Bolsonaro

Murillo de Aragão: Modo crise como estratégia

No Brasil, vemos um fenômeno curioso em curso: a segunda onda personalista da Nova República. A primeira foi com Lula. Agora, é a vez de Bolsonaro. Fora os dois, nenhum outro presidente, desde a redemocratização, conseguiu criar um culto personalístico com potencial de se transformar em movimento político. Quais são os limites do fenômeno?

Lula foi longe ao gerar o lulismo, que, mais do que um conjunto de valores, é uma forma de fazer política. Por isso depende muito mais de seu próprio criador para sobreviver do que de suas ideias. Vide o fracasso de Lula com Dilma Rousseff, que nem seguiu sua metodologia nem sua visão de mundo. O lulismo provavelmente morrerá com Lula, assim como o varguismo morreu com Getúlio Vargas.

Bolsonaro, desde que se posicionou como candidato, estimula a criação do bolsonarismo como um movimento que se ampara em narrativas que misturam elementos do tenentismo, do conservadorismo e do reformismo institucional com elevadas doses de ambiguidade. A estratégia é clara e pouco se fala sobre ela. Vamos tentar reduzir as incertezas e estabelecer alguns limites.

O bolsonarismo é reformista? Sim, na medida em que questiona o Legislativo e, em especial, o Judiciário, buscando reduzir a influência desses poderes no jogo político. Tal busca pode ser “disruptiva”, no sentido de ter capacidade de romper o equilíbrio institucional? Não. Ainda que, se pudessem, certos setores do bolsonarismo fechavam o Supremo Tribunal Federal ou aprovavam o impeachment de alguns ministros da Corte.

“As escolhas fazem sentido na medida em que existe descrédito nas instituições políticas”

O bolsonarismo guarda semelhança com outros movimentos? Sim. De Gaulle se tornou um exemplo clássico quando utilizou a crise na Argélia para derrubar, com apoio político e a anuência da cidadania, a Quarta República e reformar suas instituições. Mussolini, ao acenar com a possibilidade de milhões de camisas pretas invadirem Roma em 1922, também dobrou o sistema. Tanto De Gaulle quanto Mussolini tiveram, além de amplo apoio popular, a aprovação das Forças Armadas.

O bolsonarismo teria o assentimento das Forças Armadas e da população para promover uma ruptura institucional? Previsões em política são temerárias, mas a pergunta não pode ficar sem resposta. Não, não teria esse apoio. Nem o propósito central do bolsonarismo seria o de derrubar a República ou mesmo refundá-la.

A estratégia posta é manter uma situação de tensão institucional que sirva a múltiplos propósitos. Um deles é o de preservar a sua base de apoio popular em regime de pré-campanha eleitoral. O outro é o de tentar conter a crescente perda de poder do Executivo para os demais poderes, Legislativo e Judiciário.

As escolhas fazem sentido na medida em que existe descrédito nas instituições políticas por parte expressiva da população. Ao manter o “modo crise” reforça-se a narrativa de que tudo está errado e de que o presidente se encontra aprisionado pelo institucionalismo que não atenderia aos interesses do seu eleitorado. A aposta deu certo em 2018, quando Jair Bolsonaro era candidato. A dúvida é se funcionará com ele no poder e como parte da moldura institucional existente.

Publicado em VEJA de 12 de maio de 2021, edição nº 2737

Fonte:

Veja
https://veja.abril.com.br/blog/murillo-de-aragao/modo-crise-como-estrategia/


Juan Arias: Fracasso da CPI da Pandemia seria o triunfo de Bolsonaro para a reeleição

O presidente Jair Bolsonaro parece hoje mais nervoso e agressivo do que nunca. Voltou a ameaçar com um golpe e até pôs a ABIN em ação para investigar governadores e prefeitos. Alguns senadores, certamente afeiçoados a ele, já começaram a vazar que a CPI da Pandemia não vai dar em nada, como tantas vezes aconteceu. Se isso for verdade, será um triunfo para Bolsonaro e uma vergonha para o Brasil e o mundo. Seria seu passaporte para a reeleição no próximo ano.

E ele e suas tropas de choque entenderam que desta vez não se trata de uma CPI qualquer que investiga algum caso de corrupção política. É muito mais. Desta vez se trata de investigar e julgar um presidente que transformou o país em um cemitério com sua política de negar a epidemia, zombar da vacina e fazer pouco caso das recomendações da ciência e da medicina que teriam evitado milhares de mortes.

Nunca, de fato, uma catástrofe natural deixou pelo caminho tantos órfãos e tantas famílias desfeitas para sempre. Não. Desta vez não se trata de mais uma CPI daquelas que costumam acabar em pizza, mas de indagar com seriedade sobre os milhares de mortes que poderiam ter sido evitadas sem a política negacionista do presidente.

E não se trata de vítimas de uma guerra. É muito pior. É uma matança produzida não só por um vírus invisível, mas pela cegueira de um presidente que insistiu em negar a gravidade da epidemia em favor de seus interesses pessoais. Não sei se os brasileiros estão cientes de que a epidemia não é fruto de uma fatalidade do destino, mas também da frieza e do gosto pela morte perpetrados pelo chefe do Estado e que acabaram manchando a imagem do Brasil no exterior.

Por tudo isso, se desta vez os políticos que têm nas mãos milhares de provas do desprezo do chefe de Estado pelas vítimas da pandemia não deixam de lado seus habituais compromissos partidários e a sua minúscula política que costuma dominá-los, passarão à posteridade como cúmplices de um massacre.

Tudo tem um limite, até mesmo na política, quando se trata de salvar a vida das pessoas. Zombar da morte nesta ocasião é tornar-se cúmplice de um genocídio e rir da dor de uma nação inteira.

Salvar o presidente investigado como responsável por um massacre representaria o maior descrédito político da história moderna do país, pois, por mais desacreditada que a política esteja, que tenda a olhar mais para o seu umbigo do que para o bem-estar das pessoas e a defesa da vida, há momentos históricos que exigem receitas amargas e coragem para castigar a iniquidade.

