Bolsonaro

Foto: Beto Barata\PR

Ascânio Seleme: Montando o governo

A redução do número de ministérios no governo de Jair Bolsonaro não vai resultar necessariamente em queda importante das despesas orçamentárias. Se a Esplanada ficar com 17 pastas, o novo governo terá extinto 12 dos 29 ministérios hoje existentes. Será um bom símbolo de austeridade e de empenho no enxugamento da máquina e na diminuição do Estado, mas é preciso muito mais do que isso para que as contas públicas sofram impacto.

Com 12 ministros a menos, o Estado poderá cortar em cargos de assessoramento e secretariado no máximo uns 300 postos, nada mais do que uma vírgula no oceano de 630 mil servidores civis ou mais de 320 mil militares na ativa no Brasil.

O que Bolsonaro vai fazer, a grosso modo, é reagrupar setores do governo que foram divididos ao longo dos anos para abrigar aliados dos que detinham o poder. Por isso, as funções distribuídas nos ministérios criados sem necessidade não deixam de existir em razão da sua reunião sob comando único, apenas perdem status. No governo Lula, o Estado chegou a ter 37 ministérios, com Dilma foram 39, todos entregues a partidos da base.

Era uma forma de comprar o apoio eo voto desses partidos no Congresso Nacional. Não que essa tenha sido uma invenção petista, mas nos seus governos chegou no ápice. Nos ministérios, além dos cargos remunerados que ocupavam, os partidos podiam fazer negócios. E faziam. Muitos quadros das legendas que apoiavam o governo acabaram na cadeia em Curitiba.

Mas este é outro caso, o que importa agora é a montagem do novo governo e como a redução de ministérios chinfrins e a construção de superministérios pode ajudar o novo presidente. Primeiro, é importante levar em conta que alguns desses agrupamentos à primeira vista parecem exagerados.

Os poderes que serão conferidos ao superministro da Economia, por exemplo, vão requerer de Paulo Guedes superpoderes intelectuais e uma capacidade fora do comum de administrar seu tempo. E o ganho que se pode obter desse arranjo é discutível. Para alguns especialistas, até temerário. Já se tentou antes e não deu certo.

Outros superministérios, como o da Justiça, que será tocado por Sergio Moro, fazem mais sentido e representam um ganho político e institucional importante. Sem qualquer dúvida o combate à corrupção e ao crime organizado terá um símbolo, que será uma das caras mais conhecidas dos brasileiros, a de Sergio Moro. E contra bandido, símbolo que tem muito mais significado, como a estrela do xerife.

Para enxugar a máquina, reduzir o tamanho do Estado e gastar menos, Bolsonaro terá de diminuir as atribuições do governo, estatizar empresas públicas e em seguida demitir servidores. Mas isso não se faz assim, com uma canetada, ou com um plano de demissão voluntária. Estudos terão de ser feitos e tomarão tempo. Reduzir ministérios apenas não adianta. Fernando Collor teve 12 ministérios, mas o Estado ficou do mesmo tamanho.

O simbolismo ajuda, cria empatia, mostra determinação. Mais importante, contudo, é a decisão de Bolsonaro de não nomear pessoas indicadas por partidos políticos e sim quadros técnicos. Se ele conseguir resistir daqui até janeiro à pressão que já está sofrendo, poderá dizer que cumpriu sua primeira promessa de campanha. Mas ainda falta muito tempo.


Míriam Leitão: Governo terá briga de agendas

Novo governo vai ter que enfrentar o dilema de escolher em qual das suas agendas pretende investir a lua de mel do começo de mandato

O mercado financeiro acredita que a agenda prioritária do presidente eleito Jair Bolsonaro será a de reformas econômicas e já comemora por antecipação. O juiz Sergio Moro foi para o governo convencido de que será possível tocar a agenda anticorrupção. Bolsonaro deu sinais de que continua focado nas suas ideias sobre segurança, como liberação de armas, redução da maioridade penal e o “excludente de ilicitude" para proteger policiais. Enquanto isso, tem feito anúncios na política externa.

Apenas 11 países, dos 193 da ONU, têm relações com todos os membros e o Brasil é um deles. É um dos orgulhos da nossa diplomacia. Bolsonaro quer sair desse simbólico clube rompendo relações com Cuba. Um ato sem maiores motivos e ganhos. Avisou que será o terceiro país do mundo a transferir a embaixada brasileira para Jerusalém. Deveria ser lembrado do relevante comércio com os países árabes. A Liga Árabe tem 22 membros e a Conferência Islâmica, 57. Recados diplomáticos estão desembarcando em alguns ouvidos de que pode haver retaliação comercial por parte de países com os quais temos superávit comercial. A falta de prioridade do Mercosul foi dita com ênfase bem audível pelo futuro ministro da Economia. A Argentina é o maior comprador de manufaturados do Brasil.

Enquanto o governo Bolsonaro exercita sua diplomacia, já vai ficando claro que haverá no Congresso, no ano que vem, pelo menos três agendas em conflito. Em qual delas, o presidente eleito Jair Bolsonaro pretende investir a sua lua de mel? A econômica, a do seu pacote de segurança, ou o combate à corrupção.

O cientista político Carlos Pereira, da FGV, lembra o grande capital político que ele terá ao assumir.

— Minha impressão é que ele aprovará tudo o que quiser no Congresso no curto prazo, porque é um governo inaugural e que terá uma maioria homogênea com partidos de centro-direita.

Essa também é a convicção do cientista político Jairo Nicolau, da UFRJ. Mas ambos lembram que ele promete governar formando maiorias eventuais conforme o tema, sem base de sustentação definida, o que pode aumentar a dificuldade da negociação, em geral árdua, no Congresso.

Governar é fazer escolhas. Bolsonaro terá que fazê-las e dizer qual é a prioridade. Sua maior ênfase durante a campanha foi o fim do estatuto do desarmamento para liberar o porte de armas, a proposta que amplia o respaldo jurídico a policiais que matam em serviço, a redução da maioridade penal, além da sua pauta de conservadorismo nos costumes. São propostas polêmicas sobre as quais nem se sabe qual é a opinião do novo superministro da Justiça, Sergio Moro. Não se vai para um governo pela metade. Moro terá que respaldar essas ideias ou então convencer o presidente do contrário.

O juiz fez a aposta de risco ao trocar a sua carreira jurídica pela ida a um governo que tem encontro marcado com várias controvérsias. Analistas com quem tenho conversado concordam que foi um enorme gol do governo Bolsonaro e que o risco ficou todo para Moro.

