Bolsonaro

Elio Gaspari: Bolsonaro precisa desacelerar

O que o governo do general egípcio Al-Sisi fez com o chanceler brasileiro Aloysio Nunes Ferreira foi uma molecagem. Cancelou a visita oficial de quatro dias que ele faria ao país a partir de amanhã. O convite partiu dos egípcios, e 20 empresários brasileiros já estavam no Cairo. Nunes Ferreira foi atingido por uma bala perdida do tiroteio trumpesco em que se meteu o candidato Jair Bolsonaro. Foi molecagem dos egípcios, porque ele não é ministro do governo do presidente eleito, mas de Michel Temer, um descendente de sírios.

Bolsonaro poderia ser Donald Trump, mas parece-se com o filipino Rodrigo Duterte, outro governante pitoresco e agressivo. Ambos têm um lado folclórico, mas Trumps abeque não pode mexer comas instituições. A decisão do candidato de levara embaixada do Brasil para Jerusalém é uma simples imitação do que fez o presidente americano. Não atende à essência das relações com Israel e prejudica os interesses nacionais com uma parte do mundo árabe.

Não foi o primeiro caso. A retórica anti-chinesa do candidato ricocheteou. O discurso anti ambientalista que contaminou sua campanha a partir de queixas do setor agropaleolítico vem sendo discretamente moderado. Isso não acontece porque Bolsonaro decidiu agradar à turma das ONGs, mas porque ouviu os grandes exportadores, que não querem tisnar suas marcas nos mercados consumidores. Diplomacia e comércio exterior funcionam direito quando trabalham em silêncio. O governo de Michel Temer começou dando caneladas mas aquietou-se. Em silêncio, poderá conseguir o fim do embargo russo às importações de carne.

Bolsonaro prometeu extraditar o asilado Cesare Battisti. Depois de receber o embaixador italiano, o presidente eleito reconheceu o óbvio: é preciso esperar apalavra do Supremo Tribunal Federal. Até lá, pode-se apenas lembrar que nos anos 60 viveu no Brasil como exilado o ex-primeiro ministro francês Georges Bidault, um dos chefes civis da organização terrorista OAS. Foi recebido no governo João Goulart e morou em Campinas durante o governo do marechal Castelo Branco.

Mesmo lidando com seus futuros ministros, Bolsonaro comete lapsos de sinceridade. Deu carta branca a Sergio Moro. Tudo bem, sabe-se que as cartas brancas são aquelas em que há mais texto, mas quando ele diz que “naquilo que nós somos antagônicos, vamos buscar o meio-termo, sou favorável à posse de arma; se a ideia dele for o contrário, tem que chegar a um meio-termo”. Só o tempo dirá onde se situa o meio termo de Moro. Uma coisa é certa, se um advogado sugere um meio-termo a um juiz, arrisca receber ordem de prisão.

Referindo-se ao plano de reforma da Previdência do superministro Paulo Guedes, o presidente eleito disse que “não está batido o martelo”. Perfeito, mas prosseguiu: “Tenho desconfiança, sou obrigado a desconfiar para buscar uma maneira de apresentar o projeto.” Ao explicar, Bolsonaro mostrou que desconfia confiando. Inverteu o lema do marechal Floriano Peixoto de “confiar desconfiando”. Ele dera carta branca ao Barão do Rio Branco, mas mandara vigiá-lo em Nova York, para saber se estava metido em conspirações monarquistas. (Não estava e nunca soube da vigilância.)


O Globo: 'Na democracia só há um norte: o da Constituição', diz Bolsonaro em discurso no Congresso

Em discurso durante cerimônia no Congresso para celebrar os 30 anos da Carta Magna, procuradora-geral da República, Raquel Dodge, diz que ‘não basta reverenciar’ o texto constitucional, é ‘preciso cumpri-lo’

Amanda Almeida, Catarina Alencastro, Eduardo Bresciani e Mateus Coutinho, de O Globo

BRASÍLIA - Em solenidade no Congresso Nacional que celebrou os 30 anos da Constituição, o presidente eleito, Jair Bolsonaro, destacou em discurso que o cumprimento da Carta Magna será um “norte” a ser seguido em seu governo. Presidente do Supremo Tribunal Federal, o ministro Dias Toffoli, sentado ao lado de Bolsonaro na sessão, conclamou a sociedade, as instituições e os Poderes da República a se unirem. Presente à cerimônia, a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, também saudou a homenageada do dia, enfatizando o papel do texto no reconhecimento da pluralidade “de crença e de opinião” e no “respeito às minorias”.

O presidente eleito, Jair Bolsonaro (PSL), defendeu ontem, em solenidade no Congresso, o cumprimento da Constituição como um “norte” a ser seguido no futuro governo. O evento, com a participação de diversas autoridades, aconteceu em comemoração aos 30 anos da Carta Magna. Foi a primeira viagem dele depois da vitória na eleição, em 28 de outubro.

— Na democracia, só há um norte: o da nossa Constituição. Juntos, vamos continuar construindo o Brasil que nosso povo merece. Temos tudo para sermos uma grande nação. Alguns de nós podemos mudar o destino dessa grande nação. Acredito em Deus, acredito em nosso potencial —afirmou Bolsonaro, em discurso que durou cerca de tês minutos.

O presidente eleito também agradeceu a Deus por ter “salvo” a sua vida, em referência ao atentado a faca que sofreu em Juiz de Fora (MG), quando participava de um ato de campanha no início de setembro. Bolsonaro ouviu declarações em defesa da Constituição de todas as autoridades presentes.

A procuradora-geral da República, Raquel Dodge, destacou que celebrar a Carta é importante, mas não suficiente. Segundo ela, é necessário “guardá-la”.

— Não basta reverenciá-la em uma atitude contemplativa: é preciso cumpri-la à luz da crença de que os países que custodiaram escrupulosamente suas constituições identificam-se como aqueles à frente do processo civilizador e irradiadores de exemplaridade em favor das demais nações que hesitaram ou desdenharam em fazê-lo.