A CPI já começou mal depois da vergonhosa ausência das senadoras na comissão, já que as mulheres vêm sendo não só as maiores vítimas, mas as que sobreviverem arcarão com o maior fardo da tragédia.

Se os políticos do Senado, a quem não faltarão provas da conduta assassina daqueles que deveriam zelar pela vida das pessoas, terminarem dando vitória ao responsável por tantas mortes e permitirem que seja reeleito, eles vão acabar com seus nomes gravados em pedra para vergonha das gerações futuras.

Será que os senadores não veem que o presidente não sentiu em um só momento, não teve um impulso do coração de ir visitar um hospital onde morrem pessoas asfixiadas por falta de oxigênio, nem sequer é capaz de aceitar a responsabilidade de se mostrar solidário com a população que lhe deu o voto para que zelasse por seu destino e não para que a transformasse em um rebanho que o segue cegamente em seus instintos de morte?

Se os senadores da CPI não tomarem consciência de sua responsabilidade pelo presidente que já é aceita pela maioria da nação, terão humilhado e traído um país inteiro.

As sombras desses milhares de mortos e daqueles que ainda se poderia evitar, afastando do poder quem desafia os que continuam apostando na vida, vão acabar perturbando para sempre os sonhos dos senadores da CPI.

O Brasil não precisa de um presidente que dê armas às pessoas e destrua seu rico patrimônio ambiental, mas, sim, que tenha como prioridade a defesa da vida. Precisa de um presidente sensível à dor dos mais expostos ao perigo e que seja capaz de vencer a guerra do ódio e da mentira, hoje tão perigosos quanto um novo vírus letal.

O Brasil necessita urgentemente de um presidente que saiba abrir novos horizontes de esperança para um povo que já carrega sobre os ombros tanta morte e tanta pobreza e injustiça por causa da degradação dos políticos que trabalham mais em proveito próprio e de suas famílias do que para criar possibilidades de uma vida melhor. E isso para um povo ao qual sobram riquezas para que todos pudessem desfrutar uma vida digna. Necessita de um líder que impeça que ainda existam milhões de famílias que passam fome enquanto são testemunhas do desperdício dos políticos que tantas vezes parecem cegos e mudos diante do martírio a que um país está sendo submetido.

Os políticos, deixando o presidente livre, se encontrariam mais do que nunca em um terrível dilema que poderia levar a uma tragédia ainda maior do que a que o país já está vivendo. A CPI do Senado, que acaba de começar a investigar os possíveis crimes perpetrados durante a guerra contra a pandemia, nem sequer precisaria de meses de trabalho, pois desta vez há um consenso nacional de que o presidente é realmente o responsável pela tragédia e deu motivos mais do que suficientes para que seja exonerado de seu cargo. As provas estão à luz do sol e todos as conhecem.

Se a CPI acabar, como alguns senadores já prognosticam, salvando um presidente que aos olhos do mundo se tornou indigno e perigoso para dirigir o país, estaríamos diante de uma das pantomimas mais trágicas, e o mundo da política e da justiça acabará ainda mais humilhado e desacreditado do que já está.

O Brasil que hoje sofre, por ora, em silêncio, uma tragédia que em boa parte teria sido possível evitar, amanhã poderá se rebelar contra políticos incapazes de estar à altura de seu destino.

Juan Arias é jornalista e escritor, com obras traduzidas em mais de 15 idiomas. É autor de livros como Madalena, Jesus esse Grande Desconhecido, José Saramago: o Amor Possível, entre muitos outros. Trabalha no EL PAÍS desde 1976. Foi correspondente deste jornal no Vaticano e na Itália por quase duas décadas e, desde 1999, vive e escreve no Brasil. É colunista do EL PAÍS no Brasil desde 2013, quando a edição brasileira foi lançada, onde escreve semanalmente.

Fonte:

El País
https://brasil.elpais.com/opiniao/2021-05-07/fracasso-da-cpi-da-pandemia-seria-o-triunfo-de-bolsonaro-e-seu-passaporte-para-a-reeleicao.html


Marco Antonio Villa: A CPI pode salvar o Brasil

Jair Bolsonaro não dá qualquer esperança — nem ao doutor Pangloss — de que possa em algum momento da sua Presidência se converter a democracia e liderar, de forma republicana, o Brasil nesta crise, a mais grave da história republicana. A cada dia deixa claro seu descompromisso com a Constituição e o Estado Democrático de Direito.

As ameaças golpistas são repetidas ad nauseam — é como fossem instrumentos naturais da democracia, apenas uma forma de agir em situação de crise política.

Se Bolsonaro permanece, em plena pandemia, solapando as instituições e em um cenário econômico dramático, nada indica, portanto, que poderá desempenhar um papel construtivo que o País necessita, como nunca nos tempos recentes, de liderança positiva, da construção de ações conjuntas entre as várias correntes políticas, governadores, prefeitos, em um trabalho de união para enfrentar a pandemia. A vacinação em massa é indispensável para iniciarmos o processo de recuperação econômica. Sem ela permaneceremos assistindo a morte de milhares de brasileiros e a propagação do vírus em larga escala.

Estamos em um compasso de espera extremamente nefasto ao País. Isto porque ainda é dado a iniciativa política a Bolsonaro, apesar de todos os crimes de reponsabilidade que cometeu. As oposições respondem ainda timidamente. E o tempo passa enquanto avança o desastre sanitário, econômico e social.

As reações não inibem o governo. Pelo contrário, Bolsonaro fica ainda mais estimulado, fortalecido. Não houve ainda o entendimento que ele não age como qualquer outro ator político, democrático, quando encontra oposição. Ele não está neste campo e, assim, suas reações não são aquelas esperadas.

