Bolsonaro

El País: Onyx Lorenzoni, de escanteado no DEM a novo todo poderoso de Brasília

Futuro ministro da Casa Civil de Bolsonaro começa a despachar transição e recebe romaria no gabinete. "É um novo modelo e, se isso vai dar certo, só o tempo vai dizer", diz o senador Ciro Nogueira

Por Ricardo Della Coletta, do El País

Tudo indicava que Onyx Lorenzoni (Porto Alegre, 1954) seria escolhido o líder do Democratas na Câmara dos Deputados para o ano de 2015. Havia uma regra informal de rodízio entre os líderes e o gaúcho, com a experiência de quem então iniciava o seu quarto mandato consecutivo, considerava que tinha o posto garantido para si. Acabou derrotado depois de uma articulação de bastidores do então líder Mendonça Filho, que conseguiu vencer o correligionário e ser reeleito com 16 dos 21 votos. Foi uma traição para Lorenzoni, que à época acusou seu colega de quebrar o acordo de revezamento.

Começava ali um distanciamento entre o deputado e o seu partido que o deixaria escanteado na Câmara pelo restante do seu mandato. Mas isso não quer dizer que ele tenha ficado imóvel nesse tempo. Pelo contrário. Lorenzoni foi um dos primeiros a perceber a força das redes sociais como canal de comunicação direto com o eleitor e diagnosticou que os protestos de rua pelo impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff pavimentavam o caminho para uma candidatura ao Palácio do Planalto de direita, sintonizada com esses movimentos. Isso fez com que, a partir de 2017, ele entrasse de cabeça no projeto presidencial de outro deputado que literalmente "falava sozinho" pelos corredores do Congresso Nacional. Era Jair Bolsonaro, eleito presidente da República com 55% dos votos válidos nas eleições de 28 de outubro. Terminado o pleito, Lorenzoni foi indicado como o futuro titular da Casa Civil, o órgão responsável por coordenar o trabalho dos demais ministérios e que também deve acumular as negociações do Executivo com o Legislativos. Os tempos de isolamento ficaram para trás: não há hoje em Brasília um deputado tão procurado quanto ele.

Lorenzoni viajou à capital federal nesta semana para se encontrar com o atual ministro da Casa Civil, Eliseu Padilha, e dar início à transição de governo. Na quinta-feira, passou a manhã no seu pequeno gabinete no oitavo andar de um dos anexos da Câmara, onde recebeu uma verdadeira romaria de parlamentares. Passaram por ali a presidenta da Frente Parlamentar Agropecuária, Tereza Cristina, e o senador eleito Luis Carlos Heinze, ambos expoentes da bancada ruralista. Também foram cumprimentar o novo todo poderoso da Esplanada os deputados Leonardo Quintão (MDB), Osmar Serraglio (PP) e Danilo Forte (PSDB), que não conseguiram se reeleger. Ao saírem, tanto Heinze quanto Forte disseram que esperam que seus partidos apoiem o governo Bolsonaro no Congresso.

Médico veterinário de formação, Lorenzoni será um dos três superministros de Bolsonaro —os outros dois são Paulo Guedes, o guru da área econômica, e Sergio Moro, da turbinada pasta da Justiça. Entre as atribuições do deputado, está a montagem de uma base parlamentar para o capitão reformado do Exército no Congresso Nacional, principalmente na Câmara. O presidente eleito sinalizou que pretende buscar esse apoio nas frentes temáticas, principalmente na que fincou conhecida como bancada BBB (Bíblia, boi e bala), numa sinalização aos seus eleitores de que pretende abandonar o característico toma lá, dá cá que marca o modelo de presidencialismo de coalizão no Brasil.

É aí que começam os problemas que Lorenzoni terá de contornar. Embora o Congresso Nacional que emergiu das urnas tenha um perfil eminentemente conservador, são poucos os que acreditam que o novo governante do País conseguirá construi uma base de sustentação no Legislativo apenas pelas tratativas diretas com as frentes temáticas. A bancada BBB pode ter números superlativos, mas, ao contrário dos partidos políticos, não tem como punir eventuais dissidentes.

"Partidariamente não tem tido nenhum tipo de discussão porque parece que ele [Bolsonaro] não quer fazer escolhas via partidos. É um novo modelo e, se isso vai dar certo, só o tempo vai dizer", afirma o senador Ciro Nogueira, presidente nacional do PP, que elegeu a terceira maior bancada na Câmara. "Não é fácil, porque quem conduz a bancada é a liderança partidária. Acho muito difícil ele conseguir no varejo um apoio para temas polêmicos, em especial a Previdência."

Com 16 anos nas costas só na Câmara dos Deputados, Lorenzoni sabe que dificilmente conseguirá escapar dos acordos com as cúpulas dos partidos políticos, que costumam envolver o loteamento da máquina pública em troca da ajuda dos parlamentares para aprovar projetos de interesse do Palácio do Planalto. Um dirigente de uma legenda que deve apoiar Bolsonaro avaliou ao EL PAÍS que, embora a redução do número de ministérios —fala-se em 15 pastas na Esplanada, frente às 29 que existem hoje— possa passar a imagem de uma administração menos política, as demandas dos deputados por espaços nos cargos do chamado segundo escalão devem continuar as mesmas. "Acho que vai compor igual aos outros governos. Pode ser que o partido não fique com o ministério, mas vai contemplar os parlamentares [em estatais e órgãos reguladores]. Tudo igual", diz.

A força que o capitão reformado do Exército terá no Parlamento também passa pelas eleições, em fevereiro, das presidências da Câmara e do Senado. Na primeira, a disputa promete reacender um velho embate já vivido pelo deputado gaúcho. No início dos anos Michel Temer, o deputado gaúcho e o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, estiveram em lados opostos no debate sobre a adesão ou não do Democratas ao governo do emedebista. Maia, que defendia a entrada do DEM no governo Temer, saiu vitorioso e está no seu segundo mandato à frente da Casa, posto que espera manter. Lorenzoni não esconde de seus interlocutores que, no que depender dele, Maia não terá êxito.

Ainda não está claro se os antigos ressentimentos desencadearão numa disputa aberta entre o novo chefe da Casa Civil e o atual presidente da Câmara. O próprio Bolsonaro sinalizou que, em nome da governabilidade, quer adotar o caminho que lhe garanta uma posição mais confortável na Casa. Disse, por exemplo, que o seu partido, o PSL, não deve pleitear o posto.

