Bolsonaro

Bruno Boghossian: Cortina de fumaça

A cada choque, o presidente eleito ganha tempo para tapar os buracos de seu programa

Os desencontros entre o novo presidente e o velho Congresso funcionam como uma cortina de fumaça conveniente para JairBolsonaro. O impasse sobre a reforma da Previdência e a aprovação do reajuste para o Judiciário encobrem o fato de que, após meses de campanha e semanas depois da eleição, o futuro governo não apresentou os detalhes de seu plano para a economia.

A cada choque com o mundo político de Brasília, o presidente eleito ganha tempo para tapar os buracos de seu programa. Embora o ajuste das contas públicas seja considerado urgente, o gabinete de transição gasta mais tempo desmentindo a própria equipe do que expondo seus projetos prioritários.

Desde a vitória de Bolsonaro, sua equipe deu repetidas demonstrações de interesse em aprovar ainda este ano algumas mudanças no sistema de aposentadorias. O próximo governo pode ter ideias brilhantes para resolver o rombo da Previdência, mas não se empenhou por um único minuto em tirá-las do papel.

Os caciques da Câmara e do Senado não conhecem a reforma que o presidente eleito quer implantar —seja agora, seja a partir do ano que vem. Nem mesmo Bolsonaro tem certeza: na última semana, disse enxergar com “desconfiança” a proposta de seu time, que prevê um sistema de poupanças individuais para cada contribuinte.

O próximo governo também assistiu de longe à aprovação do aumento bilionário das remunerações do Judiciário. Antes da votação no Senado, o presidente eleito disse que não era o momento de aprovar a medida, mas não despachou nenhum articulador para impedir que a bomba fosse armada dentro do cofre que será repassado a seu governo.

Com a reforma da Previdência travada e a conta extra do salário dos juízes, Bolsonaro exercerá o direito de jogar a responsabilidade pela crise econômica sobre a antiga classe política. A partir de 1º de janeiro, a fumaça deve se dissipar. Empossado, o presidente será obrigado a mostrar suas cartas.


IstoÉ: Bolsonaro representa uma forma de virar a mesa, diz Fernando Gabeira

Por André Vargas, da Revista IstoÉ

Observador da realidade brasileira desde 1979, quando voltou do exílio após a Anistia, o mineiro Fernando Gabeira, 77 anos, foi jornalista, ativista e político, voltando ao jornalismo após o fim de seu quarto mandato como deputado federal pelo Rio de Janeiro, em 2011. Desde 2013, ele apresenta um programa de reportagens que leva seu nome no canal GloboNews. Com passagens pelo Partido Verde (PV), que ajudou a fundar, e Partido dos Trabalhadores (PT), com o qual rompeu, Gabeira crê na reconstrução da esquerda brasileira e dos movimentos sociais sem as amarras petistas. Dono de uma lucidez crítica e desprovida de pudores ideológicos, ele falou sobre os acertos da campanha de Bolsonaro, as conexões de seu populismo com o de Donald Trump, o surgimento de uma nova direita via redes sociais, a relevância do jornalismo diante das fake news e o papel dos militares no novo governo.

O que você achou do resultado geral das eleições?
Não meu surpreendeu. Sua vitória afirmou três pontos. Primeiro, foi uma grande crítica ao sistema político. Bolsonaro representa uma forma de virar a mesa. Depois, uma possibilidade de luta contra a corrupção. E, finalmente, a expectativa de uma política de segurança eficaz. Embora, não necessariamente ele será capaz disso. Bolsonaro apenas apresentou essas ideias com mais ênfase e de forma mais clara para o entendimento popular.

As eleições de Bolsonaro e de Trump foram parecidas?
Há pontos em comum. O principal é a utilização das redes sociais. A seguir, é a expectativa de alcançar o homem comum, colocando-o contra o que dizem ser o sistema. Ambos os políticos se mantêm distantes dos partidos políticos, apesar de Trump ter a força do partido Republicano por trás. Ambos também se mostram distantes da mídia, de especialistas, de técnicos e de intelectuais. Todavia, Bolsonaro fez uma campanha bem modesta. Trump não só tinha muito dinheiro arrecadado, como uma rede de televisão [Fox] grande e conservadora ao seu lado. Por isso, acho que a campanha do Bolsonaro foi mais difícil.

