Bolsonaro
O Estado de S. Paulo: Discurso contra direitos humanos de Bolsonaro é 'perigoso', diz alto comissário da ONU
De saída, principal autoridade das Nações Unidas para direitos humanos alerta para propostas que apresentam soluções 'simplistas'
Por Jamil Chade, de O Estado de S.Paulo
GENEBRA - Discursos como o do candidato do PSL à Presidência da República, Jair Bolsonaro (RJ), sobre direitos humanos podem representar “um perigo” para certas parcelas da população no curto prazo e para “o país todo” no longo prazo. O alerta é de Zeid Al Hussein, alto comissário da ONU para Direitos Humanos. Ele deixa seu cargo no final desta semana e será substituído pela chilena Michelle Bachelet.
Em sua última coletiva de imprensa nesta quarta-feira em Genebra, o jordaniano respondeu a uma pergunta da reportagem do Estado sobre como ele via a popularidade do discurso adotado por Jair Bolsonaro. Para Zeid, o “instrumento” usado para ver o avanço de tais posições é “simples”. “Quando as pessoas estão ansiosas, quando existem incertezas econômicas, globais ou não, por conta da crise nas commodities nos últimos anos, ao dar uma resposta simplista e tocando nas emoções naturais das pessoas - e talvez olhando para uma liderança mais forte, firme - é uma combinação que é bastante poderosa”, disse Zeid.
“O perigo é que isso venha às custas de um certo grupo no curto prazo e, no longo prazo, de todo o país”, afirmou. “Temos de ser mais conscientes de exemplos históricos. Não é para dizer que o progresso humano foi fácil”, disse. "Eu confesso que, de muitas maneiras, não entendo o pensamento conservador. Se apenas escutássemos a isso, talvez alguns de nós ainda estivéssemos em cavernas”, afirmou. “O progresso ocorreu porque estipulamos que todos devem ter direitos iguais”, disse.
Zeid, filho do príncipe jordaniano Ra'ad bin Zeid, também destacou a disparidade social na América Latina. Segundo ele, as “enormes diferenças de riqueza e poder das elites latino-americanas e as populações indígenas e outras” são preocupantes. Para ele, essa realidade “deve fazer parte completamente das consciências de todos os atores políticos”.
Bolsonaro chegou a mencionar que, se eleito, deixaria a Organização das Nações Unidas, recuando dias depois e afirmando que sairia apenas do Conselho de Direitos Humanos da entidade. “Não serve para nada essa instituição”, disse Bolsonaro.
Em julho, durante uma entrevista no programa Roda Vida, Bolsonaro defendeu a ditadura militar (1964-1985) e disse que, se eleito, não vai abrir os arquivos do regime. “Não houve golpe militar em 1964. Quem declarou vago o cargo do presidente na época foi o Parlamento. Era a regra em vigor”, disse Bolsonaro.
O presidenciável defendeu ainda as atuações dos militares em casos de tortura e também a figura do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra (1932-2015). “Abominamos a tortura, mas naquele momento vivíamos na guerra fria”, justificou. Pressionado pelos jornalistas convidados a falar sobre a abertura dos arquivos da ditadura militar, o presidenciável disse duvidar que eles ainda existam. “Não vou abrir nada. Esquece isso aí, vamos pensar daqui pra frente”, desconversou.
Ao longo de seu mandato, Zeid foi uma das principais vozes contra movimentos populistas ao redor do mundo, inclusive alertando sobre os “riscos” da escolha de Donald Trump como presidente dos EUA e atacando de forma dura a repressão do governo de Nicolas Maduro na Venezuela.
Ricardo Noblat: Outra ameaça a Bolsonaro
Réu em duas ações penais no Supremo Tribunal Federal (STF) por crimes de injúria e incitação ao estupro, o deputado Jair Bolsonaro (PSL) corre o risco de tornar-se um tríplice coroado.
Amanhã, a Primeira Turma do STF deverá decidir se recebe ou não denúncia de racismo contra Bolsonaro apresentada pela Procuradoria Geral da República.
Se receber, ele passará à condição de réu outra vez. Isso não o impedirá de ser candidato, mas bem não fará à sua pretensão de se eleger presidente da República.
Comece a pensar no que vai ouvir
Fatos e versões
O PSDB de Geraldo Alckmin apoiou o impeachment de Dilma Rousseff – ou o golpe, como prefere o PT. Certo ou errado?
Certo. Mas Dilma caiu porque gastou além do que estava autorizada a gastar pelo Congresso, perdeu autoridade política e, sem ela, não se governa.
O PSDB apoiou o governo de Michel Temer até um dia desses, e o governo foi incapaz de tirar o país da crise econômica. Certo ou errado? Certo.
Mas quem inventou Temer presidente foi o PT que, por duas vezes, o indicou para vice de Dilma.
Temer é responsável pela crise econômica que devastou o emprego de 17 milhões de brasileiros – ou de 30 milhões, a levar-se em conta o número daqueles que desistiram de procurar emprego. Certo ou errado? Errado.
O responsável foi Dilma, que legou a Temer uma herança maldita. Quem inventou Dilma foi Lula, que a apresentou como melhor gestora do que ele.
Alckmin é investigado pela Lava Jato. Certo ou errado? Certo.
Lula foi condenado e está preso por crime de corrupção passiva e lavagem de dinheiro. Certo ou errado? Certo.
(Prepare-se para ouvir essas coisas e muito mais a partir da próxima sexta-feira quando começa a propaganda dos candidatos no rádio e na televisão.)
Demétrio Magnoli: ‘Uma coisa profunda...’
Ciro Gomes aventurou-se na selva da ciência política para decifrar o fenômeno Bolsonaro. “Ele representa uma coisa profunda que nem ele imagina o que significa. Representa a negação da política e da democracia; a vontade de tocar fogo para ver se nasce alguma coisa no lugar.” Ciro constata a ineficácia da linha usual de crítica da “nossa elite”, que “resolveu tutelar a sociedade”. O Brasil profundo que se reconhece em Bolsonaro é autoritário e conservador — e está muito irritado. Bolsonaro “está aí” precisamente “porque é homofóbico” e “porque é misógino”.