Numa transição com vários superministros, também já houve atritos entre Lorenzoni e o futuro titular da Economia, Paulo Guedes. O parlamentar havia afirmado que o projeto de reforma da Previdência de Temer não deveria ser aproveitado, na contramão do que dissera Guedes. O guru econômico de Bolsonaro desautorizou o aliado. "É um político falando de economia. É a mesma coisa do que eu sair falando de política. Não dá certo, né?", disparou Guedes. Nesta quinta, Lorenzoni tentou minimizar a primeira canelada entre membros do governo eleito. "Está tudo na paz do senhor. Paulo Guedes é meu ídolo", disse ao jornal O Estado de S. Paulo.

Caixa dois
Entre a sua derrota para a liderança do Democratas em 2015 e a meteórica ascensão de Bolsonaro, Lorenzoni tinha visibilidade em Brasília principalmente por ter sido o relator das Dez medidas contra a corrupção, pacote de medidas encampado pelo Ministério Público para combater malfeitos no setor público. O deputado considerou que o seu relatório foi "desfigurado" por seus colegas na votação final da proposta na Câmara. Essas declarações deixaram-no ainda mais escanteado na Casa.

Sua atuação como paladino contra os crimes de colarinho branco não impediram que ele mesmo se visse envolvido em casos de corrupção. Sua reação às acusações, no entanto, foi incomum: após uma delação, Lorenzoni admitiu ter recebido 100.000 reais do conglomerado JBS como caixa dois para a sua campanha. Pediu desculpas aos eleitores e se colocou à disposição para ser investigado - o caso visto como crime grave por seu futuro colega de gabinete, Moro, acabou arquivado no Supremo Tribunal Federal. Ao menos os eleitores gaúchos parecem ter aceitado o pedido de desculpas: Lorenzoni foi o segundo mais votado do Estado, com 183.518 eleitores.


Bernardo Mello Franco: Moro será colega de clientes em potencial

Moro descumpriu a promessa de não entrar na política. Agora será colega de figuras com o mesmo perfil da sua clientela em Curitiba

Ao virar ministro de Jair Bolsonaro, Sergio Moro contraria suas próprias palavras como chefe da Lava-Jato. O juiz repetiu diversas vezes, nos últimos anos, que “jamais” aceitaria entrar na política.

“Não existe jamais esse risco”, ele garantiu ao jornal O Estado de S. Paulo, em 2016. “Não seria apropriado da minha parte postular qualquer espécie de cargo político, porque isso poderia, vamos dizer assim, colocar em dúvida a integridade do trabalho que eu fiz até o presente momento”, reforçou à revista Veja, em 2017.

O cargo de ministro da Justiça é político por natureza. Por lá passaram raposas como Nelson Jobim e Renan Calheiros. A pasta também projetou futuros presidentes, como Epitácio Pessoa e Tancredo Neves. Na equipe de Bolsonaro, Moro já é cotado como opção para 2022.

Fãs incondicionais do juiz aplaudiram a mudança de emprego. Não foi uma reação unânime. José Carlos Dias, ministro de FH, considerou a troca “lamentável”. “Mostra um partidarismo, uma posição política que é absolutamente contrária à índole do magistrado”, disse.

Carlos Ayres Britto, ex-presidente do STF, foi além. “Esse tipo de mudança de camisa, tão rapidamente, projeta no inconsciente coletivo (...) uma imagem pouco favorável dos membros do Poder Judiciário”, afirmou.

Na nova função, Moro será colega de políticos com o mesmo perfil de sua clientela em Curitiba. O juiz já disse que a prática de caixa dois é pior que a corrupção. Agora se sentará ao lado de Onyx Lorenzoni, que admitiu ter recebido R$ 100 mil “por fora” da JBS. Ontem o futuro chefe da Casa Civil estava eufórico com o “sim” do juiz.

O presidente eleito também festejou, e com razão. Símbolo dos feitos da Lava-Jato, Moro emprestará prestígio e popularidade ao novo chefe. Num acesso de sinceridade, Bolsonaro reconheceu que a atuação do juiz o “ajudou a crescer politicamente”. Impossível discordar.

A médio prazo, a escolha embute alguns riscos. O que acontecerá se a PF prender aliados importantes do novo governo? O ex-prefeito Cesar Maia lembra outro detalhe que pode virar problema. Ao convidar Moro, o capitão ignorou uma máxima de políticos mais experientes: “Nunca nomeie quem você não pode demitir”.


Helio Gurovitz: Bolsonaro, a imprensa e o ardil do populismo

Bolsonaro, a imprensa e o ardil do populismo Jair Bolsonaro ainda é uma esfinge. A campanha eleitoral, ditada pela polarização e pelo discurso raivoso, não permitiu que suas propostas fossem analisadas em detalhes, nem submetidas a debates com visões antagônicas. Seu programa de governo começa a ganhar forma agora, ditado pelas circunstâncias das articulações políticas. Sua personalidade será decisiva para determinar o êxito do governo.

Nas primeiras declarações e movimentos depois da vitória, ele procurou se mostrar sereno e conciliador, em contraste com a rebeldia, a agressividade e as ofensas que marcaram a carreira de deputado e a campanha. Tentar vislumbrar a realidade que existe atrás do “mito” Bolsonaro continua a ser um desafio, diante da falta de conhecimento de qualidade sobre sua ascensão. Quem estiver interessado em conhecer em profundidade o novo presidente terá enorme dificuldade.

Com exceção de um livro publicado pelo próprio filho Flávio no ano 2000, a única biografia disponível de Bolsonaro saiu neste ano. Publicada pelo jornalista Clóvis Saint-Clair diante da oportunidade oferecida pela corrida eleitoral, tem os defeitos inerentes a um livro produzido às pressas.

Sem acesso a Bolsonaro ou testemunhos de sua trajetória, o texto se resume a reunir o material já publicado sobre as principais polêmicas da carreira dele até o início da campanha (sem, portanto, as últimas decisões nos tribunais, nem o atentado de que foi vítima). O estilo é pobre, apoiado em chavões (como “nem tudo são flores”), metáforas gastas (Cavalão, apelido de Bolsonaro no Exército, dá azo a imagens hípico-equinas recorrentes, como “coice”, “páreo” ou “pule de dez”) e falhas de revisão (como “extratos (sic) sociais”). Mas o livro tem o mérito de reproduzir com fidelidade as declarações de Bolsonaro, sem omitir o contexto.

