Bolsonaro

Bernardo Mello Franco: O silêncio do general

Há dez anos, o estamento militar se uniu para combater a Comissão Nacional da Verdade. Os generais temiam que a revelação de crimes da ditadura causasse dano à imagem das Forças Armadas. Faltou visão estratégica: o pior estava por vir com Eduardo Pazuello.

A passagem do general pelo Ministério da Saúde implodiu o mito da eficiência dos militares. O oficial afastou técnicos e aparelhou a pasta com coronéis, majores e capitães. O resultado foi uma gestão caótica, que abraçou o negacionismo, atrasou a compra de vacinas e deixou faltar oxigênio em hospitais.

Pazuello também desmontou o marketing da bravura dos homens de farda. Para não perder o cargo, o general se humilhou publicamente diante do capitão. “É simples assim: um manda, e o outro obedece”, explicou, ao ser desautorizado na negociação com o Instituto Butantan.

A CPI da Covid já causou novos desgastes a Pazuello e ao Exército. Depois de usar uma desculpa esfarrapada para adiar seu depoimento, o ex-ministro apelou ao Supremo pelo direito de permanecer calado.

O habeas corpus concedido pelo ministro Ricardo Lewandowski segue a jurisprudência do tribunal. A Constituição também é clara: ninguém é obrigado a produzir prova contra si mesmo. No entanto, a blindagem jurídica terá efeitos adversos. O silêncio do general deve agravar sua desmoralização diante dos senadores e da opinião pública.

Ainda que compareça em trajes civis, Pazuello representará o Exército na CPI. Ele é general da ativa, loteou o ministério entre colegas da caserna e agora é defendido pela Advocacia-Geral da União. É impossível separar o personagem da instituição que o abriga e acoberta.

Há outros riscos à vista para o general fujão. Apesar de ter garantido seu direito ao silêncio, Lewandowski ressaltou que ele precisará responder a perguntas que envolvam “fatos e condutas relativas a terceiros”. Nesses casos, valerá o compromisso de dizer a verdade. Se mentir aos senadores, o ex-ministro poderá ser responsabilizado por falso testemunho.

O relator Renan Calheiros deixou claro que o habeas corpus não resolve todos os problemas de Pazuello. “Interrogatório bom não busca confissões, quer acusações sobre terceiros. Com relação a ele, outros falarão”, avisou.

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O drama dos Covas

Duas décadas depois, Bruno Covas repete o drama do avô. Mario Covas descobriu um câncer no auge da carreira política. Havia acabado de se reeleger governador de São Paulo. Ele rompeu uma tradição da política brasileira e manteve os cidadãos informados sobre a doença. Morreu em 2001, aos 70 anos.

O prefeito Bruno também escolheu enfrentar a tragédia pessoal com transparência. Além de explicar cada etapa do tratamento, usou as redes sociais para divulgar mensagens de fé e otimismo. Na quinta-feira, ele publicou a última foto no hospital. Na sexta, os médicos informaram que seu estado de saúde era irreversível.

Fonte:

O Globo

https://blogs.oglobo.globo.com/bernardo-mello-franco/post/o-silencio-do-general.html


Merval Pereira: Uma sociedade de amigos

A instalação da CPI da COVID-19 trouxe à discussão, de maneira colateral, um problema brasileiro que talvez tenha no deputado Bonifácio de Andrada, de Minas Gerais, que morreu em janeiro, um exemplo radical. A presença de sua família na política vem do Império, e já tem cerca de 200 anos na ação parlamentar. Atualmente, Lafayette de Andrada (Republicanos – MG), seu filho, exerce mandato na Câmara Federal.

Quando os governistas tentaram impedir a participação dos senadores Renan Calheiros e do suplente Jader Barbalho, por serem pais dos governadores Renan Filho, de Alagoas, e Helder Barbalho, do Pará, o que era apenas uma estratégia parlamentar de postergar o funcionamento da CPI, pois ninguém acreditou que os dois fossem proibidos de atuar, trouxe novamente à tona a questão dos clãs familiares na política nacional.

Levantamentos do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (DIAP) e do site Congresso em foco mostram que existem hoje na Câmara Federal 172 deputados com algum grau de parentesco de políticos – 33,5% do total –  e 24 senadores, quase 30% das bancadas. Numa eleição disruptiva como a de 2018, na qual políticos tradicionais, como Romero Jucá no Amapá, e clãs familiares como os Sarney e os Lobão no Maranhão não tiveram êxito, a renovação foi grande, especialmente para a Câmara, que já teve anos em que 60% dos eleitos eram ligados a famílias tradicionais de políticos.
Uma disrupção comandada, paradoxalmente, por um dos muitos clãs políticos, os Bolsonaros,  numerados de 1 a 4, três dos quais com cargos legislativos – o senador Flávio, o deputado federal Eduardo e o vereador Carlos, sobrando ainda um futuro mandato de deputado estadual para o mais novo, Renan -, que emergiram do baixo clero para o proscênio da tragédia que estamos encenando.

O próprio presidente Bolsonaro revelou que só se candidatou à presidência porque estava “de saco cheio” de ser deputado federal, depois de sete mandatos consecutivos. Uma brincadeira que custou caro ao Brasil. O antropólogo Roberto Da Matta, um estudioso da sociedade brasileira, considera que esse protagonismo de relações de compadrios marcam os partidos brasileiros, que os trocam pelas ideologias. “Estamos vivendo em um regime colonial, de realeza, de fidalgos, que querem manter e ampliar seus privilégios”. Ele se refere ao decreto presidencial que criou um duplo teto para os funcionários públicos que trabalham no Executivo, permitindo que o presidente da República e seus ministros acumulem salários da função pública com a aposentadoria.

Essa imbricação familiar faz parte de uma crise cultural que vivemos há muito tempo, resultado de uma sociedade de fidalgos, que se colocam em posição superior aos demais da sociedade, que, por sua vez, aceita essa hierarquia que reflete o abismo da desigualdade no país. Da Matta, que estudou o autoritarismo brasileiro a partir da expressão “Você sabe com quem está falando?”, diz que a subserviência dos mais pobres diante dos “fidalgos” mostra que “eles sabem com quem estão falando”. Para ele, a nossa é uma sociedade “de amigos”, em que a família é central.

Essa análise de Roberto da Matta leva a que se compreenda a dificuldade de conter o nepotismo, de investigar os próprios pares,  como se vê permanentemente no Conselho Nacional de Justiça (CNJ), e agora no caso da denúncia contra o ministro Dias Toffoli de ter aceitado propina para mudar um voto em favor de prefeito de um município do Rio. Feita em delação premiada à Polícia Federal pelo ex-governador Sérgio Cabral,  será arquivada sem investigação pelo Supremo Tribunal Federal.

O bate-boca promovido pelo senador Flávio Bolsonaro na CPI da Covid-19, chamando o relator Renan Calheiros de “vagabundo”, e recebendo em troca a mesma pecha, marcou a semana. Mais ainda porque o presidente Bolsonaro no dia seguinte foi a Alagoas, nicho eleitoral dos Calheiros, para atacá-los no próprio campo, acompanhado de dois chefes de clãs alagoanas: o presidente da Câmara Arthur Lira, filho do ex-senador Benedito de Lira, e o ex-presidente Fernando Collor de Mello, filho do ex-senador Arnon de Mello, que já foram aliados de Renan Calheiros e poderão voltar a sê-lo, de acordo com seus interesses.

Fonte:

O Globo

https://blogs.oglobo.globo.com/merval-pereira/post/uma-sociedade-de-amigos.html


Cristovam Buarque: A perplexidade do óbvio

As chamadas forças contrárias ao Bolsonaro e também ao PT estão perplexas diante da resiliência do primeiro, apesar de seu governo desastroso e indecente, e diante do crescimento do apoio ao Lula, apesar de todas notícias do ocorrido em estatais durante seu governo. É uma perplexidade diante do óbvio: o país e seu eleitorado estão divididos de maneira polarizada, o que facilita bases sectárias para os dois lados terem provavelmente lugar no segundo turno. Além disto, cada um destes lados tem se mobilizado no sentido de ampliar sua base de apoio, não só para fortalecer-se no primeiro turno, mas também para ganhar no segundo.