A “coisa profunda” não é fascismo, um termo que a nossa esquerda utiliza como quem toma sorvete, esvaziando- o de seus significados. Bolsonaro tem algo entre um quinto e um quarto das intenções de voto não porque expresse algo novo, mas justamente por trazer à tona, em meio a uma crise multidimensional, alguns dos materiais subterrâneos mais persistentes da sociedade brasileira. Na sua candidatura, emergem “coisas profundas” que vão bem além do conservadorismo social tão abominado pela “nossa elite tutelar”.
Bolsonaro ingressou no negócio da política há três décadas, como vereador e, em seguida, deputado federal. Dos seus cinco filhos, três são políticos profissionais. O autoproclamado outsider é, de fato, um típico insider. Suas origens militares não passam de uma cicatriz periférica. O ex-capitão com ambições sindicalistas, um desordeiro avesso à hierarquia militar, evaporou no passado distante. Mas a escolha do general Hamilton Mourão como vice de sua chapa converte a candidatura civil em algo um tanto diferente. Por meio dela, a política bate às portas dos quartéis.
Mourão clamou pela “intervenção militar” e, por isso, foi gentilmente transferido à reserva. Daí, por aclamação, sagrou- se presidente do Clube Militar, o que o distingue de tantos “generais de pijama”. O Clube Militar tem forte audiência nos quartéis, inclusive na alta oficialidade. A ideia de que a política civil é uma recorrente doença degenerativa e de que a saúde nacional depende de cirúrgicas intervenções militares está gravada no mármore da nossa história republicana. A chapa Bolsonaro/ Mourão exprime, entre tantas “coisas profundas”, o impulso da “restauração da ordem” por meio da baioneta.
Na transição à candidatura presidencial, sob a influência de oráculos amargurados, Bolsonaro substituiu o manto de ultranacionalista, nostálgico do estatismo militar, pela fantasia de fanático ultraliberal. A passagem de lagarta a borboleta exigiu a “intervenção civil” de Paulo Guedes, um porta-estandarte do “Estado mínimo”. O economista- guru fez a vida nas salas da academia e nos escritórios de planejamento estratégico de bancos de investimentos. Transportado desses círculos etéreos para a dimensão pragmática das políticas públicas, esclareceu involuntariamente a antiga relação que a nossa direita mantém com a doutrina liberal.
Num governo Bolsonaro, Guedes seria alçado ao trono de czar da Economia, unificando sob seu comando os ministérios da Fazenda, do Planejamento e da Indústria e Comércio. O pretendente a Colbert prometeu conservar a autonomia do Banco Central, mas explicou que o BC ficaria “alinhado” às diretrizes de seu superministério. Não satisfeito, acrescentou que as instituições financeiras federais, como o BB e a CEF, também se dobrariam à sua vontade (assim como, recorde- se, a Petrobras e a Eletrobras foram curvadas aos desejos do lulismo).
Temos, na prática, o desenho de uma ditadura econômica que subordinaria a política monetária e os mecanismos de crédito público às mutáveis conveniências do presidente de turno. No passado, o “laissez-faire à brasileira” conviveu alegremente com o sistema escravista, os monopólios comerciais e os subsídios públicos aos amigos do rei. Sua versão mais recente, assinada por Guedes, é Nicolás Maduro com sinal invertido.
Bolsonaro imita Trump em tudo, exceto na tintura do cabelo. Trump, porém, tornou-se candidato do Partido Republicano, enquanto Bolsonaro só tem um certo PSL. A diferença é “uma coisa profunda” — e um conforto e tanto.
Luiz Carlos Azedo: O voto útil
“Há dois tipos de indecisos: o que não está nem aí para a política e decide de última hora; e o que escolheu um campo político, mas não sabe qual é o candidato com mais chances de ir ao segundo turno”
Um dos ingredientes da democracia é o imponderável nas eleições, sem o qual não haveria alternância de poder. Num país de dimensões continentais como o Brasil, com um contingente eleitoral de 147 milhões de eleitores, a 44 dias das eleições, nada mais natural que o mercado ter uma crise de nervos por não saber quem ganhará o pleito. Objetivamente, as pesquisas mostram isso. É natural que os analistas façam interpretações e tentem antecipar resultados. Acertar com essa antecedência é um bilhete premiado na loteria das consultorias políticas. Para as futuras eleições, é claro. Na atual, é pura adivinhação.
Conversando com um amigo macaco velho do jornalismo político, ele fez uma observação muito pertinente sobre as duas últimas pesquisas eleitorais: “Não sei ainda em quem vou votar, mas sei em quem não voto de jeito nenhum. O que vai decidir essa eleição é o voto útil!” Não vou revelar o “não-voto” do amigo, mas o raciocínio serve para muita gente. Há dois tipos de indecisos: o eleitor que não está nem aí para a política e decide de última hora; e o que já escolheu um campo político, mas não sabe qual é o candidato com mais chances de ir ao segundo turno.
Sem fazer previsões precipitadas, diria que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva conseguiu se tornar um grande eleitor da disputa, mesmo estando preso em Curitiba, cumprindo pena de 12 anos e 1 mês de reclusão, após ter sido condenado em segunda instância por causa do triplex de Guarujá. A narrativa do golpe contra Dilma Rousseff e a vitimização do petista colaram numa fatia do eleitorado, que já era simpática ao ex-presidente da República. Fosse mesmo candidato pra valer (sua candidatura será impugnada), Lula estaria no segundo turno e poderia até voltar ao poder, como aconteceu com Getúlio Vargas (PTB), em 1950.
Lula opera uma estratégia de risco, afronta a Justiça e as regras do jogo democrático, mas os adversários precisam reconhecer que o plano funcionou: pode até chegar ao horário eleitoral gratuito como candidato. Ganha com isso o PT, que conseguiu varrer para debaixo do tapete os escândalos do mensalão e da Petrobras para evitar uma nova derrocada eleitoral, como a de 2016, quando perdeu 59,4% das prefeituras. Vêm daí as apostas de que Fernando Haddad estará no segundo turno das eleições, beneficiado pela combinação da transferência do prestígio de Lula e do apoio da militância petista nas redes sociais.
Resiliência
Um exemplo desse apoio foi a reação petista ao resultado das pesquisas, que mostraram a fragilidade de Haddad nos cenários sem Lula. Os votos do ex-presidente migraram principalmente para Marina Silva (Rede) e Ciro Gomes (PDT). A AP/Exata, que acompanha as redes sociais em tempo real, registrou que as hashtags #LulaManuHaddad e #Haddad rapidamente se equipararam às menções de Bolsonaro, que lidera a campanha eleitoral nesse meio. Fala-se muito numa disputa tempo de televisão e de rádio versus redes sociais. Ao contrário de Bolsonaro e Marina, que lideram nas redes sociais, Haddad dispõe de razoável condição de campanha no universo analógico e paridade no meio digital.
