Bolsonaro
José Nêumanne: Bolsonaro, o 'mito', derrotou a 'ideia' Lula
Os quase 60 milhões de eleitores que votaram no capitão só queriam se livrar do ladrão
Desde 2013 que o demos (povo, em grego) bate à porta da kratia (governo), tentando fazer valer o preceito constitucional segundo o qual “todo poder emana do povo” (artigo 1.º, parágrafo único), mas só dá com madeira na cara. Então, em manifestações gigantescas na rua, a classe média exigiu ser ouvida e o poste de Lula, de plantão no palácio, fez de conta que a atendia com falsos “pactos” com que ganhou tempo. No ano seguinte, na eleição, ao custo de R$ 800 milhões (apud Palocci), grande parte dessa dinheirama em propinas, ela recorreu a um marketing rasteiro para manter a força.
Na dicotomia da época, o PSDB, que tivera dois mandatos, viu o PT chegar ao quarto, mas numa eleição que foi apertada, em que o derrotado obtivera 50 milhões de votos. Seu líder, então incontestado, Aécio Neves, não repetiu o vexame dos correligionários derrotados antes – Serra, Alckmin e novamente Serra – e voltou ao Senado como alternativa confiável aos desgovernos petistas. Mas jogou-a literalmente no lixo, dedicando-se à vadiagem no cumprimento do que lhe restava do mandato. O neto do fundador da Nova República, Tancredo Neves, deixou de ser a esperança de opção viável aos desmandos do PT de Lula e passou a figurar na galeria do opróbrio ao ser pilhado numa delação premiada de corruptores, acusado de se vender para fazer o papel de oposição de fancaria. O impeachment interrompeu a desatinada gestão de Dilma, substituída pelo vice escolhido pelo demiurgo de Garanhuns, Temer, do MDB, que assumiu e impediu o salto no abismo, ficando, porém, atolado na própria lama.
Foi aí que o demos resolveu exercer a kratia e, donas do poder, as organizações partidárias apelaram para a força que tinham. Garantidas pelo veto à candidatura avulsa, substituídas as propinas privadas pelo suado dinheiro público contado em bilhões do fundo eleitoral, no controle do horário político obrigatório e impunes por mercê do Judiciário de compadritos, elas obstruíram o acesso do povo ao palácio.
Em janeiro, de volta pra casa outra vez, o cidadão sem mandato sonhou com o “não reeleja ninguém” para entrar nos aposentos de rei pelas urnas. Chefões partidários embolsaram bilhões, apostaram no velho voto de cabresto do neocoronelismo e pactuaram pela impunidade geral para se blindarem. Mas, ocupados em só enxergar seus umbigos, deixaram que o PSL, partido de um deputado só, registrasse a candidatura do capitão Jair Bolsonaro para conduzir a massa contra a autossuficiência de Lula, ladrão conforme processo julgado em segunda instância com pena de 12 anos e 1 mês a cumprir. O oficial, esfaqueado e expulso da campanha, teve 10 milhões de votos a mais do que o preboste do preso.
Na cela “de estado-maior” da Polícia Federal em Curitiba, limitado à visão da própria cara hirsuta, este exerceu o culto à personalidade com requintes sadomasoquistas e desprezo pela sorte e dignidade de seus devotos fiéis. Desafiou a Lei da Ficha Limpa, iniciativa popular que ele sancionara, transformou um ex-prefeito da maior cidade do País em capacho, porta-voz, pau-mandado, preposto, poste e, por fim, portador da própria identidade, codinome, como Estela foi de Dilma na guerra suja contra a ditadura. Essa empáfia escravizou a esquerda Rouanet ao absurdo de insultar 57 milhões, 796 mil e 986 brasileiros que haviam decidido livrar-se dele de nazistas, súditos do Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães, que não se perca pelo nome, da Alemanha de Weimar: a ignorância apregoada pela arrogância.
Com R$ 1,2 milhão, 800 vezes menos do que Palocci disse que Dilma gastara há quatro anos, oito segundos da exposição obrigatória contra 6 minutos e 3 segundos de Alckmin na TV, carregando as fezes na bolsa de colostomia e se ausentando dos debates, Bolsonaro fez da megalomania de Lula sua força, em redes sociais em que falou o que o povo exigia ouvir.
A apoteose triunfal do “mito” que derrotou a “ideia” produziu efeitos colaterais. Inspirou a renovação de 52% da Câmara; elegeu governadores nos três maiores colégios eleitorais; anulou a rasura na Constituição com que Lewandowski, Calheiros e Kátia permitiram a Dilma disputar e perder a eleição; e forçou o intervalo na carreira longeva de coveiros da república podre.
O nostálgico da ditadura, que votou na Vila Militar, tem missões espinhosas a cumprir: debelar a violência, coibir o furto em repartições públicas e estatais, estancar a sangria do erário em privilégios da casta de políticos e marajás e seguir os exemplos impressos nos livros postos na mesa para figurarem no primeiro pronunciamento público após a vitória, por live. Ali repousavam a Constituição e um livro de Churchill, o maior estadista do século 20.
Não lhe será fácil cumprir as promessas de reformas, liberdade e democracia, citadas na manchete do Estado anteontem. Vai enfrentar a oposição irresponsável, impatriótica e egocêntrica do presidiário mais famoso do Brasil, que perdurará até cem anos depois de sua morte. E não poderá fazê-lo com truculência nem terá boa inspiração nos ditadores que ornam a parede do gabinete que ocupou. Sobre Jânio e Collor, dois antecessores que prometeram à cidadania varrer a corrupção e acabar com os marajás, tem a vantagem de aprender com os erros que levaram o primeiro à renúncia e o outro ao impeachment.