Apesar de todo mal que faz, da incompetência reconhecida de seu governo, de indicadores claros de corrupção na família e na relação com o Congresso, apesar de quase 450.000 mortos pelo covid por relaxamento e negacionismo, apesar de tudo isto, Bolsonaro amplia sua base junto ao Centrão e outros grupos políticos, sem perder sua base central. Sobretudo, devido ao medo da volta do PT ao poder. Por sua vez, o Lula circula desembaraçado, com a auréola de vítima de perseguições jurídicas, fazendo aliança nos estados com partidos do centro e conseguindo apoio em meios conservadores, políticos e empresariais, que nada perderam e até ganharam durante os governos petistas.

Enquanto isto acontece no lado do Lula e do Bolsonaro, o chamado bloco democrático e seus candidatos, Ciro, Huck, Dória, Tasso, Leite, Mandetta, parecem perplexos diante do óbvio. A sensação é de que estes candidatos se concentram tanto em suas respectivas candidaturas, que caem na perplexidade ao óbvio: em tempo de extremos, os partidos mais radicais têm facilidade para chegar ao segundo turno, se os outros não se unificam desde o primeiro turno.

Prova desta perplexidade é uma mensagem colocada pelo PSDB em suas redes com a capa de um livro hipotético, tendo a foto de Bolsonaro e o título “Como trazer o PT de volta ao poder”. Uma mensagem que passa perplexidade e derrotismo.

No lugar de uma estratégia para ocupar ganhar os votos dos muitos que não desejam um ou outro dos extremos, o chamado polo democrático se divide para saber quem será o candidato. Ficam à espera de previas dentro do PSDB entre e da vontade de outros postulantes dos demais partidos.Todos batendo cabeça e perplexos quando percebem que os outros dois estão conseguindo apoio.

Está na hora de os que não estão com Lula ou Bolsonaro darem um prazo aos que se propõem a ser alternativa, para encontrarem um nome que os unifique, com uma proposta que seduza, passando confiança aos eleitores. Talvez ainda seja tempo de saírem da perplexidade do óbvio. Se não saírem e se unirem, não vai demorar que seus apoiadores migrarão para um dos outros dois lados.

*Cristovam Buarque foi senador, ministro e governador

Fonte:

Blog do Noblat/Metrópoles

https://www.metropoles.com/blog-do-noblat/artigos/a-perplexidade-do-obvio-por-cristovam-buarque


Fausto Matto Grosso: Golpismo e autogolpe

Se há uma permanência na história brasileira, é a do golpismo. Nossa história republicana sempre foi marcada por rupturas institucionais. A Proclamação da República Brasileira, também referida como Golpe Republicano, foi liderada em 1889 pelo Marechal Deodoro e um grupo de militares do exército brasileiro, que destituíram o então chefe de Estado, o Imperador D. Pedro II.

Em 1891 Deodoro enfrentou a oposição, fechando o Congresso e governando com o estado de sítio. Foi o primeiro autogolpe da República que nascia. Obrigado a renunciar, assumiu o vice Floriano Peixoto que deveria convocar as eleições, o que não fez. Aferrando-se ao poder, governou como ditador. Outro autogolpe.

Em 1937 Getúlio Vargas realizou um autogolpe dos mais bem-sucedidos na História brasileira, impondo o Estado Novo e governando com poderes ditatoriais por oito anos, até 1945.

Em agosto de 1961, quando Jânio Quadros renunciou, pretendia voltar nos braços do povo, como acontecera com o general Charles de Gaulle na França. O autogolpe desta vez falhou.

Assim chegamos ao golpe civil-militar de 1964, pelo qual foi destituído o presidente João Goulart, assumindo Castelo Branco. Este deveria convocar eleições em 1965, mas ampliou seu mandato até 1967. Daí se iniciou uma sequência de autogolpes dentro do próprio regime militar. Costa e Silva, já em 1968, decreta o AI-5, fechando o Congresso e implantando um dos períodos mais repressivos da ditadura.

Com a morte de Costa e Silva, deveria assumir seu vice-presidente, o civil Pedro Aleixo, mas, num novo golpe, assumiu a Junta Militar que preparou a transição para o general Garrastazu Médici. Em um embate entre a linha dura e a moderada das forças armadas, acabou assumindo o general Geisel, que fechou o Congresso.

Na sequência tivemos o general Figueiredo, que entregou o país, melancolicamente falido, para o primeiro governo civil, o de José Sarney, após a morte de Tancredo Neves eleito pelo Congresso Nacional. Com a primeira eleição democrática já sob a Constituição de 1988, assume o primeiro civil diretamente eleito, Fernando Collor de Mello, logo cassado por corrupção.

Tivemos a partir daí com Itamar Franco, Fernando Henrique e Lula um período de razoável estabilidade, até o segundo mandato da presidente Dilma Rousseff, cassada pelo Congresso Nacional. O país, então, se dividiu gravemente, mobilizado pela narrativa do PT de que impeachment era golpe. Esse tipo de narrativa pode futuramente acabar sendo usado pelos seguidores de Bolsonaro, seus antípodas.

As palavras são perigosas, pois sempre têm contexto e visam a construir narrativas. Buscando significados, golpe de Estado consiste na derrubada ilegal de um Estado ou de uma ordem constitucional legítima. Já autogolpe é uma forma de golpe que ocorre quando o líder de um país, que chegou ao poder através de meios legais, dissolve ou torna impotente o  Congresso Nacional, anulando a Constituição e suspendendo tribunais civis. Com essa compreensão entendo que contra Dilma não houve golpe, mas destituição dentro de todos os parâmetros constitucionais.

Em 2018 surge em cena o capitão Bolsonaro, vindo de uma longa tradição parlamentar de defesa do golpe militar e até de elogios a torturadores, como o general Brilhante Ustra. Tosco, o tenente terrorista que pretendeu lançar bombas acabou sendo excluído do Exército como capitão, não tendo feito nem o curso de Estado-Maior.

Bolsonaro, entretanto, teve inegável sucesso na organização de um movimento reacionário de massas, de extrema direita, que mobiliza até agora cegas paixões. Já na campanha, seu filho Eduardo Bolsonaro assinalava confrontos institucionais, dizendo que para fechar o Supremo bastava mandar um soldado e um cabo. Não era preciso nem um jipe.

Já no governo, não tem um mês em que o Capitão Bolsonaro, com seu governo militarizado, não comete uma provocação contra o Congresso e o Supremo e toma medidas que favorecem a hipótese de um autogolpe. Entre elas, a tentativa de controle das polícias militares, o afrouxamento do controle de armas e o incentivo de suas milícias para que cometam atos de desatino contra as instituições democráticas.

Bolsonaro se encontra hoje sob forte pressão da CPI da Covid, que pode levá-lo ao impeachment. Está sem saída. Segundo o general chinês Sun Tsu, um adversário sem saída lutará ainda mais desesperadamente. Portanto, é hora de cuidado extremo com a democracia. Uma eventual tentativa de (auto)golpe não está afastada da nossa tradição política.

*Fausto Mato Grosso é engenheiro e professor aposentado da UFMS

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Fonte:

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https://www.acessa.com/gramsci/?page=visualizar&id=2459


Paulo Fábio Dantas Neto: O PSDB e o centro – Entre a grande e a pequena política

Comentei, na semana passada, duas visões pessimistas de formadores de opinião não alinhados aos campos pré-eleitorais representados, hoje, pelo presidente Bolsonaro e pelo ex-presidente Lula.  De um lado, políticos e analistas próximos ao que se pode chamar de centro liberal-democrático e à centro-esquerda acham inevitável recorrer ao segundo para evitar a reeleição do primeiro. Supõem, inclusive, que esse será também o caminho da parte do chamado “centrão” menos aquinhoada pela distribuição de recursos políticos coordenada pelo deputado Artur Lira. No limite, poderia ser o caminho do próprio Lira, caso a imagem do presidente encaminhe-se mesmo ao derretimento eleitoral. De outro lado, raros políticos e diversos analistas situados à esquerda do PT acham também inevitável a polarização eleitoral entre extrema-direita e esquerda convencional e admitem apoio crítico a essa última. Mas negam às eleições um papel decisivo no enfrentamento da extrema-direita, que deve ser visto como luta continuada a ser travada num terreno bem além da política institucional. Essa última visão é mais ideológica do que propriamente política e dela não tratarei hoje. Mas da primeira, sim. Partirei da percepção mencionada acima, passarei, em seguida, a uma mirada no campo político da centro-direita (onde estão governistas, independentes e oposicionistas), para concluir a análise com foco no PSDB.