Lula empurra com a barriga a candidatura até 17 de setembro, utilizando os prazos do processo de impugnação no Tribunal Superior Eleitoral (TRE), para ser substituído por Haddad em pleno horário eleitoral gratuito, que começa em 31 de agosto. Seus marqueteiros dizem que bastariam 60 segundos para fazer a transferência de votos, numa fusão de imagens. Será? Até agora, Lula se passou por vítima de uma grande armação judicial; se o ex-presidente for à televisão, Haddad terá que ser abatido na pista, antes de decolar.
Geraldo Alckmin (PSDB) aposta todas as fichas no tempo de televisão e de rádio para desconstruir a imagem dos adversários e resgatar a própria; subestima as redes sociais. Para chegar ao segundo turno, terá que crescer nos eleitorados de Bolsonaro, à direita; Marina Silva, à esquerda; Ciro Gomes, no Nordeste, e Álvaro Dias, no Sul, que já demonstraram grande resiliência. E avançar entre os indecisos. É aí que voltamos ao ponto de partida. Chegará ao segundo turno quem capturar os votos anti-Lula e/ou anti-Bolsonaro, que são os protagonistas da polarização eleitoral. Ou seja, o voto útil. Por enquanto, segundo as pesquisas, Marina Silva continua melhor posicionada do que Alckmin para isso.
Marco Aurélio Nogueira: Como se não houvesse amanhã
Candidatos à Presidência precisam ensaiar mais, ser mais sérios e cuidadosos em todos os fundamentos
Um novo debate eleitoral sempre cria expectativas e esperanças. Fica-se na torcida para que haja um avanço, para que cada candidato mostre finalmente a que veio.
Não foi bem o que ocorreu ontem na RedeTv.
O tom foi um só, basicamente: eles falam como se não houvesse amanhã. Limitam-se a brandir promessas, frases genéricas, pegadinhas e compromissos, como se tudo dependesse deles e nada mais precisasse ser feito a não conseguir que um novo personagem ocupe a cadeira presidencial. São ilusionistas. Atores de uma pantomima típica da vida de exposição que levamos, feita de insights, caras e bocas, frases curtas, minutos controlados, pressa.
Dá para apontar o dedo, seletivamente, para os momentos em que alguém foi além disso, embasando de modo mais “técnico”, político-administrativo, seus planos de governo.
Somente três candidatos se destacaram. Ciro e Alckmin mostraram firmeza, serenidade e conhecimento prático. Marina cresceu ao enquadrar Bolsonaro e ser mais propositiva. Os demais perderam uma boa oportunidade para esclarecer o que estão a fazer ali, que papel estão se propondo a representar.
Bolsonaro tropeçou nas próprias palavras e teve de ver Daciolo pressioná-lo pelos flancos. Álvaro e Meireles, muito pouco à vontade, limitaram-se a repetir slogans e chavões. Boulos, uma caricatura forçada do Lula de bem antes, mostrou ter língua afiada, mas continuou a se perder nas propostas maximalistas e de “ataque frontal”.
São políticos antipolíticos, que recusam a política realmente existente como se lhes fosse possível eliminá-la por decreto. Políticos que não falam de alianças e negociações, a não ser para demonizá-las ou justificá-las envergonhadamente. Que não se dedicam a falar do “como”, das concessões inevitáveis, dos “sacrifícios” que precisarão pedir ao povo. Derramam-se em elogios ao “novo” sem se darem ao trabalho de qualificá-lo.
Sempre haverá quem faça um desconto e diga que, num palco de TV, rola um show e nele o comportamento é fictício: estão a jogar para a plateia, obedecendo a roteiros traçados por assessores e especialistas em marketing eleitoral, onde o que menos importa é o conteúdo, já que o fundamental é produzir efeito e fumaça com uma performance calculadamente eficiente.
É verdade. Mas deve-se considerar também que existem dramas e dramas, roteiros melhores e piores, bons e maus desempenhos cênicos. Candidatos à Presidência precisariam, no mínimo, ensaiar mais e ser mais cuidadosos em todos os fundamentos. Não podem ser artistas, nem mesmo quando estão no palco.
Afinal, estão se dispondo a fazer girar a roda da História, a interferir na nossa vida, a direcionar um País que assiste ao show com várias pulgas atrás da orelha.
Luiz Carlos Azedo: Jogo de profissionais
Teremos a menor renovação política das últimas sete eleições, em razão da redução do tempo de campanha de 90 para 45 dias; do horário eleitoral gratuito de 45 para 35 dias; e do financiamento público
Havia grande expectativa em relação ao papel dos chamados movimentos cívicos nas eleições de 2018, na onda dos protestos e grandes manifestações organizados pelas redes sociais desde março de 2013. Esses protestos resultaram, mais tarde, no impeachment de Dilma Rousseff e no apoio maciço à Operação Lava-Jato. Entretanto, já se pode dizer, com toda certeza, que não conseguirão renovar a representação política no Congresso; e talvez, não tenham também grande peso nas eleições para presidente da República. A política dos cidadãos, digamos assim, nunca foi tão vigorosa, mas eleitoralmente não resulta na formação de coalizões políticas robustas o suficiente para romper a blindagem das velhas estruturas partidárias e oligarquias políticas.
A razão desse fenômeno é uma mix de decisões intempestivas do Supremo Tribunal Federal (STF), como a portabilidade dos recursos e tempo de televisão, que estimularam a formação de partidos franquia, e a nova política de financiamento público, que fortaleceu ainda mais os donos de partidos e os candidatos endinheirados, sem nenhuma garantia de que não haverá caixa dois. Essas decisões provocaram a reação dos grandes partidos no sentido de bloquear a renovação e salvar a pele dos seus caciques na reforma eleitoral e partidária.