Para Dodge, a conduta frente à Carta se reflete na imagem das instituições:

—Os frutos deste comportamento estatal em relação à Constituição são colhidos diretamente pelo povo, que se orgulha ou se envergonha de suas instituições.

‘RESPEITO ÀS MINORIAS’
A procuradora-geral também defendeu a liberdade de imprensa e a autonomia das universidades.

— A Constituição garante autonomia universitária para que a inovação, o saber e o aprendizado desenvolvam-se sem amarras. O governo de leis promove paz e estimula a concórdia. Numa nação de imigrantes e nativos, a Constituição reconhece a pluralidade étnica, linguística, de crença e de opinião, a equidade no tratamento e o respeito às minorias. Garante liberdade de imprensa para que a informação e a transparência saneiem o conluio e revelem os males contra os indivíduos pelo bem comum.

Antes do discurso de Bolsonaro, o presidente do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli, afirmou que, passado o período eleitoral, o Brasil “precisa encontrar um ponto de união em meio às diferenças, como é próprio do estado democrático de direito”.

— A sociedade, suas instituições e os Poderes da República devem voltar a se unir para pensar no desenvolvimento do país. É o momento de a política voltar a liderar as grandes questões da nação para podermos voltar à clássica divisão dos Poderes: cabe ao Executivo cuidar do futuro, o Legislativo do presente e ao Judiciário dirimir conflitos do passado —afirmou.

O ministro defendeu a necessidade de reformas:

— O grande desafio que a Constituição Federal tem hoje é o de se renovar em aspectos que permitam o crescimento econômico e a responsabilidade fiscal. Esse é o desafio diante da nação. Precisamos de uma reforma da Previdência para fazer frente ao aumento da expectativa de vida no país e uma reforma que promova simplicidade e eficiência no sistema tributário e fiscal.

Toffoli ficou sentado ao lado de Bolsonaro durante o discurso. Na reta final da campanha, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), filho do presidente eleito, teve que se explicar por ter dito que bastava um cabo e um soldado para fechar o STF.

A cerimônia foi aberta pelo presidente do Senado, Eunício Oliveira (MDBCE), que não conseguiu a reeleição. O senador se dirigiu a Bolsonaro durante o discurso ao afirmar que, dentro do texto constitucional, é possível encontrar todas as saídas necessárias para levar o país ao caminho do crescimento.

— Nela (Constituição), presidente eleito, Jair Bolsonaro, vossa excelência encontrará o enquadramento jurídico necessário para o Brasil encaminhar o círculo virtuoso de desenvolvimento sustentável. Este não é apena o meu sonho: é o sonho de todos nós — disse Eunício.

Eunício também criticou a tentativa da equipe de Bolsonaro de barrar a entrada de jornalistas na cerimônia e disse que a imprensa poderá circular livremente na posse do presidente eleito:

— Enquanto eu for presidente, nem Trump, Bush, Hillary, Zezinho, Manoelzinho... (barram a imprensa). Essa aqui é a casa da democracia. A Constituição libertou o Brasil. Os constituintes trabalharam muito para libertar o Brasil de um outro momento.

Já o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEMRJ), disse que a Constituição tem se mostrado mais forte e resistente às críticas e aproveitou para defender a necessidade de uma reforma da Previdência, o que só pode ser feito via emenda constitucional:

— O fato de não querermos uma nova Constituição não é uma forma de negar a necessidade de reformas. Mudam seu texto para ela possa permanecer, alteram seu texto para fortalecer seus princípios.

O presidente Michel Temer defendeu que haja encontros periódicos entre os chefes dos Três Poderes. O presidente disse ainda que o Executivo, Legislativo e Judiciário são independentes, mas devem ser harmônicos. E ressaltou que “não há caminho fora da Constituição”.

— Somos autoridades constituídas. Não somos titulares do Poder. Titular do Poder é o povo. Mas é preciso, como somos órgãos exercentes do Poder, fazer aquilo que nosso ministro (Dias) Toffoli está dizendo: encontros entre os Poderes do estado —disse Temer.


Míriam Leitão: O que evitar na política externa

Se o Brasil adotar uma política externa à reboque dos EUA fará o contrário do que os próprios militares implantaram no período deles

Diplomacia é arte de delicada tessitura. Mesmo para endurecer é preciso saber como fazer e qual é o passo seguinte, como num jogo de xadrez. E só deve ter um norte: o interesse do Brasil. O próximo governo tem falado qual será a política externa antes de escolher o futuro ministro. Como candidato, Jair Bolsonaro fez declarações das quais teve que recuar. Como presidente eleito deveria evitar precipitações porque suas palavras têm enorme peso agora. Nos governos Geisel e Figueiredo o Brasil retomou a política externa não ideológica e não alinhada aos Estados Unidos, que, depois, foi seguida em governos democráticos.

Os ministros Azeredo da Silveira e Saraiva Guerreiro, nos governos Geisel e Figueiredo, conduziram o chamado “pragmatismo responsável". O Itamaraty retomou, naquela época, o caminho de uma política externa independente que havia sido abandonada no início do regime militar.

Um dos exemplos dessa política ocorreu em novembro de 1975 quando o Brasil foi o primeiro país a reconhecer o novo governo angolano que havia declarado a independência em relação a Portugal, e era comandado pelo MPLA, que se declarava marxista. Uma parte do país era dominada por outro grupo guerrilheiro, a Unita, que anos depois perdeu a guerra.

Geisel, em março de 1977, rompeu o acordo militar com os Estados Unidos assinado nos anos 1950. Era uma forma de o Brasil escolher seu caminho também nesta área. O então presidente chegou a pensar num rompimento de outros acordos, mas foi aconselhado pelos diplomatas a esperar a reação americana com cartas na manga. Tudo o que os Estados Unidos fizeram foi enviar o general Vernon Walters ao Brasil para tentar demover o país, missão que fracassou.