No modo de ver as coisas dos que se querem realistas quando, no centro democrático e na centro-esquerda, aceitam como definitiva a bipolarização hoje fotografada por pesquisas, subjaz certa preocupação em não se atrasar para o embarque no navio lulista, apresentado como uma espécie de arca de Noé. Afinal, a eleição presidencial não é solteira e estão em jogo mandatos de governador e senador, o que recomenda atenção imediata à formação de coalizões nos estados. Além disso, o espectro de gente do centrão costeando o alambrado da arca também recomenda agilidade aos candidatos a deputado ainda não alinhados. Porém, noves fora essa compreensível ansiedade pragmática, se bem analisados os argumentos públicos usados nesse campo, fica curioso ver admitir-se que Bolsonaro pode derreter e, ao mesmo tempo, justificar-se o apoio antecipado a Lula como se fosse um imperativo democrático pois, sem ele no segundo turno, a reeleição seria praticamente certa. Vejo motivos para avaliar como imprudente o pragmatismo implícito nessa confusa conduta proativa.

Antecipei, na coluna passada (A política entre universos paralelos”, de 08.05), que “na mão oposta à das previsões fatalistas, penso estar se configurando, no universo da política sistêmica, uma aceleração de movimentos de convergência para oferecer, às forças que se despregam, ou podem se despregar, do combo bolsonarista, uma alternativa eleitoral que não as afaste do eleitorado afim ao seu posicionamento político”. Chamei esse campo de liberal, ou centro-direita. Agora tentarei ser mais explícito.

Na adjetivação ideológica que usei se inclui o antipetismo. Fora dessa adjetivação (mas próximo a ela, especialmente na pauta econômica) vinha estando um conservadorismo social básico que convive de forma tensa com uma visão liberal dos costumes e das relações sociais. Esses movimentos convergentes têm conexões empresariais economicamente relevantes, mas também uma crescente aceitação numa classe média e de trabalhadores mais jovens do setor privado menos tradicional. Seu peso eleitoral tem se mostrado grande, desde 2014, em eleições nacionais, estaduais e municipais.

Forçando um pouco a mão, diria que esse campo tende a uma polarização de novo tipo com a percepção da esquerda mais enraizada no eleitorado, que é a do PT, a qual, graças a Lula, não deverá perder a sua posição hegemônica até 2022. Por contraste, no campo oposto à esquerda, do qual estou falando, não há predomínio partidário claro, mas nota-se, há mais de uma década, movimentos de capacitação do DEM para ocupar esse lugar. A escassa maturidade do processo não permite afirmar que 2022 será o do salto a esse patamar. Mas não deve passar despercebido que o DEM dispõe, para uma eventual composição na eleição presidencial, de quadros para o caso de uma articulação que se dirija ao centro, tangenciando mesmo a centro-esquerda, ou para uma solução dissidente do esquema governista, que eventualmente possa herdar boa parte do espólio bolsonarista, em caso de derretimento da popularidade do chefe

Independentemente das suas preferências políticas, quem se preocupa com a saúde da democracia será levado a saudar o surgimento de uma opção de centro-direita capaz de deslocar Bolsonaro da posição de polo. Isso, inclusive, induziria Lula a disputar o centro também pela via do discurso político, em vez de apenas semear cunhas nos bastidores enquanto fala como salvador da pátria e propagandeia seu paraíso passado. A busca, por atores da centro-direita, de uma opção não governista alternativa à de Lula fará bem ao país, ganhem ou percam a eleição para ele. O PSD de Kassab – autêntico ator de pequena política – tanto pode ficar nela e cumprir o papel de dissidente do centrão embarcado na arca de Noé, quanto o de aliado do DEM na busca dessa opção de centro-direita, que, sem deixar de ser filha da pequena política, poderá ir além e apontar uma saída que considere seu umbigo, mas não se resuma a ele. Como a política não é a seara do mero desejo, é bom ponderar que, enquanto a fortuna eleitoral de Bolsonaro não se definir, possibilidades de uma articulação como essa dar certo não ficarão explícitas.

A conservação ou o desgaste do capital eleitoral do presidente é, assim, a variável central a determinar maior ou menor largueza do horizonte do chamado centro. É óbvio que se essa variável decisiva se comportar na direção da reanimação de Bolsonaro (em linha com a agitação crescente no seu universo político paralelo dos comícios, lives, marchas, inaugurações e provocações) a resultante é a confirmação das versões fatalistas que apontam para a polarização entre ele e Lula. Mas em caso da variável tomar a direção oposta, indo do atual desgaste à erosão e dela à evaporação eleitoral do mito, cabe uma reflexão sobre o timing. Quanto mais cedo um desgaste irreversível se der, mais os agentes políticos próximos ao palácio (como o PSD e outras áreas do centrão) e um partido independente, como o DEM, tendem a ser o centro de gravidade de uma opção competitiva que procure se apresentar como centrista, assim como fará Lula na centro-esquerda. Quanto mais o desgaste de Bolsonaro for incremental – como tem sido – mais espaço haverá para uma solução política mais ampla, que aponte a uma candidatura de fato centrista e frentista, com um candidato de perfil liberal democrático e um programa de viés social-democrático. Nessa hipótese, a possível repercussão sobre o script de Lula seria a de levá-lo a prestar mais atenção na sua retaguarda à esquerda, que poderá ser fustigada por um candidato de centro menos marcado com o carimbo “eles”, tão ao gosto do petismo para ter conforto. Nesse enquadramento analítico pode-se discutir agora o possível papel do PSDB, partido de larga história e presente estreito.

Faz tempo – a rigor desde que Fernando Henrique Cardoso deixou o governo e o PT o ocupou e lá se vão quase vinte anos – que o PSDB se desloca cada vez mais ao campo liberal em economia e ao da centro-direita em política. Isso em termos práticos, não programáticos. Desse modo, não é estranho que não disponha, nesse momento, de um nome com perfil sequer aproximado ao da origem do partido. O nome que de fato está à sua disposição tem perfil diverso.

A desconfortável performance do governador João Dória, em pesquisas dentro do seu estado, parece estar levando a que desista de vez da reeleição e a apostar numa fuga para a frente. No seu estilo fortemente obstinado e autocentrado de fazer política, desafia a má vontade do partido e segue buscando a indicação para a candidatura presidencial, como quem trabalha com a linha do menor desgaste para a sua imagem. Essa conduta é possível não só pela obstinação, ou pelo fato de dispor de recursos de persuasão e pressão inerentes a quem governa São Paulo. Resulta também do cada vez mais claro fato de que não há no partido nome para concorrer com o seu. Sem discutir aqui méritos pessoais do governador Eduardo Leite ou do senador Tasso Jereissati, uma observação realista da cena não pode desconsiderar que são políticos com mandatos a renovar em 2022. Desistir de uma reeleição provável em seus estados para embarcar numa empreitada presidencial é uma decisão incomum no mundo real da política, a menos que haja largo conforto nas previsões de chances de vitória, o que não é bem o caso.

Nessas condições não se pode ver como animadora, para o PSDB, a perspectiva das prévias marcadas para outubro. Caso ocorram mesmo, dificilmente cumprirão o papel de derrotar João Dória. A opção, para evitar o nome do governador – objetivo que une em coalizão de veto praticamente todas as lideranças históricas do partido (por menos próximas e apaziguadas que estejam elas entre si) -, só pode ser a de propor uma política nacional de alianças diferente da que tem seguido desde quando foi, em 2002, deslocado para a oposição. Em resumo, não ter candidato e tornar-se centro fiador de uma frente. Para construir uma canoa dessa é preciso paus de boa cepa que têm sido queimados nas fumaças que emanam do ninho tucano. De há muito tem-se a impressão incômoda de que ali o ex-presidente Fernando Henrique prega no deserto. Mas os fragmentos históricos ainda podem influir, se vencerem as idiossincrasias que os dispersam e prodigamente dilapidam o capital político da legenda. Ao menos eleitoralmente, esse capital continua relevante, como ficou claro nas eleições municipais de 2020. O que tem faltado é liderança de grande política, capaz de sintonizar os interesses do partido com os do país.

Nas três eleições presidenciais seguintes à derrota de 2002 (em 2006, 2010 e 2014) o PSDB foi o polo que reuniu, em segundos turnos, as oposições ao PT. Em 2018 não foi capaz de trocar os pneus em plena viagem. Desertou do papel político que assumira como núcleo articulador do impeachment de Dilma Rousseff. Em vez de se apresentar ao eleitorado como principal força política responsável pelo governo de transição, procurou desvincular sua imagem daquele governo, tática malsucedida diante da óbvia e gritante coincidência entre as suas pautas e as daquele. O drible de corpo cobrou seu preço nas urnas, não obstante a dignidade do seu candidato. As três derrotas acumuladas, a saída do PT do governo e a intensa pressão da lava jato sobre o conjunto da política “tradicional”, fazendo emergir o bolsonarismo, somaram-se a essa miopia política para levar à perda da antiga condição de polo. O PSDB dilui-se, hoje, numa nuvem mais ou menos invertebrada que tenta se identificar como centro. De incontestada segunda via tornou-se uma entre as incertas opções de uma terceira.