O instinto de sobrevivência do establishment político é notável. Embora, mais cedo ou mais tarde, muito de seus integrantes venham a ter que acertar contas com a operação Lava-Jato, o esquema montado para neutralizar seus efeitos eleitorais tem um lado muito positivo: a sobrevivência da nossa democracia, que estava em vias de ser garroteada por um movimento em pinça de projetos autoritários à direita e à esquerda. Isso explica a ampla coalizão de forças formada em torno do candidato de PSDB, Geraldo Alckmin, que foi um bom governador de São Paulo e tem a simpatia das elites econômicas do país.
De certa forma, os mecanismos de financiamento eleitoral e distribuição de tempo de televisão são o grande obstáculo à candidatura do capitão da reserva do Exército Jair Bolsonaro (PSL), cujo vice, general Mourão, chama de “ditabranda” o regime militar que vigorou no país entre 1964 e 1985. A outra face da moeda é o fato de Marina Silva, em que pese a enorme representatividade alcançada nos dois últimos pleitos, ir às urnas sem dispor da paridade de meios que deveria ter, se levássemos em conta a votação que obteve para a Presidência e não, apenas, o número de deputados da Rede e do PV, como estabelece a legislação eleitoral.
Como outra contradição do mesmo processo, temos a resiliência do PT, cujo líder principal, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, está preso e inelegível. A reforma eleitoral foi feita sob encomenda para evitar que o desastre eleitoral petista de 2016 se repita nas eleições desse ano. Em aliança com o PMDB e outros grandes partidos, a legenda somente não conseguiu tudo o que queria na reforma eleitoral, porque não foi aprovado o voto em lista, assim como o MDB não conseguiu aprovar o “distritão” proposto pelo presidente Michel Temer. Na distribuição de recursos do fundo partidário e tempo de televisão, o PT tem cacife para sonhar com um candidato no segundo turno, seja o ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad, seja o ex-governador da Bahia Jaques Wagner.
Vantagens
Em contrapartida, podemos registrar as dificuldades de dois candidatos: Ciro Gomes (PDT) se posicionava para ser herdeiro dos votos do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, de quem foi ministro, principalmente no Brasil setentrional. O próprio Lula, da cadeia, se encarregou de inviabilizar a coligação que lhe daria tempo de televisão para entrar na disputa para valer. O PSB, que seria o aliado principal do PDT, optou por não ter candidato e não fazer coligação para Presidência. Outro que ficou em situação parecida foi Álvaro Dias (Podemos), que ameaçava Geraldo Alckmin no Brasil meridional. Também foi isolado, conseguindo apoio apenas de partidos muito pequenos. João Amoêdo (Novo), que pensava atrair os movimentos cívicos para sua candidatura, Guilherme Boulos (PSol), que sonha com os votos de Lula em São Paulo, são pigmeus políticos no horário eleitoral.
Arguto observador do Congresso, o analista político Antônio Augusto de Queiroz, do Departamento Intersindical de Acompanhamento Parlamentar, garante que teremos a menor renovação política das últimas sete eleições. Cita três razões: redução do tempo de campanha de 90 para 45 dias; redução do horário eleitoral gratuito de 45 para 35 dias; e financiamento público. Segundo ele, deputados e senadores são favorecidos por: disputar no exercício do mandato, serem mais conhecidos, terem serviços prestados e bases eleitorais consolidadas, cabos eleitorais, dobradinhas, financiadores, acesso à mídia, estrutura de campanha e emendas parlamentares que garantem o apoio dos beneficiados pelo Orçamento da União.
Fernando Gabeira: Eleger ou derrubar
Em plena campanha, não sei se estamos realmente escolhendo um presidente ou cavando uma crise para que ele se afunde, como afundaram seus antecessores. O Congresso votou uma bomba fiscal e o STF, um aumento que vai repercutir nas contas públicas. No calor da luta política, os candidatos falam em investir. Mas como, se as despesas da máquina do governo vão aumentar?
Tive de explicar a alguns amigos por que tenho uma relação cordial com Bolsonaro. Não sabiam que o conheço há duas décadas, e convivemos no Congresso durante 16 anos e inúmeras viagens Rio-Brasília. Foram 16 anos de divergência no campo dos costumes sem que se tenha perdido o diálogo.
Da mesma forma, conheço quase todos os outros candidatos. Admiro sua coragem. Nunca estive com o Cabo Daciolo, por exemplo, mas o considero uma versão light do russo Iorudivi, um louco de Deus.
Ele não usa correntes amarradas no corpo, mas tem as mesmas visões de cura. Daciolo afirmou que soube por Deus que a deputada Mara Gabrilli iria andar em breve.
São homens e mulheres que se dedicam a uma tarefa muito difícil. É possível que alguns não saibam o quanto. E que alguns tenham até más intenções.
Considero fundamental que todos possam apresentar suas ideias. Na última eleição entrevistei os que estavam fora do debate, porque não pontuaram o suficiente nas pesquisas.
Certamente o farei de novo, com a tática de sempre: nem cúmplice nem algoz. Tudo o que posso fazer é estender uma corda para que escalem a montanha ou se enforquem.
Quanto mais transparência, pelo menos teoricamente, chega-se mais facilmente a uma boa escolha. É possível dizer que nem sempre foi assim, e nem sempre será. Mas não há outra lógica melhor.
Nunca fui tao moderado, reconheço. Mas uma leitura cautelosa destas eleições mostra esquerda fragmentada, direita em ascensão, crise econômica. Para quem conheceu outros momentos históricos, essa combinação é perigosa.
O sistema político-partidário, do qual participei ao longo de alguns anos, está em frangalhos e só se sustenta movido a muito dinheiro público. Terminou um período de redemocratização que deixa grande número de descrentes na importância da própria democracia.
A primeira preocupação é não jogar fora o bebê com a água de banho. O processo democrático precisa se aprofundar, mas em novas bases.
De um modo geral, somos muito atentos aos golpes de Estado, mas subestimamos as outras formas que ameaçam a democracia através de sua erosão cotidiana. A melhor maneira que me ocorre é buscar algum consenso na análise de conjuntura. A esquerda comprometeu sua influência cultural em vários momentos. O mais grave deles foi a corrupção que atingiu sua credibilidade.
Mas, no meu entender, teve peso também aplicar políticas estatais que mexem com o cotidiano, sem um consenso majoritário, apenas por ter vencido as eleições. Essa suposição de que a minoria iluminada precisa conduzir o país em alguns temas da vida produz muitos ressentimentos.