O voto antissionista na ONU em 1975 causou bastante polêmica. Ele considerava o sionismo uma forma de discriminação. A questão dividiu a ONU e os países, mas a decisão brasileira foi vista como autônoma. Foi uma etapa importante da aproximação com os países árabes com quem o Brasil tem um comércio vigoroso. Foram instaladas unidades especiais só para fornecer frango para os árabes.

A transferência da sede da embaixada do Brasil para Jerusalém pode ter como efeito bumerangue a retaliação comercial dos árabes ao Brasil. Mas principalmente é ruim por significar um retrocesso no não alinhamento automático com os Estados Unidos, um dos avanços conseguidos na diplomacia dos últimos governos militares. Só um país do mundo, a Guatemala, seguiu os Estados Unidos nessa decisão.

No período João Figueiredo, o Brasil se recusou várias vezes a entrar em conspirações e conflitos na região, nos quais os Estados Unidos de Ronald Reagan tentaram nos envolver. Em uma dessas vezes houve um fato que ficou famoso. O subsecretário americano Thomas Enders veio ao Brasil tentar convencer o país a participar da tentativa de derrubar o governo sandinista. O ministro Saraiva Guerreiro costumava fechar os olhos e respirar profundamente no meio das conversas, o que levava o interlocutor a achar que ele dormira. Enders explicava que o Brasil deveria integrar uma força militar para a intervenção contra o governo sandinista, e Guerreiro fechou os olhos durante a longa explanação, deixando o americano desconcertado. Quando parou de falar, Guerreiro perguntou:

— Do you believe in God, mister Enders?
O subsecretário, cada vez mais confuso, disse que sim, acreditava em Deus. Ao que Guerreiro respondeu em inglês:

— Então vamos rezar pelo povo da Nicarágua.

Com essas e outras o Brasil, diplomaticamente, evitou virar uma espécie de ajudante americano na região ou entrar em brigas dos Estados Unidos, como as sanções que o governo Carter tentou aplicar contra a União Soviética. O atual presidente Donald Trump cria arestas com todo mundo, inclusive aliados. Seria um erro estratégico enorme o Brasil aceitar ser caudatário dos Estados Unidos.

O pior que pode nos acontecer é depois de termos saído de uma política externa ideológica de esquerda, irmos para outra ideológica de ultra-direita. A diplomacia tem que defender os interesses do país, de forma equilibrada e pragmática. Quando outros elementos, como manias e idiossincrasias do governo de plantão, entram nas decisões algo dá sempre errado.


Gil Castello Branco: É a sociedade digital, estúpido!

O capitão cristão fortaleceu-se na internet como oposição ao ‘sistema’

Após vencer a Guerra do Golfo, Bush era favorito absoluto para ganhar as eleições de 1992 contra o desconhecido governador de Arkansas, Bill Clinton. O marqueteiro de Clinton, James Carville, apostou que, com a economia em recessão, Bush não era invencível e cunhou a frase que explicou o resultado: “É a economia, estúpido!”.

Bolsonaro é um case de marketing. Candidato pelo então minúsculo PSL, sem apoio dos partidos tradicionais, sem dinheiro, criticado de forma contundente pela maioria dos acadêmicos, artistas e veículos de comunicação (nacionais e internacionais), com acesso ínfimo ao horário eleitoral e, ainda, em claro confronto com a “ordem” vigente (ideológica, econômica e política), venceu com 57,8 milhões de votos.

O sociólogo espanhol Manuel Castells, estudioso dos movimentos sociais na era da internet, diz, há anos, que o modelo democrático conservador está esgotado. A indignação começa nas redes sociais e transborda para as ruas e urnas. De fato, em 2013, cerca de 1,3 milhão de pessoas protestaram no asfalto externando a insatisfação popular que já era evidente na internet. O reflexo nas urnas demorou, mas chegou...

À época, inúmeras raposas da política brasileira disseram que os interesses eram difusos e que faltava uma “causa” aos manifestantes. Ignoraram grande parte das infinitas razões do descontentamento. Bolsonaro — até então um deputado inexpressivo, com posições e frases polêmicas —, ao contrário, viajou pelo Brasil e pelo mundo virtual, personificando a insatisfação social “contra tudo e contra todos”. Conforme pesquisa da FGV, 78% dos brasileiros não confiavam nos políticos e nos partidos. Por outro lado, a sociedade confiava nos militares (45,8%) e na Igreja (61,5%). O capitão cristão fortaleceu-se na internet como oposição ao “sistema” enquanto os políticos discutiam como distribuir verbas dos fundos partidário e eleitoral, tempo de televisão e palanques nos estados. Alguns ainda defenderam colegas corruptos, que já estavam presos ou que deveriam estar.

A carcomida estrutura política brasileira desprezou a era digital: o Facebook do maior partido brasileiro em número de filiados, o MDB, é curtido por apenas 79.659 pessoas, enquanto o do Nas Ruas, criado pela sociedade civil, tem 770.075 curtidas. O PSDB coligou-se com o Centrão para tornar-se o “campeão” de minutos no horário eleitoral, mas morreu longe da praia. O seu Facebook tem 1,3 milhão de curtidas, enquanto o do movimento Vem Pra Rua Brasil possui mais de dois milhões. O PT, recriminado pelo rapper Mano Brown por “não falar a língua do povo”, também não se destaca na linguagem virtual. O seu Facebook tem 1,5 milhão de curtidas, praticamente a metade das 3,1 milhões do Movimento Brasil Livre, que se insurgiu contra o aumento das passagens em São Paulo. A título de comparação, o Facebook de Jair Bolsonaro é curtido por 8,7 milhões de pessoas...

Nas outras redes, não é muito diferente. O Twitter de Bolsonaro tem 2,3 milhões de seguidores contra 1,1 milhão de Haddad. No Instagram, os 6,8 milhões de seguidores de Bolsonaro superam a soma dos que seguem todos os outros recém-candidatos a presidente.