É um extremista e age sempre neste contexto, de enfrentamento das instituições, de desqualificação dos adversários — que, para ele, são inimigos. Tratar de combatê-lo da forma tradicional tem levado à paralisia institucional. Ele, até agora, mesmo com mais de 400 mil mortos da pandemia e uma economia em frangalhos, tem vencido os embates, pois se mantém na Presidência com os amplos poderes concedidos pela Constituição — a mesma que ele despreza. Ou seja, a permanência — nesta conjuntura, a da mais grave crise da República — já é uma vitória. O inicio de sua derrocada pode ser na CPI da Covid, exatamente porque é um ambiente — um locus — que ele não domina, o da democracia parlamentar, basta recordar os 28 anos como deputado. A sorte está lançada, não para ele, mas para nós.

Fonte:

IstoÉ
https://istoe.com.br/a-cpi-pode-salvar-o-brasil/


Marcus Pestana: Uma agenda para o Brasil pós-pandemia

Atravessamos um período gravíssimo de nossa história, onde há uma combinação explosiva entre a nefasta pandemia, desemprego e o agravamento da miséria e da fome. Já são 420 mil vidas brasileiras perdida. Para além da retórica política de quem quer que seja, há uma evidência: o Brasil tem 2,7% da população mundial e 12,9% das mortes causadas pela COVID-19.

Talvez a morte do tão querido ator e humorista Paulo Gustavo nos abra os olhos e nos sensibilize para o sofrimento das milhares de famílias que anonimamente perderam seus parentes. A não ser que haja uma adesão coletiva à cínica afirmação de Stalin, ditador da antiga URSS, que afirmou: “Uma única morte é uma tragédia, um milhão de mortes é uma estatística”.

De qualquer forma é preciso repensar o futuro do país. Qual é o Brasil que queremos quando a tempestade passar? O debate público é centrado em torno de personalidades, seus atributos e defeitos. As candidaturas tem conteúdo mais personalista do que programático.

Honra seja feita, como exceção, ao fato de Ciro Gomes ter lançado o livro “PROJETO NACIONAL: O DEVER DA ESPERANÇA” (Editora LeYa) e de o PSDB ter lançado, com o apoio do Instituto Teotônio Vilela, a coletânea de artigos “O BRASIL PÓS PANDEMIA: uma proposta para reconstrução do futuro” (https://www.psdb.org.br/wp-content/uploads/2020/12/BRASIL-PÓS´PANDEMIA-FINAL.pdf).

Já disse aqui que não é o momento de discutir a sucessão presidencial de 2022. A população está interessada em vacina, emprego e segurança alimentar. Dado isto, seria um bom momento para partidos amadurecerem um projeto para o futuro do país.

Essa reflexão, em minha opinião, deveria abranger quatro eixos centrais. O primeiro é sobre a questão democrática. A liberdade e a democracia andaram ameaçadas. Quais as travas necessárias para evitar retrocessos? Qual é a reforma política profunda que temos que produzir? Quais as transformações constitucionais e legais para que a convivência entre os Poderes republicanos supere o permanente estado de conflito que vivemos? Qual é o papel do Poder Judiciário e das Forças Armadas? E o papel do Brasil no cenário mundial? Perguntas que precisam ser respondidas por qualquer candidato à presidência.

Em segundo lugar, a discussão sobre o novo modelo de desenvolvimento econômico. Como crescer, incluindo? Qual Estado precisamos? Como conseguir uma integração competitiva ao mundo globalizado? Quais são as diretrizes corretas para as políticas fiscal, monetária e cambial? Como privilegiar a inovação e o empreendedorismo? Como enfrentar o desemprego tecnológico? Como repensar o mundo do trabalho? Como superar a armadilha do baixo crescimento?

Em terceiro lugar, o desafio de combate às crônicas e inaceitáveis desigualdades pessoais e regionais de renda e qualidade de vida. Qual é a educação e a saúde com que sonhamos? Quais as formas de redistribuir renda? Qual seguridade social e rede de proteção precisamos? O dever número 1 de qualquer candidatura é explicitar suas estratégias para tirar milhões de brasileiros da miséria e da pobreza.

Por último, a visão da sustentabilidade e do compromisso ambiental aonde o Brasil tem papel central no debate internacional.

Política é meio, não fim em si mesma. Um candidato à presidência não pode ser um rebelde sem causa. Antes de debater nomes, é urgente discutir as ideias.

*Marcus Pestana, ex-deputado federal (PDSB-MG)    

Fonte:

O Tempo
https://www.otempo.com.br/politica/marcus-pestana/subscription-required-7.5927739


Vera Magalhães: Os 3 caminhos da CPI para ‘encher o saco’ de Bolsonaro

Jair Bolsonaro pode se preparar para continuar irritado. A CPI da Pandemia pretende juntar munição para “encher o saco” do presidente, como ele demonstrou temer em seu mais recente ataque verborrágico.

Transcorrida a primeira semana de depoimentos da CPI da Pandemia, os senadores do chamado G7, o grupo dos independentes e oposicionistas que tem a maioria na comissão, já definiu três linhas principais de investigação que podem levar à responsabilização de Jair Bolsonaro e de Eduardo Pazuello, em cuja gestão à frente do Ministério da Saúde ocorreu a disparada do número de mortes e casos de covid-19.

São os seguintes os eixos a partir do qual devem ser organizados os depoimentos, e que deverão nortear também o relatório final de Renan Calheiros:

1) a recusa reiterada na compra e no financiamento de vacinas, conjugada com a falta de esforços para sua análise e aprovação pela Anvisa.

Alguns dos depoimentos da semana que vem vão aprofundar as apurações para chegar à cadeia de comando da ordem para não adquirir vacinas que foram oferecidas ao governo federal pela Pfizer e por outros fabricantes.

São os do ex-secretário de Comunicação da Presidência Fábio Wajngarten e dos representantes da Pfizer, Carlos Murillo e Marta Diéz. A ideia é traçar a cronologia exata das tratativas entre a empresa e o governo federal, bem como quais integrantes dos diversos ministérios participaram e opinaram contra a aquisição antecipada dos imunizantes.