Talvez o ajude recorrer a boas cabeças da economia que trabalharam para candidatos rivais, como os autores do Plano Real e a equipe do governo Temer, para travarem o bom combate ocupando o “posto Ipiranga” sob a batuta de Paulo Guedes. Poderá ainda atender à cidadania se nomear bons ministros para o Supremo Tribunal Federal e levar o Congresso a promover uma reforma política que ponha fim a Fundo Partidário, horário obrigatório e outros entulhos da ditadura dos partidos, de que o povo também quer se livrar em favor da desejável igualdade.
*José Nêumanne é jornalista, poeta e escritor
Vera Magalhães: Moro dá adeus?
A designação para o Supremo Tribunal Federal é a ambição natural e justa de alguém com a carreira do juiz federal
Quando precisou negar que seria candidato a presidente, diante de inúmeras especulações a respeito, Sérgio Moro foi direto. Disse, em diversas ocasiões, que a política não era um caminho vislumbrado por ele, e que continuaria fazendo seu trabalho de juiz.
Ao agradecer a menção pública a seu nome feita por Jair Bolsonaro, sem que haja sequer um convite oficial para o Ministério da Justiça ou para o Supremo Tribunal Federal, Moro muda radicalmente essa diretriz. Quando admite que analisará qualquer um dos convites, o coordenador da Lava Jato, numa tacada só: 1) encoraja Bolsonaro a fazê-lo oficialmente; 2) deixa antever que pode aceitar o ministério e, dali, esperar placidamente pela aposentadoria de Celso de Mello do STF, em 2020.
Os convites incluídos no mesmo pacotão por Bolsonaro e Moro são de natureza diversa. O Ministério da Justiça é um posto político, não jurídico. Aceitá-lo fará com que Moro deixe não só a Lava Jato, mas sua carreira de juiz. Mais: contribuirá para a narrativa (falsa) do PT de que o juiz agiu com intenção política ao ajudar a desnudar o petrolão e condenar Lula e outros próceres petistas.
Ele precisa disso? Certamente não. Precisa pagar este “pedágio” para ser ministro do Supremo? Tampouco.
Já a designação para a Corte é a ambição natural e justa de alguém com a carreira de Moro. Ele já teve uma passagem pelo Supremo, como juiz auxiliar de Rosa Weber, e certamente reúne os atributos de notório saber jurídico e reputação ilibada para substituir o decano.
A interlocutores, Moro tem descartado o argumento de que seu eventual aceite a um ou outro convite de Bolsonaro enfraquece a Lava Jato ou joga água no moinho da queixa petista.
Integrantes da força-tarefa da operação dizem que outro juiz assumirá as funções de Moro caso ele, de fato, deixe a 13.ª Vara da Justiça Federal em Curitiba, sem prejuízo para os trabalhos.
Resta, por fim, um argumento bem esgrimido por Marcelo de Moraes no BR18: cabem dois “mitos” num governo logo em seu nascedouro? Moro não é grande demais para ser um “soldado” de Bolsonaro? O fato é que o juiz não parece ter levado nada disso em consideração ao se assanhar diante de um convite nem sequer formulado. Para um enxadrista como ele, foi um lance bastante precipitado.
PREVIDÊNCIA
Bolsonaro pede contagem de votos de projeto de Temer
Na reunião com a equipe que atuou na campanha e vai estar na transição, Jair Bolsonaro pediu a Onyx Lorenzoni (DEM) que promova uma contagem dos votos com os quais poderá contar caso decida pôr em marcha o plano de votar ainda neste ano a proposta de reforma da Previdência de Michel Temer. Aliados do presidente eleito negam que haja ruídos entre o futuro ocupante da Casa Civil e o czar da área econômica, Paulo Guedes.
PRÓXIMO ROUND
Márcio França deve disputar Prefeitura de São Paulo
O bom desempenho na disputa do 2.º turno para o governo de São Paulo, que o tirou da condição de governador-tampão desconhecido para a quase vitória, deve selar a candidatura de Márcio França (PSB) à Prefeitura de São Paulo em 2020. Para ter espaço a partir do qual fazer política e não cair no esquecimento, França está sendo lançado por aliados para a presidência nacional do PSB, com a missão de fazer a ponte entre a bancada e os governos da sigla.
El País: A advertência da China e o desconcerto da Argentina ante os sinais de Bolsonaro
Futuro presidente deve visitar primeiro o Chile, e não Argentina, como de praxe, e quer relação especial com EUA e Israel. Duro editorial do jornal estatal chinês 'China Daily' adverte eleito dos riscos econômicos de querer ser um "Trump tropical"
Jair Bolsonaro reservou um momento de seu curto discurso da vitória no domingo para prometer libertar o "Brasil e o Itamaraty das relações internacionais com viés ideológico a que foram submetidos nos últimos anos". Era mais uma arenga com os Governos do PT, cujo antagonismo lhe ajudou a chegar à Presidência. Se analisados os primeiros sinais da diplomacia do futuro governo, no entanto, a guinada se projeta mais profunda e, em alguns aspectos, inédita, a ponto de desconcertar a Argentina, país estratégico para Brasília no pós-ditadura, e provocar advertência da China, principal parceiro comercial do Brasil.