Está tudo lá na íntegra. Entrevistas e pronunciamentos com loas à ditadura e à tortura, ofensas a gays, mulheres e minorias, até os embates com parlamentares, como Maria do Rosário ou Jean Willys, que lhe renderam a censura dos pares no Congresso e processos na Justiça. Saint-Clair obviamente se opõe a Bolsonaro. Sua posição política fica clara quando chama Dilma Rousseff de “presidenta”. Mas ele não deixa que isso interfira na forma como lida com a informação. Seu trabalho jornalístico ao reproduzir as polêmicas é honesto e preciso. Só por isso, seu livro tem valor como referência.

O maior valor, contudo, está em ilustrar o principal desafio diante dos jornalistas ao cobrir o novo governo. Saint-Clair mostra que Bolsonaro é, em suas próprias palavras, “mais berro que argumento”. O presidente eleito segue a cartilha de populistas como Donald Trump, Hugo Chávez ou o próprio Luiz Inácio Lula da Silva ao declarar guerra ao jornalismo profissional e eleger veículos da imprensa como inimigos políticos.

Profere bravatas sob medida para provocar sensibilidades “politicamente corretas” e despertar controvérsias e a reação irada nas páginas dos grandes jornais. Só que, ao morder a isca dos “berros”, a imprensa apenas contribui para alimentar a retórica populista e confirmar a opinião do séquito de fiéis que Bolsonaro conduz com destreza pelas redes sociais. Não é coincidência que seu primeiro pronunciamento depois de eleito tenha sido numa delas, nem que os grupos de mensagens por celular tenham sido tão relevantes em sua campanha.

Seria demais ignorar declarações escandalosas ou ofensivas. Mas há uma lição a aprender com os erros da imprensa americana na cobertura do governo Trump, ao transformar todo tuíte em manchete.

O que define um presidente é menos o que diz e mais o que faz.

Bolsonaro está apoiado numa rede articulada de ideólogos, pensadores e políticos do mundo todo. Representa aspirações legítimas da maioria dos brasileiros na economia, na segurança e nos costumes. É para elas que os jornalistas deveriam voltar os olhos, em vez de cair no ardil óbvio dos arroubos ofensivos e dos ataques à “mídia”. Entender como e por que ele conseguiu captá-las tão bem é a missão que cabe ao jornalismo — e a novas biografias.


Ricardo Noblat: Moro, de servidor a serviçal

Passo em falso

Dê-se de barato, quando nada só para argumentar, que havia prova de sobra no processo do tríplex do Guarujá para condenar o ex-presidente Lula como o fez o juiz Sérgio Moro. Não é o que dizem centenas de juristas, mas tudo bem. É jogo jogado. Sobre o sítio de Atibaia, caso a ser julgado em breve, até petistas coroados admitem que o processo esteja estufado de provas e que Lula não escapará a outra condenação.

Mesmo assim, convenhamos: ao aceitar ser ministro da Justiça do futuro governo de Jair Bolsonaro, Moro ofereceu de graça aos seus detratores farta munição para que o ataquem, e também à Lava Jato. E para que lancem dúvidas sobre sua isenção. O juiz que removeu Lula do caminho de Bolsonaro acolhe feliz da vida o convite para servir àquele que mais se beneficiou de suas sentenças. Esquisito, não? Para dizer o mínimo.

Moro havia jurado mais de uma vez nos últimos anos que jamais entraria para a política e que sua vocação era de magistrado. Deu o dito pelo não dito, mas até aí problema dele. Cada um emporcalha ou lustra ao seu gosto a própria imagem. Acontece que Moro de há muito deixara de ser apenas um juiz destemido que teve a coragem de bater de frente com a corrupção. Por seus méritos, fora alçado à condição de uma ideia.

A saber: ideia de que a força de vontade, se amparada em bons propósitos, pode vencer o mal; ideia de que a justiça, por mais que subordinada a interesses poderosos, preserva a capacidade de se impor em momentos exemplares; por fim, ideia de que apesar da vergonha e da frustração com seus líderes, o povo conserva a força de varrê-los e de promover mudanças na hora que quiser.

É cedo para concluir que tais ideias foram ou irão pelo ralo. Mas não é cedo para supor que elas possam ter sofrido um forte abalo. Um dos atributos da magistratura é sua independência. Outra, o apartidarismo. O juiz que se descobre mais afinado com a política do que com a toga tem o direito de trocar de lado. Mas para que faça isso sem ferir a sensibilidade coletiva há que se dar algum tempo. Moro não se deu, e nem a ninguém.

O juiz que outro dia deu as costas no aeroporto de Brasília ao capitão faminto por notoriedade que lhe batia continência foi o mesmo que voou apressado ao encontro do capitão eleito presidente para lhe bater continência como um soldado raso diante de um superior. Conceda-se que não o fez encantado com o posto que lhe ocupará por dois anos, mas sim com a vaga de ministro a ser aberta no Supremo Tribunal Federal.

E daí? Só jogador de futebol muda de camisa da noite para o dia à primeira proposta de subir na carreira. A Lava Jato, por artes e manhas do próprio Moro, ganhou uma dimensão histórica que não deveria ter sido maculada por qualquer ação do seu principal responsável. Ela vai muito além da roubalheira que descobriu, da dinheirama que recuperou e dos criminosos de alto quilate que puniu recolhendo-os ao xilindró.

Gerações de juízes em formação, e as futuras, ouvirão falar muito do momento em que um grupo de servidores da lei ousou escancarar os vícios de um sistema político em acelerado processo de degradação. Infelizmente, também ouvirão falar do momento em que o esforço tão admirável de passar o país a limpo levou um tranco formidável por conta do ato de um servidor que decidiu se servir e foi promovido a serviçal.


Bruno Boghossian: Contrato político torna Moro sócio do projeto de poder de Bolsonaro

Sergio Moro assinou um contrato político. Ao entrar no primeiro escalão do próximo governo, o juiz da Lava Jato se torna sócio inquestionável de um projeto de poder.

