos pelo terreno das explicações e justificativas. E na política, a exemplo de outras esferas da vida, quem começa a se explicar e justificar já está perdendo.
Os ventos bidenistas e a crônica pasmaceira econômica acenderam no Brasil o desejo de uma guinada. Mas qual a viabilidade dela? Que candidato com chances vai pegar a estrada em 2022 dizendo que irá fazer dívida pública pesada para ampliar o investimento estatal e prometendo tomar o dinheiro dos “ricos” (que no Brasil, na prática, incluem uma gorda fatia da classe média) para redistribuir renda pela mão do Estado?
Políticas econômicas precisam ter, antes de tudo, viabilidade política. Há sim teóricos respeitáveis que garantem: fazer dívida em moeda nacional não produz inflação. Mas qual presidente vai arriscar, no sempre instável cenário institucional brasileiro, colocar todas as fichas numa teoria contraintuitiva? Se der errado, seus autores no máximo farão autocrítica. Já o político provavelmente terá ido para o cadafalso, talvez metafórico.
Há uma diferença importante entre o Brasil e os Estados Unidos. Eles podem legalmente imprimir dólares sem lastro e nós podemos imprimir reais sem lastro, mas não parece que as consequências venham a ser as mesmas. Isso e outros fatores devem impelir os candidatos competitivos a buscar soluções mais convencionais. Uma em especial: a atração maciça de capitais externos para fazer subir a taxa de investimento privado.
Eis por que no próximo governo, pois entramos na etapa conclusiva deste, talvez um ministério de importância renovada será o das Relações Exteriores. E quem sabe não deveríamos voltar nossos olhos também para o Oriente, em vez de apenas para o Norte? É pouco razoável imaginar que a economia brasileira vai se erguer puxando os próprios cabelos para cima. Ou colocando todas as fichas de política exterior numa única casa.
*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação
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Publicado na revista Veja de 28 de abril de 2021, edição nº 2.737
Fonte:
Análise Política
http://www.alon.jor.br/2021/05/o-atraente-bidenismo.html
Veja
https://veja.abril.com.br/blog/alon-feuerwerker/o-atraente-bidenismo/
Eliane Cantanhêde: Gabinete das trevas
A estrela da CPI da Covid nesta semana é a cloroquina, mas a da semana que vem será a vacina. O governo Jair Bolsonaro não sai bem nem numa nem na outra e todas as perguntas giram em torno de um mesmo eixo: o grave negacionismo científico do próprio presidente da República diante da cloroquina, da máscara, do distanciamento, da vacina. De toda a pandemia, enfim.
A cronologia da CPI corresponde e expõe às câmeras, para o Brasil inteiro, a própria realidade do governo. Luiz Henrique Mandetta foi demitido do Ministério da Saúde por defender teses e protocolos científicos e da OMS. Nelson Teich foi colocado lá para ficar quieto, não atrapalhar, mas se rebelou quando percebeu a roubada. E o jeito foi meter um general da ativa do Exército, Eduardo Pazuello, para fazer o papel de bobo, obedecendo a tudo que seu mestre mandasse.
Por trás dessa cronologia, há o que Mandetta revelou já no primeiro dia de depoimentos: quem manda na pandemia não é o Ministério da Saúde, logo, nem Mandetta, nem Teich, nem Pazuello, mas, sim, o presidente, com um gabinete das sombras, ou das trevas. Não consta que Bolsonaro seja médico, cientista ou saiba a diferença entre vírus e bactéria. E não se sabe quem são e qual é a formação e a expertise em saúde, particularmente em saúde pública, dos tais integrantes do gabinete misterioso.
É dali, porém, que saem decisões estapafúrdias que dizem respeito à vida de todos os brasileiros e foram rechaçadas por Mandetta e Teich, mas assumidas alegremente por Pazuello e pela cúpula do governo. Não fosse assim, o que levaria um outro general, este da reserva, mas de quatro-estrelas, a ter de se vacinar escondido? E por que demorar um ano inteiro para lançar uma simples campanha para orientar os cidadãos para o uso de máscara, álcool em gel, distanciamento, vacina?
A grande dúvida, porém, é quanto ao quarto ministro em plena pandemia: o que defende, faz e pretende, e qual o grau de autonomia do médico Marcelo Queiroga em relação ao “doutor” Bolsonaro e ao gabinete das trevas? Como ele entrou e saiu da CPI sem citar uma única vez a palavra “cloroquina”, nem para aprovar, nem para condenar, as duas perguntas ficaram sem resposta conclusiva.
Foi aflitivo assistir ao depoimento. Queiroga fez um esforço gigantesco para se equilibrar entre suas crenças e a condição de ministro de Bolsonaro, tentando resumir tudo a um mantra: “A solução está na vacinação”. Não deixou, porém, de admitir, transversalmente, ou nas entrelinhas, que também é a favor das máscaras e do isolamento social e contra a cloroquina. Ou seja: não acusou Bolsonaro, mas disse, sem dizer, que defende exatamente o oposto do presidente, seu chefe.