Nas primeiras horas como presidente eleito, Bolsonaro celebrou um trunfo: um imediato telefonema de boas-vindas de Donald Trump. O presidente dos EUA ainda escreveria horas depois um tuíte efusivo descrevendo como "excelente" a conversa com Bolsonaro. Era tudo que desejava o futuro mandatário de extrema direita, cuja meta é explorar, apesar das grandes diferenças, a ideia de que é um "Trump tropical" e construir uma relação preferencial com os norte-americanos como não havia desde os anos 60. Como essas sinalizações vão evoluir, ainda não se sabe, mas parece ser o prenúncio da volta da diplomacia com marca presidencial animada pela afinidade com outros líderes populistas no poder.
Ao movimento se seguiu um da China. Além das felicitações protocolares, Pequim enviou um duro recado ao futuro Governo brasileiro, com o peso de quem manteve um intercâmbio comercial da ordem de 75 bilhões de dólares no ano passado com o país (20 bilhões de superávit brasileiro) e é a origem de vultuosos de investimentos. O jornal estatal China Daily, espécie de braço de relações públicas controlado pelo Partido Comunista chinês, dedicou um editorial a Bolsonaro chamado "Não há razão para que o 'Trump Tropical' revolucione (disrupt) as relações com a China". O texto afirma que Bolsonaro foi "menos que amigável" na campanha – o brasileiro já defendeu que a China não compra no Brasil, mas “o Brasil”. Os chineses cobram que, como presidente, Bolsonaro aplique uma avaliação "objetiva e racional" das relações porque, do contrário, "o custo pode ser árduo para a economia brasileira". O Global Times, outra publicação chinesa considerada porta-voz informal, chamou distanciamento de Bolsonaro de "inconcebível".
Não foi o primeiro ruído com o Governo chinês. “Pequim vê a ascensão de Bolsonaro com muita preocupação. Ninguém na equipe do futuro Governo tinha consciência do custo político que poderia ter a visita que o presidente eleito fez a Taiwan em março”, diz Oliver Stuenkel, professor de Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e colunista do EL PAÍS. À época, Pequim reagiu com "indignação" porque considera a ilha taiwanesa uma parte rebelde do território chinês.
Stuenkel aposta que, nos bastidores, os chineses convencerão à futura gestão brasileira a agir de forma pragmática. Já um diplomata brasileiro, que preferiu não de identificar, avalia que há diferenças internas da equipe bolsonarista que vão se refletir na política externa: de um lado, há o receituário liberal do Paulo Guedes, que será o superministro de economia, e, de outro, a postura mais soberanista que o próprio Bolsonaro costumava defender. "As relações com a China darão a senha para compreendermos qual dessas visões prevalecerá", diz o funcionário.
Argentina e a crise na Venezuela
Como em quase tudo relacionado aos planos de Bolsonaro, em política externa os detalhes também são poucos, e as idas e vindas, muitas. No final da campanha, o presidente eleito elogiou a China, por exemplo. Bolsonaro também conversou com os parceiros de Mercosul: o presidente da Argentina, Mauricio Macri, e com Mário Abdo Benítez, presidente do Paraguai, ambos com visões de economia afins à de Paulo Guedes. Entretanto, logo após a vitória, Guedes foi rude com uma jornalista argentina, afirmando que o bloco sul-americano "não era prioridade" e que tinha "viés ideológico". Além disso, integrantes da equipe de Bolsonaro afirmam que sua primeira viagem ao exterior será ao Chile de Sebastián Piñera, e não à Argentina, como de praxe na diplomacia brasileira.
Tudo foi lido como um alerta para o conservador Macri – que tinha simpatia por Fernando Haddad, com quem manteve uma relação cordial quando o candidato derrotado do PT era prefeito de São Paulo e Macri de Buenos Aires. O relacionamento com o Brasil, primeiro destino de suas exportações argentinas, é fundamental para o país. A Argentina vendeu 58 bilhões de dólares ao mercado brasileiro, o equivalente a 20% do total exportado para o mundo. Por isso, Buenos Aires tomou cautelosamente as declarações bolsonaristas, esperando que os fatos deem uma dimensão real às ameaças. A incerteza é o que mais preocupa o governo argentino, especialmente porque o Mercosul está em arrastadas negociações com a União Europeia para um acordo de livre comércio. Macri foi o condutor dessas conversas, ainda que, na avaliação da diplomacia brasileira, aconteça o que acontecer com o Governo Bolsonaro, é o lado europeu que trava a negociação por causa do protecionismo no agronegócio. O chanceler argentino, Jorge Faurie, pediu que esperem para avaliar o que dizem os ministros de Bolsonaro "fora da campanha". E ele concordou com Guedes na avaliação de que a integração regional "deveria se afastar de processos que têm um alto contexto ideológico".
Além do comércio, no lado latino-americano, todas as expectativas estão colocadas no papel que Bolsonaro terá na crise e na deriva autoritária da Venezuela. Durante a campanha —como em tantas outras—, o país vizinho se transformou em munição para atacar seu rival, Fernando Haddad. Bolsonaro, da mesma forma que milhões de seus seguidores, criticou a proximidade que o Partido dos Trabalhadores (PT) teve com o regime chavista, mesmo que o apoio dado por Lula em sua época a Hugo Chávez seja bem diferente do que teve Maduro em anos posteriores. É evidente que Bolsonaro cortará qualquer tipo de relação com o chavismo e se alinhará a outros Governos, como o da Colômbia do conservador Iván Duque. Mas precisará assumir a crise migratória dos venezuelanos que procuram refúgio no Brasil, com uma fronteira cada vez mais quente.