Lucidez e alguma humildade não fariam mal e ajudariam aquele partido a ler corretamente a situação. Relativos êxitos em eleições municipais não fabricam candidaturas presidenciais competitivas. O palanque aí é plebiscitário e impõe requisitos de carisma ausentes hoje no plantel tucano. Mas olhando ao redor é possível achar um parceiro que possua um quadro que os atenda. Aqui não cabe fulanizar a análise, que não pode querer ensinar pai nosso a vigário. O ponto que trago tem a ver com virtudes do PSDB, não com suas fragilidades. É inegável que, além de quadros políticos estaduais e municipais, o partido ainda se conserva como referência nacional importante do eleitorado do centro democrático também pelo fato de ter, no seu entorno, gente capaz de formular ideias compatíveis com a qualidade da democracia política, mas também com o momento mundial de ênfase em redirecionamento de matrizes e objetivos econômicos e de reestruturação dos estados nacionais para mobilizar investimento robusto em políticas sociais. A sintonia do ideário formal do partido com essas exigências mundiais gritantemente inadiáveis para superar a crise nacional ficam evidentes na leitura do documento “Brasil pós-pandemia: uma proposta de reconstrução do futuro”, disponível no site do Instituto Teotônio Vilela.

Antes que apressados protestem, digo que não estou cogitando que um partido político qualquer possa se contentar com um papel formulador próprio de centros de debate intelectual. Trata-se é de encontrar vocalizadores politicamente viáveis para fazer suas melhores ideias influírem sobre decisões do eleitorado e de governo. E o modo prático de sintonizar um partido que disponha dessa possibilidade com as demandas da sociedade e do eleitorado é apostar numa política de alianças compatível com o fato de que valores da primeira e necessidades do segundo convergem, no momento, para um ideário social democrático que dorme nas prateleiras internas do partido. Tirá-las dali para que trafeguem na política (na grande e na pequena) só pode ser obra de grande política, capaz de ler que o eleitorado destinatário tem votado de modo relevante na centro-direita.

O que será mais realista? Inventar um quadro que pretenda reverter essa tendencia do eleitorado ou oferecer à centro-direita o programa social-democrático de que ela necessita, nessa conjuntura social e sanitária crítica, para sustentar sua sintonia embaixo? Sem esforço, os leitores entenderão que me refiro a uma virtual repactuação entre PSDB e DEM, com provável capacidade de atrair também o MDB, dissuadindo-o de um vôo solo. Ao contrário de 1993/94, o contexto 2021/22 pede orientação social do Estado, em vez de liberalismo econômico. Ao contrário do eleitorado de 1994, o viés da atitude do eleitor é a centro-direita, em vez de centro-esquerda. No tempo em que uma frente da centro-direita à centro-esquerda fez FHC presidente, o PFL forneceu o programa econômico e o PSDB entrou com o quadro político capaz de realizá-lo nas circunstâncias daquele momento. Quem duvidar disso leia o projeto detalhado que o partido antecessor do DEM preparou para a abortada revisão constitucional de 1993 e confira com o que o governo FHC aprovou no Congresso, ou adotou no Executivo, nos anos subsequentes. A conclusão inescapável será a de que ideias podem, sim, conversar com a política prática. Aquele arranjo vitorioso esteve longe de ser mera obra de pequena política.

Os dados do mundo real estão a sugerir aos atores de centro e de centro-direita a inversão dos termos de 1994 para produzir concertação análoga. Nenhum partido pode elaborar com mais agilidade e profundidade que o PSDB um programa em sintonia fina com um olhar “baideniano” sobre o Brasil e o mundo. Com amplitude capaz de agregar segmentos da centro-esquerda e lhes garantir lugar numa composição política para a chapa presidencial e/ou para as soluções estaduais. Por outro lado, nenhum partido está, objetivamente, mais bem postado que o DEM, no espectro político-eleitoral, para sediar a face externa dessa possível agregação, porque é aquele que pode, com a sua posição, tirar o continuísmo de tempo, ou seja, do segundo turno nessa eleição. Eventos na contramão da agregação – como a recente captura do vice-governador de São Paulo pela tática pré-eleitoral do governador – podem ocorrer a todo momento e precisarão ser enquadrados, digo melhor, neutralizados, em sua miudeza, por uma perspectiva estratégica. Seria muito bom para o Brasil. Já se será o melhor possível para o Brasil é assunto para os eleitores decidirem em 2022. Afinal, a esquerda também estará no jogo, com força, legitimidade e, espera-se, com proposições críveis e perspectiva estratégica.

Para concluir não custa relembrar a variável decisiva, que é a popularidade de Bolsonaro. Cooperar para derretê-la é questão de sobrevivência comum, nacional e social. Mas a escolha do método é questão em aberto. Quem quiser que se forme, como alternativa a ele e à esquerda, uma aliança mais conservadora, deve se apressar para tirá-lo do caminho logo e capturar dissidentes. Quem, dentro do espectro do chamado centro democrático, quiser apostar em solução mais ampla, capaz de sensibilizar também um eleitorado de centro-esquerda, precisará reunir grande e pequena política em vez de priorizar um tiro ao alvo imediato e cego contra o capitão. Precisará mais de uma ambiciosa paciência do que de espetáculos arrojados e projetos de heróis. Concertação demora, mas sua obra dura.

*Cientista político e professor da UFBa.

Fonte:

Democracia Política e novo Reformismo


Luiz Sérgio Henriques: Autocracia ou democracia

Difícil recusar o diagnóstico de que ainda pior que um primeiro governo nacional-populista será sempre o segundo, ocasião em que o aspirante a autocrata, reeleito, tentará levar a cabo a obra de deliberada destruição institucional encaminhada antes. Com força e ambição dobrada, no segundo mandato a estratégia de concentração de poder seguirá sua “ascensão irresistível”, ainda que em meio ao caos que todo político autoritário necessariamente fomenta e de que não por casualidade se nutre.

É de tal ordem a nossa circunstância que, mesmo quando não se reelege, o potencial autocrata consegue mobilizar forças que a ele cegamente obedecem e lhe permitem sobrevida. Não importa que esteja fora do poder, ainda será capaz de suscitar paixões coletivas e insuflar ações que nem com muita boa vontade podemos qualificar como minimamente razoáveis. É o caso do ex-presidente Donald Trump, um dos “autores” mais em evidência do manual populista de exercício do poder e esvaziamento das formas civilizadas de mando, a demonstrar que hoje o risco está por toda parte, e não apenas nas sociedades em que a democracia continua a ser uma “plantinha tenra”.

Trump, como é notório, não reconhece a derrota. Volta a ocupar insolentemente a cena, reiterando, como mantra, que triunfou duas vezes sobre os adversários, em 2016 e em 2020, e haverá de vencer uma terceira, em 2024. Em circunstâncias normais, o riso corroeria a “grande mentira” trumpista, deixando a nu o caráter golpista das suas proclamações, de resto não atestadas por nenhuma autoridade eleitoral, seja em que nível for. Mas, como dissemos, temos estado bem longe da normalidade, o que recomenda cuidadosa atenção sobre os perigos que nos circundam.

Negar a evidente derrota é algo muito grave. Valer-se de ambientes e recursos “virtuais” para montar uma realidade paralela em que vivem aprisionados milhões de fanatizados é um desafio inédito para as democracias. Equivale a assumir uma atitude subversiva em face do governante legítimo, questionar o mecanismo da alternância e, em perspectiva, transformar o adversário político em inimigo interno. Numa palavra, equivale a postular para si, assim que possível, já na próxima rodada eleitoral, o poder que se atribui a déspotas ou, antes, que eles mesmos se atribuem, expropriando a cidadania.

O manual do nacional-populismo, assim rascunhado até na tradicional democracia norte-americana, ainda não chegou à página final e conhece outras modulações. Há versões de esquerda, como, bem perto de nós, a venezuelana, com resultados práticos que talvez superem os produzidos a seu tempo pela atroz ditadura de Pinochet. Nayib Bukele, em El Salvador, consegue fervorosos admiradores na direita verde-amarela ao lançar o povo – o “seu” povo – contra a Suprema Corte. Na memorável República Francesa, de trajetória conturbada, mas, de todo modo, altamente representativa do Ocidente democrático, militares extremistas seguem a cartilha da islamofobia e agitam a ameaça, temida entre todas, de “guerra civil”.