Um exemplo da saia-justa foi quando, sem ter o que responder à pergunta sobre a orientação do Ministério da Saúde para “tratamento precoce”, que não tem respaldo científico em lugar nenhum do mundo, ele frisou que, “na minha gestão”, não houve orientação nem distribuição de cloroquina. Leia-se: se havia e não há mais é porque… ele é contra.
Enquanto a CPI expõe os absurdos de Bolsonaro, ele tenta distrair a plateia. Umas sacadas são só de mau gosto, como rir do cabelo “black power” de um seguidor: “Tô vendo uma barata aqui!”. Outras vão além, como chamar os contrários à cloroquina de “canalhas” ou voltar a atacar a China gratuitamente numa hora dessas. Os efeitos não são contra a pessoa de Jair Bolsonaro, mas contra o interesse nacional e a vida dos brasileiros.
Por falar em vida, lá está o Brasil mais uma vez de forma desoladora na mídia internacional, com a chacina no Rio, onde um tiroteio entre polícia e bandidos deixou 25 mortos. É essa a imagem do “novo Brasil”, esse Brasil do gabinete das trevas.
Fonte:
O Estado de S. Paulo
https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,gabinete-das-trevas,70003706947
Igor Gielow: Forças Armadas em ações de segurança pública têm legado questionado por militares e civis
Símbolo da falta de projeto civil para as Forças Armadas, as GLOs (Operações de Garantia da Lei e da Ordem) completarão 20 anos em 2022 com um legado questionado igualmente por militares e civis.
Não por esse motivo, e sim por pressão dos fardados em busca de respaldo jurídico para operações internas determinadas pelo Planalto, o presidente Jair Bolsonaro reduziu bastante o uso do expediente desde que assumiu, em 2019.
Até aqui, são 3,5 GLOs anuais a média sob Bolsonaro. Os anos de Fernando Henrique Cardoso (PSDB, 1995-2002) viram 5,9 ações, os de Luiz Inácio Lula da Silva (PT, 2003-2010), 4,9/ano, os de Dilma Rousseff (PT, 2011-2016), 5,6/ano e os de Michel Temer (MDB, 2016-2018), outras 5,6 anuais.
Para o presidente, o problema é a falta do infame “excludente de ilicitude”, um instrumento inspirado por exceção do Código Penal que buscaria isentar de culpa militares que se envolvessem em tiroteios com vítimas, por exemplo.
Na verdade, Bolsonaro tentou aplicar a ideia de forma ampla a forças policiais, mas foi barrado pelo Congresso. Propostas semelhantes estão paradas. “Eu pretendo usar a GLO, se tiver que usar, com excludente de ilicitude“, disse ele numa live no fim de 2020.
Não que isso o torne um legalista.
O presidente tem insistido em falas que poderá usar as Forças Armadas contra as medidas restritivas aplicadas por estados contra a disseminação do novo coronavírus. Oficiais-generais são contrários à ideia, até por não haver no artigo 142 da Constituição, que regula os militares, tal autorização de uso.
“O problema começa lá pela previsão da Constituição. Nosso principal negócio é a defesa da pátria, mas o nosso emprego tem sido fundamental para cumprir outras missões e a necessidade da nação brasileira”, resumiu o ex-comandante do Exército Edson Leal Pujol em uma outra live, em novembro passado.
As GLOs nasceram da necessidade de dar uma aparência de cidade pacífica ao Rio em 1992, quando Fernando Collor de Mello sediou a conferência ambiental Rio-92. Mas ao longo dos anos a aplicação foi diversificada, sempre sob queixa dos militares.
Muito antes da ascensão e queda do ministro Paulo Guedes (Economia) com o proverbial “Posto Ipiranga”, esse era o apelido no Planalto para as Forças Armadas. Sob FHC, chegou a haver 11 ações num só ano, 2000.
Os motivos se multiplicaram. Grandes eventos seguiram como prioridade, somando 27,3% do total das ações, seguido por controle de motins de PMs (18,2%) e crises de segurança estaduais (16,1%). Um grande contingente de 22,4% das GLOs cai na rubrica “outros”, que vai de garantir eleições a ações ambientais.
A única GLO em vigor, Operação Verde Brasil 2, foi encerrada na sexta (30), após um ano implementada. Os dados de desmatamento na Amazônia mostram que o esforço foi, no máximo, isso —um esforço.
Ainda assim, ela poderá ganhar uma nova edição. A GLO empregou 2.450 militares. Sua antecessora, a Verde Brasil 1, durou de agosto a outubro de 2019, no auge da crise internacional de imagem devido aos incêndios amazônicos.
Novamente, acabou sendo vista como cosmética. E custou R$ 124,5 milhões aos cofres públicos —menos de um terço do que a GLO dos Jogos Militares Mundiais, de 2011, de todo modo.
“O uso banalizado de um recurso excepcional traz desmoralização, já que o emprego recorrente não trouxe melhoras significativas no cenário da violência”, afirma Bruno Langeani, gerente do Instituto Sou da Paz.
Para ele, há o risco sempre citado pelos próprios militares de contaminação de tropas na ponta, pelo contato com o tráfico e outras formas de criminalidade.