A democracia de coalizão que pautou a Nova República está exaurida?
Tanto que a proposta do vencedor é superá-la por meio da escolha de ministros que sejam técnicos, competentes e independentes de filiações partidárias. Será uma tentativa de superar o modelo anterior, o que é de difícil realização. O novo presidente terá que ser um pouco mais aberto, a ponto de entender que, se houver gente competente e honrada nos partidos para ocupar alguns postos no governo, ele terá que abrir espaço. Um governo não pode discriminar seus políticos. Seria algo extraordinário.

Como o senhor avalia o crescimento político dos evangélicos. Hoje daria para governar sem eles e sua agenda conservadora?
O campo que elegeu Bolsonaro é diversificado. Há os evangélicos e também jovens liberais que fazem apologia do estado mínimo, além de intelectuais e propagandistas de direita que surgiram na mídia e nas redes sociais nos últimos tempos. Os evangélicos sempre estiveram na política, só que agora encontraram um candidato que, além de professar o mesmo credo, parece disposto a aceitar uma série de reivindicações. Algumas podem ser problemáticas, como a ideia recente de transferência da embaixada brasileira em Israel para Jerusalém. Temos no Brasil uma grande harmonia entre as comunidades judaica e árabe, além de relações comerciais com países do Oriente Médio, grandes compradores de nossos produtos. Isso poderia nos prejudicar.

O futuro governador do Rio Wilson Witzel (PSC) fala em combate aberto contra o tráfico. Seria por aí?
É preciso distinguir o combate às drogas e o combate aos grupos armados que ocupam territorialmente certas áreas. Há táticas e problemas. Eu apoiei a intervenção federal na Segurança Pública do Rio. Achava que as polícias não tinham mais condições de rechaçar o crime. Parte por falta de equipamento, parte por corrupção, além de outros fatores. A intervenção trouxe alguns parâmetros, com regras de engajamento adotadas no Haiti. Porém, não foram desenvolvidas táticas para enfrentar esses grupos, que também podem ser encontrados no México, em El Salvador e até na Síria. Diante de quem utiliza a população como escudo é preciso políticas mais sofisticadas. Se as forças armadas atingem e matam moradores, acaba-se fomentando um apoio permanente da população ao tráfico.

A campanha eleitoral à Presidência tirou a relevância da cobertura jornalística tradicional?
Não creio, ainda que parte dos candidatos tenha falado diretamente com seus eleitores por meio das redes sociais. É preciso lembrar que grande parte dos temas que as redes discutiram nasceu da cobertura da mídia tradicional. As redes, por si, não podem dispensar a estrutura tradicional de apuração de notícias, pois é daí que tiram a matéria-prima com a qual trabalham e brigam.

O boicote do presidente eleito aos grandes veículos de imprensa é um tiro na democracia, uma maneira de se preservar ou a escolha de um adversário?
Quando ocorre uma situação de crise em que populistas entram em cena, eles tendem a apresentar o conjunto da imprensa, da política, da academia e da Justiça como partes de um sistema, fazendo com que tudo seja visto como um ataque contra a renovação. Creio que a referência que temos que analisar é o próprio Trump, que foi muito mais radical, acusando a imprensa de ser inimiga do povo. Já Bolsonaro falou que a “Folha de S.Paulo” tem que acabar e, em certos momentos, não fala com jornalistas de determinados veículos. Na comparação, os termos de Bolsonaro são mais brandos.

Qual o futuro do jornalismo em tempos de fake news?
Quase todas as grandes empresas jornalísticas tiveram que montar equipes para traduzir as fake news. É indispensável que a sociedade tenha notícias bem apuradas e verdadeiras para que as pessoas e as empresas tomem as decisões corretas. As estruturas profissionais de jornalismo gastam até 30% de seu esforço confirmando informações, algo que não existe na internet. É claro, porém, que existem pessoas nas redes que só acreditam no que querem acreditar. Daí não se pode fazer nada.