Acordo de Paris e Israel
No plano global, Bolsonaro sinaliza que quer seguir os passos de Trump, e no movimento ganha o reforço do ex-assessor da campanha do presidente norte-americano Steve Bannon. Oferecendo-se como ideólogo a ligar nomes de uma onda populista de global de direita, Bannon, que se reuniu com um dos filhos de Bolsonaro há alguns meses, declarou sua simpatia pelo político brasileiro. O problema é que ser "Trump tropical" pode ter custos altos para um emergente como o Brasil. Bolsonaro chegou a ameaçar retirar o país do Acordo de Mudança Climática de Paris —algo que depois condicionou— e do Conselho dos Diretos Humanos da ONU. Se concretizado, isso poderia provocar reações, sobretudo na Europa.
Oliver Stuenkel, assim como outros analistas, dão como certo que Bolsonaro mudará a Jerusalém a embaixada do Brasil em Israel, alinhado a Trump e para cumprir uma promessa eleitoral que contentaria grande parte dos líderes evangélicos que o apoiaram e à comunicada judaica direitista, também crucial em sua campanha. Isso marcaria um antes e um depois na história da diplomacia brasileira, que até durante a ditadura manteve suas diretivas em relação ao conflito na região. Há inquietação com o passo, especialmente entre grandes produtores brasileiros de carne e frango que vendem parte expressiva da produção para o mundo árabe e temem uma retaliação.
Nesta quarta, começa formalmente a transição de Governo, e as bolsas de aposta para o nome do próximo chanceler estão abertas. A dúvida é se será nomeado alguém da carreira ou outra liderança. Entre os nomes que circulam está o da embaixadora Maria Nazareth Azevedo, que está atualmente em Genebra.
Elio Gaspari: Arrume a quitanda, capitão
Desde a hora em que a candidatura de Jair Bolsonaro encorpou, sua vitória era ao menos uma possibilidade. Abertas as urnas, ele levou a Presidência da República, elegeu três governadores e deu carona aos candidatos vitoriosos no Rio, São Paulo e Minas Gerais. Seu partido tinha oito deputados e ficou com 52. Vendaval semelhante não acontecia desde 1974. Naquela eleição, o eleitorado derrotou a ditadura. Nesta, derrubou peças de dominó. O voto anti-PT não foi tudo. Veio também um recado em relação aos costumes e outro, temível, associado à segurança pública. Talvez o ano de 1968 tenha terminado no Brasil durante seu cinquentenário. (A bandeira “Seja Marginal, Seja herói”, de Hélio Oiticica, é de 68.)
Quem achava que boi, Bíblia e bala eram coisas de outro Brasil, calado, acordou com o estrondo de um país onde o boi empurra a economia, metade da população é favorável à pena de morte, e a Bíblia é o livro mais lido. Infelizmente, as turmas da bala e o setor paleolítico da turma do boi têm uma relação violenta com o andar de baixo.
Os golpistas e os demófobos votaram em Bolsonaro e em seus candidatos, mas nem todos os seus eleitores podem ser considerados golpistas ou demófobos. A relevância de cada grupo será medida ao longo do mandato do capitão, e caberá a ele administrar a quitanda, defendendo a República de golpes, demofobias e, sobretudo, melhorando a administração pública. Nos dias seguintes à vitória, tudo são planos, promessas e ambições, mas Bolsonaro foi eleito para fazer um serviço que durará quatro anos, e pouco se sabe de seus projetos específicos.
Um rápido episódio ocorrido num hotel da Barra da Tijuca na segunda-feira mostra que o capitão precisa tomar conta da quitanda. O economista Paulo Guedes estava numa poltrona num saguão de hotel e começou uma entrevista. Irritou-se com uma pergunta sobre o Mercosul e deu uma resposta desconexa, pontilhada por uma impropriedade, pois na sua formação essa zona de comércio nada teve de ideológica. O Mercosul foi criado em 1991, durante o governo de Fernando Collor de Mello, e nele só estavam o Brasil, a Argentina, o Uruguai e o Paraguai. Até aí, tudo bem.
Depois de se irritar, Guedes reclamou da situação em que estava, espremido na poltrona, cercado de microfones diante de perguntadores desorganizados. Reclamou: “Eu não vou falar assim, não. Tem que ser organizado. Está muito desorganizado (...) São perguntas completamente desconexas. (...) Não é possível falar com 30 pessoas de uma vez só. Não dá, é simples como isso. Olha a posição em que eu estou.”
Tinha toda a razão, mas quem provocou a bagunça foi ele quando aceitou conversar com jornalistas naquela posição. O doutor pode consultar os arquivos em busca de uma cena semelhante com Pedro Malan, ministro da Fazenda de FHC. Ele nunca desqualificou perguntas nem elevou a voz. Ter jornalistas farfalhando por perto faz bem ao ego, mas exige bons modos.
Tom araque o doutor entenda de economia e aprenda a conversar com repórteres. Quitandas têm regras. As berinjelas devem ficar à vista do freguês, e o caixa, atrás do balcão. Nada teria custado a Guedes dizer que não falaria num saguão, muito menos espremido numa poltrona. Uma palavrinha ao gerente do hotel seria suficiente para que desse uma entrevista confortável, calma e, sobretudo, informativa.
Jair Bolsonaro colecionou pérolas de impropriedades dando entrevistas em corredores e batendo boca com colegas na Câmara. Agora, o jogo é outro. Ele não deve ser imitado, pois a quitanda precisa de arrumação.