2) gasto de recursos públicos para a produção e a aquisição de medicamentos sem eficácia comprovada para o tratamento da covid-19, bem como a adoção de protocolo para seu uso precoce e o envio de grandes quantidades para Estados e municípios.

A ideia aqui é deixar provado que Bolsonaro priorizou a compra, fabricação e indicação de medicamentos como cloroquina e hidroxicloroquina à aquisição de vacinas, comprovadamente mais eficazes para conter a pandemia.

A adoção do protocolo do chamado “kit covid” para casos leves e iniciais da doença, à revelia de evidências científicas e depois da recusa de dois ministros em consigná-lo também deve ser apontada como irregularidade e imputada ao presidente e a Pazuello.

3) ações do presidente para estimular a chamada “imunidade de rebanho” em Estados e municípios, com incentivo à tese de que quanto antes maiores parcelas da população contraíssem o vírus mais rapidamente a pandemia seria debelada.

A tese anticientífica de que seria possível atingir imunidade de rebanho sem vacina foi defendida por governistas como o deputado Osmar Terra, e a necessidade de “enfrentar” o vírus foi repetida por Bolsonaro seguidas vezes.

De acordo com os senadores, as aglomerações defendidas ou promovidas pelo presidente, inclusive em solenidades oficiais, e as vezes em que ele recorreu a STF para tentar sustar medidas de distanciamento social adotadas por governadores e prefeitos entram nesse quesito.

Um depoimeto chave para tentar construir esta tese será o do vice-governador do Amazonas, Carlos Almeida Filho, segundo quem Manaus foi usada como “laboratório” da tese de imunidade de rebanho, o que teria criado o ambiente propício à mutação do coronavírus e o surgimento da variante P1.

Fonte:

O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/vera-magalhaes/post/os-3-caminhos-da-cpi-para-encher-o-saco-de-bolsonaro.html


Hélio Schwartsman: Um problema patente

A decisão do presidente Joe Biden de apoiar a suspensão de proteções patentárias a vacinas durante a pandemia mostra que os EUA agora apostam no multilateralismo e estão atentos para as questões humanitárias. É um belo gesto político. No plano prático, porém, mesmo que a medida seja aprovada, terá papel limitado sobre a oferta de imunizantes no curto prazo.

O principal entrave à produção de vacinas hoje não são as patentes, mas a capacidade produtiva. O Brasil é um bom exemplo. Já temos em princípio acordos de transferência de tecnologia que nos permitirão fabricar por aqui dois imunizantes, mas ainda não conseguimos pôr de pé a estrutura fabril para fazê-lo.

De todo modo, penso que o instituto das patentes precisa mesmo ser repensado. Ele é menos eficaz do que se imagina para estimular a inovação e, nas últimas décadas, tornou-se em alguns casos fator de desestímulo. Isso fica claro no fenômeno da grilagem de patentes em biotecnologia, pelo qual grupos vão patenteando tudo o que de algum modo se relacione a uma área de pesquisa, não tanto para assegurar legítimos lucros futuros, mas para evitar que possíveis competidores se interessem pelo assunto.

Mesmo assim, há situações em que a patente parece ainda ser importante. É o caso da indústria farmacêutica, não porque a inovação aqui siga outras regras, mas pelo elevado custo para desenvolver e licenciar drogas. Se não houver um mecanismo que assegure o retorno desses investimentos, dificilmente alguém se arriscaria nesse tipo de empreendimento.

Já vemos um pouco disso na área de antibióticos. Como não são drogas que deem muito retorno financeiro, há muito tempo não aparecem novas classes desses quimioterápicos —o que poderá mostrar-se um seriíssimo problema de saúde pública no futuro próximo.

Independentemente de pandemia, chegou a hora de reavaliarmos as patentes, buscando aperfeiçoamentos no sistema.

Fonte:

Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/helioschwartsman/2021/05/um-problema-patente.shtml


Ascânio Seleme: Privatizando o SUS

governo federal está realizando consulta pública para implantar uma certa “Política Nacional de Saúde Suplementar para o enfrentamento da Pandemia da Covid-19” que, na visão de especialistas e instituições dedicadas à saúde pública, significa um pedido de autorização para “privatizar” o SUS. A consulta foi autorizada pelo Consu, o Conselho Nacional de Saúde Suplementar, formado pelos ministros da Saúde, da Casa Civil, da Economia e da Justiça, assumindo competência que tecnicamente deveria ser da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Segundo dois grupos de estudos, um da Faculdade de Medicina da USP e outro do Instituto de Saúde Coletiva da UFRJ, o governo está aproveitando a pandemia para “passar a boiada” em favor das operadoras de planos de saúde.

A consulta, lançada na plataforma digital Participa + Brasil, da Presidência da República, tem 18 pontos. Segundo o Grupo de Estudos sobre Planos de Saúde da Faculdade de Medicina da USP (Geps) e o Grupo de Pesquisa e Documentação sobre Empresariamento na Saúde da UFRJ (GPDES), todos os pontos atendem aos interesses privados das operadoras em detrimento do interesse coletivo. Ao instituir a política, a consulta propõe integrar as ações da saúde suplementar ao SUS. Segundo os dois grupos, as práticas da saúde pública e da complementar são heterogêneas e muitas vezes divergentes, o que inviabiliza esta integração. A menos que se queira transformar o SUS numa “rede protetora das operadoras privadas”.

O governo propõe em sua consulta pública garantir o atendimento à saúde em “prazos razoáveis”. De acordo com análise feita pelo Geps e pelo GPDES, a ideia por trás deste ponto é remover o artigo 3º da Resolução Normativa 259 da ANS, que definiu prazos máximos para o atendimento e que “é uma pedra no sapato para a comercialização de planos de cobertura restrita”. A consulta também sugere proporcionar um ambiente de entendimento para solucionar conflitos entre operadoras e prestadores de serviços de saúde. Significa, segundo a análise dos grupos, aumentar a interferência dos planos nas condutas de médicos e outros profissionais de saúde.