Bolsonaro disse ser apaixonado por você. Como assim?
Ele estava fazendo campanha. Antes, convivemos 16 anos na Câmara dos Deputados, atuando em campos diferentes, mas nunca tivemos um atrito. Sempre nos respeitamos e nos unimos quando o tema era corrupção.

Essa mentalidade militar que se apresenta nos postos do próximo governo oferece algum risco?
As Forças Armadas se transformaram nos últimos anos, por isso alguns de seus integrantes ao lado de Bolsonaro podem funcionar como elementos moderadores. A aventura autoritária foi decantada e hoje os militares integram o campo democrático, com uma leitura nova do mundo, sem a Guerra Fria. Muitos quadros militares fizeram assessoria parlamentar, adquirindo uma visão muito clara do que é o mundo político.

Após décadas de avanços sociais e políticos, lhe parece que parte dos brasileiros ficaram mais conservadores?
Essa tendência conservadora sempre existiu de modo latente. O que houve foi um fracasso ético da esquerda no poder, o que colocou, por extensão, em dúvida muitas de suas bandeiras. Outro fator foi o governo de esquerda encaminhar algumas medidas favoráveis às minorias, tentando avançar, sem a consulta permanente à população. Um exemplo é a educação sexual nas escolas. Muita gente prefere que isso seja feito dentro da família. A esquerda fez avanços, sim, mas que acabaram ofuscados pela corrupção, o que fortaleceu uma certa visão de impureza nas lutas sociais e identitárias. Outro ponto é o surgimento, ao largo da imprensa, de pensadores de direita, alguns deles jovens liberais, outros propagandistas religiosos, de redes sociais. O movimento Escola Sem Partido, por exemplo, representa uma reação à presença da esquerda no magistério. Todavia, não acredito que isso deva ser feito com repressão. Defendo a diversidade de opiniões nas escolas.

A violência contra as minorias pode aumentar?
A forma como o tema foi apresentado na campanha suscita tais atitudes. Às vezes, pode-se chegar à violência, como ocorreu pontualmente, em outras, podemos ficar naquele humor violento, como o das torcidas organizadas cantando: “Bolsonaro vem aí para matar viado”. Creio que passada a eleição, essas questões devem entrar em segundo plano, já que teremos discussões sobre Reforma da Previdência, economia, acertos políticos e segurança pública. Tudo isso envolverá o País.

O que você achou da fusão do Ministério do Meio Ambiente com o da Agricultura?
Se o Meio Ambiente se transformasse em uma agência, não veria problema. O que me preocupa é que as agendas do Meio Ambiente e da Agricultura são muito vastas, por isso acho que não vão ser bem cumpridas. Há também a crítica de que colocaram as raposas cuidando do galinheiro. Isso pode fazer com que nossos produtos agrícolas no exterior sejam boicotados, pois nossos competidores podem se mobilizar. Já houve uma fake news de vaca louca brasileira espalhada no Canadá.

Há saída para a esquerda brasileira?
Claro que há. O governo que começará no Brasil irá liberar muita energia de oposição. Imediatamente após a vitória de Trump, a sociedade americana e os democratas passaram a se mobilizar. A esquerda do partido Democrata ganhou espaço na Câmara com as eleições desta semana. Com isso, quero dizer que a direita será superada, pois haverá alternância no poder. A única dificuldade que vejo na esquerda brasileira, que não há entre parte dos democratas americanos, são essas denúncias de corrupção que aqui não foram objeto de crítica interna. Agora, acho que novas configurações podem surgir. Até o PT pode se transformar. Não está proibido. O caminho está aberto, pois não sabemos que êxitos Bolsonaro obterá. Também acredito que os movimentos sociais, que reúnem lutas de minorias, mulheres, índios e negros, precisam fazer uma crítica sobre sua associação ao PT. Alguns foram cooptados, o que criou uma certa hostilidade que talvez não seja exatamente contra suas causas, mas contra o partido.