O próprio Supremo, ao discutir a questão do aborto, corre o risco de decidir pelo Congresso, algo que não acontece em muitos países em que o Parlamento funciona. O argumento contrario é de que as coisas demoram a acontecer sem uma intervenção da vanguarda. No entanto, escolhas feitas por uma elite acumulam resistências que contribuem para movimentos contrários com resultados imprevisíveis.
Não tenho a pretensão de ter o segredo para repactuar o diálogo político no país. A única formula que conheço é tentar suprimir ofensas e se concentrar na troca de ideias.
As ofensas acabam reforçando emocionalmente soluções simples para problemas complexos. Ideias geram dúvidas, suscitam revisões — enfim, são o melhor veículo para sair dessa maré.
Os debates entre candidatos começaram. Ainda há pouco de linguagem egocêntrica, cada um repisando suas teses, sem levar em conta a pergunta. A tarefa agora é levá-los à maior clareza possível não só sobre o que vão fazer, mas como vão fazer e com que dinheiro, nesse pântano fiscal em que nos metemos.
Precisamos escolher alguém para eleger, e não para derrubar no ano seguinte.
El País: Mourão, um novo franco-atirador para o populismo conservador de Bolsonaro
O general da reserva, nostálgico da ditadura, lidera pelotão de candidatos militares neste pleito e ganha holofotes ao repetir frases preconceituosas
Jair Bolsonaro, o candidato à presidência do Brasil que há meses desconcerta seus muitos críticos por se destacar nas pesquisas de intenção de voto com ideias abertamente autoritárias, anunciou no domingo seu vice na campanha eleitoral. Hamilton Mourão é um general de 64 anos dado a criticar o Poder Executivo e a elogiar aspectos da ditadura militar brasileira (1964-1988), o que já havia lhe rendido uma punição branda na caserna antes de sua aposentadoria. Mas no mundo ao contrário de Jair Bolsonaro, a patente alta e a vocação para chocar se encaixam perfeitamente na chapa que tem 17% de intenção de voto, quase o dobro dos 10% do próximo da lista, se desconsiderado Luiz Inácio Lula da Silva, virtualmente impedido de concorrer. O general reforça tudo o que aconteceu até agora na campanha de extrema-direita – os elogios à ditadura, os insultos de microfone na mão, o racismo, o classicismo, o machismo. A dobradinha reitera que essa é a candidatura dos militares, da força bruta, do ultraconservadorismo e da ordem estabelecida. E que não há nada a relativizar na que é, no final das contas, a segunda proposta que mais atrai seguidores no maior país da América Latina.
Mourão, que entrou no Exército em 1972 e esteve na ativa até fevereiro de 2018, já havia negado antes a fazer campanha com Bolsonaro. Que o candidato tenha insistido se deve mais à falta de opções – Bolsonaro já havia sido recusado por outras duas pessoas – do que das qualidades para o cargo ou o possível ganho eleitoral da fórmula. Mourão é o homem que, ao entrar na reserva há alguns meses, chamou de “herói” o coronel que comandou um centro de repressão política durante a ditadura militar e que foi declarado “torturador” pelo Tribunal de Justiça. Em outubro de 2015 protagonizou um escândalo ao afirmar em uma conferência que o Brasil precisava “de um despertar da luta patriótica”: dias depois, ainda sob o Governo Dilma Rousseff, foi anunciada a sua “exoneração do posto”. Em setembro desejou publicamente que a Justiça “retirasse” da vida pública o presidente Michel Temer e em dezembro chamou o Governo, enfraquecido por várias acusações de corrupção, de “bazar de negócios”. Em poucos dias foi transferido à Secretaria de Economia do Exército, onde não ocupou nenhum cargo concreto. Em fevereiro, entrou na reserva, mas mereceu uma cerimônia de gala e elogios do atual comandante do Exército.
Mas o Brasil em que esse histórico derrubaria qualquer carreira política parece já não mais existir. Nos últimos meses é cada vez mais comum que os militares opinem publicamente sobre a turbulenta deriva do país e que lembrem, para deleite de muitos, que eles estão ali e, ao contrário dos entumecidos políticos tradicionais, poderiam fazer algo. Em abril, horas antes do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva ser preso por corrupção e quando ainda se temia a remota possibilidade de que fosse indultado, o mesmo comandante do Exército ameaçou no Twitter: “o Exército brasileiro compartilha o anseio de todos os cidadãos de bem de repudiar a impunidade (...) e se mantém atento a suas missões institucionais”.
Setores da sociedade brasileira, presa há anos em uma encruzilhada formada por uma recessão econômica, uma classe política paralisada por incontáveis julgamentos por corrupção e índices de violência que só aumentam, também se mostram cada vez mais favoráveis à presença dos militares na vida civil. Em janeiro o presidente, impotente diante da sangria diária do Rio de Janeiro, cedeu às Forças Armadas o controle da segurança de todo o Estado: foi a primeira vez que se tomou uma medida tão extrema desde a volta da democracia em 1988. Longe de condená-la, muitos a usaram como prova de que a política habitual não tem como agir em um local tão violento. Quando, no final de maio, os caminhoneiros entraram em greve e paralisaram o país que mais depende das estradas no mundo, as manifestações de protesto mostraram várias mensagens de “Intervenção Já” - um clamor para que os militares tomassem o poder político.
Não à toa existem mais de uma centena de ex-militares disputando algum cargo nessas eleições - querem ser deputado a governador e também chegar ao Planalto. Ninguém soube capitalizar esse sentimento como Bolsonaro, único candidato a presidente com passado militar (ainda que sua carreira tenha acabado em 1987, quando foi suspenso por tentar colocar bombas nos banheiros de sua academia). Quando se transformou no deputado mais votado das eleições de 2014 já utilizava a estética militar. Após seu sucesso, foi além e começou a flertar com a saudade da ditadura. Nos vídeos que publica diariamente nas redes sociais e que lhe deram seus primeiros seguidores via-se, discretamente pendurados nas paredes de seu gabinete, retratos dos generais que durante 22 anos perseguiram e torturaram seus dissidentes. Aumentou a aposta. Em 2016, com as pesquisas já a seu favor como possível presidente, disse que “o erro foi torturar e não matar”. No lugar de cair, se manteve. No final de julho já se atreveu a dizer abertamente que a ditadura foi “um período muito bom”.