Um dos pontos críticos é o que estabelece que um dos objetivos da política é “contribuir para o desenvolvimento sustentável do setor de saúde privada do país”. Para Geps e GPDES, “não há justificativa para o apoio governamental ao setor privado”. Está se oferecendo “suportes públicos para ampliar a privatização da saúde”. O que é ilegal e imoral num país tão desigual quanto o Brasil. Em outro ponto, a consulta propõe “estabelecer ações que visem o desestímulo ao atendimento de beneficiários de planos de saúde no SUS, no limite das coberturas contratadas”. De acordo com Januário Montone, primeiro presidente da ANS ainda no governo de Fernando Henrique, “querem baratear os planos para garantir maior acesso à população, reduzindo a cobertura e impondo limites de utilização”.

Há ainda diversas armadilhas enumeradas na análise da proposta feita pelos grupos da USP e da UFRJ e publicada em seus sites no dia 5 de maio. Uma delas é a inversão de valores hierárquicos, ao submeter a Agência Nacional de Saúde ao Conselho de Saúde Suplementar. O artigo 5º da proposta em consulta afirma que as ações da política nacional serão elaboradas pela ANS e “aprovadas” pelo Consu. O Conselho é um órgão político, sem qualificação técnica, ao contrário da Agência. Segundo Januário Montone, o Consu “perdeu sua finalidade com a criação da agência reguladora no ano 2000 e acabou sendo absorvido pelo Conselho Nacional de Saúde”.

Montone afirma “que esse plano tenta solapar os mais de 20 anos de regulação do setor de saúde suplementar”. Ele lembra as muitas medidas introduzidas na regulação do setor pela Lei Geral dos Planos de Saúde, como a proibição de restrições ao acesso aos planos, o direito à assistência de urgência e o ressarcimento ao SUS de custos gerados por detentores de planos. “Diziam que o mercado ia quebrar. Não quebrou. Em 2019 sua receita foi equivalente a 72% do orçamento do SUS, somando União, estados e municípios”. Para os grupos da UFRJ e da USP trata-se de “mais uma ofensa à saúde e à vida” que não pode ser tolerada. Diante disso, o governo recua ou tenta contradizer tantas constatações. Vai ser difícil.

Não ouse, canalha

Não se trata de ciclotimia. Tampouco deve-se creditar exclusivamente ao zerinho mais ridículo e ao seu gabinete do ódio. A recaída grotesca de Jair Bolsonaro, com novo ataque ao Supremo Tribunal Federal e à democracia, é apenas um reflexo de seu caráter. Essa é a sua essência. Ele se julga acima de tudo. Uma vez eleito, em razão de um gigantesco equívoco nacional, Bolsonaro entendeu erroneamente que podia tudo. Achou estar ungido de um poder que a Constituição não lhe deu, não dá a ninguém, nem nunca dará. Por isso ameaça da maneira mais sórdida as instituições. Sua última foi afirmar que, com o apoio das Forças Armadas, descumpriria uma hipotética orientação judicial contrária a um suposto decreto seu proibindo governadores e prefeitos de baixarem restrições para o controle do coronavírus. Ele que não ouse. Será rechaçado e varrido.

Piada global

Aliás, quem será que municiou este homem com a ideia de que a China está se preparando para uma guerra bacteriológica, química e radiológica contra o planeta? Deve ter sido com aquele alucinado que desrespeitou o Senado ao fazer um gesto de supremacista branco enquanto o presidente do Congresso falava, na véspera da demissão de Ernesto Araújo do Itamaraty. O Brasil, que se tornou um pária global em razão das suas ações e omissões no combate à pandemia, agora virou piada internacional.

Off label

Um dia pousou na mesa de Bolsonaro uma minuta de decreto que o autorizaria a fraudar a bula da cloroquina para introduzir efeitos inexistentes contra a Covid. Foi o que ouvimos de Luiz Henrique Mandetta na CPI. O crime foi evitado pelo presidente da Anvisa. Vejam só, nem o almirante Barras Torres conseguiu atender o biruta do terceiro andar na sua mais ordinária tentativa de enfiar cloroquina na goela dos brasileiros. Daí passou-se a usar o termo off label, que designa o medicamento cuja indicação para o uso diverge do que consta da bula. Parece bonito, é em inglês. Os ignorantes adoram e repetem.

Troca-troca

Mandetta trocou pelo menos três vezes de máscara durante o seu depoimento à CPI da Pandemia. O presidente da Comissão, senador Omar Aziz, passava álcool em gel na sua máscara sempre que um assessor se aproximava para passar alguma informação. Cada um se cuida como pode.

Mãe Joana

Pelas contas do Ecad, órgão arrecadador de direitos autorais, há 6.478 músicas nacionais que têm a palavra “mãe” ou “mamãe” no título. Entre elas consta “Casa da mãe Joana”, de Marília Mendonça. Ao contrário do que sugere, a música não trata do governo Bolsonaro, mas sim de um coração partido.

Ordem para matar

A chacina do Jacarezinho teve o OK de um governador recém confirmado no cargo pelo impeachment do titular, daquele que queria matar bandido com “tiro na cabecinha”. A chacina se deu apesar de o STF ter proibido operações em favelas durante o transcorrer da pandemia de coronavírus. Além da incompetência, da arrogância e da brutalidade criminosa da polícia, a ação foi ilegal. E daí? Daí que o governador Cláudio Castro deverá prestar contas ao Supremo. Desobedecer ordem do tribunal é crime e pode resultar no afastamento do mandatário. Mais um.

O carismático

O governador que autorizou a matança no Jacarezinho é bolsonarista, o que talvez explique a truculência da operação. Mas, por outro lado, Cláudio Castro é católico da linha carismática, vai à missa todos os domingos e canta no coro da igreja. O governador cristão vai carregar para o resto da sua vida o recorde de mortos na história das ações da polícia do Rio.

E se fosse milícia?