Eliane Brum: A revanche dos ressentidos

Depois da eleição de Bolsonaro, os demônios interiores saíram para passear 

Eu acompanhava uma amiga no aeroporto, em São Paulo. Os elevadores que levavam do estacionamento aos terminais demoraram. Quando finalmente entramos, estava lotado. Um homem com um bebê no colo, possivelmente seu neto, gritou: “Quando Bolsonaroassumir, isso aqui vai andar rápido!”. E acrescentou: “Pá! Pá! Pá!”. Abri a boca para perguntar: “Você está atirando no seu neto?”. E então percebi que não poderia fazer isso sem me arriscar a sofrer violência. O homem e a família que o rodeava realmente pareciam acreditar que Bolsonaro dará “um jeito em tudo”, dos “comunistas” que supõem existirem aos milhões, à velocidade dos elevadores.

Gays são ameaçados de espancamento se andarem de mãos dadas, ou simplesmente por existir, mulheres com roupa vermelha são xingadas por motoristas que passam, negros são avisados que devem voltar para a senzala, mulheres amamentando são induzidas a esconder os seios em nome da “decência”. Aquele amigo de infância de quem se guardava uma boa lembrança escreve no Facebook que chegou a sua vez de contar o quanto o odiava em segredo e que pretende exterminá-lo junto com a sua família de “comunistas”. Um conhecido que passou a vida adulta acreditando merecer mais sucesso e reconhecimento do que tem, agora espalha sua barriga no sofá da sala e vocifera seu ódio contra quase todos. Outro, que se sempre se sentiu ofendido pela inteligência alheia, sente-se autorizado a exibir sua ignorância como se fosse qualidade.

Mensagens no Facebook anunciam que vão caçar todos os que votaram contra Bolsonaro e jogá-los na fronteira. Aqueles que se opuseram ao autoritarismo são tratados por essa multidão enraivecida como se fossem estrangeiros – e o país tivesse deixado de pertencer também a eles. Como nos princípios do regime totalitário do cada vez mais atual 1984, clássico de George Orwell: “Guerra é paz. Liberdade é escravidão. Ignorância é força”.

A atmosfera tóxica do Brasil atual pode ser resumida por um trecho da carta que chegou ao Centro Acadêmico da Geografia, na Universidade Federal do Pará, em Altamira: “Bem vindos ao fascismo! Agora é a nossa vez, agora é o nosso momento, vocês vão ter que engolir porque vamos passar por cima de cada um de vocês, cada gay, cada sapatão, preto e preta. Vamos exterminar cada um de vocês. (...) Vão morrer um por um, cada preto e preta que acham que podem sair da senzala”. A carta anônima termina com: “Viva Bolsonaro! Viva a ditadura! Viva o Fascismo! Viva o Carlos Alberto Brilhante Ustra!”.

Como as palavras se esvaziaram de sentido no Brasil, “comunismo” e “comunista” virou o nome para tudo e todos que se odeia, seja pela orientação sexual, pela cor da pele ou pela atuação política. O termo não tem mais nenhuma relação com seu conceito, mas foi apropriado como o pecado da parcela da população que denunciou o autoritarismo criminoso de Bolsonaro, um apologista da tortura e dos torturadores. E assim o Brasil inaugura um outro tipo de Guerra Fria.

O pacto civilizatório, aquele que permitia a convivência, já vinha sendo rompido nos últimos anos no país. Agora foi rasgado por completo. Este é o primeiro sinal.


Folha de S. Paulo: 'Bolsonaro não é volta dos militares, mas há o risco de politização de quartéis', diz Villas Bôas

Para o comandante do Exército, o presidente eleito é mais político do que militar

Por Igor Gielow, da Folha de S. Paulo

O Exército está preocupado com o risco de politização dos quartéis na esteira da eleição do capitão reformado Jair Bolsonaro (PSL) à Presidência. Seu comandante, general Eduardo Villas Bôas, quer estabelecer uma linha divisória entre instituição e governo.

“A imagem dele como militar vem de fora. Ele é muito mais um político. Estamos tratando com muito cuidado essa interpretação de que a eleição dele representa uma volta dos militares ao poder.