Agora tem Mourão para dividir os holofotes na imprensa do escândalo provocado pelas declarações - é uma estratégia que escancara o extremismo, mas também garante uma exposição valiosa para uma dupla que terá pouquíssimo tempo no horário eleitoral gratuito. Nesta segunda, em seu primeiro compromisso oficial após se tornar o vice de Bolsonaro, o general da reserva repetiu, no Rio Grande do Sul, clichês preconceituosos e racistas sobre a história brasileira. “Temos uma certa herança da indolência, que vem da cultura indígena. Eu sou indígena. Meu pai é amazonense. E a malandragem, Edson Rosa [vereador negro presente na mesa], nada contra, mas a malandragem é oriunda do africano. Então, esse é o nosso cadinho cultural. Infelizmente gostamos de mártires, líderes populistas e dos macunaímas”, declarou Mourão, promovido a expoente do populismo conservador eleitoral à brasileira.
Fernão Lara Mesquita: O perigo das decisões precipitadas
Faz-se muito barulho com o que não tem a menor importância para abafar o que tem toda
A onda nacional de repúdio que o vexame do Roda Viva com Jair Bolsonaro provocou teve, afinal, um subproduto positivo. Poupou o Brasil do que poderia ter sido o vexame da GloboNews se ela tivesse chegado virgem e com o ímpeto em que vinham vindo a maior parte das redações. Na noite da sexta-feira (3/8) nenhuma agressão lhe foi dirigida e quase tudo lhe foi perguntado no tom que convém.
O vexame esteve nas respostas.
O fenômeno Bolsonaro é independente de Jair Bolsonaro. O candidato transformou-se no valhacouto de todos os exilados do Brasil com voz. Na sua praia acabaram por encalhar os censurados pelos ditadores da “correção política”, os resistentes ao terrorismo moral, todos quantos as subideologias fabricadas repulsam, os rebelados contra a sistematização da mentira, os que se recusam a não ver o que seus olhos enxergam, os que insistem em educar eles próprios os seus filhos, os condenados à não existência midiática, os que persistem no index dos “ismos” proibidos.
O liberalismo de Paulo Guedes também foi lá bater fugido da censura e logo passou de resgatado a resgatante, tal é o vazio que encontrou. No seu rastro vieram os cacos da classe média meritocrática em extinção e os exauridos todos do welfare state moreno com sotaque francês, a única outra alternativa à venezuelização que se apresenta.
Mas tudo isso aconteceu mais pela precisão desses desvalidos que pela boniteza do “candidato honesto” que veio até à véspera desta fugindo de debates e de entrevistas montado apenas em peças editadas de WhatsApp.
Foi quase por acaso, aliás, que ele fez saber aos espectadores da GloboNews que, sim, a seu ver são também honestos não só o seu particular auxílio-moradia como também os privilégios todos dos marajás de farda. Ele nada mais disse porque não lhe foi perguntado, o que é muito pior, mas a avaliação abrange também, “por isonomia”, os dos marajás sem farda.
O déficit acumulado pela previdência do setor público de 2001 a 2015 foi de R$ 1,3 trilhão para atender 1 milhão de aposentados! O déficit da previdência privada, atendendo a 33 milhões de aposentados, no mesmo período, foi de R$ 450 bilhões. A média das aposentadorias do setor privado é de R$ 1,5 mil. No setor público, a média é de R$ 9 mil no Poder Executivo, o pedaço do marajalato mais sensível ao voto, de R$ 25 mil no Legislativo, R$ 29 mil no Judiciário e acima de R$ 30 mil no Ministério Público.
Quase todos os Estados brasileiros, responsáveis pela segurança pública dos 63 mil assassinados por ano, pela saúde e pelo saneamento dos reassolados pelas pestes medievais e pela educação dos ladrões de medalhas de Matemática gastam mais hoje com aposentados que com funcionários na ativa. É a mais vasta máquina de transferência de dinheiro de pobres para ricos jamais criada na face da Terra e a trajetória do déficit põe uma explosão de proporções telúricas imediatamente além da próxima curva.
Mas isso continua sendo um não problema. Não entra em pauta no debate presidencial.
Este desinteresse da imprensa (há exceções raras, inclusive na televisão) pelo assalto à riqueza da Nação com a gazua da lei; este acobertamento do estupro coletivo do Brasil pelas corporações que tomaram o Estado de assalto é a última coisa que une esquerda e direita no Brasil. Essa cumplicidade mole, silenciosa, acovardada e com medo da vida do “país com tetinhas” para com o “país com tetonas”, que irmana partidos e conecta os extremos do espectro ideológico é que empurra os nossos muitos rios de janeiros para o niilismo da desesperança e para a guerra. Mas foi o único ponto em que as visões de Bolsonaro e da banca examinadora da Rede Globo não geraram faísca por baixo da polidez com que tudo transcorreu.
“Nem os quilombolas, nem ninguém tem direito de ter comida servida na boca.”
“Nenhum centímetro mais de terra indígena.”
“Gays, sim, kit gay não.”
“Brancos e negros, ricos e pobres, gays e heteros, somos todos brasileiros.”
“A história do Brasil foi a que foi, não a que é narrada.”
O Brasil está tão desesperadamente carente que tem ejaculações precoces com a mera declaração do óbvio em público. Mas, de parte a parte, faz-se um enorme barulho com o que não tem a menor importância para manter abafado o que tem toda.
Jair Bolsonaro e Donald Trump são filhos da mesma negação, só que Trump é arrogante e Bolsonaro é humilde, Trump sabe o que é capitalismo - de “laços”, vá lá - e Bolsonaro nem isso. Há uma enorme diferença certificada por uma obra concreta na capacidade de formulação, de montagem de equipe e de execução entre Jair Bolsonaro e Geraldo Alckmin. Mas, assim como o “candidato honesto” ladra mas não morde, a democracia da vaidade, aristocrática e sem povo, do PSDB não chega nunca à penetração. Nenhum dos dois está contra o “sistema”, estão apenas fora dele e muito desgostosos com isso. Nenhum dos dois propõe reformas que mudem a essência ou a direção do que quer que seja, ambos contentam-se com “ajustes”, com meras regulagens de velocidade, com vender anéis para preservar os dedos.