Os dados são relevantes, pois, no ano passado, em pesquisa da FGV, quase a metade dos entrevistados (49,5%) disse que se informa sobre política no Facebook, Twitter, WhatsApp, blogs e sites.

Nas campanhas eleitorais, nada será como antes de 2018. O país possui 139 milhões de internautas e 120 milhões de contas de WhatsApp. Existem 220 milhões de smartphones para 209 milhões de habitantes.

Na Grécia Antiga, a sociedade se reunia na Ágora, a praça do povo, para debater com os arcontes, embaixadores e generais. A cidadania agora é tratada nas redes sociais, às vezes à revelia do que desejam os partidos políticos, seus dirigentes e muitos dos que pensavam ter ingerência sobre o pensamento da sociedade brasileira.

Para os que ainda não entenderam como Bolsonaro venceu, sugiro adaptarem a frase do marqueteiro de Clinton, James Carville. É a sociedade digital, estúpido!

 


José Casado: Bolsonaro no buraco

Presidente eleito seria um poeta se falasse menos sobre política externa

Aconteceu numa segunda-feira de 55 anos atrás, na Manhattan de um mundo em Guerra Fria, quando Jair Bolsonaro era apenas um garoto nas ruas descalças de Ribeira (SP), a oito mil quilômetros de distância.

Cinco homens e uma mulher entraram no 112-Oeste da Rua 48, Nova York. Há meses Astrud Gilberto (voz), Antonio Carlos Jobim (piano), Tião Neto (baixo), Milton Banana (bateria), João Gilberto (violão) e Stan Getz (sax) lutavam para apresentar a bossa nova ao público.

Nos ensaios faltou sintonia entre Getz e João, relata Ruy Castro em “Chega de saudade”. O baiano explodiu: “Tom, diga a esse gringo que ele é burro.” O carioca Jobim virou-se para o americano e traduziu: “Stan, o João está dizendo que o sonho dele sempre foi gravar com você.”

Foi um dos grandes momentos da diplomacia brasileira: o disco “Getz/Gilberto” abriu o mercado dos EUA e da Europa para a bossa nova.

Bolsonaro não possui átomo da genialidade diplomática de Jobim, mas seria um poeta se falasse menos sobre política externa no seu mandato.

Em uma semana (lapso de tempo em que os seis de Nova York lapidaram um revolucionário Made in Brazil), Bolsonaro e equipe conseguiram semear tensões e incertezas sobre o futuro do Brasil com Argentina, Paraguai e Uruguai (sócios no Mercosul), China, Cuba, União Europeia, países árabes e muçulmanos.

Presidente eleito de um país desesperado para ampliar exportações e receber investimentos estrangeiros, Bolsonaro resolveu desprezar um quarto do mercado global, com três bilhões de consumidores. Semana passada a China advertiu, publicamente, que uma ruptura vai “custar caro” ao Brasil. Ontem, o Egito recusou-se a receber o chanceler brasileiro, em reação ao alinhamento do Brasil ao governo Trump na mudança da embaixada para Jerusalém.

Bolsonaro pode não gostar da melodia de Tom e preferir o punk-brega de Trump, mas deveria ouvir o conselho grátis do bilionário Warren Buffet, um conservador: “Se você está num buraco, a coisa mais importante a fazer é parar de cavar.”


Luiz Carlos Azedo: A decisão estratégica

“Um alívio de cinco anos no caixa do Tesouro é tudo o que o novo governo precisa para executar seu programa de reformas e retomar o crescimento econômico”

“A decisão mais estratégica é a aprovação da reforma da Previdência que está pronta para ser votada no Congresso. Com ela, o novo governo terá melhores condições para cuidar da economia”, acredita o ministro de Minas e Energia, Moreira Franco, responsável pela elaboração do documento Uma ponte para o futuro, que continua sendo a principal agenda de reformas do país, e um dos artífices das articulações que levaram Michel Temer à Presidência. Moreira já arruma as gavetas para uma retirada em ordem, como se diz no jargão militar. Mas está entre os que defendem a maior colaboração possível com o novo presidente eleito, Jair Bolsonaro, para que a transição de governo seja suave.

Um alívio de cinco anos no caixa do Tesouro é tudo o que o novo governo precisa para executar seu programa de reformas e retomar o crescimento econômico. Mas a prioridade política de qualquer governo que se inicia é a eleição das Mesas da Câmara e do Senado. É aí que está o problema. Bolsonaro tem interesse em aprovar qualquer coisa que o ajude no começo do governo a enfrentar o deficit fiscal, mas precisa da eleição de aliados para as presidências das duas Casas para ter governabilidade, ainda mais diante de uma oposição como o PT, que elegeu a maior bancada da Câmara.

Atual presidente da Câmara, o deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ) é candidato à reeleição. Sem seu apoio decidido, a soma de esforços de Temer e Bolsonaro pode não ser suficiente para aprovar a reforma. O ministro extraordinário da transição de governo, Ônix Lorenzoni (DEM-RS), futuro chefe da Casa Civil, responsável pelas articulações no Congresso, sabe disso. Entretanto, é um desafeto de Rodrigo Maia, com quem entrou em rota de colisão quando era líder da legenda e acabou sendo por ele isolado. Deu a volta por cima como dissidente da legenda, que apoiou o tucano Geraldo Alckmin. Lorenzoni foi dos primeiros a embarcar na nau catarineta de Bolsonaro, que o levou ao poder. Sem acordo entre Bolsonaro e Maia a reforma sequer entra na pauta.

Dificuldades

O novo governo tem uma base parlamentar robusta, mas as estrelas do partido de Bolsonaro, o PSL, não têm quilometragem rodada para disputar e vencer uma eleição na Câmara. Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), campeão de votos, é um deputado novato, que já se coloca como líder informal do novo governo, mas não tem cancha para articular uma votação que depende do apoio de três quintos da Câmara, ou seja, 308 votos. Além disso, a Previdência é um assunto que divide a própria bancada de Bolsonaro, onde há muitos interesses corporativos cristalizados, e o novo presidente emite sinais de que pretende mudar os paradigmas das negociações com o Congresso, fechando acordos em bloco com os partidos, sem troca de cargos e liberação de verbas.