A matança do Jacarezinho não ocorreria se a boca de fumo e o aliciamento de menores fosse num condomínio da Zona Sul, na Zona Oeste ou mesmo em área urbana da Zona Norte. Mas na favela invisível tudo pode, menos se ela for dominada por milícias. Como você acha que a polícia agiria se jovens estivessem (e estão) sendo recrutados em áreas da milícia? Não agiria. Os policiais poderiam encontrar muitos ex-colegas, parceiros de sueca e sinuca. Não daria certo.

O guarda da esquina

Foi em Minas que se comprovou a máxima do mineiro Pedro Aleixo de que um dos muitos perigos da ditadura reside na autoridade que se auto confere o guarda da esquina. Viu-se isso no domingo passado em Belo Horizonte, mesmo com o país vivendo a plenitude do seu vigor democrático. Um grupo de policiais militares, liderados pelo deputado estadual Bernardo Bartolomeu (Novo), invadiu um apartamento e prendeu um homem que estaria jogando ovos sobre manifestantes bolsonaristas que se aglomeravam no Centro da cidade. Os militares cometeram um crime ao invadir uma casa sem mandado judicial e por motivação esdrúxula. Sentiram-se respaldados porque temos o presidente que temos e ainda foram estimulados por um deputado pé de chinelo que tem a cara velha do Novo.

Erros na primeira

Na primeira página do GLOBO de quinta-feira, duas fotos chamavam a atenção. Na do alto, Jair Bolsonaro liderava um grupo de mais de 20 negacionistas na descida da rampa do Planalto. Na outra, senhoras aplaudiam Paulo Gustavo. Na de Brasília, faltou um dos mais importantes terraplanistas do círculo íntimo (ops) de Bolsonaro. Osmar Terra não estava lá. Na de Niterói, no primeiro plano, uma mulher sem máscara liderava o lamento pela morte do humorista causada pela Covid.

Fonte:

O Globo
https://oglobo.globo.com/brasil/privatizando-sus-1-25008683


Demétrio Magnoli: Lei do Estado democrático deve se circunscrever à ação violenta contra as instituições

Câmara revogou a Lei de Segurança Nacional, com módico atraso de 32 anos. No seu lugar, aprovou uma Lei do Estado Democrático que flerta, aqui e ali, com a criminalização da opinião política. Paira no ar o perigoso conceito de democracia militante.

A LSN já vai tarde. Bolsonaro e seu assecla André Mendonça a invocam, dia sim e outro também, para tentar intimidar críticos do governo. Mas, como o Bombril, a lei da ditadura tem mil e uma utilidades: o STF também achou conveniente brandi-la quando inaugurou o infindável inquérito das fake news. No percurso, diante do arruaceiro deputado Daniel Silveira, enfiou numa sacola única o elogio retórico do AI-5 e os crimes de incitação à violência e ameaça. Ao redigir a Lei do Estado Democrático, a Câmara avaliza a manobra dos supremos juízes.

“A Constituição não permite a propagação de ideias contrárias ao Estado democrático”, escreveu o STF ao tornar réu o parlamentar bolsonarista. Falso! Nada, na Carta de 1988, proíbe defender ideias autoritárias. Silveira tem o direito de elogiar o regime militar e suas leis, assim como comunistas da velha estirpe estão cobertos pelo princípio da liberdade de expressão ao propor a substituição do Congresso pelos sovietes. O que é proibido, para um como para os outros, é cruzar o limite entre a palavra e a ação.

Gilmar Mendes sustentou a criminalização da difusão de ideias autoritárias com base no conceito legal alemão de democracia militante (streitbare Demokratie). A Constituição da República Federal Alemã, de 1949, veta a negação do Holocausto e o uso da suástica. Mas o Brasil, que nunca experimentou algo como o nazismo, não se define como democracia militante. Por aqui, só são puníveis explícitos discursos de ódio contra segmentos da população, além de calúnia, injúria ou difamação.

A caduca LSN é um código de uma ditadura militante (há outro tipo?). No seu artigo 23, criminaliza “incitar à subversão da ordem política ou social”, expressão que permite encarcerar o comunista ortodoxo por palavras proferidas numa entrevista ou passeata pacífica. A nova Lei do Estado Democrático tipifica vagamente crimes “contra as instituições democráticas” e de disseminação “de fatos inverídicos” em redes sociais no curso de processos eleitorais. Na forma como redigida pela Câmara, oferece caminhos para encarcerar o cachorro que apenas late.

Talíria Petrone, líder do PSOL, identificou os contornos da besta: “Sabemos bem como esses tipos penais abertos podem levar à criminalização de movimentos sociais”. O PSOL ama a ditadura castrista, que persegue movimentos sociais como as Damas de Branco ou o Movimento San Isidro por meio da acusação legal de subversão. Mas a duplicidade moral não impugna a crítica específica: o texto pode, efetivamente, ser interpretado de modo a punir a mera palavra subversiva, tanto de direita quanto de esquerda.

“Não seríamos nós que iríamos escrever uma lei que perseguisse os movimentos sociais”, retrucou Orlando Silva. O deputado do PC do B é um pândego: seu partido ama de paixão o regime totalitário chinês, que editou a Lei de Segurança de Hong Kong, uma LSN com esteroides, para encarcerar os estudantes do Movimento Guarda-Chuva.

Há pouco, um popular youtuber investiu no negócio da moda, que é rotular Bolsonaro como genocida. André Mendonça, então ministro da Intimidação, poderia processá-lo por calúnia, exigindo retratação. Preferiu, porém, erguer a espada afiada da LSN. Quando apreciar o texto proveniente da Câmara, o Senado tem o dever de evitar a promulgação de uma “LSN do Bem” que, inevitavelmente, serviria aos propósitos dos Mendonças vindouros.

Já temos leis suficientes sobre as fronteiras da liberdade de palavra. A Lei do Estado Democrático deve se circunscrever à ação violenta contra as instituições. Nossa democracia não milita.