O Brasil terá de ir ainda mais fundo no Inferno antes de sermos arrastados de volta ao purgatório. Tiradentes foi o último momento em que estivemos parelhos com a ponta mais moderna do pensamento político. Desde que fomos invadidos pela corte e viciados nas blandícias da “aquisição de direitos”, nunca mais acertamos o passo. É sempre o mundo que acaba nos arrastando para as modernidades depois que elas ficam velhas.
Nós nos aferramos às nossas escravidões e somos sempre os últimos a aboli-las. Quem está dentro não sai e quem está fora sonha em entrar. Estamos sempre duas ou três revoluções atrasados. Só somos “avançados” no papo furado. Privilégio é o nosso negócio. O favelão continental que se exploda.
Blog do PPS-SP: Para ajudar a entender Lula e Bolsonaro
Dizíamos aqui, outro dia:
Pensamento semelhante tem o eleitor de Jair Bolsonaro, ainda que no sentido inverso. Quanto mais os políticos e a mídia tradicional o apontarem como um boçal com ideias esdrúxulas, maior apoio e repercussão terá entre o exército anônimo de indignados e revoltados anencéfalos contra o atual sistema político. O folclórico Bolsonaro segue a linhagem dos Enéas, Tiriricas e Cacarecos da história brasileira. Periga ser o herdeiro legítimo de quem elegeu Fernando Collor em 1989. Aí estaremos fritos de verdade.
É evidente (para quem se propõe a enxergar fora da caixinha), assim, que a polarização que traz Lula e Bolsonaro na liderança das pesquisas pré-eleitorais também carrega em si o desejo da mudança. Não se trata, em sua grande maioria, do voto racional, partidário ou ideológico, mas do simbolismo dessas duas candidaturas. Com Lula fora por conta da prisão e da ficha suja, restará conferir a sua capacidade de transferência de votos. Quem será o maior beneficiário do espólio lulista? O PT vai lançar Fernando Haddad? Ou será que Ciro Gomes personifica melhor esse eleitor órfão de Lula? E Marina Silva, somará quanto desses indignados ao legado de 20 milhões de eleitores cativos das duas últimas eleições? (…)”
Agora, com a confirmação das candidaturas, Bolsonaro com seu vice que é general da reserva, e Lula telegrafando o Plano B para a sua insistente não-candidatura, à espera da impugnação, com Haddad presidente e Manuela vice, as coisas começam a clarear.
Dois excelentes artigos nos ajudam a compreender a situação de Lula e de Bolsonaro. Um, do jornalista Clóvis Rossi (“PT entroniza dom Sebastião Lula da Silva“).Outro, do cientista político Marco Aurélio Nogueira (“Falando a sério sobre Bolsonaro“). Valem a leitura.
Denis Lerrer Rosenfield: Percepções do novo
Qual é, então, o sentido das mudanças exigidas pela sociedade?
O novo é percebido de diversas maneiras. Não há um sentido unívoco que seja compreendido pela opinião pública e pelos diferentes atores políticos. Cada um veicula a sua própria noção ao sabor das conveniências e das circunstâncias.
Nos últimos anos e, sobretudo, nos últimos meses fomos tomados pela ideia de que a sociedade brasileira estaria em busca do “novo” na política, sem que haja uma maior precisão a respeito. O que disso mais se aproxima é o desejo generalizado pela moralidade pública. É como se a vida do País se reduzisse à luta contra a corrupção, relegando a segundo plano as questões relativas às reformas de que o Brasil tanto precisa.
Até recentemente, o “novo” foi também identificado à entrada de outsiders na política, como se estivéssemos diante de uma novidade que poderia alterar o rumo das coisas. Alguns saíram, inclusive, com uma boa popularidade inicial em pesquisas de opinião, porém logo abandonaram a seara pública. A política tem agruras, violências e obstáculos que fazem com que mesmo os mais bem-intencionados não resistam ao seu teste inicial.
A questão reside em que medida o anseio social pelo novo se traduz por intenções de voto. Uma coisa é o desejo generalizado por mudanças, outra muito distinta é a sua concretização em escolhas propriamente eleitorais.
Haveria um descompasso entre a demanda de renovação política, assumida teoricamente pela sociedade, e as escolhas que se apresentam do ponto de vista político-partidário. A Lava Jato tornou-se um símbolo por encarnar a luta contra a corrupção, mas as intenções de voto, em boa parte, estão dirigidas à perpetuação de personagens políticos e partidos que são símbolos desta mesma corrupção.
A política é percebida por um setor importante da opinião pública como um lugar de tráfico de influências e de negociatas dos mais diferentes tipos, relegando o bem comum a uma posição subalterna. Identifica-se a velha política à atual classe dirigente, responsável por desvios e apropriação privada de recursos públicos. Portanto, a nova política deveria ser uma espécie de redenção da velha, salientando-se os aspectos de moralidade pública como sendo os mais relevantes.
Ocorre, contudo, que os problemas nacionais não se reduzem a uma visão que se esgotaria no combate pela moralidade pública, mas colocam na ordem do dia a urgência de reformas, cuja ausência pode conduzir o País a uma situação de insolvência. Entretanto, a necessidade de reformas não é percebida por um setor importante da sociedade como sendo algo indispensável. Ela mais bem representaria uma forma da “velha política”, e não da “nova”.
Vejamos sucintamente como se articulam estas relações entre a percepção do “novo” e do “velho” nas intenções de voto para a Presidência da República em algumas das candidaturas com maiores chances eleitorais.
O deputado Jair Bolsonaro está sendo o desaguadouro de boa parte da insatisfação da sociedade, por encarnar o “novo” na luta contra a corrupção e contra a atual classe política. Não importa, para esse efeito, que ele não seja um outsider, mas alguém com uma longa trajetória parlamentar. Ele conseguiu consolidar a imagem de que não guarda nenhuma relação com a atual classe política, recusando-se a qualquer aliança política que possa denegrir essa percepção. Seja dito a seu favor que o seu passado parlamentar é limpo do ponto de vista de atos de corrupção. Encarna, nesse sentido, na perspectiva da moralidade pública, o “novo” e o descompromisso com a atual classe política. Ademais, no contexto de descalabro nacional da segurança pública, sua luta contra a criminalidade aparece também como algo “novo”, tendo em vista a desatenção a este problema por todos os governos desde a redemocratização. Do ponto de vista econômico, não tem apresentado o seu programa de governo, embora venha sinalizando pela escolha de seu ministro da Fazenda, caso eleito, para posições de tipo liberal. Estaria, hoje, mais para o governo Castelo Branco do que para o governo Geisel.