Ao contrário de Temer, que loteou o governo para garantir a permanência no cargo, Bolsonaro tem a legitimidade das urnas para se impor ao Congresso, mas não necessariamente o atual, cujos integrantes se consideram “sobreviventes” ou foram mesmo derrotados, pois houve uma renovação de 47% na Casa. Segundo o relator do projeto, deputado Arthur Oliveira Maia (DEM-BA), um dos que se reelegeu, para que o projeto avance é necessário que haja articulação política por parte do novo presidente eleito.

Segundo o cientista político Murilo Aragão, da Arko Advice, mesmo sendo uma reforma mais enxuta, encontra um rol de dificuldades. Não há um texto consensual. Ainda é necessário um amplo processo de negociação com as lideranças partidárias. Por se tratar de emenda constitucional, são necessários 308 votos.

“O prazo é curto, porque faltam apenas sete semanas de atividade parlamentar até o recesso do Congresso, que começa no dia 22 de dezembro. Aqueles que não foram reeleitos creditam sua derrota à aprovação da reforma trabalhista; por isso, não querem sair aprovando outra medida impopular. Os atuais parlamentares não querem aprovar uma reforma mais enxuta se, no próximo ano, terão de aprovar uma reforma ainda mais agressiva. A diminuição do número de ministérios e a reduzida quantidade de indicações políticas para cargos relevantes restringem a motivação política do atual Congresso para aprovar a reforma ainda este ano”, avalia Aragão.

Pesquisa realizada entre 9 e 11 de outubro pela Arko Advice com 164 deputados mostrou que 51,82% não acreditavam na aprovação da reforma da Previdência em 2018, caso Bolsonaro vencesse as eleições presidenciais. “Portanto, a chance de aprovação da reforma ainda este ano fica em torno de 40%. Para que seja viabilizada, Bolsonaro teria de participar ativamente das negociações. Contudo, em caso de derrota, seu envolvimento direto traria mais desgaste ao novo governo do que os benefícios advindos de uma eventual aprovação”, conclui o cientista político.

http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-a-decisao-estrategica/

 


Maurício Huertas: Procura-se o sucessor de Jair Bolsonaro (mas, já???)

O Brasil - e a política tradicional, principalmente - é mesmo um caso a ser estudado. O presidente Jair Bolsonaro (PSL) nem tomou posse e já se discute quem será o seu sucessor, em 2022.

Isso porque, na campanha de 2018, Bolsonaro afirmou ser contra a reeleição, então já aparecem com altíssima cotação na bolsa de apostas dos especuladores eleitorais os nomes do futuro ministro da Justiça, juiz Sérgio Moro, e do recém-eleito governador de São Paulo, João Doria (PSDB).

A imprensa cobrou de Moro a afirmação de que "jamais entraria na política". Ele reafirmou, ontem, que "jamais será candidato", mas que entra para o Ministério como um "técnico". É o tipo de declaração que o perseguirá para sempre. O tucano João Doria que o diga. Foi carimbado de "mentiroso" e "sem palavra" por ter largado a Prefeitura de São Paulo com apenas um ano e três meses de mandato, contrariando promessa anterior.

O problema é alguém achar que o futuro político se define assim, com tamanha antecedência. Basta verificar o histórico das eleições presidenciais. Excetuando-se as reeleições tranquilas de FHC e Lula, barbadas para qualquer apostador, os outros resultados foram muito mais inesperados. Ou alguém imaginava em 1989 que Fernando Collor sofreria impeachment, seria substituído pelo vice Itamar Franco e, aí sim, ainda mais surpreendente, seu sucessor seria Fernando Henrique Cardoso?

E depois das vitórias fáceis de FHC em 1994 e 1998, alguém apostaria que o PT seria eleito e reeleito quatro vezes consecutivas?

Durante o governo Lula, alguém arriscaria dizer que a "técnica" Dilma Rousseff seria o poste de plantão para a sucessão presidencial? E depois que Michel Temer assumiria após outro impeachment?

Para encerrar, quem arriscaria dizer, em novembro de 2014, com Dilma recém-reeleita (naquela disputa acirradíssima com Aécio no 2º turno) que, quatro anos depois, o novo presidente seria Jair Bolsonaro - na época só mais um dos personagens preferidos para o bullying dos humoristas do programa CQC?

Vivendo e aprendendo. Ou não.


Cacá Diegues: Uns choques necessários

Na democracia, a maioria escolhe os que comandarão a sociedade, mas também os que vão fazer oposição

O Partido dos Trabalhadores conseguiu produzir, em crescendo, uma autoimagem negativa para seus aliados naturais e eleitores de sempre. A alta auto-concentração de seus projetos, a ausência de autocrítica, o culto à personalidade sem limites, o fracasso espetacular do governo Dilma e a arrogância apesar de tudo fizeram do PT um alvo prioritário de eleitores irritados. Os inúmeros erros desde o mensalão, negados sem explicação conveniente e com intransigência autoritária, acabaram por contagiar tudo o que vinha dali. Inclusive a cândida candidatura de Fernando Haddad.

Em grande parte do voto majoritário que elegeu o novo presidente, deve estar a rejeição a um partido político que, apesar de anos no poder, quase nunca realizou o prometido, enquanto anunciava sua excelência como representante das classes populares e exibia uma velha liderança que, ao contrário do que já fora, se tornara populista, personalista e cheia de ambiguidades. O PT se tornaria assim eleitor involuntário de um candidato conservador que se dispunha a acabar, na marra, com a corrupção no serviço público, principal razão da miséria brasileira da qual o próprio Partido dos Trabalhadores fazia parte.