“Militar cumpre o que lhe é pedido. Mas isso tem consequências”, diz o diretor do Brazil Institute do King’s College de Londres, Vinicius Mariano de Carvalho, lembrando que a Constituição não prevê o uso ostensivo dos fardados em patrulhamento.
Langeani ressalta também o ponto levantado por Pujol: o militar é preparado para outra coisa. “As forças policiais têm efetivo mais estável, com mais tempo de serviço, treinamento e protocolos, que incluem o uso de técnicas de defesa pessoal, armas menos letais. E parte grande da interação dos policiais demanda comunicação, não armas”, diz.
“Nas Forças Armadas há menos espaço para esses conhecimentos. Não é acidente que tenhamos tantos casos de mortes desastradas e evitáveis, como na fiscalização de um veículo, na morte do músico Evaldo Rosa em 2019 [cujo carro foi atingido por 257 tiros numa barreira militar no Rio]”, afirma.
Por óbvio, há momentos de crise aguda em que apenas a força militar pode colocar ordem, mas eles são exceções. Langeani aponta motins simultâneos de várias polícias, por exemplo, como situações em que a GLO se justifica.
Como diz Carvalho, há a questão sobre qual tipo de Forças Armadas o país quer para si. No caso brasileiro, pela forte inserção dos fardados na história política desde a proclamação da República e pela inapetência civil em lidar com assuntos de defesa, a situação fica algo fluida.
Há um mantra nas Forças Armadas, Exército no seu centro, com a questão da ocupação do território como forma de manter a soberania nacional. Com efeito, nos rincões da Amazônia, muitas vezes o único Estado existente é o que usa farda.
Alguns números justificam a preocupação. Há no Brasil 22 km² para cada militar, ou 176 fardados para cada 100 mil habitantes. Na América do Sul, a Colômbia conta um membro de Força para cada 3,8 km² ou 592 a cada 100 mil moradores.
Mas o país vizinho vive cinco décadas de guerra civil em níveis diferentes, com problemas de segurança interna bastante diversos dos graves desafios brasileiros.
Houve momentos em que a aplicação das GLOs serviu às Forças Armadas, contudo.
Durante os 13 anos em que o Brasil liderou a Missão de Paz das Nações Unidas, um dos argumentos mais correntes era de que a experiência de polciamente na ilha caribenha poderia ser replicada em morros cariocas —inclusive alterações foram testadas em blindados.
Aqui e ali, ocorreram alguns espasmos no pós-redemocratização de interação dos poderes civil e militar. Do Ministério da Defesa nasceram a política e a estratégia para o setor do país, além dos inventários do Livro Branco.
Lá há preocupações de todo tipo desenhadas, algumas bastante objetivas. “A Marinha é uma Força bastante profissional”, diz Carvalho. Mas a realidade costuma se interpor cada vez que uma Polícia Militar resolve se amotinar.
Fonte:
Folha de S. Paulo
El País: Morte de Paulo Gustavo catalisa ódio contra Governo Bolsonaro por má gestão da pandemia
Joana Oliveira, El País
“Paulo Gustavo não morreu de covid-19. Paulo Gustavo morreu de Brasil.” Essa é uma das milhares de mensagens que têm circulado nas redes sociais desde a noite de terça-feira, quando o país recebeu a notícia do falecimento do humorista de 42 anos, que deixou o marido, Thales Bretas, e dois filhos de um ano e nove meses. Ele estava internado em um hospital do Rio de Janeiro para se tratar da doença desde 13 de março e tornou-se uma das mais de 411.000 vítimas fatais da pandemia no país, mortas por “uma doença para a qual já existe vacina”, como não deixaram de lembrar os fãs do artista. A morte de Paulo Gustavo, um ator e humorista de personagens icônicos, como Dona Hermínia, que fazia rir e era apreciado nos mais diversos lados do espectro político, catalisou a dor coletiva e o ódio pela perda de quase meio milhão de brasileiros. A avaliação mais frequente é que ao menos parte das mortes seriam evitáveis caso o Governo Federal, sob comando de Jair Bolsonaro, tivesse adotado as medidas necessárias na gestão da pandemia, como a compra em massa de vacinas já no ano passado.
O humorista querido pelo país faleceu no mesmo dia em que o ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta deu testemunho da política negacionista de Bolsonaro durante a maior crise sanitária dos últimos 100 anos em depoimento de estreia da CPI da covid-19. A CPI já levantou que o Governo brasileiro recusou pelo menos 11 ofertas formais de fornecimento de vacinas contra essa doença —levando em conta os episódios em que há provas documentais da omissão governamental. Nesses casos, o Ministério da Saúde simplesmente ignorou as ofertas, sem dar resposta aos fornecedores. Nesse pacote estão, por exemplo, 70 milhões de doses do imunizante da Pfizer que poderiam ter sido compradas entre agosto e setembro do ano passado.
“Hipócrita”, “verme”, “canalha”, “maldito”, “desgraçado”, “genocida”, “assassino”. Esses foram alguns dos termos usados por famosos, políticos da oposição e anônimos para responder ao presidente após ele publicar nas redes sociais uma mensagem de condolência pela morte de Paulo Gustavo. “Meus votos de pesar pelo passamento do ator e diretor Paulo Gustavo, que com seu talento e carisma conquistou o carinho de todo Brasil. Que Deus o receba com alegria e conforte o coração de seus familiares e amigos, bem como de todos aqueles vitimados nessa luta contra a covid”, escreveu Bolsonaro.