Ele, pelo visto, acredita que conseguirá tocar o que está resumido no livro que empunhava no avião: as novas medidas contra a corrupção. Elas nasceram de um movimento que uniu várias entidades num belo trabalho interdisciplinar e que deu origem a uma lista de 70 medidas de uma agenda anticorrupção. Especialistas que participaram do processo de preparação, acham que se escolher tocá-las o governo vai economizar de 6 a 12 meses porque essa discussão prévia já amadureceu as medidas. Resta a dúvida: como fazer isso com uma base que tem PTB, PP e outros menos investigados?

Empresários e economistas do mercado financeiro fazem a aposta geral de que Bolsonaro tocará as reformas na economia, começando pela Previdência. Nesses primeiros dias de governo eleito, o que se ouviu da equipe que se forma foi a mais ruidosa cacofonia sobre que reforma é desejável. O presidente fala em aprovar a atual proposta, da qual Onyx Lorenzoni sempre discordou. Paulo Guedes tem técnicos formulando um projeto, e o economista Marcos Cintra falou em acabar com a contribuição previdenciária patronal e criar a CPMF, ideia que Bolsonaro negou de novo. Se a economia não for a prioridade haverá uma reversão de tendência no mercado.


Merval Pereira: Separação de Poderes

A separação dos poderes não é intrínseca à democracia, mas ao presidencialismo, criada na Constituição americana em 1789

O debate sobre a nomeação do juiz Sergio Moro para o Ministério da Justiça com superpoderes no governo Bolsonaro levantou pontos relevantes sobre a relação entre os Poderes da República e o exercício da política para além do jogo partidário.

Moro sempre declarou que nunca faria carreira política, obviamente se referindo à política partidária. Mesmo porque já era um “agente político” na sua atuação como magistrado, de acordo com a definição da Controladoria-Geral da União (CGU): “agente político é aquele investido em seu cargo por meio de eleição, nomeação ou designação, cuja competência advém da própria Constituição, como os Chefes de Poder Executivo e membros do Poder Legislativo, Judiciário, Ministério Público, Tribunais de Contas, além de cargos de Diplomatas, Ministros de Estado e de Secretários nas Unidades da Federação, os quais não se sujeitam ao processo administrativo disciplinar”.

A separação dos poderes não é intrínseca à democracia, mas ao presidencialismo, criada na Constituição americana em 1789. Já existia na teoria, pela famosa obra de Montesquieu “O espírito das leis” e outras, e incipientemente na Inglaterra, à época uma monarquia constitucional que ainda não separava claramente o Poder Judiciário do Executivo.

Os EUA formaram a primeira república constitucional do mundo moderno. O verdadeiro fundo filosófico é que nos EUA quem governa dá os rumos; é o Congresso. Um congressista faz parte de um poder verdadeiro. O Legislativo é um poder que não tem chefe. Um deputado, um senador, não é subordinado a nenhum chefe. Não pode ser demitido por chefe nenhum. Muito menos pode ser subordinado ao simples chefe de outro poder, o Executivo.

A independência legítima de poderes impede que um deputado ou senador americano seja ministro. Se quiser sê-lo, tem de renunciar ao seu mandato de legislador e virar auxiliar do presidente. Nos EUA, a senadora Hillary Clinton teve de renunciar ao mandato para ser Secretária de Estado de Barack Obama.

Norberto Bobbio, um dos maiores filósofos políticos do século XX, escreveu a “Teoria geral da política: a filosofia política e as lições dos clássicos”, em que dá a sua definição. Para ele, falar em política leva ao conceito de poder, que é a capacidade de se obter os meios para fazer prevalecer suas ideias em uma sociedade.

Os poderes políticos são legitimados, dependendo das circunstâncias, pela tradição, pelo despotismo ou pelo consenso, uma característica da democracia. Na Grécia Antiga, Aristóteles, em “A política”, tratava dela como inerente à atividade humana, pelo interesse pelas coisas das cidades (pólis).

“Fazer política” não é, portanto, apenas uma prática partidária e eleitoral, mas refere-se às atividades do Estado e à forma como a sociedade se relaciona com ele. Os políticos que criticam Moro por ter aceitado participar de um ministério o fazem como consequência de uma luta política que só demonstra como estão dissociados das mudanças que o país está vivendo.

Se quiséssemos mesmo exercer um presidencialismo na sua essência, deveríamos seguir o exemplo dos Estados Unidos, e exigir que os membros do Congresso renunciassem a seus mandatos caso desejassem ir para um ministério, assim como é exigido dos membros de outros Poderes, como o Judiciário.

Moro teve que renunciar à carreira para exercer um cargo em outro Poder. Acabaríamos com o toma lá dá cá radicalmente.

Na véspera de seu encontro com o presidente eleito Bolsonaro, Moro releu trechos do livro “Excellent cadavers”, de Alexander Stille, sobre a atuação do juiz Giovanni Falcone, o líder do combate à máfia que gerou a Operação Mãos Limpas da Itália e também foi para o governo. No livro, Moro marcou o seguinte trecho: “Em poucos meses em Roma, Falcone mudou o papel do Executivo na guerra contra a máfia”, segundo Ignazzio De Francisci, membro do grupo antimáfia anterior à chegada de Falcone ao governo italiano.

Moro, num rasgo de uma insuspeitada autoironia, comentou com amigos que espera não repetir totalmente a história de seu ídolo, tão perigoso para a máfia que foi assassinado em 1992.


Eliane Cantanhêde: “Pouco contato”?!

Inteligente, preparado e falante, o vice Mourão ainda vai dar muita dor de cabeça

Passou suavemente, quase despercebida, a frase do presidente eleito, capitão reformado Jair Bolsonaro, sobre seu vice, general de quatro estrelas da reserva Hamilton Mourão, mas ela diz e projeta muito de um governo que nem começou. “Tenho pouco contato com ele”, disse Bolsonaro, com um ar de pouco caso, deixando uma pulga atrás da orelha de atentos e curiosos.

Mourão tem respeitável carreira no Exército, ocupou postos de destaque dentro e fora do País, inclusive o Comando Militar do Sul, foi bem em entrevistas às tevês (dizem que até melhor do que o próprio Bolsonaro) e acaba de passar muito bem no teste de inglês ao falar à BBC. Mas é dado a declarações polêmicas, às vezes chocantes.

Sua primeira vitória foi ultrapassar Janaína Paschoal, Marcos Pontes, Magno Malta, Luiz Philippe Orleans e Bragança na corrida pela vice. Entre professores, políticos, astronautas e príncipes, Bolsonaro ficou com um general gaúcho que surgiu no cenário político ainda na ativa, ao ser afastado da Secretaria de Economia e Finanças do Exército em 2017, não por coincidência, após defender intervenção militar.

Já candidato, ele produziu as pérolas da eleição, atribuindo as mazelas brasileiras à “indolência dos índios” e à “malandragem dos negros” e confirmando suas crenças mais profundas ao orgulhar-se da beleza do neto e do “branqueamento da raça”, o que remete ao que há de pior na história da humanidade e é nevrálgico no Brasil. Ainda foi adiante ao chamar as famílias sem homens, comandadas por mães e avós, de “fábricas de desajustados”.