Embora não fosse um jogador inscrito no torneio, o futuro ministro da Justiça reconfigurou o tabuleiro da eleição. Ao longo dos últimos anos, autorizou operações contra caciques políticos, condenou dirigentes partidários e mandou prender o candidato que liderava as pesquisas antes de ir para a cadeia.

É difícil ignorar a influência de Moro sobre o resultado das urnas. O presidente eleito reconhece. "Em função do combate à corrupção, da Operação Lava Jato, as questões do mensalão, entre outros, me ajudou a crescer politicamente falando", disse Jair Bolsonaro, horas depois de confirmar a nomeação do juiz.

Quando aceita um cargo com superpoderes no novo governo, Moro se beneficia diretamente de suas ações. O juiz passa a ser um personagem da arena política e eleitoral que ele mesmo trabalhou para moldar.

Moro tenta pegar um atalho para evitar a repetição do que ocorreu com a Operação Mãos Limpas. Estudiosos do caso italiano dizem que a corrupção sobreviveu porque políticos eleitos na esteira das investigações minaram os mecanismos de combate ao crime. No centro do poder, o juiz quer blindar a Lava Jato.

O preço da migração é alto. Moro agora se confunde com o projeto Bolsonaro e passa a viver na engrenagem central do mecanismo da política. Por um lado, passa a ser citado como nome forte para a sucessão presidencial em 2022 ou 2026. Por outro, estará sujeito a pressões (como todo ministro) e será julgado na história pelos sucessos ou fracassos do governo que vai integrar.

Na mesma entrevista em que disse que jamais entraria na política, em 2016, Moro argumentou que o apoio da opinião pública foi fundamental para a Lava Jato. E emendou: "Mas tudo é passageiro, não é? Tem um velho ditado em latim que diz 'sic transit gloria mundi'. Basicamente, 'a glória mundana é passageira'".


Míriam Leitão: A decisão de Moro divide

Moro não virou político, mas estará em um governo que fez ameaças à democracia e tem em sua base partidos que ele condenou

A ida do juiz Sérgio Moro para o governo Jair Bolsonaro abre inúmeras dúvidas e polêmicas, mas não torna a Lava-Jato uma conspiração contra o PT. Ela tem serviços prestados ao país e atingiu políticos de diversos partidos. Moro, contudo, abriu o flanco para muitas críticas. Ele entra num governo que tem uma agenda que pode representar ameaça a direitos e garantias constitucionais e que governará com alguns dos partidos envolvidos em casos de corrupção.

O PT está dizendo que a ida de Moro é a prova final de que era tudo uma armação para tirar o ex-presidente Lula do rumo do Planalto e levá-lo para uma cela em Curitiba. Mas existem inúmeros fatos que mostram que a Lava-Lato é, e continua sendo, a mais bem sucedida operação anticorrupção do país. Ela condenou 130 pessoas, entre políticos, empresários e operadores, totalizando 1900 anos de prisão. Conseguiu recuperar R$ 12 bilhões. Puniu políticos do PMDB, do PSDB, e levou à prisão parlamentares de partidos que hoje estão indo para a base do governo Bolsonaro, como o PP. Expôs da forma mais explícita jamais vista os esquemas de corrupção dentro das empresas, como se pôde constatar na revelação da existência de um departamento dedicado à corrupção na Odebrecht. Não deixou nenhum pingo de dúvida de que diretores da Petrobras roubavam para si e para os partidos da base nos governos petistas.

O fato de o juiz Sérgio Moro virar ministro da Justiça não significa que ele “entrou na política”, como muita gente está interpretando. O cargo é técnico e pode ser exercido dessa forma ou ser ocupado por um político. Alguém ir para o governo não significa que virou um político. Inúmeras pessoas entram e saem e não viram políticos. O problema que Moro terá é com a agenda de Bolsonaro.

O presidente Bolsonaro, numa entrevista depois de eleito, reclamou de estar tendo que repetir sempre que vai respeitar a Constituição. “Parece que se não falasse isso (que respeitaria a Constituição) não seria um democrata. Você é obrigado a falar. Lamento ser obrigado a fazer isso e dizer que sou um democrata num sistema democrático.” É o caso de se pensar: por que será que perguntam? Porque ele deu sinais inequívocos em sentido contrário, ao fazer a apologia da ditadura, ao ter defendido tantas vezes soluções de força e ao ter seu filho, deputado Eduardo, dizendo que bastaria mandar um cabo e um soldado para fechar o Supremo. Nas primeiras entrevistas que concedeu após a campanha, ele reafirmou temores, como fez com as ameaças à “Folha de S. Paulo”. Moro colocou a carreira e a reputação dele em um governo que terá integrantes que já fizeram ameaça à democracia e um presidente recordista em declarações ofensivas às minorias.

Não foi outra a razão, a não ser esses temores, do tom e dos votos da sessão de quarta-feira do STF, presidida pelo próprio decano, Celso de Mello. Por nove a zero os ministros condenaram a ação policial nas universidades contra manifestações políticas. Um a um, os ministros enumeraram os direitos e garantias individuais, o compromisso com a liberdade de expressão, com a pluralidade de pensamento em ambiente acadêmico, com o respeito à Constituição. A ministra Cármen Lucia, no seu voto, invocou Ulysses Guimarães: “traidor da Constituição é traidor da Pátria”. Foram tão cristalinos os recados que é impossível não entendê-los como aviso prévio ao presidente eleito de que precisa desembarcar de algumas convicções se quiser bem governar.

Na Lava-Jato há também dúvidas sobre a decisão. O procurador Deltan Dallagnol apoia. Ele explicou, em postagem no Facebook, numa avaliação pessoal, que a decisão conseguiria consolidar os avanços, porque o combate à corrupção e ao crime organizado precisaria agora de leis mais favoráveis, como as que foram apresentadas no pacote das 10 Medidas, que ele levou ao presidente.

De fato, a Lava-Jato avançou muito, mas foi barrada em vários lugares. A Força-Tarefa de Curitiba mandou documentos para o Brasil inteiro e só houve avanço no Rio. Há muito trabalho ainda a fazer, mas em outras varas que não necessariamente a 13ª. A dúvida é o que acontecerá quando a Polícia Federal estiver investigando casos de corrupção no governo Bolsonaro? Eles podem acontecer. Moro sempre defendeu a autonomia dos órgãos de controle e da própria Polícia Federal. Espera-se que continue a fazê-lo no cargo de ministro da Justiça.