Fonte:

Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/demetriomagnoli/2021/05/a-democracia-nao-milita.shtml


João Gabriel de Lima: Uma razão para ter orgulho do Brasil

Uma ideia que ajudou a mudar o mundo nasceu, como algumas canções da bossa-nova, em guardanapos de papel. Era o ano de 2009 e almoçavam, em Brasília, a secretária nacional de Mudança Climática, Suzana Kahn Ribeiro, e o ministro do Meio Ambiente, Carlos Minc. O assunto: o que o Brasil poderia sugerir na COP 15, a Conferência do Clima de Copenhague? Suzana rabiscou um esquema no guardanapo. Nascia a “espiral positiva”.

A ideia era simples. Suzana e Carlos achavam que o Brasil deveria propor, unilateralmente, a redução de suas emissões de carbono. Mais: fixar metas concretas. Ainda mais: expor-se ao escrutínio internacional, abrindo seus números. Houve resistências dentro do governo, cujo discurso – recorrente entre os caramurus à esquerda e à direita – era cheio de “não podemos abrir mão de nossa soberania” e “eles devastaram suas próprias florestas, não se metam com a nossa”.

A “espiral positiva” era, antes de tudo, um desejo, um “wishful thinking”: inspirados pelo exemplo do Brasil, vários países tomariam atitudes semelhantes, numa competição virtuosa. A ideia venceu as resistências internas – entre elas, a da ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff. Ganhou a adesão do Itamaraty, com seu timaço de negociadores com experiência em meio ambiente (a coluna voltará ao assunto em breve).

No plano externo, o sucesso não foi imediato. Os brasileiros ganharam aplausos em Copenhague, mas não adesões. A semente germinaria seis anos depois. O Acordo de Paris, assinado em 2015, era precisamente a ideia do Brasil – países propondo voluntariamente metas de redução de carbono, com métricas críveis.

O que mudou em seis anos? “Ficaram claros os incentivos para uma economia de baixo carbono. Não se trata apenas de salvar o planeta, mas também de ganhar dinheiro”, diz Suzana Kahn Ribeiro, atualmente professora na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Ela discorre sobre o assunto no minipodcast da semana.

As oportunidades são inúmeras. Segundo Suzana, a China, que já foi refratária a metas de emissões, cresceu o olho sobre o mercado de energia renovável. Países nórdicos investem em madeira certificada: do lado certo da força, ganham a concorrência com nações que devastam florestas. Acessam, de quebra, o bilionário mercado de títulos verdes. O lado certo da força, diga-se, acaba de ser demarcado com sabre de luz pelo Obi-Wan da vez – o presidente americano Joe Biden.

Se há uma razão para que os brasileiros se orgulhem de seu país, é a liderança que já exercemos na área mais estratégica do planeta – a que garante a própria sobrevivência da esfera azul que habitamos. Além de inspirar, em alguma medida, o Acordo de Paris, o Brasil foi o berço do moderno combate à mudança climática – na Rio 92, marco positivo do governo Collor.

Perdemos, no entanto, essa primazia – e, com ela, oportunidades de enriquecimento e projeção internacional. “É possível que, depois da pandemia, o mundo se reconstrua como uma economia moderna”, diz Suzana. “Conectar-se com esse futuro é uma chance enorme.” O tema começa a entrar em pauta entre os pré-candidatos de oposição para 2022. Do governo atual, pelo que diz e faz, não se deve esperar nada.

O Brasil conhece bem o caminho para reconquistar alguma relevância no mundo. Já houve um tempo em que nossas ideias, rabiscadas em guardanapos de papel, faziam o planeta cantar – ou ajudavam a salvá-lo, inspirando boas práticas.

Fonte:

O Estado de S. Paulo
https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,uma-razao-para-ter-orgulho-do-brasil,70003708202


Fabio Giambiagi: Gasto do governo com militares teve um incremento real de 4% em 2020

Uma lição que tentava passar para meus alunos quando dava aulas de Finanças Públicas era: “Sempre que for possível, abram o dado”. Ou seja, antes de fazer afirmações peremptórias sobre algo, é preciso entender bem o que está acontecendo. O gasto público está aumentando? Sim, ok. Por causa de que rubricas? INSS? Perfeito, onde? Aposentadorias urbanas ou rurais? Por idade ou por tempo de contribuição? O problema está nas “outras despesas”? Quais delas, então?

Agora faço uma observação similar quando vejo análises gerais sobre a despesa com pessoal. Esta é uma rubrica que, sem dúvidas, era necessário rever no começo do atual governo, haja vista o fato de que, desde que o teto do gasto fora adotado em 2016, ela e o INSS foram os dois grandes itens que continuaram mantendo seu crescimento, em contraste com a evolução do terceiro grande bloco de despesa – as “outras” – que encolheram muito entre 2016 e 2019. A razão se localiza na decisão do governo Temer de validar os aumentos salariais negociados politicamente – ainda no governo Dilma – com a maioria das carreiras do funcionalismo, acarretando um incremento real do gasto. Esse item, então, pressionou severamente as chamadas “despesas discricionárias”, que têm sido espremidas nos últimos cinco anos.

Como, porém, aqueles aumentos nominais se esgotavam em 2019, é útil colocar uma lupa na questão e analisar o que continuou acontecendo em 2020 e 2021. A observação dos dados sugere que chegou a hora de tratar de um tema que, até agora, tem merecido escassa ou nenhuma importância nas análises da maioria dos analistas. Parodiando o nome de um famoso filme, eu diria que “precisamos falar sobre a despesa com pessoal dos militares”. O rigor analítico exige apresentar os números de forma nua e crua.

Vejamos as questões com maior grau de detalhamento. Entre 2016 – ano da aprovação da “regra do teto” – e 2019, as despesas com pessoal passaram de 20,6% para 22,2% do total do gasto. O que aconteceu com essa rubrica em 2020? Neste ponto, há que lembrar a negociação que ocorreu em 2019, visando à aceitação, por parte dos militares, de uma reforma previdenciária da categoria que fosse aceitável por parte das Forças Armadas. Eles acabaram apoiando a proposta específica de reforma enviada ao Congresso, em troca de aumentos salariais maiores ao longo da carreira, vinculados a determinados requisitos.