Até aí, Bolsonaro e a campanha tratavam Mourão como um boquirroto, que sai falando tudo que passa pela cabeça sem atentar para as consequências, mas o caldo entornou quando ele se meteu a falar de intenções de governo. Defendeu uma Constituinte exclusiva, formada por “notáveis” e passando ao largo do Congresso eleito pelo povo, aliás, uma ideia lançada pelo ministro Tarso Genro no governo do PT.

O general também virou estrela das redes sociais ao chamar o 13º salário de “jabuticaba brasileira”, mesmo depois de Bolsonaro alertá-lo duas vezes para ter “cuidado” com o que dizia. As advertências entraram por um ouvido, saíram pelo outro. E, no pior momento da campanha, quando o PT acertou o passo e os bolsonaristas não paravam de dar tiro no pé, Bolsonaro deu um freio de arrumação: mandou Mourão e Paulo Guedescalarem a boca. O economista atendeu, o general se deu por desentendido.

Inteligente e preparado, seria grosseiro e injusto tratar Mourão como apenas folclórico, até porque suas falas não são sobre banalidades, mas sobre coisas sérias, num País onde os vices não são apenas enfeite. Na prática, vice está na antessala de assumir a Presidência.

Sarney só entrou na chapa do adversário Tancredo para dividir a base do governo militar e garantir a transição. Itamar virou vice de Collor para dar consistência política e partidária a uma aventura do PRN. Temer foi resultado de uma aliança PT-MDB para dominar o Congresso, apesar de Dilma. Todos viraram presidentes.

Os demais nem sempre foram reforço, mas dor de cabeça. Aureliano Chaves infernizou (com boas razões) o general Figueiredo, último presidente militar. José Alencar virou arauto contra os juros altos e sonhava ser presidente um dia, mas Lula conquistou-o com lábia e jeitinho. O vice dos sonhos de qualquer um, ou uma, foi Marco Maciel, o pernambucano intelectual suave e discreto que jamais criou problemas para FHC.

Convenhamos, Hamilton Mourão está mais para Aureliano do que para Maciel e pode dar muito trabalho ainda para o presidente Bolsonaro, com quem tem “pouco contato” e, quando tem, parece não dar tanta bola assim.


Vera Magalhães: O mundo de Bolsonaro

Eleito pauta declarações sobre política externa e comércio exterior pela ideologia

Para vencer uma eleição contra o PT diante do desgaste do partido, provocado por muitos anos de recessão e um escândalo de corrupção vasto, a divisão de tudo segundo conceitos rudimentares de esquerda e direita se mostrou eficiente.

Ao pintar o Brasil indistintamente de verde oliva e vermelho, Jair Bolsonaro e seus apoiadores conseguiram arregimentar um exército fanático e acrítico nas ruas e nas redes sociais.

Todos os principais temas, da política à economia, passando por educação, cultura, saúde e segurança pública foram submetidos a esta clivagem, que deverá pautar nos próximos quatro anos as discussões no Congresso, as intervenções do Supremo Tribunal Federal no debate público – vide o aperitivo dado nesta semana com o debate sobre liberdade de expressão nas universidades – e, principalmente, a gritaria no ambiente público já ensurdecedor.

Mas será que essa simplificação grosseira serve para amparar a política externa brasileira, sua inserção diplomática no mundo e, sobretudo, sua atuação comercial? Dificilmente. Porque o Brasil não é os EUA e Bolsonaro terá de descobrir que não é Donald Trump.

A primeira invertida internacional veio quando a Sidra da festa da vitória ainda estava sendo servida. Em editorial, o China Daily, espécie de porta-voz do governo de Pequim, ironizou Bolsonaro ao chamá-lo de “Trump tropical” e adverte: se indispor com a China pode servir a algum propósito político específico, mas criaria graves problemas econômicos para o Brasil.

O editorial diz esperar que Bolsonaro olhe de maneira “racional e objetiva” para as relações comerciais entre os dois países e lembra algo básico: as duas economias são complementares, não competidoras.

Em 2017, a China se tornou o principal destino das exportações brasileiras: US$ 47 bilhões em vendas, de produtos que vão de soja a minério de ferro. Criar ruídos com um parceiro deste tamanho é um péssimo começo em termos de política comercial.

Anúncios de medidas na área diplomática sofrem dos mesmos males de seguir a cantilena ideológica diante de realidades complexas. Imitar a decisão de Trump de mudar a embaixada brasileira em Israel de Tel-Aviv para Jerusalém pode trazer que tipo de benefício para o Brasil? Bolsonaro ignora que a maioria dos países não adotou essa visão, que o Brasil tem parceiros comerciais importantes no mundo árabe e que existe uma comunidade palestina e árabe relevante no Brasil.

Numa das primeiras entrevistas que concedeu, o futuro czar da economia brasileira, Paulo Guedes, deu um piti com uma repórter argentina que quis saber algo trivial: qual será a política do novo governo para o Mercosul. Disse (berrou) que não será prioridade. Ok.

Então, qual será a diretriz para o bloco? Esvaziá-lo? O Brasil apostará mais em negociações bilaterais? Vai forçar a retirada da Venezuela? Declarações soltas, em tom exasperado e sem detalhamento só servem para criar uma névoa na relação com esses parceiros antes mesmo da largada do governo.

Essa bagunça se deve muito ao fato de que não se sabe quem são os conselheiros do presidente eleito para relações internacionais. Que ala do Itamaraty será “empoderada” no novo governo, qual será a matriz de pensamento a pautar a atuação da diplomacia brasileira? Que pasta vai cuidar do comércio exterior, que, sob Dilma e Temer, mudou de mãos algumas vezes?

Todas essas são perguntas de fundo que não são passíveis de respostas na base do “vamos colocar os comunistas no seu lugar”. Porque não estamos mais na Guerra Fria, a realidade mundial é mais intrincada que isso e bravata fora de casa pode custar caro ao Brasil, que é menos valentão no mapa do que parece crer Bolsonaro.


Fernando Henrique Cardoso: Paciência histórica

Que movimentos e partidos poderão materializar um radicalismo de centro?

Com a eleição de Bolsonaro e a hecatombe que se abateu sobre o sistema partidário, o melhor é manter a “paciência histórica”. Com a idade, algo se aprende. A principal lição talvez possa ser resumida em antigo ditado popular: “Não há mal que sempre dure nem bem que nunca acabe”.

Como em todo slogan, nesse há muita coisa indefinida: o que alguns qualificam como “bem” para outros pode ser o “mal”. A despeito de opiniões distintas, penso que a onda conservadora que se prenuncia não será boa, como não seria a da arrogância petista, que está na raiz do atual estado de coisas, com a polarização do “nós” contra “eles”.