Em meio aos adjetivos nada elogiosos, surgiam comentários que lembravam muitas das vezes em que o presidente minimizou a gravidade da pandemia, a demora para firmar acordos para a compra de vacinas, as aglomerações que ele promoveu e das quais participou, sua recusa em usar máscaras, a falta de adoção de medidas restritivas e de promoção do distanciamento social, a propaganda da cloroquina como tratamento precoce contra covid-19, mesmo sem eficácia cientificamente comprovada, e uma longa lista de discursos e ações. Na CPI que investiga a gestão da pandemia, Mandetta disse ter a impressão de que o Governo Bolsonaro apostava na teoria da imunidade de rebanho ―que supõe a proteção de uma comunidade quando um percentual da população já tem anticorpos― para superar a pandemia.
O escritor Paulo Coelho, mundialmente reconhecido, foi um dos que, sem citar nomes, responsabilizou diretamente o presidente e seu Governo pela morte de Paulo Gustavo. “Assassinos de Paulo Gustavo: quem dizia ‘é só uma gripezinha’; ‘não passa de 200 mortes’; ‘cloroquina resolve’; ‘gente morre todo dia’; ‘lockdown destrói o país’; ‘máscara nos faz respirar ar viciado’; ‘eu obedeço o comandante’. E por aí vai. Canalhas da pior espécie”, publicou em uma rede social.
Nesta quarta-feira, a jornalista e apresentadora Fátima Bernardes deu voz em seu programa matinal Encontro com Fátima (Rede Globo) à raiva que acompanha a tristeza pela morte do humorista, uma morte que reaviva a dor da perda das outras mais de 400.000 pessoas. “Hoje é um dia de luto pelo Paulo Gustavo, mas também por todos os outros que se foram por conta dessa doença terrível que é a covid-19. E pela forma como essa pandemia vem sendo administrada, infelizmente, aqui no nosso país. Dói muito saber que muitas pessoas, muitas dessas mortes poderiam ter sido evitadas. Cadê a vacina, o respeito ao distanciamento, ao uso de máscara? Cadê uma campanha forte e firme de alerta e informação da população?”, questionou ela. “Nós não estamos só tristes, estamos indignados, nós estamos revoltados. É muito ruim quanto a tristeza e a indignação se misturam à raiva”, acrescentou.
Enquanto a CPI avança no Senado, onde o Governo enfrenta as pressões da oposição, a frustração borbulha nas redes e, em menos de 24 horas, começaram a surgir comentários sobre a organização de protestos na rua contra Bolsonaro. Os administradores do perfil Qual máscara?, uma iniciativa que recompila e distribui informações baseadas em evidências sobre proteção contra a covid-19 e que soma mais de 200.000 seguidores no Instagram e no Twitter, comprometeu-se a distribuir máscaras PFF2 (de alta proteção) para manifestações ao ar livre, a fazer um material informativo para os atos e arrecadar doações para que eles aconteçam.
Nesta mesma quarta-feira, Bolsonaro voltou a menosprezar o uso de máscaras contra a propagação do coronavírus. Durante um ato para falar sobre a inauguração de obras no país, criticou os jornalistas que, segundo ele, “se preocupam apenas em dizer que o presidente está circulando sem máscaras”. “Já encheu o saco isso, pô!”, arrematou.
Fonte:
El País
Malu Gaspar: CPI da Covid revela homens ainda menores do que pensávamos
‘Um homem pequeno para estar onde está’ foi a expressão usada por Luiz Henrique Mandetta no depoimento à CPI da Covid. O ex-ministro da Saúde se referia ao ex-colega da Economia, Paulo Guedes, que o acusou de “pegar R$ 5 bilhões” e não comprar vacinas quando elas ainda nem existiam. Mandetta falou só de Guedes, mas bem poderia ter usado o aposto para outros personagens.
No momento em que Mandetta se apresentava à CPI, homens de confiança do presidente da República trabalhavam nos bastidores para ajudar outro ex-ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, a escapar do próprio depoimento. Estavam alarmados com o que viram no treinamento aplicado a ele no final de semana. O general que, no poder, se acostumou a dar entrevistas coletivas em que só falava o que queria e não respondia a pergunta nenhuma tremeu diante da simulação de um pelotão agressivo de senadores ávidos por um embate.
Acuado, o mesmo Pazuello que dias antes circulava sem máscara num shopping center de Manaus, despreocupado com a pandemia, escondeu-se atrás do Exército. Coube a um general assinar um ofício avisando à CPI que ele não compareceria, por ter tido contato com coronéis contaminados com o coronavírus.
O ex-ministro da Saúde não apresentou atestado médico, nem lhe ocorreu fazer um teste para eliminar a hipótese de contaminação e se liberar para prestar esclarecimentos à CPI o mais rapidamente possível. Mas ganhou duas semanas para tomar coragem e responder às perguntas dos senadores.