Merval Pereira: Plano Real contra corrupção

É absurdo achar que Sergio Moro, desde o início, tivesse a ideia de uma carreira política, coisa que negou várias vezes

A nomeação do juiz Sergio Moro para um Ministério da Justiça ampliado, que tratará também da segurança e dos crimes financeiros, foi uma iniciativa meritória do presidente eleito Jair Bolsonaro, além de movimento político certeiro.

As críticas da oposição, especialmente o PT, estão precificadas pelo próprio Moro, que deve ter feito um balanço dos prós e contras e, aceitando, demonstra que considera a possibilidade de montar um esquema coordenado de combate à corrupção uma tarefa acima da que se propunha como juiz.

“Um bem maior” para o país valeria, na sua avaliação, as agruras por que passará, tanto devido aos ataques da oposição, quanto aos problemas que enfrentará no interior do próprio governo, com seu jogo político a que não está habituado.

Trazer o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf ) do Ministério da Fazenda para o superministério da Justiça propiciará a que sejam acompanhados em tempo real os alertas de movimentação financeira, sinais exteriores de riqueza que passam pelos órgãos fiscalizadores que não têm como objetivo prioritário o combate à lavagem de dinheiro ou o combate à corrupção.

Em vez de um órgão fiscalizador burocrático do ponto de vista econômico, será um vigilante das transações financeiras que possam indicar crimes. Esse será um papel importante no combate ao crime organizado, pois assim o Ministério da Justiça poderá estabelecer políticas para cortar o suprimento de dinheiro que o financia.

Durante a Operação Lava-Jato, e mesmo antes, quando atuou como assistente da ministra Rosa Weber no julgamento do mensalão, o juiz Moro constatou que o Coaf registrou operações atípicas, mas nada aconteceu de concreto. Moro já havia dito que o país precisava de um “Plano Real contra a corrupção”, e o governo Bolsonaro está lhe dando as condições para estabelecer a ligação entre os diversos órgãos de fiscalização, inclusive o controle das fronteiras, por onde entram armas e contrabando.

O PT vai tentar atacar a nomeação do juiz Moro para o Ministério da Justiça com a alegação de que é prova da tendência contrária a Lula no julgamento. Mas, quando o ex-presidente foi condenado, nem se sabia se Bolsonaro seria candidato. E, naquele momento, Lula era o favorito à Presidência, só ficando inviabilizado pela Lei da Ficha Limpa, com o que Moro não tem nada a ver.

Se a condenação de Lula fosse baseada em erros jurídicos ou provas inválidas, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4) teria anulado a sentença de Moro. Ao contrário, os juízes do TRF-4 aumentaram a pena do ex-presidente, condenação em segunda instância que o transformou em ficha-suja.

É absurdo achar que Moro, desde o início, tivesse a ideia de uma carreira política, coisa que negou várias vezes. Seria condenável se tivesse abandonado a Justiça para se candidatar ao Congresso ou ao governo, de algum estado ou mesmo do país, como chegou a ser cogitado por vários partidos políticos. Embora existam exemplos no meio político, como o governador do Maranhão, Flavio Dino, do PC doB, que largou o Judiciário para entrar na política partidária.

É muito bom que ele tenha aceitado o cargo num governo que tem uma agenda anticorrupção e está dando a ele todos os instrumentos para montar um esquema anticrime organizado muito necessário, pois o país chegou a um limite de corrupção inaceitável.

Moro disse que o Brasil precisava de um Plano Real contra a corrupção e, aparentemente, o presidente eleito está dando a ele condições de montar grande esquema para estimular as investigações e a Polícia Federal. As medidas contra a corrupção apresentadas pela Transparência Internacional, FGV e procuradores de Curitiba têm mais chance de serem aprovadas, porque haverá um ministro poderoso empenhado nisso.

Moro poderá até mesmo ajudar o governo a superar certas questões polêmicas, como a classificação de terrorismo para os atos do MST ou do MTST, ou a permissão para matar que se pretende dar à polícia, especialmente no Rio, onde o futuro governador Wilson Witzel anuncia, com o apoio do presidente eleito, que treinará atiradores de elite para atacar bandidos que andem de fuzil. São medidas que, provavelmente, serão barradas na Justiça, e Moro poderá aconselhar a melhor maneira legal de fazer o combate.


Vera Magalhães: Ganha Bolsonaro, perde a Lava Jato

O aceite de Sérgio Moro ao convite para assumir um super Ministério da Justiça é um golaço para Jair Bolsonaro, mas pode significar o início do fim da Operação Lava Jato —além de representar um risco talvez desnecessário para a imagem que o juiz construiu nos últimos anos.

A decisão de Bolsonaro de turbinar a Justiça com a volta das atribuições relativas à segurança pública e todos os órgãos que atuam no combate à corrupção e a crimes financeiros deu a Moro uma justificativa forte para aceitar o convite.

Mas não anula o fato de que o coordenador da Lava Jato está se associando politicamente a um político que acaba de ser eleito, entre outras razões, como substrato da operação que ele comandou. Isso vai fortalecer a narrativa falsa que o PT vem sustentando nos últimos anos: a de que Moro promoveu uma cruzada política contra Lula e os demais caciques do partido.

Falsa porque o arcabouço reunido pela Lava Jato, composto de provas, dinheiro devolvido, delações premiadas, depoimentos, rastreamento de dinheiro desviado pelo mundo, depoimentos, imóveis e outros bens arrestados e a recuperação da Petrobras depois de ter sido debulhada pelo conluio de políticos e empresários não se resume a Moro nem é demolível na base do gogó.

De todo modo, se torna imperioso que Moro se afaste de suas atribuições imediatamente. Isso leva uma nuvem de incerteza sobre qual será a dinâmica da operação de agora em diante, sendo que ainda há processos importantes em andamento —como os relativos ao sítio de Atibaia e dos imoveis no Ipiranga e em São Bernardo que a Odebrecht teria comprado como propina disfarçada para Lula.

Ao partir para uma nova empreitada política, Moro deixa, aos 45 anos, uma carreira brilhante e ainda iniciante de juiz. Sai da magistratura ainda na primeira instância, a despeito dos feitos que já coleciona. Parece óbvio que teria mais tempo, mais independência e mais meios de combater a corrupção mantendo suas funções jurisdicionais, ascendendo na carreira sem ser subordinado a um político do que num posto que, por mais emperiquitado que esteja, no fundo é apenas uma escala para o Supremo Tribunal Federal.