Arnaldo Jordy: Espero que o presidente eleito respeite a democracia
“Não sou daqueles que acham que o processo vai sofrer uma ruptura"
O deputado federal Arnaldo Jordy (PPS-PA) afirmou, nesta terça-feira (30), da tribuna da Câmara, que espera que o presidente eleito Jair Bolsonaro (PSL) cumpra o que prometeu em discurso horas depois de ter vencido o pleito contra Fernando Haddad (PT).
Jordy desejou boa sorte a Bolsonaro e defendeu o respeito à democracia. “Quero parabenizar o vencedor, o deputado Jair Bolsonaro, que se elegeu pelo sufrágio das urnas. O PPS não o apoiou. Espero que ele possa cumprir as palavras que disse durante sua primeira entrevista à televisão: respeito à Constituição Federal, à democracia e aos direitos e liberdades individuais e coletivas conquistados com muito suor e muito sangue pela sociedade brasileira”, afirmou o deputado paraense.
Jordy disse ainda que não acredita em rupturas que possam prejudicar o País. As instituições, segundo Jordy, estão em pleno funcionamento.
“Não sou daqueles que acham que o processo vai sofrer uma ruptura. O Brasil é democracia consolidada, com todas suas instituições funcionando. Os poderes estão vivos e sendo mais afirmados. Desejo que o presidente eleito possa cumprir seus compromissos de campanha”, acrescentou o parlamentar.
Arnaldo Jordy ressaltou ainda posicionamento do seu partido no Congresso Nacional durante as votações.
“ O PPS estará aqui firmado na trincheira da oposição, evidentemente apoiando aquilo que possa ser interesse da população. Mas também fazendo a crítica contundente contra aquilo que signifique retrocesso”, concluiu.
Portal PPS: PT e o ex-presidente Lula foram os “grandes derrotados” da eleição, diz Roberto Freire
Freire disse que o PPS fará "oposição democrática" ao novo governo
O presidente nacional do PPS, Roberto Freire, disse por meio de sua conta no Twitter (abaixo), nesta terça-feira (30), que os “grandes derrotados” da eleição presidencial vencida pelo candidato do PSL, Jair Bolsonaro, foram o PT e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, preso desde abril, em Curitiba.
O post de Freire é uma reação à carta do coordenador da campanha de Fernando Haddad (PT), José Sérgio Gabrielli, citada em matéria do jornal “O Estado de S. Paulo” (veja aqui), na qual o ex-presidente da Petrobras recomenda a Lula a manutenção do candidato do PT derrotado nas urnas no último domingo (28) como “líder de uma oposição que deve incluir outras forças que se uniram contra o risco à democracia.”
“Não perdem o arrogante hegemonismo e pretendem determinar o líder das oposições no País. Não entenderam que seu tempo está passando”, escreveu Freire.
Para o presidente do PPS, a derrota do ex-presidente e do PT seria ainda maior “se o centro não fosse dizimado no primeiro turno pelo bolsonarismo”.
PPS na oposição
Ao comentar o resultado da eleição no domingo (28), Freire disse que o PPS fará “oposição democrática” ao novo governo. “Que tenham certeza que receberá do PPS uma oposição democrática. Terá sempre a certeza do PPS o compromisso de apoiar tudo aquilo que for de interesse público e para o bem da sociedade.” afirmou o dirigente.
Roberto Freire – @freire_roberto
PT/Lula os grandes derrotados dessa eleição – e seriam ainda mais se ocentro não fosse dizimado no primeiro turno pelo bolsonarismo- não perdem o arrogante hegemonismo e pretendem determinar o líder das oposições no país. Não entenderam que seu tempo está passando…
Ricardo Noblat: O capitão e seu aprendizado
A Constituição e a Bíblia
Louvado seja o esforço do presidente eleito Jair Bolsonaro em reescrever o que possa ter dito de pior, de mais chocante, de mais bárbaro ao longo dos últimos anos – e, especialmente, nos meses mais recentes. Tudo para que o desafio de governar um país dividido se torne menos incerto do que será para ele. Compreensível.
Foi assim com o discurso que lhe deram para ler no domingo à noite tão logo acabou a apuração dos votos. E novamente foi assim na série de entrevistas que concedeu ontem a diversas emissoras de televisão. Na Record, ele pareceu em casa. Disse o que quis sem se preocupar em ouvir o que não desejaria. Esteve menos à vontade na Globo.
Notável o esforço de William Bonner e de Renata Vasconcelos no Jornal Nacional em tentar “normalizar” Bolsonaro. Trataram-no com o devido respeito a um presidente da República. E deram-lhe todas as chances para retificar o que quisesse e sair-se da melhor maneira possível. Bolsonaro desperdiçou algumas. Ou não quis aproveitá-las.
Insistiu com a fake news do kit gay, por exemplo, e ameaçou cortar as verbas de publicidade do governo destinadas ao jornal Folha de S. Paulo. O kit gay foi a sacada que teve e que mais o beneficiou durante a campanha. A sacada não foi dele. Bolsonaro ouviu falar a respeito há mais de um ano em uma escola de Copacabana. Gostou.
Por nada neste mundo abrirá mão de repeti-la sempre que achar conveniente. Quanto à sua mágoa com a Folha, ela poderá ser reduzida a depender da cobertura que o jornal faça do seu governo. Como a maioria dos políticos, Bolsonaro defende a liberdade de imprensa desde que não seja alvo dela.