No dia seguinte, diante de plateia amiga no Palácio do Planalto, Jair Bolsonaro adotou postura combativa. Disse que estava pronto para garantir por decreto “o direito de ir e vir”, contra medidas de isolamento social determinadas por governadores. Em mais uma de tantas indiretas contra o Supremo Tribunal Federal, disse que, se baixar o tal decreto, “não será contestado por nenhum tribunal, porque ele será cumprido”.
No mesmo tom ameaçador de sempre, chamou de canalha “aquele que é contra o tratamento precoce e não apresenta alternativa” e criticou o pedido da CPI para que informasse onde esteve nos finais de semana em que circulou pelos arredores de Brasília sem máscara e sem tomar cuidados preventivos contra a disseminação do coronavírus. “Não interessa onde eu estava. Respeito a CPI, estive no meio do povo, tenho que dar exemplo”, afirmou o presidente, exaltado. “Vou continuar andando em comunidades em Brasília.”
Não parecia o mesmo Bolsonaro que, há duas semanas, telefonou ao governador de Alagoas, Renan Filho, pedindo para ajudá-lo no diálogo com seu pai, o relator da CPI, Renan Calheiros. Ou que, em visita fora da agenda, perguntou ao antecessor José Sarney: “O Renan é mesmo muito amigo do Lula?”. Embora se tratasse de uma pergunta inútil — ou alguém acredita que Sarney responderia que “sim, são muito amigos, falam sempre ao telefone, tocam de ouvido”? —, foi uma indagação reveladora dos contornos que o espírito combativo do capitão assume nos bastidores.
Na CPI, em público, o que se viu foram senadores recitando perguntas já enviadas prontas pelo governo ou por médicos pró-cloroquina, enquanto os ex-ministros Mandetta e Nelson Teich demonstravam claramente que houve, sim, uma concertação do Palácio do Planalto contra o isolamento social, pela adoção do tratamento precoce como política pública e de confronto às recomendações preconizadas pela ciência.
“A verdade, ela vai triunfar!”, proclamou em defesa do tratamento precoce o senador Eduardo Girão, que é empresário e ex-presidente de clube de futebol, mas fala como se entendesse de assuntos médicos. E que se proclama independente, mas atua como integrante da tropa de choque de Bolsonaro.
Sim, todos queremos que a verdade triunfe. É muito cedo, porém, para dizer que é isso o que acontecerá. Difícil, também, prever se a CPI da Covid resultará mesmo em punição aos responsáveis pelos fracassos e desídias que custaram milhares de vidas nesta pandemia. Mais arriscado ainda seria antever se haverá vontade política para produzir um impeachment.
Mas já é possível adaptar ao momento atual um velho ditado popular — aquele que diz que é quando a maré baixa que se vê quem está sem roupa. A CPI da Covid ainda está começando, mas uma coisa ela já conseguiu. Agora que a maré baixou bastante, a gente constata que os homens pequenos são ainda menores do que conseguíamos ver.
Fonte:
O Globo
William Waack: Dona Hermínia no Planalto
Sentada na cadeira do presidente no Palácio do Planalto, a personagem Dona Hermínia, criada pelo genial Paulo Gustavo, falaria assim sobre a covid-19. “É um vírus novo, ninguém sabe se nasceu em laboratório ou nasceu por algum ser humano ingerir um animal inadequado. Mas está aí. Os militares sabem o que é guerra química, bacteriológica e radiológica. Será que não estamos enfrentando uma nova guerra? Qual o país que mais cresceu o seu PIB? Não vou dizer para vocês.”
Dona Hermínia gostaria e ao mesmo tempo se cansaria de lidar o tempo todo com seu principal auxiliar, o ministro Paulo Guedes, em quem daria broncas como fazia com o ex-marido Carlos Alberto ou a empregada Valdeia. “PG, pode sair e ganhar dinheiro por aí, mas não me tira poder.” Mas, por ser tão mãezona, Dona Hermínia admitiria que às vezes tem de negociar. “Obviamente, com o passar do tempo, vou dando minhas peruadas no Paulo Guedes e ele vai dando na política para mim.”
Quando ficasse brava, Dona Hermínia explodiria rápido e não toleraria ser contestada, especialmente por jornalistas, gente que ela teria certeza de que não serve para muita coisa a não ser criticá-la injustamente. “Vontade de encher tua boca de porrada.” É um tipo de desejo que, seguramente, Dona Hermínia expressaria também em relação a senadores que tentassem encher o saco dela com CPIs. “Vou ter de sair na porrada.”
Pessoas que não sabem ficar dentro do seu cercadinho, como ministros do STF, levariam Dona Hermínia a lembrar a educação que deu aos filhos – impondo limites, sabendo dizer “não”, aplicando uma coça de vez em quando. Seus filhos sempre baixaram a crista quando avisava “que estão esticando muito a corda, e já está bem esticada”. Dona Hermínia acha que as pessoas entenderiam muito bem o que poderia acontecer quando ela decidisse “baixar um decreto para garantir o direito de ir e vir, e não ouse contestar”.