Mesmo que não concordemos com as ideias e com o programa dos vencedores, não podemos esquecer que eles foram eleitos pelo voto popular, uma maioria indiscutível do país. Mas, numa democracia, não é por ser maioria que eles se tornam inquestionáveis. Temos o direito de discordar, desejar para o Brasil um outro futuro que não aquele que anunciam. Numa democracia, a maioria escolhe os que vão comandar a sociedade, mas também aqueles que vão lhes fazer oposição, mantendo sempre acesa a possibilidade de a minoria estar eventualmente com a razão. É para isso que existem os outros, os que não pensam como eles, que não são iguais a eles.

Nessas eleições, o país deu uma guinada à direita. O responsável por essa guinada foi a vontade do povo, seja qual for a razão dele. Como não estou de acordo, me preparo para discordar, ser a sua negação democrática. Mas, para isso, não preciso invocar resistência alguma, ação passiva de derrotados imobilizados. Como os franceses foram na blitz da ocupação nazista, ou como nós mesmos fomos na surpresa da ocupação militar de 1964. Na democracia, os que não concordam com o resultado da consulta popular devem fazer oposição sabendo celebrar o que julguem justo, torcendo para que o país dê certo, mesmo que parcialmente e nas mãos de quem não escolhemos para nos representar.

Temos vivido um vendaval de opiniões sectárias e histéricas de todos os lados, produzido por frustrações que não têm nada a ver com o estado do país. Há muito o que fazer pelo Brasil, em qualquer circunstância. É preciso acabar com a fome de grande parte da população, corrigir nossa brutal desigualdade, evitar a burocratização do ensino e da cultura, vencer a mortalidade infantil que cresce novamente, criar empregos para 12 milhões de brasileiros, proteger a população da violência e da insegurança públicas. Na eleição de 1989, a primeira da redemocratização do país, Mário Covas pregava um choque simultâneo de capitalismo e de democracia. Talvez estejamos de novo precisando disso, para acabar com o “capetalismo” e a “democradura”, invenções brasileiras tão sombrias, quanto indefinidas.

Temos, enfim, a obrigação de cumprir o que está em nossa Constituição de 1988. Ela não é apenas um relato de obrigações neutras, mas fala sobretudo de nossos deveres com a nação, em seus diferentes artigos: construir uma sociedade livre, erradicar a pobreza e as desigualdades sociais, não aceitar os preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade ou qualquer outra forma de discriminação. E por aí afora. Na abertura do primeiro capítulo do livro “Retrato do Brasil”, de Paulo Prado, um autor que não podia estar tão esquecido, está escrito: “Numa terra radiosa vive um povo triste”. Talvez seja nosso dever torná-lo mais alegre.


Demétrio Magnoli: Você disse ‘Dois Brasis’?

O mapa eleitoral do segundo turno reproduz, em cores ainda mais nítidas, a polaridade regional de 2014. Bolsonaro triunfou, quase sempre por largas margens, no Centro-Sul e nas suas extensões amazônicas. O PT venceu, avassaladoramente, no Nordeste e na Amazônia “tradicional”. A fronteira geográfica do voto foi traçada em 2006, na reeleição de Lula, e sedimentou-se nas duas eleições presidenciais seguintes. A velha tese dos “Dois Brasis”, enunciada pelo sociólogo francês Jacques Lambert em 1957, emerge como profecia oracular. Desconfio, porém, que o brilho intenso do mapa regional binário sinalize a sua explosão. A cartografia política de 2018 funciona como diagnóstico, não como prognóstico.

São raros os países, como EUA e Itália, que exibem persistentes padrões regionais de voto. O Brasil não teve nada parecido com isso até o ciclo de poder lulopetista. Lula triunfou no país todo (menos em Alagoas) em 2002. Depois, porém, o lulismo perdeu a maior parte do eleitorado do Centro-Sul, enquanto ampliava sua hegemonia no Nordeste. A derrota de Haddad marcou a conclusão do percurso, com a transferência de Minas Gerais e do Rio de Janeiro para o campo antipetista. De certo modo, é Lambert que venceu as eleições de 2018.

A tese binária da oposição entre um “Brasil moderno” e um “Brasil arcaico” está refletida no mapa do voto por município. Nele, aparecem tanto os bastiões remanescentes de voto petista em bolsões deprimidos do Centro-Sul (sul do RS, norte de MG) quanto as veredas do voto antipetista nos eixos de expansão da fronteira agrícola na Amazônia (sul do PA, RO, AC). O gráfico de dispersão do voto segundo o IDH confirma a natureza da polaridade expressa no mapa: Bolsonaro venceu em 97% dos municípios de maior renda; Haddad, em 98% do municípios de renda menor. A correlação voto/ renda é tão brutal quanto a voto/região —e a primeira explica a segunda.

Daí, nascem discursos ideológicos simétricos: a acusação petista do “voto preconceituoso” e a acusação antipetista do “voto comprado”. De fato, porém, os eleitores movem-se no campo das percepções (reais ou ilusórias) sobre seus interesses concretos. O Centro-Sul votou contra a corrupção oficial, um sistema de privilégios e compadrio, o descaso com os serviços e bens públicos. O Nordeste votou por políticas de salário e renda que propiciam o acesso dos pobres à esfera do consumo. Nas duas pontas, o voto traduz reivindicações legítimas de cidadania. Os “Dois Brasis” são “modernos”, mas de formas distintas.

Tudo que parece sólido desmancha no ar. O voto do Centro-Sul inclinou-se para os tucanos por três eleições consecutivas, durante o ciclo lulopetista. Agora, a implosão do PSDB, o impacto da Lava-Jato e o caráter plebiscitário imposto à eleição pelo PT empurraram esse eleitorado rumo a uma candidatura extremista abrigada num partido sem raízes sociais. O núcleo ideológico bolsonarista ilude-se ao imaginar que sua agenda autoritária, conservadora e ultraliberal tornou-se, subitamente, majoritária. O antipetismo, em circunstâncias singulares, é suficiente para vencer uma eleição — mas não para governar o país. O voto de 2018 não indica a direção do voto de 2022.