Lula disse um dia que gostava de publicidade, de notícia não. Publicidade é sempre a favor de quem a contrata. Notícia é quase tudo que os poderosos gostariam de esconder. Liberdade de imprensa não é um direito dos jornalistas, mas da sociedade, que sem informações livres e honestas não tem como tomar decisões justas.
Até janeiro, Bolsonaro terá tempo para aprender que um presidente pode muito, mas não pode tudo, e que a Constituição não é apenas mais um livro que se exibe em meio a outros, mesmo quando um deles é a Bíblia. O Estado brasileiro é laico. Ninguém é obrigado a ler a Bíblia. Mas todos são obrigados a respeitar a Constituição.
A queda da fortaleza do PT
Uma surra para jamais ser esquecida
Caiu a fortaleza do PT que por 20 anos pareceu inexpugnável – o Acre dos irmãos Viana. Foi ali que Bolsonaro teve seu melhor desempenho nas eleições do último domingo – 77% dos votos válidos.
O PP elegeu o governador com quase 54% dos votos contra 34,5% do candidato do PT. Os dois senadores eleitos são do PSD e MDB. Juntos somaram 54% dos votos. Os dois candidatos do PT, pouco menos de 30%.
Dos 8 deputados federais eleitos, nenhum foi do PT. O PC do B e o PDT elegeram dois dos 8. Dos 24 deputados estaduais, o PT elegeu somente 2.
Hélio Schwartsman: Explorando as ambiguidades
Declarações da campanha de Bolsonaro apresentam característica da retórica populista
Jair Bolsonaro conseguiu a façanha de ser eleito presidente sem ter dito o que pretende fazer depois de 1º de janeiro. Ou melhor, sua campanha soltou tantas e tão contraditórias declarações que qualquer proposta que o governo venha a apresentar será compatível com alguma das sinalizações emitidas.
Podemos tanto esperar uma reforma da Previdência vigorosa, quanto uma versão ultra-aguada daquela que foi proposta na gestão Temer. Para os que gostam de marcar “nenhuma das anteriores”, outra possibilidade é a mudança do regime de repartição para um de capitalização, que a maioria dos técnicos considera pouco viável.
Também não sabemos se veremos um programa de privatizações tão ousado que inclua praias e parques nacionais —seria a única forma de chegar ao R$ 1 trilhão desejado por Paulo Guedes—, ou um tão tímido que deixe de fora estatais “estratégicas” como Petrobras, BB, CEF e Eletrobras, que são as que valem dinheiro grosso. Em algum momento, tudo isso foi vocalizado ou ao menos insinuado por algum membro do núcleo duro bolsonariano.
Tal ambiguidade não chega a ser uma surpresa; ao contrário, é uma característica da retórica populista, que evita definições que possam alijar eleitores ou converter-se em cobranças no futuro. O próprio discurso da vitória de Bolsonaro teve uma versão mais institucional para o grande público, que não foi ruim, e outra, com mais provocações, para a turma das redes sociais.
É interessante notar que mesmo as falas mais veementes e ultrajantes do clã Bolsonaro costumam depois, caso provoquem comoção, ser relativizadas como se não passassem de brincadeira ou tivessem sido descontextualizadas. É uma forma de tentar normalizar a intimidação.
O problema com a ambiguidade é que ela funciona melhor na campanha do que no governo. Para fazer as coisas acontecerem, Bolsonaro precisará tomar decisões, isto é, arbitrar perdedores.
Bruno Boghossian: PT e esquerda saem defasados do ciclo que elegeu Bolsonaro
O PT e a esquerda saíram defasados do ciclo político que elegeu Jair Bolsonaro. O movimento de oposição ao novo governo deve preservar a relevância dos partidos derrotados, mas seu futuro dependerá de uma correção de rumos.
As principais marcas da eleição deste ano foram a renovação e a repulsa à política tradicional. Os petistas apostaram no caminho inverso: tentaram reciclar o governo Lula e formaram uma tropa composta especialmente por veteranos.
No PT, a atualização de quadros no Congresso ficou bem abaixo da média. Dos 56 deputados eleitos pela sigla, só quatro podem ser considerados novidades. Quarenta já estavam na Câmara, oito são deputados estaduais e outros quatro exerceram cargos relevantes nos últimos anos.
Embora o partido seja um dos únicos com uma vida partidária que estimule o surgimento de novos nomes, os petistas parecem ter perdido o bonde de 2018. Fernando Haddad, derrotado na corrida presidencial, desponta como principal aposta para recuperar o tempo perdido.
O presidenciável do PT enfrentará algumas barreiras nesse processo. Estará sem mandato (o que reduz o alcance de sua voz), enfrentará resistências de parte da burocracia da própria sigla e terá Ciro Gomes como concorrente na esquerda pelo papel de protagonista da oposição.
O maior desafio, no entanto, deve ser a reconfiguração de uma agenda partidária que parece obsoleta. O PT acreditou que a lembrança dos bons momentos do país sob Lula seriam suficientes na campanha, mas ignorou demandas sociais que foram os trampolins da eleição de Bolsonaro: a intolerância com a corrupção e o combate à violência.
A vitória de Haddad no Nordeste confirma o forte peso do legado petista de combate à miséria. A derrota nas demais regiões mostra que essa pauta se tornou insuficiente.
O desempenho de Bolsonaro no poder vai determinar se o anseio por renovação ficará vivo. Em quatro anos, o PT pode apresentar um novo estilo ou apostar numa onda retrô.