Absolutamente não é”, disse, em entrevista à Folha no Quartel-General do Exército.
O militar, que completou 67 anos na quarta (7), falou sobre a “inevitável associação” entre Exército e o novo governo e sobre a possibilidade de “ideias serem personalizadas” nos quarteis —um eufemismo para quebra de hierarquia. Considera o risco baixo, mas diz estar atento. Descarta riscos à democracia pelo voluntarismo do presidente eleito.

Villas Bôas revisita o turbulento período político de seu comando, iniciado em 2015, e diz ter agido “no limite” quando publicou no Twitter mensagens na véspera do julgamento de habeas corpus do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 3 de abril.

Ali, sua “preocupação com a impunidade” foi vista como ameaça velada ao STF, o que nega. Hoje, o general considera o saldo do episódio positivo.

Fragilizado fisicamente por uma doença degenerativa do neurônio motor, ele falou de forma pausada e com auxílio de respirador por mais de uma hora. Deixará o comando, assim como os chefes das outras Forças, com o novo governo.

Faz considerações sobre o papel dos militares na segurança pública, para ele agora “segurança nacional”, dada a gravidade da situação. “Vai ter de participar”, disse.

O sr. esteve com o presidente na terça (6). Como foi a conversa?
Era mais uma visita de cortesia. Tivemos uns dez minutos de conversas específicas. Aqui no Exército será alguém da turma dele, e os quatro generais mais antigos são da turma dele. Sugeri que colocasse um civil na Defesa. Com o ministério com tantos militares, teria um equilíbrio interessante. Mas ele insistiu que fosse um oficial-general de quatro estrelas.

Eu sugeri que o general [da reserva Augusto] Heleno fosse para o GSI [Gabinete de Segurança Institucional], e ele já estava com essa ideia na cabeça.

Daí falamos um pouco sobre política externa, questionei quem eles tinham em mente para o Itamaraty. Achei curioso, eles estavam em um nível bem superficial, com vários nomes, inclusive de pessoas que eles não conheciam e estavam prospectando.

Senti que em alguns setores eles estão com a coisa bem definida, e em outros, ao contrário, estão tateando.

Bolsonaro é o primeiro militar eleito pelo voto direto desde 1945, é o primeiro no poder desde o fim da ditadura. Como o Exército vê um membro de seus quadros hoje na Presidência?
A imagem de Bolsonaro como militar é uma imagem que vem de fora. Ele saiu do Exército em 1988. Ele é muito mais um político.

Ele foi muito hábil quando saiu para se candidatar a vereador, passou a gravitar em torno dos quartéis, explorando questões que diziam ao dia a dia dos militares. Ele nunca se envolveu com questões estruturais da defesa do país. Mas aí criou-se essa imagem de que ele é um militar.

Estamos tratando com muito cuidado essa interpretação de que a eleição dele representa uma volta dos militares ao poder. Absolutamente não é.

Alguns militares foram eleitos, outros fazem parte da equipe dele, mas institucionalmente há uma separação.

E nós estamos trabalhando com muita ênfase para caracterizar isso, porque queremos evitar que a política entre novamente nos quartéis.

A rigor, desde 1977 [quando Ernesto Geisel demitiu o ministro do Exército, enquadrando a linha-dura] ela está fora.
Isso para nós é essencial.

Vocês identificam algum risco de isso acontecer? Uma coisa é o ambiente aqui, entre oficiais de quatro estrelas, mas o risco não é maior lá embaixo, de haver uma empolgação com a persona militarista do presidente?
Hoje as Forças Armadas estão muito afastadas das questões políticas no dia a dia. Mas não há dúvida de que há um risco de ideias serem personalizadas. De um fulano trabalhar por aumentos de salários.

Sempre há o risco de que esses interesses pessoais venham a penetrar na Força, e gerar alguma polarização. Mas vemos como um risco sério. De qualquer forma, há uma preocupação em se evitar isso.

O presidente tem essa persona militar e seu entorno é cheio de militares. A associação com o Exército é inevitável, não?
É inevitável. Até porque a população de certa forma estava pedindo isso. Houve uma pesquisa recente que perguntou se a população era a favor de uma intervenção militar. Deu um índice de 45%.