Para o lado dela Dona Hermínia teria certeza de que a corda não iria arrebentar, graças ao “seu” Exército. Que lhe obedeceria sem piscar os olhos, principalmente para proteger o povo de gente malvada como governadores e prefeitos que não pensam em outra coisa senão prejudicá-la gastando o dinheiro que Dona Hermínia mandou para eles combaterem a pandemia e agora sabe-se lá que fim essa grana levou. “Meu Exército não vai às ruas agir contra o povo”, diria Dona Hermínia.
Mas Paulo Gustavo se foi, ceifado como outras centenas de milhares de brasileiros por uma tragédia sem precedentes de saúde pública, agravada em primeiro lugar por documentada incompetência governamental, mas também – é obrigatório que se diga – por irresponsabilidade coletiva, num país que carece de líderes. A perda é grande, pois o humor é a melhor autocrítica da qual possa dispor uma sociedade, e a brasileira vai se despedindo rápido daquilo que sempre gostamos de chamar da malandragem simpática do brasileiro, da sua irreverência, do seu sorriso aberto.
A Dona Hermínia de Paulo Gustavo que conquistou o coração de milhões de pessoas é, no fundo, um personagem carinhoso, solidário, engraçado no melhor sentido da palavra, que criou entre todos nós uma profunda identificação pelas suas dúvidas, suas incertezas, suas dificuldades em entender o mundo. Mesmo a acidez e palavras duras mal disfarçavam o coração enorme e mole de mãe. Atrás dos palavrões, das ameaças e do sarcasmo da personagem está uma figura doce, divertida, amiga, preocupada com o mundo e as pessoas que a cercam.
Infelizmente, não há mais chances de Dona Hermínia ocupar o Palácio do Planalto.
Fonte
O Estado de S. Paulo
https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,dona-herminia-no-planalto,70003705566
Maria Hermínia Tavares: Sem lastro nem rumo
Em 29 de março passado, a insanidade finalmente deixou o Ministério das Relações Exteriores de braços dados com aquele que a alçara a princípio norteador da atuação internacional do país. A diplomacia brasileira parece ter encontrado a normalidade sob comando de um titular discreto e treinado nas boas práticas do ofício. Pelo menos tem as suas digitais o discurso do presidente na Cúpula de Líderes pelo Clima. Foi o seu primeiro pronunciamento para o mundo que não agrediu a língua ou a lógica, embora encharcado de compromissos mais que duvidosos.
Os atributos do Itamaraty, porém, estão longe de dar conta do necessário para reconstruir a imagem do país e a sua política externa. O prestígio que o Brasil conquistara lá atrás sucumbiu sob o peso do descalabro ambiental e da tragédia sanitária —ambos promovidos por um desgoverno que, de um lado, flerta com o ilícito devastador do patrimônio amazônico e ameaça as populações originárias; e, de outro, desorganiza a política de saúde e estimula comportamentos que só fazem agravar a pandemia.
Talvez as evidências mais claras de seus efeitos estejam nas falas dos eurodeputados, de esquerda e de direita, na recente sessão do Parlamento Europeu dedicada à crise da Covid-19 na América Latina. Desde os tempos da ditadura militar não se ouviam críticas tão implacáveis a Brasília—evidenciando que a reconstrução da imagem nacional dependerá mais do que de discursos e da boa praxe diplomática.
Políticas externas consequentes espelham, de uma forma ou de outra, os projetos que norteiam os objetivos nacionais e as políticas que lhes dão vida: o que se quer para o país dentro e além de suas fronteiras.A ideia de uma nação democrática, menos pobre e iníqua, apta, enfim, a obter benefícios de suas trocas com o mundo vertebrou a diplomacia tanto dos governos do PSDB como do PT. A de Fernando Henrique, mais otimista em relação aos ganhos a extrair da globalização; a de Lula, mais inclinada aos arranjos entre países emergentes. Ambas dispostas a explorar estratégias multilaterais para fortalecer o protagonismo internacional do país e abrir oportunidades de crescimento interno.
O morador da “casa de vidro” não tem —nem nunca teve— projeto ou políticas que mereçam esses nomes. Seu alvo sempre foi destruir o que se logrou sob a democracia da Constituição de 1988; atiçar os ódios de que se nutrem os seus seguidores fiéis; disseminar preconceitos e crendices —e, naturalmente, beneficiar sua família e seus asseclas. Nada que sirva para dar lastro a uma política externa coerente, que dirá governar.
*Professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap
Fonte:
Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/maria-herminia-tavares/2021/05/sem-lastro-nem-rumo.shtml
Mariliz Pereira Jorge: A morte é política
Como não politizar a morte se a política adotada pelo governo federal na pandemia continua a enterrar milhares por dia? Quanto mais demorarmos a vacinar a população contra a Covid-19, mais gente morrerá. Escrevi isso no dia 9 de dezembro, quando o país chegava a 180 mil óbitos e testemunhávamos a primeira pessoa no mundo a ser imunizada, uma britânica de 90 anos.