Bernardo Mello Franco: Os sinais trocados do presidente eleito
Nas primeiras entrevistas após a vitória, Bolsonaro prometeu moderação e respeito à democracia. Ao mesmo tempo, reforçou ameaças à oposição e à imprensa
Jair Bolsonaro deu sinais trocados no primeiro dia como presidente eleito. Em entrevistas a quatro emissoras de TV, ele repetiu promessas de moderação e respeito às leis e à democracia. Ao mesmo tempo, renovou ameaças a opositores e a jornais que o criticarem no exercício do poder.
No Jornal Nacional, o capitão se disse “totalmente favorável à liberdade de imprensa”. Pouco depois, ameaçou usar verbas públicas para punir veículos. A intenção é sufocar financeiramente quem publicar reportagens que o desagradem.
Ele fez ataques à “Folha de S.Paulo”, que revelou a existência de uma funcionária fantasma em seu gabinete. Não explicou, porém, por que demitiu a assessora. Ela foi flagrada vendendo açaí em Angra dos Reis durante o horário de expediente.
Na Band, Bolsonaro disse que não fará nada para “esmagar a oposição”. Na mesma entrevista, esmagou a história ao dizer que o regime militar não foi uma ditadura. Ele também tentou relativizar a censura a jornais e revistas. Disse que a prática foi pontual, embora a presença de censores nas redações tenha sido permanente a partir de 1968.
O presidente eleito afirmou no JN que tratará a Constituição como “nossa Bíblia aqui na terra”. Em seguida, reforçou ameaças a adversários políticos. Questionado sobre a promessa de expurgar “marginais vermelhos”, deixou claro que se dirigia à futura oposição. “Logicamente estava me referindo à cúpula do PT e à cúpula do PSOL”, sentenciou.
Bolsonaro se disse vítima de fake news, mas voltou a espalhar notícias falsas que usou na campanha. Ele acusou o candidato derrotado Fernando Haddad de ter produzido um “kit gay” que atentaria contra “a inocência das crianças”. O site Fato ou Fake esclareceu que o material era dirigido a educadores, não a alunos, e nem chegou a ser distribuído.
O ministro Carlos Horbach, do TSE, proibiu o PSL de explorar a história no horário eleitoral. Ele afirmou que a propaganda do presidente eleito “gerava desinformação”, com “prejuízo ao debate público”.
Carlos Pereira: A democracia brasileira corre riscos com Bolsonaro?
O Brasil tem sido capaz de eleger governos de forma livre, competitiva e sem fraudes. Partidos perdem eleições e se alternam no poder. As eleições ocorrem com alto grau de incerteza sobre quem será o vencedor. Perdedores se subordinam ao resultado final, e o jogo se repete de forma estável.
As democracias eleitorais possuem salvaguardas institucionais robustas capazes de proteger direitos individuais dos cidadãos? Seriam aptas a restringir potenciais comportamentos oportunistas de governantes que, uma vez eleitos, subvertam as regras do jogo e coloquem em risco a própria democracia?
Não tem sido incomum presidentes fazerem uso exagerado de poderes unilaterais. Usam mecanismos plebiscitários para subverter regras constitucionais e se perpetuar no poder. Exemplos recentes como os de Turquia, Polônia, Filipinas, Hungria, Venezuela, Peru, El Salvador têm levado estudiosos a identificar uma onda de recessão da democracia.
Alguns alertam que, nos dias atuais, democracias não morreriam via golpes, mas via deterioração gradativa das instituições. O novo mecanismo de quebra seria lento, através da eleição de políticos que distorcem de forma insidiosa o sistema representativo.
A eleição de um candidato “pré-moderno”, como Jair Bolsonaro, à Presidência tem gerado preocupações. Afinal de contas, não são poucas as declarações do novo presidente que revelam pouco apreço aos valores democráticos, exaltação a torturadores, apologia do uso de armas e contestações de direitos das minorias.
Tais preocupações fazem sentido? A democracia brasileira está consolidada e imune a comportamentos que a coloquem em risco? Para responder a essas perguntas, impõe-se não apenas saber se seus jogadores se comprometem com princípios democráticos, mas identificar se, de fato, existe uma crença dominante em favor da democracia e antídotos institucionais contra comportamentos iliberais.
O Brasil vem passando por transformações estruturais notáveis a partir da Constituição de 1988. O presidencialismo e o sistema eleitoral proporcional com lista aberta para o Legislativo foi preservado. Diante dos potenciais riscos de governabilidade, o constituinte delegou um conjunto de poderes constitucionais e orçamentários para que o chefe do Executivo tivesse condições de governar em ambiente multipartidário através de coalizões pós-eleitorais.
Ao antecipar que um presidente muito poderoso dificilmente seria controlado de forma efetiva pelo Legislativo, o constituinte também delegou uma série de poderes a instituições “externas” à política capazes de fiscalizar o chefe do Executivo. Um arcabouço vigoroso e multifacetado de instituições de freios e contrapesos foi criado e/ou fortalecido ao longo desses 30 anos. Tem-se um Judiciário e um Ministério Público independentes e profissionalizados. Tribunais de Contas ativos. Polícia Federal atuante contra a corrupção. Imprensa livre. Em outras palavras, a combinação de cachorro grande com coleira forte gera equilíbrio.