Com as credenciais que tem, Moro não precisava desse pit stop para ascender à mais alta corte do País. Tem notório saber jurídico, demonstrou arrojo na aplicação da lei e certamente pode contribuir para arejar o Supremo. Bastaria esperar um ano. Mas Moro já demonstrou muitas vezes que tem pressa.

Do ponto de vista de Bolsonaro, a escolha engrandece o ministério que ele vai compondo. A presença de Moro e de Paulo Guedes permitirá ao presidente eleito dizer que cumpriu sua disposição anunciada de se cercar de nomes de prestígio em duas das principais áreas do governo.

Para a sociedade, a presença de Moro no primeiro escalão funciona como um sinal de que o combate à corrupção será uma prioridade. E, espera-se, que o sério juiz será uma garantia a mais, além da palavra já empenhada por Bolsonaro, de que o cumprimento à risca da Constituição dará lugar de fato à retórica do passado.


Pedro Doria: Uma eleição disruptiva

Jair Bolsonaro se elegeu presidente usando o WhatsApp e, ao que tudo indica, governará usando WhatsApp e outras redes. É o método Donald Trump de governo.

Nos EUA, Trump tem, cativos, algo entre 15 e 20% do eleitorado. Estes representam um percentual muito relevante dos eleitores do Partido Republicano. A cada vez que Trump lança um tema ou bate em alguém via Twitter, seus eleitores reagem em massa e deputados e senadores republicanos se sentem imediatamente pressionados. Nunca um populista teve uma ferramenta assim nas mãos, que lhe permite provocar a massa de forma tão imediata, conseguindo em troca uma reação assim instantânea.

Esta é uma das armadilhas que o digital prega na democracia. Quando as regras do sistema democrático atual foram imaginadas, ainda no século 18, uma ideia destas não estava no cardápio. Mas o resultado é que o chefe do Executivo, quando capaz de mover massas, tem um poder único de pressão sobre o Legislativo. É uma forma de, preservando todas as regras democráticas, driblar a democracia. A independência entre os Poderes se vê fragilizada.

Esta eleição de 2018 é disruptiva em muitos sentidos. Ouvi a expressão, tão utilizada no Vale do Silício, do cientista político Sergio Abranches em uma conversa na semana passada. Quando aplicada à indústria, disrupção é o processo pelo qual uma inovação vira o modelo de negócios de cabeça para baixo, tinge de vermelho as planilhas, provoca demissões em massa e, no fim, reinventa por completo a maneira como a coisa era feita.

A eleição que alçou Bolsonaro ao poder não é disruptiva apenas porque mudou a maneira de eleger um político, tornando o horário eleitoral inútil, e o tamanho do partido idem. Ela é disruptiva por seu o primeiro sinal claro de que a população brasileira está sentindo na pele os efeitos da transformação digital da vida.

O desemprego que já vivemos, aqui no Brasil, não é apenas fruto da inépcia econômica do governo Dilma Rousseff, ou da incapacidade de Michel Temer reequilibrar o jogo. Também vem do fato de que o digital automatiza, facilita, gera concorrência onde não havia e, noutros tantos setores, simplesmente exige menos mão de obra. Da relação entre táxis e Ubers à crise pela qual nós, jornalistas, passamos, a mudança de base tecnológica vai alternando o jeito que as coisas funcionavam há décadas.

Também está relacionado ao avanço tecnológico o rombo previdenciário que o Brasil e tantos outros países enfrentam. A população aumenta porque vivemos mais, e vivemos mais porque a medicina dá saltos a cada ano. Mas o resultado é também que o Estado perde a capacidade de proteger como já pôde um dia. Este é um processo com múltiplos resultados. Um é o congelamento de Parlamentos que não conseguem tomar a media impopular, porém necessária, de alterar as regras pelas quais pagamos aposentadorias e pensões. Outra é que, sem a teia de proteção, a cultura da sociedade se adapta. “Já faz parte desta transformação”, diz Sérgio, “este rumo da sociedade global a um novo tipo de individualismo. O indivíduo se vê por conta própria porque o Estado não protege mais.”

De certa forma, Bolsonaro foi um candidato contraditório. Afinal, seu discurso foi simultaneamente liberal e antiliberal. É um autoritário que promete força no comando do Estado. Nada menos liberal. Assim como promete desburocratização, facilidades para empreendedores, um Estado mais enxuto e abertura para o comércio exterior. Nada mais liberal.

Contraditório, porém a cara do tempo. Para uma população perdida, realmente desorientada perante as mudanças do mundo, nada como um candidato que representa o pai rigoroso que porá tudo em ordem. Tudo enquanto fala a língua do momento, em favor do empreendedorismo e via WhatsApp.

 


Fernando Gabeira: Sonhos e realidade

Associação entre o PT e as minorias trouxe para elas a desconfiança do homem comum

A vitória de Bolsonaro não é idêntica à de Trump. Mas antes e depois das duas eleições há pontos de contato. Não servem para explicar tudo, mas ajudam.

Um dos livros em que encontro as semelhanças é de Mark Lilla, uma crítica aos liberais com um subtítulo interessante: Depois das políticas de identidade. A julgar pelo livro de Lilla (The Once and Future Liberal: After Identity Politics), a vitória de Trump suscitou o mesmo movimento nos EUA e no Brasil: resistência. Lilla põe essa palavra entre aspas, pois significa uma oposição a tudo o que Trump representa, sem ainda uma visão clara de futuro.

A vitória de uma figura controvertida acabou despertando nos EUA uma grande solidariedade entre os derrotados, campanhas, marchas, abaixo-assinados. Mas ainda são raras aqui, no Brasil, onde Bolsonaro acaba de vencer, as visões críticas do período que abriu o caminho para que ele triunfasse.

Lilla fala no descaminho dos democratas por se terem fixado nas políticas identitárias: mulheres, homossexuais, indígenas e negros. Não que seja contra essas lutas.

Sua análise da campanha republicana mostra que na maior parte do tempo ela se fixava em temas nacionais, que interessam a todos. O exame do site democrata, no entanto, revela grande peso às lutas fragmentárias, que interessam a setores bem específicos do eleitorado.