O poste de Lula, seja quem for o(a) ungido(a), tem boas chances de estar presente no segundo turno, dada a forma empregada pelo PT para instrumentalizar as orientações do ex-presidente. Ocorre, aqui, um fenômeno particularmente interessante, pois são Lula, Dilma e o PT os principais responsáveis do descalabro fiscal, dos graves problemas econômicos e sociais do País, além de serem os principais atores dos crimes de corrupção. Isto é, a escolha pelo preposto de Lula seria uma opção pela “velha política”, apesar de ser apresentada como ideologicamente palatável graças a uma suposta luta por “direitos sociais”. Do ponto de vista econômico, o PT posicionou-se contra qualquer agenda reformista, contentando-se com a repetição dos velhos chavões de outrora.
O candidato tucano está, por sua vez, atravessado por contradições importantes. Para ganhar tempo de televisão, optou por uma composição partidária que em tudo reproduz à do atual governo, cuja impopularidade em boa parte reside nestas mesmas alianças. Geraldo Alckmin teria, então, feito uma escolha pela “velha política”, distanciando-se de um eleitorado que clama pela “nova política”. Aliás, foi este mesmo o discurso utilizado pelos tucanos para se distanciarem do atual governo. Perdeu, nesse sentido, o discurso da “nova política”, além de ter em seu partido vários ex-dirigentes envolvidos em investigações e condenações. Do ponto de vista econômico, sua agenda apresenta-se como reformista. Ocorre, porém, que os tucanos nos últimos meses se posicionaram frequentemente contra a agenda reformista do atual governo, vindo, inclusive, em vários momentos a torpedeá-la. E o fizeram dizendo que não aceitavam os métodos utilizados, isto é, os mesmos que estão sendo escolhidos atualmente nas novas alianças partidárias.
Qual é, então, o sentido das mudanças exigidas pela sociedade? Vão para “algo novo” ou visam ao restabelecimento do “velho”?
*Denis Lerrer Rosenfield é professor de filosofia na UFRGS.
Cacá Diegues: Chega de brincar com fogo
Bolsonaro não tem programa de governo; mas tem uma vastíssima coleção de críticas e adesões a comportamentos
O crescimento da candidatura de Jair Bolsonaro, do PSL, à Presidência da República nos assusta. Se queremos evitar uma tragédia política, é preciso tomar uma atitude diante da perversão ideológica a que estamos assistindo envolvera sociedade brasileira. Chega de folclore em torno do capitão-candidato, de considerá-lo uma anedota passageira, e compreender que, por trás do fenômeno, existe uma tendência de comportamento que corresponde ao desejo de uma parte da população.
Semana passada, Bolsonaro esteve no programa “Roda Viva”, da TV Cultura, e ali, entre outros absurdos, disse que o Brasil não devia nada a ninguém pela escravidão de africanos. Segundo ele, os portugueses nunca puseram os pés em África, eram os próprios africanos que entregavam aos europeus seus inimigos locais como escravos. Mesmo que essa fantasia sombria fosse verdadeira, para onde esses africanos se dirigiam, onde se tornavam escravos e como escravos eram tratados por senhores brancos europeus ou de origem europeia?
Ao longo de nossa história, 4,9 milhões de seres humanos viveram como escravos no Brasil. Foi sua escravidão que forjou o nosso racismo, a hipocrisia social e a insensibilidade de nossa sociedade em relação a seu estado. Da tradição escravocrata, nasceu a desigualdade radical de nossa sociedade.
O que Bolsonaro pensa e afirma está sempre ligado a essa tradição colonial, à concepção da sociedade estruturada em categorias de superioridades que ninguém é capaz de desmontar. Uma organização de classes fruto de decisão divina que, por divina, não há como se opor a ela, muito menos corrigi-la. Suas poucas ideias pertencem a essa tradição, agora modernizada pela ignorância irresponsável e intolerante das redes sociais.
Bolsonaro repete sempre, com palavras simples e objetivas, os bordões dos preconceitos originários de anedotas e hábitos de botequins de estrada. Não existe fundo no que ele diz, só forma; um jeito de dizer as coisas que todo mundo entende do que se trata e pode se identificar com a grossura liberada. É como se estivéssemos vendo o mal desastrado, do qual sempre rimos escondidos, se tornar uma lógica eleitoral, impregnada numa cultura onde não há tempo para pensar.
Já procurei muito, mas nunca encontrei o programa de governo de Bolsonaro e de seu partido. Entre as coisas que diz, sempre muito veloz para que não tenhamos tempo de pensar sobre elas, só vejo conversa de maloqueiro sobre sexo e vizinhos. Umas conversas boas para quem tem preguiça de pensar e se vinga dos que pensam, eliminando o que considera pura mitologia em torno de cada assunto. Conversas de quem odeia a dúvida e o mistério, esses inimigos do bem-estar medíocre.
Em geral, o cidadão quer saber dos candidatos o que farão no posto para onde estão sendo votados. Mas, no caso de Bolsonaro, o que vemos é a ascensão de um novo tipo de eleitor, que, mais do que interesse por programas, quer mesmo é saber como seus candidatos se comportam diante das novidades morais do mundo. Bolsonaro não tem programa de governo; mas tem uma vastíssima coleção de críticas e adesões a comportamentos.
Quando as pessoas ficam de saco cheio das explicações sobre os tantos erros que afetam suas vidas, escolhem sempre o método dominante como culpado de seus males. E porque não entendem, nem fazem questão de entender o que se passa, elegem a razão e o conhecimento como inimigos, põem a inteligência fora de moda. Quando você fica cansado de uma viagem desconfortável que parece não ter mais fim, perde a noção do valor de para onde vai, não se importa mais com o destino. Tanto faz. Quando Bolsonaro ensina o bebê a usar uma arma de fogo, ele está dizendo que ninguém tem nada a ver coma vida desimportante do outro. Esse mundo foi feito para nós, os que, se for preciso, sabemos eliminar o que nos incomoda.
Numa democracia, direita e esquerda têm todo o direito e até a obrigação de se manifestar, a população precisa conhece-las para saber a quem deve seguir. Mas o que Bolsonaro diz é apenas bárbaro. E a barbárie é um estágio da sociedade humana muito anterior à democracia, não sabe conviver com ela.