O fato é que, muito provavelmente, o que os economistas chamamos de “integral de remuneração”, ou seja, o valor de quanto será pago a essa pessoa ao longo de toda a sua vida será maior do que antes da reforma, uma vez que, embora o tempo de vigência da aposentadoria será menor, o valor gasto na ativa, após os aumentos, será muito superior ao que iria ser pago antes dos aumentos concedidos, além de outros detalhes que não há espaço aqui para comentar. Alguém poderia alegar que isso ocorreria só em forma dilatada ao longo do tempo, mas não é o que os dados mostram.

A realidade dos números é inequívoca: deflacionando os dados pelo IPCA médio anual, em 2020, o gasto com pessoal civil teve uma redução real de 2%, enquanto o gasto militar teve um incremento real de nada menos que 4% – no ano em que o PIB caiu 4%! E, quando se olha para o pessoal ativo, devido ao congelamento nominal de uns e aos aumentos concedidos a outros, o contraste entre civis e militares foi maior ainda: o gasto com ativos civis caiu, em termos reais, 4%, enquanto o gasto com pessoal ativo militar teve um salto real de 7%. E, nos primeiros três meses de 2021, essa realidade se acentuou: a despesa com ativos civis caiu em termos reais mais 6% e com pessoal ativo militar aumentou novamente outros 7% reais. Não é preciso ser um profundo conhecedor de política para entender a lógica desse processo. Em outras épocas, dir-se-ia que se tratava de uma “questão de correlação de forças”. Neste caso, literalmente.

*ECONOMISTA

Fonte:

O Estado de S. Paulo
https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,gasto-do-governo-com-militares-teve-um-incremento-real-de4-em-2020,70003706910


Bernardo Mello Franco: Tropa de trapalhões

Em duas semanas, o Planalto já acumula ao menos sete vexames na CPI da Covid. A série começou quando o UOL publicou uma planilha da Casa Civil com 23 acusações contra o governo. A lista foi redigida para ajudar os bolsonaristas. Ao vazar, virou arma para a oposição.

Na semana passada, O GLOBO revelou que requerimentos assinados por senadores governistas foram produzidos em computadores da Presidência. Os registros eletrônicos mostram que os parlamentares atuaram como laranjas do capitão.

Nesta terça, o ex-ministro Henrique Mandetta expôs mais uma lambança. O ministro Fábio Faria enviou para o celular dele, por engano, uma pergunta que seria feita pelos aliados de Bolsonaro.

No dia seguinte, os governistas protagonizaram outro papelão: tentaram impedir as representantes da bancada feminina de falar. Os senadores Ciro Nogueira e Marcos Rogério se esforçaram para calar as colegas no grito. Foram desautorizados até por Soraya Thronicke, uma bolsonarista de carteirinha.

O general Eduardo Pazuello ainda não deu as caras, mas já acumula dois vexames na CPI. Na terça, apresentou uma desculpa esfarrapada para adiar seu depoimento. Disse que teve contato com dois coronéis contaminados, embora não tenha se prestado a fazer um teste de Covid-19.

Ontem o drible se transformou em escárnio. Enquanto dizia estar isolado no hotel de trânsito do Exército, o general fujão recebeu a visita do ministro Onyx Lorenzoni.

O sucessor de Pazuello protagonizou a sétima trapalhada governista. Num depoimento arrastado, Marcelo Queiroga deixou dezenas de perguntas sem resposta. A cada enrolação, evidenciava o medo de dizer algo que desagradasse o chefe.

“O senhor é médico, fez o juramento de Hipócrates, mas não consegue responder àquilo que eu pergunto”, protestou o senador Otto Alencar. Queiroga continuou a embromar e voltou para casa com o apelido de ministro Rolando Lero.

Fonte:

O Globo

https://blogs.oglobo.globo.com/bernardo-mello-franco/post/tropa-de-trapalhoes.html


Hélio Schwartsman: Pazuello, covarde ou herói?

general Pazuello fugiu do depoimento que daria à CPI da Covid. Isso é fato. Resta determinar se o fez por covardia ou bravura. É claro que estou sendo irônico, mas menos do que o leitor imagina. A relação entre covardia e bravura é irredutivelmente paradoxal.

O guerreiro que nada teme não faz nada de extraordinário quando enfrenta a morte no campo de batalha. Para que sua atitude tenha algo de heroico, é preciso que ele tenha medo, se não de perder a vida, dos chamados destinos piores que a morte, como viver em desonra ou ver seus familiares e compatriotas reduzidos à escravidão. E basta admitir que o medo é indissociável da bravura para gerar situações contraditórias.

Gosto de uma observação do marechal Georgi Jukov: “No Exército Vermelho, é preciso ser muito valente para ser covarde”. É que os soviéticos punham em campo as temíveis companhias penais, que fuzilavam imediatamente qualquer soldado que parecesse recuar. Estima-se que centenas de milhares tenham sido mortos por esses pelotões.

Num exemplo mais literário e mais doméstico, Gonçalves Dias cria um I-Juca Pirama tão valente que não teme passar por covarde para cumprir suas obrigações filiais, sendo rejeitado até mesmo pelo pai pelo qual sacrificara a honra aparente.

Em qual contexto a fuga de Pazuello da CPI poderia ser interpretada como um ato de bravura? Lealdade. O general é tão leal ao comandante em chefe que não hesita em passar por covarde para protegê-lo. O fato de Pazuello ser um militar, carreira em que a covardia é o pior anátema que pode ser pespegado a alguém, torna seu sacrifício ainda mais trágico.

Só o que impede o general de ter seu destino imortalizado em versos são as motivações do chefe. Elas são tão mesquinhas que apequenam qualquer heroísmo. Se Pazuello não é covarde por ter fugido da CPI, o é por não ter denunciado os crimes de Bolsonaro.

Fonte:

O Globo

https://www1.folha.uol.com.br/colunas/helioschwartsman/2021/05/pazuello-covarde-ou-heroi.shtml