Eu não via nada de ideológico nisso, esquerda ou direita, é mais uma reclamação sobre a questão dos valores.

As Forças Armadas são consideradas um repositório de valores mais conservadores. Havia essa demanda por parte da população, então é decorrência natural essa interpretação de que há uma volta de militares ao poder.

Assessores de Bolsonaro creem que o ensino sobre 1964 é enviesado. O próprio Bolsonaro elogiou várias vezes a ditadura, tem o [antigo chefe do centro de tortura DOI-Codi] Brilhante Ustra como herói. O sr. acha que um movimento de reanálise de 1964 neste governo seria incômodo para o Exército?
Não digo incômodo, mas acho não produtivo. Em relação a 1964, muitos protagonistas estão vivos. Então, não há perspectiva histórica isenta possível.

Por outro lado, o Brasil dos anos 1930 a 1980 foi o país do mundo ocidental que mais cresceu. Tínhamos uma ideologia de desenvolvimento, um sentido de grandeza, de projeto.

O país perdeu isso, está meio à deriva. Estamos carecendo desse foco. A gente não tem uma política externa definida. Seria importante que se discutisse de forma prospectiva, de ter um sentido mínimo de coesão.

Olhar para trás impede que a gente convirja. É ridículo. De 1964 para cá, se passaram 54 anos. Imagine se em 1954 estivessem discutindo 1900. Não acho que devemos jogar para baixo do tapete. Até a Comissão da Verdade foi um desserviço nesse sentido.

Fiquei com a sensação de que a eleição do Bolsonaro liberou uma energia, algum nacionalismo que estava latente e que não podia ser ser expresso. Só podia haver nacionalismo de Copa do Mundo, seleção brasileira. Nesse sentido, acho a eleição positiva.

Desde que o presidente foi eleito, ele tem buscado fazer gestos simbólicos de deferência à Constituição e à democracia. Ao mesmo tempo, ele tem feito ameaças explícitas a órgãos de imprensa, como este jornal e outros, que não falem o que ele considera ser a verdade. Aliás, ele sempre fala em verdade...

Uma coisa meio messiânica, né?

Isso. Mas enfim, é compatível a defesa da democracia e esses chutes na canela de instituições que fazem parte da democracia?
Acho que, se nós olharmos da perspectiva dele, esse é um marketing que ele faz em torno de si, que  explora.

Eu não creio que ele vá materializar isso a ponto de ameaçar o funcionamento das instituições.

O país está amadurecido, tem um sistema de freios e contrapesos que não permite que essas coisas prosperem a ponto de ameaçar a eficiência do processo democrático.

O seu comando foi marcado pela moderação em momentos de crise, que foram vários. Como o sr. analisa o período? O que considera sua melhor marca e onde não deu certo?
Nós assumimos em fevereiro de 2015 e logo em seguida começou a crise que resultou no impeachment. Começou uma instabilidade, e ao mesmo tempo surgiu a demanda crescente pela tal da intervenção militar.

Intervenção militar constitucional, até hoje não descobri como é que faz isso. Até houve discussões de juristas sobre isso, que o Exército teria um mandato para intervir, e isso foi verbalizado pelo general Mourão, gerando uma pequena crise [em 2015].

Em função dessa pressão, elaboramos diretrizes que transmiti internamente e que passaram a preencher espaço externamente. A conduta seria baseada em três pilares.

Primeiro, a manutenção da estabilidade. Segundo, a legalidade: o Exército jamais agiria fora de preceitos legais, dentro do artigo 142 da Constituição e leis subordinadas.

O terceiro pilar, a legitimidade, que o Exército foi acumulando ao longo dos tempos exatamente pelo posicionamento apolítico.

Caso fôssemos empregados, jamais poderíamos ter essa intervenção interpretada como favorecendo um lado ou outro. Temos imparcialidade.

Os militares da reserva, com muita frequência, têm influência. Foram comandantes, instrutores do pessoal da ativa. Então quando eles se pronunciam, isso muitas vezes repercute interna e externamente.

Eu precisei ter o domínio da narrativa. Por isso, às vezes nós éramos mais enfáticos na expressão, sempre no limite para não invadir o espaço de outras instituições.