A hegemonia lulista no Nordeste, comprovada nas urnas pela quarta vez consecutiva, só parece indestrutível ao analista distraído. O eleitorado nordestino abraçou as políticas de renda do lulismo, mas nunca votou na agenda ideológica do PT. Logo mais, o governo Bolsonaro terá as chaves que controlam os reajustes de salário mínimo, aposentadorias e Bolsa Família. Não se deve menosprezar a hipótese de transferência, para Bolsonaro, de um eleitorado profundamente dependente de políticas estatais. A pretensão do PT de liderar uma “frente de oposição” deve ser analisada à luz dessa perspectiva de médio prazo, que ajuda a decifrar a lógica da ruptura de Ciro Gomes com o lulismo.

O brilho das estrelas não nos conta uma história sobre o presente do Universo, mas sobre o seu passado. O mapa eleitoral de 2018 é um farol apontado para trás. “Dois Brasis”? Pense outra vez.


Eugênio Bucci: Macarthismo e mau-caratismo

Brasil transita em direção a uma cultura da violência

O senador americano Joseph McCarthy (1908-1957), republicano, virou o ícone da sanha anticomunista que tomou conta dos Estados Unidos entre os anos 40 e 50. A ordem democrática não foi oficialmente quebrada, mas quase.

O "macarthismo" foi uma santa inquisição sem batina, perseguindo fanaticamente escritores, roteiristas, atores e jornalistas, sem prova. Queimou reputações e estripou a honra de suas vítimas, numa campanha trágica e ridícula, de uma só vez. Não tinha justificativa, mas tinha um contexto: a Guerra Fria.

O planeta se dividira entre comunismo e capitalismo. O Tio Sam temia que a União Soviética infiltrasse na "América" seus agentes malignos disfarçados de pessoas aparentemente "normais", como na série de televisão "Os Invasores". Era preciso incinerá-los. O cidadão pacato podia ser o inimigo "disfarçado".

Na ditadura militar brasileira, os governantes, convencidos de que a política era a continuação da guerra, destroçaram famílias, vidas e esperanças sob o pretexto imundo de combater o "inimigo interno", que estaria a serviço do "inimigo externo". O resultado foi uma farsa grotesca e sanguinária que, além de não ter justificativa, não tinha nem contexto.

Agora, com a vitória de Jair Bolsonaro, ganha estridência no Brasil uma fúria anticomunista de cunho patrioteiro, religioso, moralista --e anacrônico. Seus agentes gritam em defesa dos costumes da "família". Não admitem que adolescentes vejam beijos homoafetivos em livros ou na televisão, embora declarem não ter "nada contra" a "opção" (outro sem sentido) homossexual. Invocam o nome de Deus como cruzados. Consideram imorais as novelas da Globo.

Em seu credo, toda a corrupção é culpa da esquerda, e a direita representa toda a honestidade humana. Entre uma coisa e outra, essas falanges insultam a imprensa de todas as maneiras. Intimidam jornalistas e achincalham gratuitamente órgãos de imprensa.

O Brasil não está em transe, mas transita. Transita de uma cultura política que cultivava aspirações de pluralismo, liberdade e diversidade, com base nos valores dos direitos humanos, em direção a uma cultura da violência ("mirar na cabecinha", "direitos humanos para humanos direitos"), do nacionalismo furibundo de disciplina impositiva.

A prepotência já pôs duas de suas quatro patas na rampa do Palácio do Planalto. As outras duas logo virão: repressão aberta aos movimentos sociais, pregações contra a liberdade de cátedra nas universidades (e contra a gratuidade do ensino), ações deliberadas para ferir ou matar jornais independentes do governo.

Quando o presidente eleito prometeu cortar verbas do governo para esta Folha -- a primeira vez ainda antes da eleição, no comício de 21 de outubro, e a segunda vez, no dia seguinte à sua vitória, durante a entrevista que deu ao Jornal Nacional, no dia 29 --, foi coerente com seu projeto obscurantista.

Ele há de saber que não pode adotar um critério pessoal para orientar compras públicas (e a compra de espaço publicitário para veicular mensagens do governo é uma compra pública como qualquer outra, obrigada a observar o princípio constitucional da impessoalidade). Ele sabe e tem o dever de saber que o Estado não é uma extensão da personalidade do presidente. Tem o dever de saber que, se cumprir sua promessa de perseguir a Folha, afrontará o Estado de Direito.

No mais, o macarthismo nunca teve caráter. Fora de tempo e de lugar, tem menos ainda. A imprensa precisa resistir. Com reportagens apartidárias, crítica franca e profundidade analítica, terá de mostrar que o novo delírio autoritário que cresce no Brasil se situa perigosamente fora da razão e fora do campo democrático.

*Eugênio Bucci é professor da ECA-USP e articulista do jornal O Estado de S. Paulo


Vinicius Torres Freire: Ministro terá poder de investigação do governo e informação sobre crimes financeiros

O ministério que Sergio Moro deve assumir não seria mais do que a velha pasta da Justiça não fosse a incorporação de duas instituições importantes: a CGU (Controladoria-Geral da União) e o Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras).

Com a CGU, Moro passaria a comandar uma espécie de polícia administrativa e a inspetoria do governo.

Com o Coaf, terá algum controle sobre uma agência de inteligência que recebe, analisa e encaminha ao Ministério Público e à polícia denúncias de lavagem de dinheiro e uso de recursos para fins criminosos, terrorismo inclusive.

Desde que foi criada, em 2003, a CGU teve ligação direta com o presidente da República —ora é um ministério. O Coaf é filho da lei de lavagem de dinheiro, de 1998, desde sempre abrigado no Ministério da Fazenda.

No mais, a Justiça de Moro vai reabsorver as polícias federais, deslocadas neste ano para o breve Ministério da Segurança.

Moro não será o xerife absoluto de CGU e Coaf, regulados por leis até bem estritas. Mas instituições podem ter sua atuação reforçada, ampliada ou até laceada, a depender de quem as comande e componha.