Democrata, curvo-me à decisão da maioria. Mas não me amoldo, como não me amoldaria se fosse vencedor o polo oposto. Pertenço à família espiritual dos que pretendem ser razoáveis, aceitam o diálogo, podem mudar de opinião e quando o fazem dizem o porquê. E não querem ficar espremidos num “centro amorfo”. Essa família sabe que a emoção existe, deixa-se envolver por ela de vez em quando, mas tenta apegar-se a algum grau de razoabilidade.

Nas circunstâncias, há que esperar. Como será o governo Bolsonaro? Como enfrentará os desafios de reduzir a desigualdade social, como retomará o crescimento econômico para criar empregos; porá ordem nas finanças públicas, assegurará a tranquilidade às pessoas assustadas com tanta violência nas ruas e no campo, será capaz de combater o crime organizado? Sem falar na hercúlea tarefa, que é de todas as forças políticas, sobretudo das que tenham maior convicção democrática, de recolocar nos trilhos o sistema eleitoral e partidário, que afundou na corrupção, na fragmentação e na perda de conteúdo programático.

Não se trata de esperar sem fazer nada, nem de assumir a posição fácil de criticar tudo o que o governo faça. A possibilidade de se criar um “centro” não amorfo implica tomar partido com base em valores e na razão.

Li outro dia uma expressão de que gostei: um “centro radical”. Radical em não aceitar o arbítrio e, portanto, em respeitar a Constituição. Ah, dirão, ela está obsoleta. Então que se mude o que pereceu, mas por meio de emendas que o Congresso aprove, mantidas as cláusulas pétreas. Ser radical de centro implica ser firme na preservação dos direitos civis e políticos e propor uma sociedade não excludente e justa. Sem conservadorismo.

A onda conservadora concentra-se principalmente nos costumes, na cultura. O centro radical prega o respeito à diversidade e sua valorização, que é constitutiva da democracia, embora se recuse a transformar a diferença em expressão única do que é positivo. Opõe-se à violência contra os que têm preferências, sexual ou sobre o que seja, divergentes do padrão e sustenta os direitos das minorias. O mesmo vale para a preferência religiosa: há que respeitá-la integralmente, mesmo quando diversa da crença dominante ou quando composta de fragmentos de várias crenças ou quando for nenhuma. O que vale para as crenças vale com a mesma força para as ideologias, desde que elas aceitem não ser a expressão única da verdade e da moralidade.

A radicalidade de um centro progressista não se limita, contudo, aos aspectos comportamentais. Propor soluções econômicas antiquadas, a exemplo do controle estatal dos setores produtivos e do desprezo pelo equilíbrio fiscal, como setores da esquerda fazem, não somente é anacrônico, como também contraria os interesses do povo. Como oferecer emprego e melhorar a renda dos mais pobres propondo uma política econômica que leva à estagnação e ao desemprego, como se viu recentemente com a “nova matriz econômica”?

Sem fundamentalismos desnecessários e mesmo contraproducentes, o “centro progressista e radicalmente democrático” deve incorporar ao seu credo uma visão mais liberal, sem medo de ser tachado de “elitista” ou “direitista”.

Sem cair, por outro lado, na apologia do “individualismo possessivo”, porque o mercado não é a única dimensão da vida nas sociedades contemporâneas. A ideia de que se pode comandá-lo ou regulá-lo com mão de ferro é irrealista. E o realismo não é de direita nem de esquerda, é um requisito para o bom governo. Este, por sua vez, não se resume à adequação eficiente entre meios e fins. É preciso crer numa “utopia, viável”: a da busca de uma sociedade aberta, decente e, portanto, mais igualitária. A sociedade civil, em sua pluralidade de opiniões, tem um papel crítico na construção de tal tipo de utopia.

Num artigo de jornal não cabem demasiadas considerações sobre os valores que poderão dar arrimo a um centro que não se confunda com a fisiologia de “centrões”, nem se perca na vacuidade das indefinições. Mas é preciso deixar no ar a pergunta: que movimentos e partidos poderão materializar o radicalismo de centro?

Comecemos com a autocrítica. Também o PSDB, ainda que vitorioso em Estados expressivos, se desfigurou nas últimas eleições. Será capaz de se remontar? Francamente, não sei. E os demais partidos e movimentos de renovação, que rumos eles tomarão para sobreviver?

Se for o da adesão oportunista ou o da crítica indiscriminada a tudo o que o novo governo fizer, de pouco servirão para a retomada do rumo democrático e progressista. É cedo para apostar. A paciência histórica é boa conselheira e não se confunde com inação. A consolidação de um novo movimento requer desde já a pavimentação de alianças, não só no círculo político, mas principalmente na sociedade, para formar um polo aglutinador da construção de um futuro melhor. E como as eleições de outubro mostraram, não basta ter boas ideias, é preciso que elas circulem nas redes que conectam as pessoas e mobilizam corações e mentes.

*Fernando Henrique Cardoso é sociólogo, foi presidente da República


Luiz Werneck Vianna: A hora dos intelectuais

Caem os véus e já se divisa a situação de risco a que seremos submetidos

O martelo está batido. Começamos uma nova história sem uma ideia na cabeça, condenados em meio às trevas a tatear em busca de um caminho para uma sociedade que se perdeu de si mesma, do seu passado e de suas melhores tradições, tanto nas elites como nos setores subalternos. É hora de recolher os cacos, identificar as raízes dos nossos erros, da autocrítica impiedosa quanto aos rumos equívocos em que nos deixamos enredar e ameaçam pôr sob risco nossas conquistas democráticas. Trata-se de uma derrota política levada a efeito no campo do processo eleitoral, terreno que sempre identificamos como propício ao avanço dos temas sociais e das lutas pela igualdade, e cuja expressão quantitativa ainda mais denuncia a sua gravidade e o alcance de suas repercussões.

Mas com o erro também se aprende e não são poucas as lições que essa miserável sucessão presidencial deixa como legado para os que recusam que o veneno do que há de mais anacrônico no passado volte a assumir as rédeas do nosso futuro, como nesse retorno patético ao anticomunismo do presidente eleito, que, na verdade, visa a atingir a nossa Constituição. Com efeito, fora os artifícios de mão usados na campanha vitoriosa de Bolsonaro, como o desse cediço anticomunismo, analisados os resultados eleitorais, principalmente em alguns dos Estados da Federação, o que há de comum neles é o argumento utilitarista, fundamento filosófico do neoliberalismo. No cerne do texto constitucional, entretanto, vige o princípio da solidariedade, antípoda desde E. Durkheim, das concepções utilitaristas, alvo oculto das campanhas bolsonaristas em Minas Gerais e no Rio de Janeiro, acompanhando a orientação da candidatura presidencial e do seu principal consultor econômico de explícita adesão ao ideário do neoliberalismo.