Lilla considera um erro a fixação nas lutas identitárias porque elas afastam um pouco as pessoas dos temas mais amplos, que envolvem o bem comum. As pessoas mergulhadas nessas lutas têm tendência menor a defender temas nacionais, sair para uma conversa nas ruas sobre o que ele chama o bem comum.

Coincidência ou não, eu já tinha manifestado em artigos a mesma reserva quanto ao alcance das lutas identitárias na eleição brasileira. Também na minha crítica ressaltava a ausência da ênfase no bem comum, só que nos meus textos não usava essa expressão, mas a adesão a um projeto nacional.

Num artigo afirmava que as lutas que ainda chamam das minorias tendem a criar a necessária solidariedade de grupo, regras e objetivos próprios. Mas ela se dá em oposição a uma sociedade que ainda não reconhece esses direitos.

Torna-se muito difícil conversar com o homem comum, encontrar um assunto que mobilize todos, e não apenas alguns setores da sociedade. No caso brasileiro, os três grandes temas nacionais em jogo passaram um pouco ao largo das forças de esquerda. Um deles era a corrupção. A esquerda o subestima de modo geral e o escamoteia especificamente quando o PT é o maior acusado.

Um segundo grande tema nacional foi a segurança. A visão clássica e tradicional da esquerda é condicioná-la à melhoria das condições econômicas, da educação, da renda. Como a expectativa é de respostas em curto prazo, o discurso cai no vazio e é facilmente ironizado.

Um terceiro tema, mais intelectualizado, foi a discussão sobre o tamanho e o papel do Estado na economia. Também aí a perspectiva privatizante pareceu mais atraente. E não só pela teoria. As manifestações de 2013, em parte, revelaram a precariedade dos serviços públicos.

A corrupção também passou a ser uma chave para explicar o fracasso do governo. Tenho a impressão de que é a conversa na rua quando não se tem nada a dizer sobre aqueles temas.

Uma das características da luta identitária é a autoexpressão: sou gay, negro ou indígena e tenho orgulho de minha condição. Isso é irretocável na posição pessoal. No entanto, Lilla observa em seu livro que numa campanha eleitoral não é a autoexpressão que conta, mas a persuasão.

O exemplo que usa para definir o comportamento dos liberais nos EUA talvez seja aplicado também à esquerda brasileira. Lilla compara as eleições à pesca. É preciso acordar cedo e pescar até tarde, lá onde o peixe existe, e não onde você gostaria que estivesse. Se o peixe morde a isca e se debate, dê linha e espere que se acalme.

Mas, para o escritor, os liberais ficaram na praia discorrendo sobre os problemas do mar, sobre a necessidade de a vida aquática abrir mão de seus privilégios. Tudo na esperança de os peixes confessarem coletivamente seus pecados e nadarem mansamente para ser pescados. Se esse é o seu enfoque da pesca, lembra Lilla, o melhor é se tornar vegetariano.

Nesta altura, não se podem comparar totalmente as táticas. No caso brasileiro, se, de um lado, a luta identitária pode ter dificultado um pouco a conquista da maioria, o caminho eleitoral das minorias acabou comprometendo o seu futuro. Isso simplesmente porque no tema central, a corrupção, o PT, embora não seja o único, é o maior acusado. A associação entre o partido e as minorias acabou trazendo para elas também a desconfiança do homem comum.

Não sei ainda como as coisas se vão recompor. Se as lideranças minoritárias fizerem uma análise do que se passou, creio que um dos seus passos será libertar-se de governos. Para isso é preciso ter uma nova visão da importância dos recursos materiais na política. O período que se encerra foi marcado por campanhas milionárias. O PT venceu com uma em 2002 e não reaprendeu o caminho da austeridade.

A vitória de Bolsonaro, a julgar pela de Trump, deve suscitar um grande movimento, que até lembrou aos liberais americanos que eles têm mais energia do que suspeitavam.

Aqui, no Brasil, enquanto estiverem gravitando em torno de um partido acusado de corrupção, os simpatizantes da esquerda podem até descobrir uma energia insuspeitada. No entanto, a chance de essa energia se dissolver em vão é muito grande, sobretudo se as pessoas não pararem um segundo para pensar, achando que o momento é como a Quarta-Feira de Cinzas em Salvador, onde todos saem às ruas cantando e dançando as mesmas músicas do carnaval que passou.

Faria bem um tempo de reflexão, estudos e debates. Foi tudo tão rápido e, para alguns, tão surpreendente que, a rigor, nem o governo nem a oposição sabem precisamente o que fazer.


Murillo de Aragão: Nem Quadros nem Collor

A história se repete como farsa, como disse Marx. Mas Bolsonaro não pode deixar de observar o que se passou com Quadros e Collor. Quando o passado fala, o presente deve ouvir e analisar para poder construir um futuro melhor.

A vitória de Jair Bolsonaro (PSL) nas urnas guarda relação com a eleição de dois ex-presidentes no Brasil: Jânio Quadros (1960) e Fernando Collor (1989). Características na trajetória política de ambos lembram a de Bolsonaro: surpreenderam o mundo político e eram percebidos pelo eleitorado como outsiders da elite política da época.

Ambos também chegaram ao poder com bases políticas não tradicionais e discursos que capturaram os anseios dos eleitores. Quadros fez um governo de apenas sete meses. Em meio a uma crise temperamental, renunciou achando que o povo forçaria o seu retorno ao cargo com poderes ampliados. Não aconteceu. Collor fez um governo de pouco mais de dois anos até sofrer um impeachment por conta de graves acusações de corrupção.

Nos dois casos, apesar de os motivos da saída do poder terem sido diferentes, houve uma raiz comum: a falta de apoio no Congresso Nacional. Problema que também vitimou a ex-presidente Dilma Rousseff (PT), que, tal como Collor, sofreu impeachment em 2016.

Considerando as identidades de trajetória com Quadros e Collor, Bolsonaro corre o risco de sofrer impeachment? Ou de ter sua governabilidade fortemente tolhida a ponto de o país viver nova crise institucional?

Apesar das características em comum, Bolsonaro parte com uma base de apoio significativa no Congresso. Cerca de 260 deputados e 39 senadores devem apoiar, de início, o seu governo. Portanto, o novo presidente deve encontrar condições bastante razoáveis para usar bem o período de graça que os parlamentares e a sociedade oferecem aos presidentes recém-eleitos. Bolsonaro conhece os meandros do Congresso e sabe como transitar por lá. Tal fato o diferencia em muito dos demais.