Além do mais, CGU e Coaf devem mudar, até porque serão necessárias leis para transferi-las para a Justiça e redefinir seus comandantes, pelo menos.

Não foi possível confirmar se Moro reivindicou a CGU, mas próximos de Jair Bolsonaro dizem que o futuro ministro pediu para ficar com o Coaf. Lê-se por aí que Moro levará apenas "parte do Coaf", o que ora não faz sentido.

A CGU avalia, audita, controla e pode investigar procedimentos, programas e servidores do governo inteiro.

É uma espécie de promotoria de defesa contra ineficiências, corrupção e outras irregularidades no Executivo. Agora, será subordinada a um ministro.

Quem vai comandá-la, com qual autonomia? Seja como for, um órgão de controle supraministerial estará sob Moro —como inspetor-geral, digamos, terá mais poder.

A lei de lavagem de dinheiro de 1998 obriga pessoas e instituições a prestar informações de transações suspeitas.

A lista de obrigados é aqui impublicável, de tão grande, mas o setor financeiro, seus órgãos de fiscalização e todos os envolvidos em transações de bens e serviços de grande valor estão obrigados a registrar ou notificar negócios a partir de certa monta ou suspeitos. Incluem-se aí transações financeiras, com imóveis, joias, arte e outros bens de luxo, produtos do agronegócio ou passe de atletas.

Tais informações devem ser enviadas ao Coaf, que pode requisitar dados cadastrais de pessoas, analisa o caso e reporta possíveis rolos ao Ministério Público ou à polícia. Órgãos muito parecidos existem em vários países civilizados. Gente graúda do Ministério Público diz que o Coaf funciona de modo razoável.

O Coaf não tem poder de investigação autônomo e no máximo aplica penas administrativas. É comandado por 11 conselheiros, funcionários de carreira indicados por vários ministérios e agências de Estado, com presidente nomeado pelo ministro da Fazenda. Vai mudar, claro. Mas como?

Em sua carreira, Moro trabalhou essencialmente com lavagem de dinheiro. Escreveu um livro sobre o assunto ("Crime de Lavagem de Dinheiro", Saraiva). Quer que as informações do Coaf sejam utilizadas para orientar sistematicamente a polícia e inquéritos.

No mais, sabemos apenas que os poderes e os inimigos de Moro não serão poucos.


Samuel Pessôa: Narrativas

A vitória de Bolsonaro representa o desejo de diversos grupos de reescrever nossa história

A democracia requer a distinção de fatos das narrativas. E requer reconhecer erros e corrigi-los.

A vitória de Bolsonaro representa o desejo de diversos grupos de reescrever nossa história. Construir uma nova narrativa. Certamente esse desejo não é compartilhado por todos os eleitores do capitão no segundo turno. Mas existe.

A narrativa que se deseja construir é que não houve ditadura militar, que não houve tortura e que a corrupção resulta da redemocratização. Essa narrativa fere fatos conhecidos de nossa história. E fatos são fatos, narrativas são narrativas.

A corrupção é perene na nossa história. Não há forma de combater a corrupção que não seja com independência do Judiciário e imprensa livre e vigilante. Ou seja, com democracia.

Mas, para diferenciar narrativas de fatos, será necessário reconhecer também que a narrativa de que a guerrilha defendia a democracia está factualmente errada.

Ou seja, se é fato que a ditadura torturou Dilma Rousseff, também é fato que toda a guerrilha lutou para instituir a ditadura que considerava correta.

Gente muito jovem, movida por paixões igualitárias e por uma ideologia não democrática, cometeu o erro de pegar em armas. Pagaram caro.

Não há simetria entre os crimes. Os guerrilheiros atuaram por conta e risco seus, enquanto a ditadura praticava seus crimes com o anteparo do Estado.

Também parece ser exagerada, e aqui ainda temos que esperar o juízo dos historiadores, a narrativa de que mensalão e petrolão sempre existiram, da forma e intensidade da de agora.

Analogamente, se é verdade que o Escola sem Partido pretende instituir práticas em sala de aula incompatíveis com a liberdade de expressão, é forçoso reconhecer que esse movimento reage a um processo de doutrinação nas disciplinas de história e geografia que constrói inúmeras narrativas factualmente erradas.

Não é verdade que a Inglaterra lutou contra o tráfico negreiro para vender tecidos na América, ou que a Guerra do Paraguai foi uma conspiração inglesa para destruir uma potência sul-americana autônoma, ou ainda que os europeus entravam dentro do território africano para aprisionar negros e escravizá-los, ou que os EUA enriqueceram pois exploraram os países pobres, e tantas outras bobagens a que nossos alunos são expostos.

Finalmente, se é verdade que a direita defendeu a ditadura por aqui, é verdade também que partidos de esquerda defendem ditaduras na América Latina ainda hoje. Não é coerente defender a Venezuela, como faz o PT, e achar que Bolsonaro é autoritário por afirmar que não houve ditadura por aqui.

Mesmo porque tanto as ditaduras venezuelana, nicaraguense e cubana quanto as ditaduras chilena, argentina e brasileira violaram, aquelas ainda violam, em massa os direitos humanos.

Ademais, na história do continente, as ditaduras ditas de direita terminaram. Algo acontece que faz com que os milicos retornem aos quartéis. As ditaduras ditas de esquerda não terminam e se mostram dispostas, para se perpetuar no poder, a expor seu povo a sofrimentos imensos na forma de desorganização econômica e perda de bem-estar.

A dita esquerda, se quiser continuar a pertencer ao campo democrático, terá de abandonar suas narrativas mentirosas e buscar os fatos. A democracia agradece.

Na coluna passada, referi-me ao presidente eleito, Jair Bolsonaro, como o tenente que se aposentou como capitão. A afirmação está errada. Quando Bolsonaro requereu a reforma, já era capitão. Agradeço aos colegas Pedro Jobim e Luciano Irineu de Castro pela correção.

*Samuel Pessôa, Pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (FGV) e sócio da consultoria Reliance. É doutor em economia pela USP.