Nosso próprio presidente nacional-populista contabiliza, já na metade final do mandato obtido em 2018, atropelos consideráveis à democracia – alguns de demorada e custosa reversão. Seria impróprio atribuir-lhe a paternidade da tática primária e manipuladora do “nós contra eles”, mas havemos de convir que a elevou ao estado da arte. A “utopia” de Jair Bolsonaro – para usar a imagem cunhada por Javier Cercas sobre o tenente-coronel Tejero Molina, que certa vez ocupou a tiros o Parlamento espanhol – é a de um País reduzido a quartel, com todo o pessoal uniformemente treinado para combater uma guerra absurda, por anacrônica, contra “eles”, os “comunistas”, que nem existem mais como força antissistema.

Pulsões antiestablishment, ao contrário, estão disseminadas mundialmente entre os diferentes nacionalismos autoritários. A demagogia trumpista explora insuficiências do sistema eleitoral para, como vimos, construir uma “narrativa” recheada de eleitores fantasmas, mortos e imigrantes ilegais que lhe teriam roubado a vitória. A demagogia bolsonarista, em face de um sistema de votação muito diverso e muitíssimo mais seguro, vai pelo mesmo caminho, porque o que interessa não é o fundamento ou a verossimilhança deste ou de qualquer outro argumento, mas a “desconstrução” das instituições e a difusão de um clima generalizado de sombras e suspeitas. Num caso como no outro, o triunfo do oponente nunca é legítimo. Não pode ser. Não pode haver adversários de boa-fé.

É iluminadora a afirmação, recentemente feita pelo presidente Joe Biden, de que o conflito central da nossa época opõe democracias e autocracias. Populistas podem ser eleitoralmente competitivos e nada impede que, apelando a recursos retóricos duvidosos e valendo-se sem cerimônia das alavancas do poder, vençam uma vez e voltem a vencer mais vezes. Sempre que o desfecho for esse, nenhum sentido terá a fanfarra “libertária” das suas performances histriônicas, pois os países que controlam não mais estarão no rol das grandes democracias.

*Tradutor e ensaísta, é um dos organizadores das ‘Obras’ de Gramsci no Brasil

Fonte:

O Estado de S. Paulo

https://opiniao.estadao.com.br/noticias/espaco-aberto,autocracia-ou-democracia,70003716350


Raul Jungmann: Por quem os sinos dobram

“As polícias do Rio de Janeiro são hoje elementos de contaminação de todas as polícias brasileiras. Pela alta visibilidade e pelo ethos guerreiro, fixam um paradigma cultural de instituições totais de enfrentamento bélico, horrivelmente desconstitutiva dos mandamentos constitucionais atribuídos aos policiais.” (Ricardo Balestreri).

Pesquisas e estudos constatam que o método de combate das polícias cariocas ao crime organizado, como na comunidade do Jacarezinho, não leva à redução da violência, do tráfico de drogas, e nem das mortes violentas.

Mas produz efeitos colaterais, como a morte de inocentes, e favorecem disputas de uma facção sobre outra no domínio do tráfico e controle de uma comunidade. Ainda assim, boa parte da população as apoia. Qual a razão?

Creio que são três as principais. Em primeiro lugar, a violência endêmica, potencialmente universal, que a todos torna inseguros e potenciais vítimas. Em segundo, a incapacidade do Estado, via segurança pública, de assegurar a vida e o patrimônio da população, os mais pobres à frente, abrindo espaço para organizações criminosas o substituírem nesse papel. Por último, a incapacidade, lentidão e/ou parcialidade atribuída ao sistema de justiça em punir culpados e dirimir conflitos.

No conjunto, estas causas operam uma regressão em princípios e valores civilizatórios e humanitários da sociedade, que despe os que são estigmatizados como bandidos, criminosos ou suspeitos – usualmente o negro, o favelado, e o pobre -, da sua integral humanidade.

Instala-se uma lógica da vingança, do olho por olho, dente por dente. Hoje, o Brasil é o país que mais lincha no mundo, segundo o sociólogo José de Souza Martins. Essa lógica, do combate e guerra contra o crime, nos tem levado no sentido contrário de uma maior segurança.

Hoje, no Rio de Janeiro, as milícias e o tráfico dominam 57% do território da cidade e 33% da população, que vivem sem direitos e garantias constitucionais.

Milícias, que continuam avançando, em que pese os recorrentes massacres de “suspeitos” ou bandidos; milícias, que possuem uma porta giratória pela qual passa parte dos efetivos policiais e vice-versa.

Portanto, quando um novo combate se travar e mortos às dezenas, inclusos inocentes e/ou crianças, forem recolhidos nas ruas das favelas, não pergunte por quem os sinos dobram, eles dobram por você e por todos nós.

*Raul Jungmann foi Ministro da Defesa e Ministro Extraordinário da Segurança Pública do governo Michel Temer.

Fonte:

Capital Político

https://capitalpolitico.com/por-quem-os-sinos-dobram/


Joel Pinheiro da Fonseca: Esquerda precisa superar jogo infantil sobre Bolsonaro e impeachment de Dilma

Prosseguindo o debate com o professor Luis Felipe Miguel a respeito do impeachment de Dilma Rousseff, que completa 5 anos, autor argumenta que a esquerda constrói uma narrativa simples e maniqueísta para atribuir à “direita moderada” uma suposta ruptura do pacto democrático e a vitória de Bolsonaro, fechando os olhos para a crise no governo do PT e para a multidão que foi às ruas contra o partido

Rotular é o jeito mais fácil de não argumentar. No Brasil, então, é uma verdadeira arte: encontre os rótulos adequados, adjetivos e qualificações carregados de avaliação moral implícita, e já está comunicado para seu público quem é o bem e quem é o mal. Resta só contar a história.

Assim faz o artigo do professor Luis Felipe Miguel publicado na Ilustríssima em 16/5. Constrói uma narrativa simples e maniqueísta para jogar no colo da direita moderada brasileira (que não seria sequer moderada, mas radical) a eleição de Bolsonaro, seu suposto filho bastardo.

Foi essa direita —e sua aliada, a mídia— que cooptou os protestos de junho de 2013, que não aceitou a derrota nas urnas em 2014, que rompeu o consenso democrático, fez os protestos pelo impeachment e inventou a Lava Jato. A direita quer negar direitos, recusa a justiça social e mesmo a solidariedade. Em um verdadeiro primor de objetividade analítica, Miguel chega a caracterizá-la de “antipovo”.

É fácil jogar o jogo da responsabilidade. Eu também sei jogar. Se fosse entrar nele, diria que o próprio PT pariu Bolsonaro. Primeiro com a corrupção numa escala que chocou o Brasil. Segundo com a pose incessante de superioridade moral, e mesmo de monopólio da virtude, que jogava todo mundo que discordava de sua agenda no campo dos “antipovo”, polarizando o Brasil desde pelo menos 2010.

Foi a dissonância do discurso intolerante vindo de uma “goela muito aberta” pela corrupção (para usar a expressão de Emílio Odebrecht) que engendrou o ódio cego de tantos milhões de brasileiros pelo PT. Por fim, o partido promoveu uma farsa em 2018 com a falsa candidatura de Lula e com o real candidato, Fernando Haddad, inexpressivo, indo se consultar com seu mentor na prisão. O bebê é seu!

Jogar esse jogo, contudo, é perda de tempo. Primeiro porque, como argumentei anteriormente, os rumos da história são incertos. E segundo porque esse jogo nos fixa na percepção enganosa de que a história se faz entre as narrativas de elites opostas (seja a “direita moderadas” ou o PT), ignorando um ator que facilmente é esquecido justo pela esquerda, que gosta de se ver como seu intérprete oficial: o povo.

Na narrativa de Luis Felipe Miguel, o impeachment foi obra de uma decisão da direita de romper o pacto democrático que vigorava desde a redemocratização. Primeiro é preciso apontar que isso está factualmente errado. O impeachment de Dilma foi o segundo desde a redemocratização. Ou seja, não foi rompimento coisa nenhuma, e sim continuidade com nossa tradição democrática e constitucional, que inclui a possibilidade de retirar um presidente impopular que cometa crime de responsabilidade, como foi o caso de Collor e de Dilma.