O princípio da solidariedade e o centro político guardam relações antigas no processo de modernização conservadora do País, pois se iniciam com Vargas na legislação social sob a inspiração do corporativista Oliveira Vianna, embora sob o registro restritivo do autoritarismo e da tutela dos trabalhadores. Depurada dessa chave a Constituição, que é obra do centro político, a solidariedade foi elevada a princípio fundador da República, com o mesmo estatuto dos princípios da liberdade e da igualdade, conferindo caráter público à previdência social, que ora muitos dos atuais eleitos querem deslocar para a dimensão do mercado.

Dessa perspectiva, não se pode ignorar talento político aos estrategistas do campo vitorioso, que mantiveram sob estrita clandestinidade seu programa in pectore de reformas, inclusive as constitucionais, confiando ao PT e a seus aliados e aos intelectuais que gravitavam em torno dele, em nome da luta contra a corrupção, a tarefa de implosão do centro político, trave-mestra da arquitetura constitucional e de suas principais instituições, como o Poder Judiciário, como em escandaloso fato recente vindo à luz por inconfidências palacianas em que se ameaçava o Supremo Tribunal Federal.

Caem os véus e já se divisa a situação de risco a que seremos submetidos. Querem nos reduzir ao Homo economicus, aqui, no país do carnaval, do Círio de Nazaré, do culto de massas a Nossa Senhora Aparecida e do candomblé, onde o capitalismo jamais foi uma ideia popular, vindo de cima por imposição do Estado. Aqui, onde as favelas são denominadas comunidades e o individualismo metodológico só existe na bibliografia importada, vinculados que estamos às nossas raízes ibéricas, na forma do belo estudo de Rubem Barbosa Filho em Tradição e Artifício (UFMG, 1998), em trilha aberta pelo saudoso brasilianista Richard Morse.

O sistema de defesa contra a barbárie está à mão e começa a operar na defesa da Carta de 88, reduto das nossas melhores tradições e programa para uma futura social-democracia, que ela já contém em embrião. Seus defensores estão alinhados, à frente de todos o decano do STF, o ministro Celso de Mello. Os primeiros esboços do que deverá ser a oposição começam a ser debatidos, e digno de atenção é o pequeno texto do ensaísta Antonio Risério Por um outro caminho, em que se sustenta a tese da necessidade “de construção de um novo e contemporâneo partido de centro-esquerda verdadeiramente centrado no campo da social-democracia. (...) A fusão de PPS, Rede e PV (linha Eduardo Jorge) pode vir a ser um passo primeiro e fundamental. Mas é preciso trazer para este campo magnético os focos genuínos da social-democracia que ainda resistem (minoritários) no PSB e no PSDB. Tentar trazer também para este processo construtivo os raros verdadeiros democratas que insistem em tentar sobreviver no MDB. E em outros movimentos e instâncias da sociedade”.

Esse sistema geral de orientação não sairá do papel sem os intelectuais, a quem coube assumir posições de vanguarda na formação da opinião pública em momentos cruciais da história do nosso país, tal como no movimento abolicionista pela obra e ação de Nabuco, Antônio Rebouças e José do Patrocínio, e mais recentemente nas lutas sociais e políticas em favor de um Estado Democrático de Direito, pelo envolvimento ativo de personalidades que, entre tantas, podem ser lembradas: Florestan Fernandes, Raimundo Faoro e Fernando Henrique Cardoso. O momento da hora presente confronta nossos intelectuais com desafios e exigências do mesmo calibre.

Na cena política aberta à nossa frente não há como negar que o longo ciclo da modernização conservadora chegou ao fim nesta triste sucessão presidencial. O passado não mais ilumina, como diria um grande autor, e não se pode ser mais fiel a ele. Reflexividade não é um conceito da moda entre cientistas sociais, mas uma exigência do tempo presente que requer de cada um de nós a escolha do caminho a seguir quando nos devemos soltar do que nos aparecia como destino de um país do Terceiro Mundo e dele prisioneiros. Sem os intelectuais não faremos isso.


Míriam Leitão: Está tudo muito confuso, tá ok?

Boa comunicação faz parte da arte de bem governar, por isso o presidente eleito deveria migrar para outro estilo de transmitir suas ideias e decisões

O presidente eleito Jair Bolsonaro gosta de uma comunicação de frases curtas, vocabulário estreito, ideias simples e uma interjeição final. O seu “tá, ok?” costuma se seguir a ideias controversas e é posto muitas vezes como uma prévia interdição ao contraditório. Nessa primeira semana após a eleição tudo foi muito confuso. É natural. O governo nem começou. A decisão de barrar jornais numa coletiva mostra autoritarismo. A cena de Paulo Guedes e Sérgio Moro, na sexta-feira, desistindo da entrevista, em frente ao pelotão de jornalistas exibe o improviso.

Bolsonaro acredita na força do seu próprio canal de comunicação e se baseia no fato de ter sido com a mídia alternativa, criada pelo filho 02, que ele contornou a falta de recursos eleitorais tradicionais, como acesso ao fundo partidário e tempo de televisão. Só que agora tudo mudou. Ele é o presidente eleito e a boa comunicação faz parte de bem governar.

Após o primeiro turno, em vez de falar com os repórteres como fazem todos os candidatos que vencem essa etapa inicial, Bolsonaro fez um live no Facebook. Ao vencer o segundo turno, teve que fazer três falas de vitorioso para cumprir de forma incompleta o ritual democrático de qualquer eleição, que é se comunicar com o país após as urnas. Sua primeira fala foi ainda de conflito, via Facebook. Na segunda, que foi mais organizada pelo esforço dos órgãos de imprensa que se uniram para isso, ele preferiu ler um texto em que faltavam pontos importantes, como uma palavra indispensável aos eleitores que não votaram nele. Na terceira, Bolsonaro voltou ao Facebook para completar o que havia esquecido. No meio de tudo isso, uma oração, que seria normal sendo feita internamente, mas exposta como primeira cena do governante eleito parecia revogar a sadia separação entre Igreja e Estado, um dos primados da Reforma Protestante de 500 anos.

Tem havido ruído demais em todos os canais de comunicação. Na entrevista do Jornal Nacional, ele teve oportunidade de se comprometer com a imprensa livre e deu duas informações no sentido contrário. Primeiro, que pretende usar as verbas publicitárias como forma de punir e premiar segundo o critério do que considera ser o papel da imprensa. Segundo, que escolheu como primeiro alvo a “Folha de S.Paulo”.