O texto seguia: a incompetência, o desdém e a demora do governo, na figura do presidente, serão culpados por todas as mortes que poderiam ser evitadas com uma vacina. De lá para cá, mais do que dobramos o número de vidas perdidas, e a CPI em curso deve mostrar o que eu disse na ocasião: Bolsonaro é um genocida.
Como não politizar a morte se a política adotada pelo governo federal na pandemia continua a enterrar milhares por dia? É resultado da gestão assassina que ignorou as medidas básicas que poderiam ter protegido a população.Com quase 415 mil mortos e vacinação em marcha lenta, Jair Bolsonaro segue empenhado em boicotar as poucas maneiras de evitar que a doença continue a devastar o país. Em menos de 24 horas, diz que a obrigatoriedade do uso de máscara “já está enchendo o saco”, sugere que a China faz guerra biológica e volta a ameaçar com decreto as medidas de isolamento adotadas pelos estados.
Nesta terça (4), quando o país inteiro se comoveu com a perda do ator Paulo Gustavo, a tragédia brasileira mais uma vez ganhou um rosto e luto coletivo. Mistura-se à tristezaa revolta contra o governo. A partida do comediante, jovem e brilhante, é o retrato do negacionismo de Bolsonaro. Assim como a de outros milhares, poderia ter sido evitada com uma vacina, se não fosse o desprezo que Bolsonaro tem pela vida, pela ciência, pelas instituições.
A melhor prova é que o Brasil registrou queda no número de óbitos de profissionais da saúde e de idosos que foram vacinados. Paulo Gustavo morreu porque pertencia ao mesmo grupo de risco que todos nós: o de brasileiros governados por um delinquente.
Fonte:
Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/marilizpereirajorge/2021/05/a-morte-e-politica.shtml
Fabio Graner: Reforma tributária exige debate, não tumulto
Ofuscado pelo tumulto gerado pelo presidente da Câmara, Arthur Lira, o relatório do deputado Aguinaldo Ribeiro (PP-PB) sobre a reforma tributária merece ser amplamente discutido pelo Congresso e pela sociedade. O texto mostra uma evolução importante em relação às PECs originais (45 e 110), porém, nasce com algumas lacunas que também precisam ser debatidas, entre elas não atacar a questão da baixa tributação sobre renda e patrimônio.
O substitutivo apenas tangencia o assunto ao reforçar na Constituição o princípio da progressividade fiscal, garantindo sua aplicação no imposto sobre heranças e doações (ITCMD) e no IPVA.
Ao Valor Ribeiro diz que não se trata de omissão. Como as duas PECs originais são centradas na tributação de consumo, seu relatório teve foco nisso, justifica. “Até porque muita coisa de renda pode ser por lei, infraconstitucional. Eu me referi à renda e patrimônio, reforcei o caráter de progressividade. Nós registramos isso e deixamos aberto para os parlamentares fazerem essa contribuição e, se todos entenderem que é devido, não serei eu que vou dizer que não é. Pelo contrário.”
O relator vai receber nos próximos dias sugestões para seu texto, que, pelo calendário da comissão, pode ter uma nova versão contemplando as contribuições no próximo dia 11.
A despeito de Lira ter anunciado a extinção das comissões, o relator mantém o tom diplomático e diz acreditar que seu texto conseguirá ser bem-sucedido no Congresso. “Eu vejo possibilidade de avançar. Os presidentes das duas casas, Rodrigo Pacheco [Senado] e Arthur Lira, disseram que a reforma tributária era prioridade. Reforma tributária é o que eu defendo. Ajustes tributários são outra coisa, não se tem impacto na economia como na reforma”, disse, em crítica indireta à tese de fatiamento do governo. “Eu defendo reforma ampla e confio na liderança dos presidentes para que esse tema possa avançar.”
Ribeiro destaca no relatório a criação do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) em duas fases, iniciando-se com a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) do governo federal por dois anos e no terceiro ano incorporando o ICMS e o ISS. Esse desenho, admite, foi feito para atender a equipe econômica.
Ele disse ter recebido muitos retornos positivos. “Acho que é importante a mudança estrutural na tributação do consumo. Isso vai de fato transformar o país. Hoje acho que temos um texto para ser debatido. Temos uma legislação única que tributa o consumo e não mais bens e serviços de forma diferenciada”, afirmou.
Ex-secretário da Receita Federal, o professor da FGV Marcos Cintra elogiou o relatório, mesmo não sendo simpático à tese de um IVA nacional. Para ele, o texto corrigiu problemas de “falta de realismo” na PEC 45. “Ele manteve o que tinha de bom na PEC 45, crédito financeiro, tributação no destino, unificação administrativa, e tirou o que era irrealista, como a universalidade, ao abrir exceções para o Simples, Zona Franca de Manaus, autorizar regimes especiais e permitir alíquotas menores para setores como saúde e educação.”
Cintra, porém, elogia a decisão de Lira e avalia que, com extinção das comissões, a PEC 45 está morta e abriu-se espaço para a CBS e o Imposto de Renda avançarem na Câmara, pois não há necessidade de quórum constitucional. Além disso, avalia, o relatório de Ribeiro pode tramitar sem problemas no Senado e avançar no Congresso, se conseguir apoio.