O objetivo do “golpe” teria sido, ainda segundo Miguel, “impedir que o campo popular continuasse a ser admitido como interlocutor legítimo do jogo político”. Será? Segundo pesquisa Datafolha de março de 2016, 68% da população era favorável ao impeachment. A popularidade do governo estava ainda pior. Na mesma época, Dilma amargava 10% de aprovação. As multidões nas ruas assustavam e pressionavam o Congresso.

É no mínimo curioso que o suposto “campo popular”, acuado, tivesse tão pouco… povo! Custa a Miguel reconhecer que a queda de Dilma não apenas não contrariou como teve a adesão entusiasmada do “campo popular”.

No artigo de Miguel, sobram atores responsáveis pelos eventos de 2013 a 2018: a mídia, o PSDB, a Fiesp, a direita moderada, a burguesia. Só faltou o povo.

A questão é que o povo real, empírico, de carne e osso, sempre múltiplo, nem sempre deseja as mesmas coisas que seus porta-vozes da esquerda iluminada postulam. Ele tem uma autonomia própria para além das elites de direita ou esquerda que buscam domá-lo. Com as redes sociais, essa autonomia só aumentou.

E assim voltamos a 2013. Não houve um aliciamento da direita por obra da malvada mídia. A mídia já não tinha esse poder. Basta lembrar que jornalistas, especialmente da rede Globo, foram vaiados e atacados pela multidão, assim como representantes de todo e qualquer partido.

Com os fatos incontestes da crise econômica (14 milhões de desempregados e a recessão mais profunda jamais registrada em nossa história) e da corrupção do PT e aliados, era bem compreensível que grande parte do povo quisesse varrer os petistas do mapa em 2016.

Somem-se a isso os crimes de responsabilidade concretos —as pedaladas e a criatividade contábil que só aprofundaram a crise fiscal, e que Miguel nem sequer tenta defender— e temos todos os elementos para o impeachment.

Não foi uma pequena elite de direita que tramou e efetuou o impeachment. Ele foi demandado por uma maioria barulhenta da população, que não raro rejeitava também os cabeças dos partidos de centro-direita, que o apoiaram com alguma relutância (com a consciência de que poderiam facilitar a volta do PT).

Esses líderes não contavam com amor popular. Basta lembrar que Geraldo Alckmin e Aécio Neves chegaram a ser vaiados numa manifestação anti-Dilma, e que a popularidade de Temer, em seus melhores momentos, jamais superou os 10%.

O mesmo povo apoiou majoritariamente as greves dos caminhoneiros que colocaram o governo Temer de joelhos. Bolsonaro nadou de braçada. Por fim, nas urnas em 2018, embora contasse com diversos candidatos (Alckmin, Amoêdo, Meirelles), a direita moderada também perdeu feio.

Volto ao ponto central do meu artigo original: temos um forte sentimento antissistema, uma insatisfação profunda com a vida institucional brasileira e com a política como ela é feita. Bolsonaro foi capaz de encarnar esse sentimento.

De minha parte, tenho a consciência tranquila —sim, esta consciência supostamente extremista, antipovo, que nega a solidariedade e ainda quer criminalizar a esquerda— por ter apontado e combatido o movimento pró-Bolsonaro desde 2016, quando ele já exaltava Ustra e antagonizava com Jean Wyllys na Câmara.

Já fui mais radical pró-mercado, mas a vida intelectual é constante transformação. Ao longo desse processo, aprendi muito com autores e interlocutores de todos os vieses, inclusive de esquerda. E sei que o ponto de partida para qualquer troca é não bloquear a discussão desde o início, acusando as motivações alheias, verdadeiro cacoete marxista.

Grande parte da esquerda brasileira ainda está presa ao jogo infantil de tentar colar todo mundo que não compactuou com o PT no campo filobolsonarista. É confortável atribuir as piores intenções para não ter que discutir a realidade.

Houve o petrolão? É um avanço prender políticos e empresários corruptos? É preciso resolver o desequilíbrio fiscal brasileiro? E enfrentar as causas de nossa pouca produtividade no plano global? Não adianta vir com os rótulos de “antipovo” e “contra direitos”. Ou talvez pensem que quebrar o país, estourar o desemprego, derrubar nossa produtividade, fazer controle político de preços e maquiar números, isso sim, seja ser pró-povo!

Esse primarismo mata o debate no Brasil. Não é à toa que, hoje, a oposição eficaz ao governo Bolsonaro venha justamente da centro-direita, no Congresso e nos governos estaduais. Teto de gastos ou expansão fiscal, mercado de trabalho mais rígido ou mais flexível, abertura ou fechamento comercial, direito penal mais garantista ou mais duro com a corrupção; todos são plenamente defensáveis dentro de uma estrutura democrática. Não há que se condenar a priori as supostas motivações (e portanto a legitimidade) de cada um.

Felizmente, parece que o surto que elegeu Bolsonaro começa a enfraquecer. Lula, por outro lado, se fortalece. A pergunta é: seu projeto de poder continuará fechado nesse solipsismo esquerdista ou voltará ao pragmatismo do diálogo de seu primeiro governo?

Vale lembrar que o Bolsa Família foi elaborado em colaboração pragmática com economistas supostamente “neoliberais”, “antipovo” —Marcos Lisboa, Ricardo Paes de Barro e outros—, contra os desejos de quadros históricos do partido. Foi o maior sucesso do PT.

Lulistas viscerais e inteligentes como Luis Felipe Miguel podem ajudar a qualificar o debate ou, viciados na ilusão da própria superioridade moral, acusar tudo e a todos que não se curvarem. Lula e Bolsonaro podem ser muito diferentes, mas o fanatismo de seus seguidores é parecido.

Enquanto culpam os adversários —o Judiciário, a CIA (ou a ONU), a elite, a imprensa—, se aliam a Renans, Liras e Sarneys para governar. Só não se esqueçam de que o povo está vendo. E não se espantem se ele não comparecer.

*Joel Pinheiro da Fonseca é economista, mestre em filosofia pela USP e colunista da Folha

Fonte:

Folha de S. Paulo

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2021/05/esquerda-precisa-superar-jogo-infantil-sobre-bolsonaro-e-impeachment-de-dilma.shtml

 


Ricardo Rangel: Profecia autorrealizável

Muitos democratas têm se manifestado no sentido de que uma “terceira via” não tem chance e que um segundo turno entre Bolsonaro e Lula é inevitável. Ato contínuo, elogiam Lula, que, afinal, “é um democrata” e não tem por objetivo desmontar por completo as instituições, como o supremo mandatário vem fazendo.

Lula se assemelharia ao barítono da ópera da anedota, que, brutalmente vaiado, alerta: “Não gostaram do barítono? Esperem para ouvir o tenor!”. O barítono Lula parece determinado a mostrar que não desafina, e, incansável, perambula por Brasília, conversa com todo mundo, lança pontes ao centro, busca vacinas, produz um discurso com começo, meio e fim.

Diante da insuportável cacofonia produzida pelo tenor que ocupa o Alvorada, Lula surge com a maviosa voz de um Fischer-Dieskau redivivo. Mas quão afinado com a democracia está, de fato, o barítono Luiz Inácio?

Foi Lula quem criou a polarização e o ódio político: o “nós x eles” que impede o país de se reconciliar consigo mesmo começou contra Collor em 1989, intensificou-se no mensalão, chegou ao paroxismo na Lava-Jato e no impeachment de Dilma; o hábito petista de chamar qualquer não petista de fascista, racista, homofóbico etc. perdura até hoje. Fake news foram usadas para assassinar a reputação de Marina Silva em 2014, e foi Lula que iniciou a campanha de desmoralização e descredibilização da imprensa (que os petistas chamam de “mídia golpista”).

O esquema de corrupção centralizada, administrada pelo Planalto, não foi algo que “sempre existiu”, como dizem os petistas. Foi algo novo: um método de governo que comprava em dinheiro vivo o apoio dos parlamentares e, assim, atentava contra um dos alicerces da democracia, a separação dos poderes, (o tratoraço de Bolsonaro é parecido). E o dinheiro desviado foi também para a campanha eleitoral, reelegendo o PT mais três vezes, atentando contra outro pilar da democracia, a alternância no poder.

“Não se deve perder de vista que, quando se escolhe o menor entre dois males, o que se escolhe é um mal”

Afora os ataques à democracia, ainda houve a “nova matriz econômica”, que provocou um descalabro econômico. E como Lula afirma que o mensalão e o petrolão nunca existiram e atribui o desastre econômico a Temer, é lícito supor que, eleito, vá fazer tudo igualzinho.