Nas primeiras entrevistas que Bolsonaro deu na segunda-feira a várias televisões ele disse coisas que ecoavam à campanha e que não ajudam em nada nesse momento de olhar o futuro e governar. Ele afirmou à “Band” que não se arrepende de ter dito que a ditadura deveria ter matado mais, porque foram desabafos no contexto de um Congresso cheio de anistiados. Justificou a censura com uma explicação inusitada: as matérias censuradas teriam “a palavra-chave para executar um assalto a banco, ou até mesmo uma autoridade em cativeiro”. Sobre a morte de opositores pelo regime, ele disse que “como tinha a lei de vadiagem, tinha que ter o documento", e o “elemento” ia assaltar um banco, e por isso era morto. Ele tem direito a ter a sua opinião positiva da ditadura militar, mas em que serve, a esta altura, o uso dessas versões fakes para fatos históricos, como se estivéssemos na distopia orwelliana de um regime de força que reescreve o passado? O Brasil tem enormes dificuldades à frente e essa agenda deveria ocupar a mente do novo governante que saiu consagrado das urnas. Após ser eleito, ele deveria ampliar ao máximo o alcance do seu discurso. Afinal, isso aumenta as chances de sucesso do seu governo.

Se o clã Bolsonaro está convencido de que apenas os canais alternativos sob seu exclusivo controle serão suficientes para se comunicar está enganado. Não existe essa dicotomia de velhas e novas mídias no complexo mundo da comunicação atual. O presidente Donald Trump hostiliza parte da imprensa, elege veículos que não podem entrar em entrevistas, e usa o twitter para provocações agressivas. Bolsonaro pode estar escolhendo copiar esse modelo. Mas na sexta, os semblantes de perplexidade de Sérgio Moro e Paulo Guedes diante da natural pluralidade de perguntas da imprensa mostra que talvez eles precisem de menos improviso. Governar não é cavar trincheiras. A comunicação faz parte da arte de administrar bem o país.


Merval Pereira: Os mesmos erros

Bolsonaro monta um governo baseado em reivindicações da sociedade como combate à corrupção e ao crime organizado

A última vez que isso aconteceu foi em 2003, quando houve uma troca de guarda na política brasileira, saindo o PSDB que governara o país por 8 anos, chegando o PT. Os que saiam cometeram o mesmo erro que os perdedores de agora, jogavam no fracasso dos entrantes. Era voz corrente entre tucanos que Lula e seus sindicalistas, por falta de experiencia, não conseguiriam governar sozinhos e procurariam os primos da social-democracia para uma ampla aliança política. O mesmo Aloisio Mercadante que levou o PT a não apoiar o Plano Real, chamando-o de estelionato eleitoral, agora comanda a estratégia de acusar Moro por ter aceitado ser ministro de Bolsonaro.

Deu no que deu. O PT ficou 13 anos no poder, e enraizou-se de tal maneira na máquina administrativa brasileira que, das tarefas principais do novo governo, está a de desaparelhar o Estado. E ainda esnobou os companheiros de esquerda política, empurrando-os para a direita do campo partidário, acusando-os de terem legado uma “herança maldita”.

Roubou ideias originais dos governos tucanos e melhorou-as, acabando por ter o Bolsa-Família como carro chefe de seu programa de governo, que o salvou da derrota política quando a classe média e o eleitorado das cidades grandes começaram a abandoná-lo devido às denúncias de corrupção.

O PT foi para o Nordeste e lá fincou raízes que o permitiram manter um naco ponderável do eleitorado, o que levou Fernando Haddad para o segundo turno em 2018. Um mérito inegável do governo de Lula foi trazer para o centro do debate político a desigualdade social, graças ao faro político desse que ainda é, mesmo da cadeia, o maior líder popular do país.

A desordem econômica instaurada no governo Dilma, poste que Lula pensava comandar, e a corrupção que financiava o projeto de poder permanente do PT desde os primeiros momentos do primeiro governo Lula, provocaram a maior crise econômica que o país já viveu, e levaram pelo ralo os avanços sociais conseguidos.

Paradoxalmente, foi a classe média baixa e os emergentes sociais que deram o sinal de alarme contra os governos petistas. Tendo perdido muito, e com medo de perder mais ainda, retrocedendo na escala social, sentiram-se ameaçados pelos desmandos petistas. Ao lado da agenda social que ele mesmo conseguiu desmontar, o PT ampliou agendas de costumes conectadas com as das mais avançadas democracias do ocidente, o que foi um ganho civilizatório, mas ofendeu essa mesma classe média, que viu crescentemente afetados seus valores.

É esse eleitor que, desde 2005 quando estourou o mensalão, vem fazendo lento retorno à direita, que explodiu em 2013 nas manifestações contra os péssimos serviços públicos oferecidos, em contraposição à roubalheira generalizada. O movimento foi concluído agora em 2018 com a eleição de Bolsonaro, que se beneficiou da falência do esquema partidário montado de comum acordo entre PT, PSDB e MDB.

Se não houvesse contemporizado com seus corruptos, e se se negasse a participar do governo Temer quando a gravação com o empresário Joesley Batista explicitou o que todos sabiam, mas estava acobertado por um governo que ia na direção correta na recuperação da economia devastada pelo petismo, o PSDB poderia ter sido o grande beneficiário da crise política, e Bolsonaro talvez estivesse disputando votos com o Cabo Daciolo.

Mas os tucanos se lambuzaram, e não entenderam o que se passava na alma do brasileiro médio. Quem entendeu foi Bolsonaro, que agora monta um governo baseado na dupla reivindicação da sociedade: combate à corrupção e ao crime organizado, que colocam em pânico as famílias, e desmonte do sistema de poder que dominou a cena politica nos últimos 25 anos.

O economista Paulo Guedes passou anos escrevendo contra o que chamava de conluio social-democrata que atrasava o país, colocando PT e PSDB no mesmo saco. O juiz Sérgio Moro foi o líder do combate à corrupção no país, e levou para a cadeia grande parte do antigo regime, apartidariamente. A maioria dos que estavam soltos foi defenestrado pelo eleitorado.

O PT, assim como fez com o Plano Real e quebrou a cara, permitindo que os tucanos ficassem oito anos no poder, agora joga no fracasso do novo governo. Se não fizer muita besteira, Bolsonaro pode se transformar em uma espécie de Lula da direita, e será o primeiro presidente sem ser do PT a gerir o Bolsa-Família. Terá chance de provar para os mais pobres que não é apenas Lula quem é capaz de cuidar bem deles. Já penetrou no Nordeste mais que qualquer outro nesta eleição, e poderá tirar do PT esse eleitorado cativo.


João Domingos: O presidenciável

Ao aceitar o Ministério da Justiça, o juiz Sérgio Moro se torna candidato ao Planalto

No momento em que aceitou o convite para assumir o Ministério da Justiça, o juiz Sérgio Moro credenciou-se para se candidatar à sucessão do próprio chefe, caso prospere a ideia de Jair Bolsonaro de acabar com a reeleição. Ou até para concorrer com Bolsonaro, se a reeleição for mantida e o capitão reformado do Exército se sentir tentado a buscar um outro mandato.