Embora o ativismo das instituições de controle não venha se dando de maneira linear, seus múltiplos pontos de veto têm servido como escudo protetor contra os comportamentos desviantes. Não muito tempo atrás, a grande maioria dos brasileiros acreditava que as elites políticas, burocráticas e empresariais sempre encontrariam maneiras de escapar de seus malfeitos. Entretanto, desde o julgamento do mensalão, vimos instituições de controle saírem do controle dos políticos.
Nada disso é excluir que um presidente eleito possa ter intenções iliberais — a questão é que, no Brasil de hoje, querer isso não é sinônimo de poder fazer isso. Presumir que a eleição de candidatos conservadores e/ou pouco comprometidos com os valores democráticos traz riscos à democracia é o mesmo que ignorar os constrangimentos gerados por uma crença democrática dominante na sociedade e as restrições que as instituições de controle exercem no comportamento dos próprios atores políticos. No mínimo, é não perceber que o Brasil não é mais o mesmo.
Míriam Leitão: Como acabar com o vermelho
Déficit este ano deve ser R$ 40 bilhões menor, ainda assim, não será fácil para o próximo governo acabar com o vermelho nas contas públicas
O governo Jair Bolsonaro vai assumir tendo que enfrentar um vermelho forte nas contas públicas, o ajuste que precisa ser feito é de quatro pontos do PIB ou R $300 bilhões. O espaço para corte de gastos existe, mas é pequeno. Haverá uma boa notícia, de certa forma, a atual administração deve terminar o ano comum déficit de R $120 bilhões, que é R $40 bilhões menor do que está previsto no Orçamento. Se a nova equipe quiser dar um sinal bom e realista poderias e comprometerem levar para R $100 bilhões. Mas o programa prometeu acabar como vermelho em um ano. Isso é mais difícil.
A análise detalhada das armas para vencer o vermelho, que se espalhou nas contas públicas a partir de 2014, mostra um caminho penoso. Nada mudará de cor apenas porque o governo será outro.
O economista Paulo Guedes falou durante a campanha que havia mais dinheiro do que se imagina em alguns lugares e deu exemplos.
Um deles é a privatização, mas agora as empresas que poderiam dar bons ganhos saíram da lista. O Orçamento do ano que vem prevê R$ 12 bilhões de receita com a venda das ações da Eletrobras, mas até isso o presidente eleito Jair Bolsonaro já disse que não fará. Bolsonaro fará o oposto do que quer: aumentará o vermelho, que já é bem tinto. Assim, se não vender a estatal, terá que cortar em outras despesas bem no começo do ano.
Outra ideia que o economista Paulo Guedes chegou a mencionar como arma contra o vermelho não vai funcionar: a devolução de parte do dinheiro que foi transferido para o BNDES. A devolução está sendo feita, isso é bom e uma parte virá no ano que vem. O problema é que o dinheiro só pode ser usado para abatimento da dívida. Isso ajuda indiretamente, e tem que ser mesmo a meta, mas não é arma para reduzir o vermelho no Orçamento.
Há uma grande expectativa em torno do leilão do excedente da cessão onerosa. Um mega leilão de 9 bilhões de barris. Coisa grande mesmo, que pode arrecadar R$ 100 bilhões. Porém —e os recém-chegados vão logo descobrir que há muitos poréns na luta contra os vermelhos — o TCU pode decidir que o leilão não seja feito na forma de concessão. O TCU tem entendido que qualquer área próxima de um campo que já foi licitado pelo regime de partilha tem que ser pelo mesmo regime. Pode parecer meio extraterreno esse argumento, mas foi assim no campo de Saturno. Sendo por partilha, reduz muito o ganho inicial. Qualquer que seja o regime, esse tipo de receita, extraordinária, na melhor das hipóteses vence o vermelho temporariamente. Para realmente atacar o vermelho será preciso fazer reformas mais permanentes.
O presidente eleito, Jair Bolsonaro, disse ontem, nas suas diversas entrevistas, que tentará aprovar este ano a reforma da Previdência. Mas em parte. Não disse qual. O futuro chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, é contra quase todas as partes da atual reforma. De qualquer maneira, se fosse aprovada este ano na Câmara teria que ir ao Senado. E se tudo for aprovado terá pouco ganho de curto prazo. Mas, de fato, a reforma da Previdência é uma grande arma contra o vermelho de longo prazo.
Outra ideia que foi pensada no QG do novo presidente é a de reduzir o abono salarial para os que ganham um salário mínimo. Isso pode reduzir o gasto em R$ 20 bilhões por ano, mas se for aprovado no ano que vem só valerá em 2020 porque o que é pago num ano é o devido do ano anterior. Ou seja, o de 2019 já está garantido.
E cortar despesas pura e simples? Tesoura afiada nos gastos? Bom, o total do que o governo pode mexer é um percentual cada vez menor, como se sabe. O resto é despesa obrigatória. Tem uma ideia que fez muito sucesso na campanha eleitoral em todos os programas: acabar, ou diminuir, as renúncias tributárias. É difícil e dá muita dor de cabeça. Temer tentou acabar com o subsídio ao IPI de xarope de refrigerantes na Zona Franca de Manaus, que custa R$ 1,6 bilhão. Cortou e teve que recuar. Vai cair, mas mais devagar. O maior custo nessa lista é o Simples. Bolsonaro comprará essa briga?
Acabar com o vermelho —das contas públicas —é importante e beneficiaria o país. Mas é preciso um plano inteligente, uma estratégia de longo prazo, e operações táticas para desarmar as bombas fiscais que vão sendo armadas pelo fogo amigo no Congresso.