Admita-se que, apesar de tudo, Lula continua sendo melhor do que Bolsonaro, mas não se deve perder de vista que, quando se escolhe o menor entre dois males, o que se escolhe é um mal. Então é bom examinar bem para ver se essa escolha é mesmo inevitável. E, por enquanto, não é.

O Brasil é um país onde terremotos políticos se multiplicam — há pouco mais de um mês, Lula não era elegível, a CPI da Covid não existia e nada se sabia sobre o tratoraço, por exemplo —, e ainda faltam dezessete meses para a eleição: há muita água para rolar.

Quem vaticina que um segundo turno entre Lula e Bolsonaro é inevitável não está fazendo análise política, está contribuindo para criar uma profecia autorrealizável: se aqueles que não querem um segundo turno entre os dois polos acreditarem que ele é inevitável, assim será.

Não é hora de crer em vaticínios e inevitabilidades, é hora de criar alternativas.

Publicado em VEJA de 19 de maio de 2021, edição nº 2738

Fonte:

Veja

https://veja.abril.com.br/blog/ricardo-rangel/profecia-autorrealizavel/


Janio de Freitas: Os bilhões dos milhões de vacinas

O boicote à vacinação, pela sabotagem à compra de vacinas, é uma aberração que justifica o interesse nela concentrado pela CPI —que vai bem, obrigada. Mas daí deriva a ausência de questionamento, a todos os depoentes, sobre um tema que pode estar na raiz de parte dos transtornos enfim investigados.

As compras de vacinas, ou de ingredientes, movimentam quantias montanhosas. A guerra comercial entre as vacinas, pela conquista da opinião pública e pressão sobre os governos, extravasa em acusações de risco feitas e desfeitas em torno de bilhões. Nem foi outro o motivo da apressada recomendação (se foi só isso) dos Estados Unidos para aqui não se comprar a Sputnik V, que, sobre ser russa, tem preço baixo. A velha proteção comercial americana não se distrai.

A compra que o ministro Marcelo Queiroga comemorou nos últimos dias é de 100 milhões de doses da Pfizer. Em breve passagem de sua entrevista à Veja, Fabio Wajngarten referiu-se ao preço da Pfizer, com a qual negociava: os diretores da farmacêutica “toparam até mesmo reduzir o preço da unidade, que ficaria abaixo dos US$ 10”. Abaixado também o dólar para uma estimativa, só essa compra anda pelos R$ 5 bilhões.

Negócio com tamanho custo para o dinheiro público foi conduzido junto à Pfizer, no entanto, pelo então secretário de Comunicação da Presidência, não pelo ministro da Saúde com sua assessoria técnica, nem pelo ministro da Economia e seus técnicos. Por que o alheio Wajngarten estava “autorizado pelo presidente” para a negociação? Foi acompanhado apenas, em uma reunião com a Pfizer, pelos não menos inabilitados para representar o governo, e o próprio país, Filipe Martins, assessor no Planalto, e o vereador Carlos Bolsonaro.

A CPI está em tempo de se voltar também para o lado do dinheiro na investigação. Há perguntas indispensáveis: como negócios comerciais, as transações com as indústrias das vacinas têm intermediação remunerada? Comissão? De quanto e paga por que lado? Nas compras à Pfizer, há intermediação empresarial remunerada? Em caso positivo, de que empresa(s)? E alguma outra modalidade de comissão, destinada a quem e de que forma?

São informações relevantes em qualquer sentido, inclusive para exteriorizar a importância da tarefa incumbida à CPI.

Wajngarten foi exonerado em circunstâncias algo estranhas, no mesmo março em que, dia 8, o governo aceitou o contrato proposto pela Pfizer e, dia 19, assinou-o. No controle da propaganda do governo, Wajngarten foi acusado de ganho indireto, por triangulação de empresas, com parte das comissões por veiculação de campanhas. Negou, claro. Continuou polêmico, grosseiramente presunçoso e ambicioso.

De repente, ofereceu-se à entrevista de acusações ao general Eduardo Pazuello e ao Ministério da Saúde, na Veja, cuidando de proteger Bolsonaro & família. A interpretação de que agiu por vingança consolidou-se. E fez esperar que Wajngarten na CPI seria fulminante.

A CPI não sabe por que Wajngarten desdisse a entrevista gravada, mentiu o tempo todo, a cara suarenta de pânico, uma pusilanimidade de dar repugnância. Wajngarten não tinha mais motivo para incomodar o governo. Fazê-lo seria atingir Bolsonaro em cheio: era ele, e só ele, quem impedia o fechamento do negócio, afinal autorizando o que antes considerara “leonino”. O argumento de autorização do Senado para aceitar as condições da Pfizer é falso, porque a alegada inconveniência não foi retirada pela medida parlamentar. Bolsonaro aceitou a grande compra negociada por Wajngarten com outras quaisquer motivações.

As mentiras e silêncios de Fabio Wajngarten não importam. O que importa é o que o fez adotar os silêncios e mentiras em lugar das acusações que traziam, implícitas, outras possíveis. Piores.

Fonte:

Folha de S. Paulo

https://www1.folha.uol.com.br/colunas/janiodefreitas/2021/05/os-bilhoes-dos-milhoes-de-vacinas.shtml


Correio Braziliense: Em duas semanas, os efeitos da CPI da Covid são devastadores para o governo

Sarah Teófilo, Correio Braziliense

O governo enfrentou duas semanas tensas, e não é nem metade do tempo inicial previsto para a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da covid-19 no Senado Federal. Nesse período, a base aliada e o próprio presidente da República tentaram criar maneiras de desviar a atenção do que é dito na CPI. Voto impresso, ameaça de convocar as Forças Armadas e ataques ao relator Renan Calheiros foram algumas das estratégias adotadas pelo Planalto e aliados no Congresso. Na comissão, quatro senadores aliados buscavam defender o governo ao longo dos seis depoimentos ouvidos. Até o filho 01, Flávio Bolsonaro, entrou na trincheira. Foi à CPI para socorrer o ex-secretário de Comunicação Fábio Wajngarten e chamar Renan Calheiros de “vagabundo”.

Com argumentos ou xingamentos, o Planalto tenta reagir ao avanço da CPI. O vice-líder do governo no Senado, senador Eduardo Gomes (MDB-TO), acredita que o governo tem conseguido responder a todos os questionamentos. “Boa parte do que foi discutido na CPI a imprensa já tinha levantado, já tinha informado. O Brasil vem melhorando o combate à covid. O barulho que fica é por conta da questão política”, defende.

Apesar dos esforços para conter os avanços da CPI, o cenário permanece muito desfavorável. Segundo avaliação de cientistas políticos, o desgaste do presidente Jair Bolsonaro é claro. Soma-se aos reveses na CPI a queda de aprovação do presidente, conforme pesquisas de opinião realizadas na última semana. O Instituto Datafolha indicou uma eventual derrota de Bolsonaro para o ex-presidente Lula, em um cenário eleitoral de 2022. Analistas acreditam que o presidente pode “sangrar” com a CPI até o fim do ano, caso ela seja renovada por mais 90 dias, o que aumentaria o desgaste político até o início do processo eleitoral. Para especialistas, o risco de não chegar ao segundo turno já é concreto para Bolsonaro.

Até no ambiente virtual, onde bolsonaristas atuam com grande articulação, o resultado não foi positivo. Informações da agência de análise de dados e mídias .MAP compiladas a pedido do Correio mostram que de 27 de abril a 3 de maio, antes do início da CPI, o apoio manifestado ao presidente nas redes sociais (Twitter e perfis abertos no Facebook, todos os públicos) estava em 43,2%. Na semana seguinte, de 4 a 10 de maio, foi para 27,7%. Já no período de 11 a 14 de maio (até 8 horas), derreteu para 4,9%, em meio aos depoimentos do presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), Barra Torres, do ex-secretário de Comunicação da presidência Fabio Wajngarten e do presidente da Pfizer na América Latina, Carlos Murillo.

A queda no apoio, segundo a agência, “é ancorada por uma agenda negativa, que os perfis de direita, entre manifestantes, políticos e influenciadores não conseguiram reverter”. “Apesar da mobilização contrária da direita, que soma quase 41% do debate numa tentativa de blindar o presidente, o apoio à CPI da Covid é de 69%, o que demonstra que o público geral está favorável às investigações”, afirma a diretora-geral da .MAP, Marilia Stabile. Até o momento, no mês de maio, a CPI é o segundo tema, com 11,6% de participação, pouco atrás do Paulo Gustavo, que lidera com 11,9%.