Esse será o caminho de Moro. Por mais que ele e Bolsonaro digam que o cargo de ministro serve para que o governo central assuma o combate à corrupção e ao crime organizado, e que, depois, o juiz de Curitiba será nomeado ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) quando uma vaga surgir, o fato é que, hoje, Moro está credenciado a disputar a próxima eleição para a Presidência da República.

A nomeação de Sérgio Moro para um superministério da Justiça a ser criado é também o pagamento de uma promessa de campanha feita por Bolsonaro ao eleitor que o elegeu, um eleitor que parece dar mais importância ao combate à corrupção do que às questões econômicas. Não que o nome do juiz estivesse vinculado à promessa. Mas, ao nomeá-lo, a identificação de uma coisa com a outra foi imediata. O eleitor talvez não tenha votado em Bolsonaro porque ele gosta de Bolsonaro. Ele votou no capitão porque este assumiu um discurso anti-PT e anticorrupção, e se propôs a ser aquele que virá demolir tudo para que algo novo nasça. Essa é a visão que uma boa parte do eleitorado vencedor tem daquele a quem deu o voto.

Alguém pode discordar de tudo isso. E certamente muitos vão discordar. O fato é que Bolsonaro venceu a eleição ao se opor ao PT, ao sistema político, aos esqueminhas e esquemões que costumam capturar governos e os tornam reféns do fisiologismo. Tanto é que, ao nomear Moro, Bolsonaro foi criticado por aliados e opositores, pois ele pôs no jogo político um nome que tem tudo para construir uma carreira política a partir de agora. O eleitor vibrou, ao contrário do status quo político, que aguarda a hora de botar a faca no pescoço de Bolsonaro em nome da governabilidade.

Quanto a Moro, mesmo que ele venha a dizer que não quer se tornar um político, como disse em 2016, numa entrevista ao Estado, ao aceitar o convite para o Ministério da Justiça ele se tornou político. Porque o cargo é político. Porque Moro tem vocação política. Na entrevista ao Estado, Moro chegou a dizer que jamais seria político. Estava enganado. Sua carreira de êxito na magistratura foi pontuada por atos políticos. Quando, em 2016, atropelando o relógio, divulgou o conteúdo de conversas entre a então presidente Dilma Rousseff e o ex-presidente Lula, à véspera do impeachment, ele tomou uma decisão política. Por ela foi advertido. Se não tivesse divulgado o teor do grampo, que mostrava as manobras para dar foro privilegiado a Lula e livrá-lo de uma ordem de prisão, Dilma talvez não tivesse sofrido o processo de impeachment. Foi um gesto tão político que mudou a História.

Quando o juiz autorizou o acesso público a parte do conteúdo da delação premiada do ex-ministro Antonio Palocci, a uma semana do primeiro turno da eleição de 2018, Moro tomou uma decisão política, mesmo que no limite do que orienta a Lei Orgânica da Magistratura.

Moro sabe que, ao aceitar o convite para o Ministério da Justiça, ele deixa de ser o juiz de Curitiba reconhecido mundialmente pelo combate à corrupção e ao crime organizado. Passa a ser um superministro da Justiça com uma missão complexa. Se tudo der certo, e sua passagem pela Justiça resolver questões relacionadas à corrupção e ao crime organizado, será empurrado para o próximo passo, o de tentar ser o presidente da República do combate à corrupção e ao crime organizado.


Foto: Beto Barata\PR

Miguel Reale Júnior: No alto das redes sociais

É preciso abrir frentes de interlocução com a sociedade, para não ser um presidente solitário

Na primeira eleição direta depois da ditadura, em 1989, os candidatos dos principais partidos – Ulysses Guimarães, Paulo Maluf, Aureliano Chaves, Leonel Brizola, Mário Covas – naufragaram. O povo queria o novo. Foram para o segundo turno Collor e Lula. Collor, candidato pelo pequeno PRN, apresentou-se como o caçador de marajás, em luta contra a corrupção do governo Sarney. O populismo prevaleceu sobre a força dos partidos políticos.

De similar com aquela eleição, na deste ano busca-se o novo e há ilusão de que as dificuldades serão superadas pela figura mítica do ungido, sem nenhuma avaliação racional, como crença a pairar longe de qualquer motivo objetivo.

O sentimento antissistema e anti-PT, ao simbolizar esse partido o aparelhamento do Estado, foi um dos fatores determinantes do processo eleitoral deste ano, principalmente nos municípios mais populosos e de maior índice de desenvolvimento humano (IDHs). Entre os mil municípios com maior IDH, Bolsonaro ganhou em 967; nos mil de menor índice, Haddad venceu em 975.

A população que se sentia mais independente da tutela estatal tendeu a votar em favor do novo, ou seja, contra o sistema. Isso repercutiu na eleição de governadores novéis na política, concorrendo por partidos sem expressão. Destaque-se o inexperiente Romeu Zema, na tradicional Minas Gerais, candidato pelo Novo, vencendo o ex-governador Anastasia. Novatos, sem vivência na administração pública, surpreenderam em Estados importantes como Rio de Janeiro e Santa Catarina e no Distrito Federal, bem como em Roraima e Rondônia. Ao lado disso, velhas raposas foram derrotadas: Romero Jucá, Eunício Oliveira, Roberto Requião.

Mas esses resultados não decorreram apenas dos sentimentos de rejeição ao velho e de desejo do novo. Há outro fator essencial para esse processo ter ocorrido e a ser pensado em seus surpreendentes efeitos.

Já se sentira a força das redes sociais no processo político por via das quais se destituíram governos ditatoriais no norte da África. Se no Egito se depusera Mubarak, os movimentos democráticos não conseguiram organizar um governo. A final, fundamentalistas e militares entraram em cena.

No Brasil, as redes sociais mobilizaram imensamente a população em favor do impeachment. Depois, virtualmente, reuniram-se milhões na noite de 29 de novembro de 2016, quando se urdia votar no Congresso o projeto de lei de anistia ao caixa 1 e 2. Em reação, viralizou na internet a hashtag #MaiaNovoCunha, que se tornou trending topic, conseguindo-se impedir a vitória da impunidade.

O presidente da Câmara, ao saber da repercussão nas redes sociais, suspendeu a sessão por falta de quórum. Temer, no domingo seguinte, convocou, com imprensa presente, Maia e Renan para declarar que não haveria projeto de anistia. Em artigo nesta página, escrevi: “Há uma mudança radical ainda não digerida pela classe política. A democracia representativa deve se adequar ao fato de o povo fiscalizar e cobrar o Congresso pelo Twitter, Facebook, Instagram, Telegram, WhatsApp”.