Outro fato positivo é que Paulo Guedes, o ministro da Fazenda de Bolsonaro, tem melhor equipamento para gerir a economia do país do que os ministros dos presidentes mencionados. E o Brasil de hoje tem, sem dúvida, aspectos estruturais mais sólidos dos que os da época de Quadros e Collor. Caso a economia reaja positivamente já no início do governo, as chances de êxito aumentam significativamente.

Assim, tanto na política quanto na economia Bolsonaro sai em vantagem e com um horizonte positivo. Porém, seu sucesso como presidente vai depender de suas respostas a três desafios: organizar o governo e sua base política com pessoas capazes e competentes que tenham credibilidade perante os agentes econômicos e o Congresso; saber se comunicar de forma eficiente para minimizar os ataques que sofrerá de parte relevante da grande imprensa; conter eventuais radicalismos dos aliados com mais adrenalina, a fim de não alimentar o noticiário com polêmicas.


Luiz Carlos Azedo: Os intocáveis

“Moro deixa a carreira de magistrado às vésperas de mais um julgamento do ex-presidente Lula. No processo do sítio de Atibaia, as provas seriam até mais robustas do que as do tríplex de Guarujá”

O mais famoso investigador da história norte-americana era apenas um agente do Tesouro inconformado com o descumprimento da Lei Seca em Chicago. Eliot Ness (Chicago, 19 de abril de 1903 — Coudersport, 16 de maio de 1957) liderou a equipe de investigadores que conseguiu prender Al Capone e desmantelar a quadrilha. Por ter resistido a várias tentativas de suborno, a força-tarefa ficou conhecida como Os intocáveis e foi glamorizada pelo diretor Brian de Palma no filme do mesmo nome, lançado em 1987, com Kevin Costner no papel principal, coadjuvado por Sean Connery e Robert De Niro.

O Ness de carne e osso era um homem comum, que raramente andava armado. De 1935 a 1942, após a liberação da venda e consumo de bebidas alcoólicas, foi secretário da Segurança Pública de Cleveland. A boa reputação desmoronou, porém, em 1942, quando abandonou o local de um acidente de trânsito aparentemente provocado por ele. Após o episódio, perdeu uma eleição para prefeito e fracassou como empresário. Morreu pobre, de ataque cardíaco, em 16 de maio de 1957.

É meio inevitável a analogia com a indicação do juiz federal Sérgio Moro, da 13ª Vara Federal de Curitiba, para o Ministério da Justiça, confirmada ontem pelo presidente eleito Jair Bolsonaro, depois de conversa na qual recebeu carta branca para combater a corrupção e o crime organizado. Bolsonaro concordou com as propostas de Moro: “Ele queria liberdade total para combater a corrupção e o crime organizado e um ministério com poderes para tal”, disse o presidente eleito. Para a opinião pública, foi um gol de placa.

No livro Artes da Política: diálogo com Amaral Peixoto, de Aspásia Camargo, Lucia Hippolito, Maria Celina D’Araujo e Dora Rocha, o ex-interventor e ex-governador eleito do antigo Estado do Rio de Janeiro atribui parte do seu sucesso como administrador à escolha do seu secretário de Segurança Pública. Sem um bom chefe de polícia, segundo ele, ninguém consegue governar. Há controvérsias sobre essa relação entre o governante e o chefe de polícia, cujas atribuições e autoridade estão estabelecidas na Constituição de 1988, que garante autonomia à autoridade policial. A Polícia Federal é judiciária.

Tanto é verdade que o presidente Michel Temer continuou sendo investigado pela Polícia Federal, sob orientação do ministro do Supremo Tribunal Federal Luís Barroso, depois de a Câmara dos Deputados ter sustado os dois processos da Operação Lava-Jato nos quais foi denunciado. Entretanto, do ponto de vista da opinião pública, ninguém deve ter dúvida de que as palavras do “comandante” Amaral Peixoto, a raposa do antigo PSD, continuam válidas.

Superxerife
O governador do Espírito Santo, Paulo Hartung (PMDB), cujo governo é considerado um exemplo de responsabilidade fiscal, inviabilizou sua reeleição por causa de uma greve de policiais militares que provocou caos e barbárie nas ruas das principais cidades do estado e jogou seu prestígio popular na lona. O governador fluminense Fernando Pezão, sem o delegado José Beltrame à frente da polícia fluminense, perdeu completamente o controle da segurança pública, hoje sob intervenção federal.

Sérgio Moro será um “superxerife”. Concentra um poder que somente pode ser comparado ao do falecido senador Filinto Muller, quando foi chefe de polícia do Distrito Federal. Muller se notabilizou pelas acusações contra a Aliança Nacional Libertadora (ANL) e a prisão de Luís Carlos Prestes, de quem era desafeto desde sua deserção da famosa Coluna Prestes. A deportação de Olga Benário para um campo de concentração nazista na Alemanha, onde foi executada em 1942, é atribuída a ele, mas foi uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), por influência de Vargas, mesmo não havendo pedido de extradição.

Como Eurico Gaspar Dutra, ministro da Guerra, Muller era simpatizante do Eixo. Em 1942, reprimiu uma manifestação de estudantes a favor de o Brasil entrar na guerra ao lado dos Aliados e foi demitido. O chanceler Oswaldo Aranha e Amaral Peixoto, genro de Getúlio Vargas, já haviam articulando com os Estados Unidos a entrada do Brasil na guerra ao lado dos Aliados. Alzira Vargas, filha de Getúlio, financiava as manifestações de estudantes e comunistas a favor de o Brasil entrar na guerra contra o nazi-fascismo.

Moro deixa a bem-sucedida carreira de magistrado às vésperas de mais um julgamento do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que já está condenado a 12 anos e 1 mês de prisão e cumpre pena em Curitiba. No processo do sítio de Atibaia, as provas seriam até mais robustas do que as do caso do tríplex de Guarujá. Mesmo antecipando a saída da Justiça Federal, Moro fez recrudescer as críticas de que teria favorecido Bolsonaro na eleição. Entretanto, isso já estava precificado. Seu problema é não fracassar nas tarefas de combate ao crime organizado e à corrupção. Se não demolir a própria imagem, pode virar o primeiro na linha de sucessão de Bolsonaro.

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