Sangria

Analista político da Consultoria Dharma, Creomar de Souza afirma que o desgaste ainda não se dá de forma irreversível, mas gera elementos de desarticulação. Creomar pontua que é cedo para prever o impacto eleitoral, mas, segundo ele, o presidente precisará “mudar o personagem” até 2022. A questão é saber se o ocupante do Planalto conseguirá e se essa mudança de postura implacará perda de apoio dos bolsonaristas convictos. Para o analista, a principal consequência política da CPI é provocar uma “sangria” no governo até as eleições. “Se a CPI for prolongada até o fim do ano, isso gera um impacto eleitoral maior. O presidente corre o risco de não ir para o segundo turno”, afirma Creomar de Souza.

Cientista político e professor da Fundação Getulio Vargas (FGV) de São Paulo, Marco Antônio Carvalho Teixeira ressalta que a comissão gera um desgaste natural. Somado a isso, entretanto, ele acredita que o governo produz fatos políticos ruins, como o pedido de habeas corpus para que o ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello possa permanecer calado em depoimento partir da Advocacia-Geral da União (AGU). “O governo assume um pouco de culpa e aumenta a tensão”, diz.

Analista político do portal Inteligência Política, Melillo Dinis afirma que o governo está “desesperado, desanimado e desconfiado da CPI”. “Não há nenhum tipo de perspectiva positiva e essa é a apenas a segunda semana”, diz, lembrando que a expectativa é de mais desgaste ao governo nos próximos dias, apesar do salvo-conduto concedido pelo Supremo Tribunal Federal ao ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello.

Estratégia diversionista

À medida em que a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da covid-19 avança, o governo tenta criar estratégias de desvio de foco. Na Câmara dos Deputados, por exemplo, os bolsonaristas instalaram uma comissão especial para discutir a proposta de Emenda à Constituição (PEC) que determina a impressão dos votos em eleições para fins de auditoria, mesmo que a questão já tenha sido declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal (STF), de forma provisória (liminar). Enquanto isso, o presidente, como de costume, aumenta a temperatura nas falas diárias, e nas redes sociais os parlamentares bolsonaristas tentam conter qualquer dano.

Creomar de Souza, consutor da Dharma, afirma que, do ponto de vista da estratégia de contenção de danos na CPI, os senadores governistas têm encontrado muita dificuldade de encontrar um tom de fala. As estratégias de tumultuar os trabalhos ou de defender a cloroquina foram insuficientes. “Isso não tem gerado um resultado efetivo. Você cria um burburinho, mas a CPI tem avançado nas oitivas”, diz o analista político.

“Vagabundo”

Cientista político e professor da Fundação Getulio Vargas (FGV) de São Paulo, Marco Antônio Carvalho Teixeira também ressalta ações diversionistas, como as lives do presidente e as manifestações marcadas para este fim de semana, em apoio a Bolsonaro. E ressalta para a participação do senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), que xingou o relator da comissão, Renan Calheiros (MDB-AL), de “vagabundo”. O ato foi visto como desespero, mas também como estratégia. “O governo tem essa estratégia de tensionar pra tentar desviar o foco. Mas a tensão não desviou o foco, e, sim, aumentou. É um tiro no pé”, avalia, dizendo que atos assim aumentam os holofotes sobre a CPI.

Para o sócio da Hold Assessoria Legislativa, o cientista político André César, o xingamento de Flávio Bolsonaro a Calheiros, por exemplo, é uma estratégia calculada, para repercutir nas redes na bolha bolsonarista, ao mesmo tempo em que tenta mobilizar os “três mosqueteiros” (os senadores governistas que integram a CPI): Ciro Nogueira (PP-PI), Marcos Rogério (DEM-RO), Jorginho Mello (PL-SC) e Eduardo Girão (Podemos-CE). “Toda sessão começa com questões de ordem, tentando tumultuar, postergar, e sempre começa com climão. É parte da estratégia do governo, para cansar os presentes, porque sabem que não são maioria”, diz. O analista político afirma, no entanto, que os resultados são pífios.

Professora de Ciência Política da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Mayra Goulart ressalta que o entorno do presidente gera ‘factóides’ para desviar a atenção. “É estratégia deliberada do governo para tirar o foco da CPI e acalentar a base apoiadora, o seu núcleo original”, diz.

Fonte:

Correio Braziliense

https://www.correiobraziliense.com.br/politica/2021/05/4924796-em-duas-semanas-os-efeitos-da-cpi-da-covid-sao-devastadores-para-o-governo.html


Vinicius Torres Freire: O que os EUA sem máscara dizem sobre vacina e epidemia no Brasil

Pessoas que tomaram as duas doses de vacina contra a Covid podem tirar as máscaras e esquecer o distanciamento social em praticamente todas as situações da vida, anunciou a direção dos Centros de Controle e Prevenção da Doença dos EUA (CDC), autoridade em assuntos científicos de saúde.

Isso quer dizer que, para os CDC, as vacinas da Pfizer-BioNTech e da Moderna mais do que protegem de doença e morte. Novidade maior: parece implícito nos dados mais recentes que, mesmo infectada, uma pessoa não transmite a doença (ou o faz em níveis irrelevantes), o que permite vislumbrar o fim da epidemia por lá, caso não apareça variante preocupante do vírus.

As pesquisas que basearam o anúncio dos CDC não fazem observação diretamente orientada ou arranjada para detectar a transmissão, mas os cientistas chegaram a tal conclusão com base no progresso observado no estudo de profissionais de saúde. Em 2 de abril, um estudo dizia que as vacinas Pfizer-BioNTech e Moderna eram efetivas a ponto de evitar a doença em 90% dos casos de pessoas que tomaram as duas doses; no estudo divulgado pelos CDC em 14 de maio, o sucesso foi para 94%.

Das doses injetadas no Brasil até agora, cerca de 70% são de Coronavac. Pouco se sabe cientificamente de sua efetividade, seu efeito no mundo real. No Chile, uma pesquisa divulgada em abril mostrou que a vacina evita doença sintomática em 67% dos casos, internações, em 85%, e mortes, em 80%. Na Indonésia, estudo com pessoal de saúde, divulgado com pouquíssimos detalhes, indica que a vacina evitaria mortes em 98% dos casos, doenças, em 94%, e internações, em 96%. Um trabalho bem preliminar com vacinados no Hospital das Clínicas da USP indica que a Coronavac tem capacidade de prevenção de doença de 74%.

Em São Paulo, o número de mortes diminuiu proporcionalmente muito mais entre pessoas de grupos de idade mais vacinados (ou subiu menos, a depender da data de comparação). Em São Paulo, pessoas idosas começaram a ser vacinadas na semana encerrada no dia 12 fevereiro (no caso, as de 90 anos ou mais). O número de mortes de pessoas com 70 anos ou mais na semana passada cresceu 22% em relação àquela semana de fevereiro. Entre pessoas de 60 a 69 anos (vacinadas mais recentemente), aumentou 158%. Entre pessoas de 20 a 69, 214%.

Pouca gente recebeu duas doses no Brasil, 9% da população total, ante 36% nos EUA. Hoje, há doses disponíveis, já entregues, para vacinar totalmente 20% da população total e 27% daqueles com 18 anos ou mais. Na previsão esperançosa realista, até o final de junho haveria doses disponíveis para vacinar totalmente 48% da população total e 36% dos adultos.

O cronograma “esperançoso realista” deve se confirmar em maio. Para junho, há grande risco de apagão. O Butantan ora não tem perspectiva de receber matéria-prima da China. A Fiocruz tem material para entregar doses até a primeira semana de junho. É a Fiocruz que deve garantir o grosso das entregas de maio e junho (62% do total).

Como não temos governo, o que resta do Congresso tem de perguntar os motivos e riscos de atraso na entrega de matéria-prima da China, para que se tome alguma providência (Jair Bolsonaro continua a sabotar o processo).

Na melhor das hipóteses, apenas daqui a três meses chegaremos à taxa de vacinação dos EUA. Não há estudos precisos sobre efetividade, transmissão ou capacidade dos imunizantes de conter cepas novas e, dada a ainda enorme circulação do vírus, podemos criar ou disseminar bichos ruins. Ainda não há perspectiva de nos desmascararmos.

Fonte:

Folha de S. Paulo

https://www1.folha.uol.com.br/colunas/viniciustorres/2021/05/o-que-os-eua-sem-mascara-dizem-sobre-vacina-e-epidemia-no-brasil.shtml