Agora, foi-se mais adiante: a força das redes sociais se fez presente, e contundentemente, numa eleição para presidente e governador. É uma nova democracia, sobre a qual restam ainda muitas perguntas.

Se já não tínhamos partidos políticos, substituídos por frentes parlamentares ou bancadas, com seus líderes processados por corrupção, agora, sim, surgiu um golpe fatal, com uma forma de democracia direta pela via virtual.

Os órgãos intermediários fundamentais numa democracia representativa não mais exercem algum papel. Bolsonaro ganhou a eleição sem partido, sem tempo de televisão, sem deputados, sem Fundo Partidário, sem governadores do seu partido, sem programa de governo discutido com a sociedade. Apenas pregou monossilabicamente alguns princípios conservadores. Por outro lado, sindicatos, órgãos de classe, entidades associativas, igrejas exercem menos influência do que os grupos de WhatsApp, acessados a cada instante.

Cada qual se sente potente ao opinar na rede social. Todos são iguais perante a internet: esse o novo direito fundamental. O excesso de mensagem contrasta com a escassez de reflexão, pois o que importa é ter opinião, sentir-se participante.

Como diz o cientista político da Universidade de Cambridge, David Runciman, em entrevista à revista Época, edição de 29/10, a crise de confiança na democracia atinge o pacote democrático composto por eleições, partidos políticos profissionais, sindicatos, programas de políticas nacionais e escolha entre direita e esquerda.

Na falha de corpos intermediários a mediar as reivindicações, cada qual não busca meios de ser representado, apresenta-se diretamente pelas redes sociais. Como sobreviverá a democracia sem partidos, cujos resultados brotam da árvore frondosa das redes sociais? Esse é o grande desafio.

No Brasil, a questão é ainda mais angustiante: a imensa participação nas redes sociais e a desmedida expectativa de resolução das dificuldades, quase que por um passe de mágica, apenas por nos livrarmos do PT, levam ao risco imenso de uma breve desilusão.

Bem ao contrário de solução imediata e fácil, as decisões políticas e técnicas, em vista de nossa realidade complexa e complicada, exigem massa crítica no exercício da reflexão, sabedoria e traquejo políticos, escolha bem pensada de prioridades, limites de campos de combate, virtudes por ora não reveladas no front do presidente eleito.

Ao estilo de pessoa do ex-capitão, ora presidente eleito, sugere-se que é preciso, como fazia o sábio dr. Ulysses, ter a paciência de ouvir e ouvir, para só bem mais tarde decidir. Além do respeito à liberdade, é preciso abrir frentes de interlocução consistentes com a sociedade, para deixar de ser um presidente solitário no alto das redes sociais.

*Miguel Reale Júnior é advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras, foi ministro da Justiça


Demétrio Magnoli: Defesa da resistência pode dar a Bolsonaro triunfo que não teve na campanha

Um presidente autoritário não é o mesmo que um regime autoritário. O primeiro pode até levar ao segundo, mas o percurso exige ingredientes especiais. Na Turquia, demandou anos de uma insurgência separatista. Não somos a Turquia. As vozes que, em nome do espantalho do “fascismo”, desceram às trincheiras da “resistência” evidenciam profunda ignorância do significado da democracia.

“A tristeza tem que se transformar em resistência”, tuitou Manuela D’Ávila na hora da proclamação do resultado, pronunciando a senha clássica da política sectária.

Em 2010, batido por Dilma, Serra falou em “resistência”. Mas resistir a um governo escolhido em eleições livres equivale a negar a soberania popular. Haddad quase seguiu pela mesma trilha, negando o telefonema simbólico de congratulações que o derrotado deve ao vitorioso, mas corrigiu-se num tuíte, no dia seguinte.

Na direção oposta, Guilherme Boulos, ícone de um PSOL que retorna ao berço lulista, conclamou à “resistência” —e foi imitado pelo pobre Eduardo Suplicy. Serra falava só para emitir sons. Ele não pretendia “resistir”, mas apenas reativar sua crônica guerra interna pela legenda do PSDB na eleição seguinte.

Já o lulismo e seus satélites parecem decididos a cavar trincheiras. Gleisi Hoffmann atribuiu a Haddad a função de articulador de uma “frente de resistência” e chegou perto de negar a legitimidade do eleito. Ela classificou os resultados eleitorais como um “fato” (alguém duvida disso?), mas qualificou as eleições como “processo eivado de vícios e de fraudes” que “consolidam” o “golpe” do impeachment. Daí ao “Fora Bolsonaro!”, o passo é curto.

Ao lado de “resistência”, a palavra “fascismo” risca o céu. Fascismo, porém, é um fenômeno definido por traços políticos que não estão presentes no bolsonarismo: um partido fascista, a organização de milícias, um modelo de Estado corporativo. O abuso do termo, dirigido como insulto aos que não se alinham com o PT, esgarça o tecido do debate público. A polarização resultante forma o ambiente propício para a coesão da maioria em torno de Bolsonaro.

A pulsão autoritária do novo presidente testará nossas instituições e leis. A vigilância é um dever democrático de parlamentares, partidos, procuradores, magistrados, bem como da imprensa e das organizações da sociedade civil. Face a ameaças definidas às garantias, direitos e liberdades, será o caso de exercitar topicamente a resistência. Mas a “resistência” em geral e a tal “frente de resistência” em particular não passam de versão atualizada da narrativa do “golpe parlamentar” que tanto impulsionou a candidatura de Bolsonaro. Não é casual, nem sem motivo, que partidos como o PDT, o PSB e o PPS resolveram excluir o PT da articulação de um bloco parlamentar oposicionista.

Gleisi, Boulos e as demais vozes histéricas das trincheiras candidatam-se, involuntariamente, ao cargo de ministro da Propaganda do governo Bolsonaro. O chamado à “resistência” ao “fascismo”, antes ainda da posse, só comove os bolsões fanatizados da militância de esquerda. Fora desse círculo de ferro, até mesmo os eleitores que votaram contra Bolsonaro sentem nisso o gosto acre da ruptura da regra do jogo. A farsa da candidatura de Lula cartografou o caminho de Bolsonaro à Presidência. A campanha da “resistência”, um imprevisto terceiro turno, pode proporcionar a Bolsonaro o triunfo ideológico que a campanha eleitoral não lhe deu.

Parlamentares falam o que lhes dá na telha. Candidatos tendem a explodir as mais elementares barreiras éticas. Nas duas condições, Bolsonaro destacou-se como caso extremo de violência retórica. Agora, no Planalto, terá que se acostumar com a caixinha da democracia. Se tudo der certo, ele sofrerá mais que nós. Se der errado, hipótese que nunca deve ser descartada, restará a resistência. Sem aspas e sem demagogia.

* Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.