Para o advogado Luiz Gustavo Bichara, sócio de escritório do mesmo nome, o substitutivo, “embora bem feito, parece ter acolhido pouquíssimas manifestações dos setores empresariais”. Ele cita que não foram acatadas algumas sugestões relativas à compensação de créditos tributários acumulados no passado e critica regra de que os novos créditos do IBS só existirão após a comprovação do pagamento do tributo na etapa anterior (fornecedor). “Eu diria que aqueles que pagam a conta não foram muito ouvidos. E isso é particularmente grave num momento em que a recuperação econômica nem começou ainda.”
Há muitos aspectos de mérito ainda a se analisar do texto. Porém, não podemos escapar da tentativa de entender o embate político que Lira trouxe para a luz do dia. O chefe da Câmara anunciou que a comissão mista estava extinta ainda durante a leitura do texto. Para além da descortesia política, o mais grave foi que ele adicionou incerteza sobre o destino de uma reforma absolutamente necessária e sobre a qual já repousa justificado ceticismo, diante de décadas de fracassos.
Seus aliados apontam que a intenção de Lira seria acelerar o processo reformista. Isso porque o tema agora foi para o plenário, o que daria a ele maior controle sobre seus próximos passos. Se isso for verdade, ganha força a tese de reforma fatiada sem mudanças imediatas na Constituição e que priorize a CBS e as mudanças no Imposto de Renda, como ainda defendem o governo e o próprio Lira.
Uma das questões importantes é saber se as ações mais recentes do parlamentar não deixam rastro de mágoa e contrariedade que inviabilizaria essa alternativa. Na terça mesmo ficou claro que sua decisão não foi bem recebida por boa parte dos seus pares.
O presidente do Senado se posicionou pela continuidade da comissão e parlamentares dela também reagiram, lembrando que a discussão no colegiado era parte de um acordo. Ontem, os secretários estaduais de Fazenda emitiram nota contra a extinção da comissão mista e defenderam a continuidade dos trabalhos. A decisão de Lira, segundo a nota, foi desrespeitosa.
Cientista político e sócio da Hold Assessoria Legislativa, André Cesar avalia que o presidente da Câmara agiu movido por interesse em retomar o protagonismo perdido com a CPI da Pandemia, por rivalidade política com o grupo do seu antecessor, o deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ), e pelo sonho de aparecer para o mercado financeiro como grande artífice da reforma. Para ele, a atitude deixa sequelas que dificultam o avanço dessa reforma. “Ele não combinou com os russos e a coisa ficou mal construída”, disse, apontando risco de o Senado engavetar a reforma fatiada.
A dúvida que persiste é se a série histórica de fracassos da reforma tributária prevalecerá ou se, como na Previdência, a inércia será quebrada. Nessa disputa, construir pontes ajuda muito mais do que movimentos bruscos e imprevisíveis.
Fonte:
Valor Econômico
https://valor.globo.com/brasil/coluna/reforma-tributaria-exige-debate-nao-tumulto.ghtml
Ricardo Noblat: Carlos Bolsonaro, o Zero Dois, pinta o pai outra vez para a guerra
Basta de intermediário! Por que não o vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ), o Zero Dois do presidente Jair Bolsonaro, para Secretário de Comunicação Social do governo do pai?
Licenciar-se do mandato não lhe faria tão mal assim. Ele é vereador desde que se elegeu pela primeira vez, com 17 anos, e Bolsonaro o levou pela mão para que tomasse posse.
É difícil que outro filho de Bolsonaro demonstre tanto amor por ele quanto Carlos. Só Carlos concordou em disputar um mandato de vereador para derrotar a própria mãe, também candidata.
Às vezes, temperamental como é, Carlos some do radar do pai e se nega a atender seus telefonemas. É quando Bolsonaro fica mais desesperado e se rende a todas as suas vontades.
Mas logo os dois fazem as pazes, e Carlos volta a grudar no pai, principalmente quando ele precisa de ajuda. Como agora, alvo de uma CPI e com a popularidade em queda.
Carlos é o responsável pela mudança de tom do discurso de Bolsonaro de poucos dias para cá. Convenceu-o a radicalizar outra vez para manter unida sua tropa de apoio.
Por isso, Bolsonaro voltou a bater na China, indiretamente no Supremo Tribunal Federal, e ameaçar com uma crise institucional. Conversa mole para enganar bolsonaristas, mas funciona.
Bom filho, bom pai, que, ontem, o citou em público:
“Na minha eleição, meu marqueteiro não ganhou milhões de dólares fora do Brasil. Ele é um simples vereador, o Carlos Bolsonaro. Há ainda o Tércio Arnaud e o Mateus Sales. São pessoas perseguidas, como se tivessem inventado um gabinete do ódio.”
O gabinete do ódio eles inventaram, sim. Serve para defender Bolsonaro, infernizar a vida dos seus adversários e distribuir notícias falsas nas redes sociais.
A expressão “gabinete do ódio” não é da autoria deles, mas do jornal O Estado de São Paulo, que a usou pela primeira vez. Sempre que Carlos é convocado pelo pai, é hora de relâmpagos e trovoadas.
Fonte:
Blog do Noblat/Metrópoles