Eu reconheço que houve um episódio em que nós estivemos realmente no limite, que foi aquele tuíte da véspera da votação no Supremo da questão do Lula.

Ali, nós conscientemente trabalhamos sabendo que estávamos no limite. Mas sentimos que a coisa poderia fugir ao nosso controle se eu não me expressasse. Porque outras pessoas, militares da reserva e civis identificados conosco, estavam se pronunciando de maneira mais enfática. Me lembro, a gente soltou [o post no Twitter] 20h20, no fim do Jornal Nacional, o William Bonner leu a nossa nota.

Aí vieram as críticas.
Do pessoal de sempre, mas a relação custo-benefício foi positiva. Alguns me acusaram... de os militares estarem interferindo numa área que não lhes dizia respeito. Mas aí temos a preocupação com a estabilidade, porque o agravamento da situação depois cai no nosso colo. É melhor prevenir do que remediar.

O Exército resistiu a participar da segurança pública mais ativamente devido a questões como a segurança jurídica. Agora, novos governadores usam retórica mais linha-dura e buscam apoio do Exército, indicam militares para a segurança. Como o sr. vê essa militarização?
O chamamento de militares para ocupar cargos em outras áreas é uma volta à normalidade. Havia um certo preconceito, um patrulhamento. “Ah, está militarizando”, diziam, falavam em fascismo. Eu vejo de forma positiva.

Agora, o nível de gravidade está tão alto que deixou de ser segurança pública e já se transformou numa questão de segurança nacional. Mais de 60 mil pessoas assassinadas por ano, todos os indicadores, o narcotráfico, o crescimento das organizações criminosas, isso tem de ser tratado com abrangência.

Naturalmente, de acordo com o que a Constituição prevê, os militares inexoravelmente terão de participar desse esforço nacional.

Quer como protagonistas, quer como coadjuvantes. Vai ter de participar. O que nos preocupa é que, na maioria das situações, o pessoal considera que, em empregando as Forças Armadas, está resolvido.

Elas são o meio que dá condições para que outros setores, mais pertinentes, inclusive a política, venham a atuar e alterar a realidade de vida em determinadas regiões onde há o ambiente físico e de valores extremamente propício para a proliferação da doença.

Infelizmente, isso não é encarado assim. Eu acompanhei no comando a intervenção na favela da Maré. Ficamos lá 14 meses, gastamos R$ 1 milhão por dia. Houve períodos em que a prefeitura nem o lixo recolhia.

As Unidades de Polícia Pacificadora não foram instaladas. O ambiente era horroroso. Uma semana depois de termos saído de lá, tudo tinha voltado ao que era antes.

Acaba sendo inócuo.
Esse tipo de atuação é como o que ocorre em forças de paz da ONU. As forças estão lá para criar condições para a reconstrução, mas se a ONU não atua com a ênfase necessária... Nós saímos do Haiti e aquilo está em efervescência de novo.

E a intervenção no Rio?
Vamos deixar um legado. O problema é falta de gestão, mais do que de recurso.

RAIO X

Eduardo Villas Bôas

Nascimento: Cruz Alta (RS), em 1951 (67 anos)

Função: Comandante do Exército

Carreira: Desde 1967 na Força, é general-de-exército (quatro estrelas, topo da hierarquia). Foi comandante militar da Amazônia e comandante de Operações Terrestres. Comanda o Exército desde 2015, quando era o terceiro mais antigo na linha sucessória. é casado e pai de três filhos.


Hamilton Garcia: O brasil que emerge das urnas

A vitória de Bolsonaro começou a se delinear em abril de 2017, quando, pela primeira vez, o candidato suplantou, por um ponto percentual apenas, seus competidores mais proeminentes na oposição ao desgastado PT, cujo candidato (LILS) ocupava a primeira colocação nas sondagens[i]. A partir daí, o candidato da direita se afirmaria, crescentemente, na primeira colocação, sem o petista preso em Curitiba ou concorrentes outsiders (J.Barbosa e L.Huck), enfrentando uma Marina Silva fragilizada por seu isolamento, um Ciro Gomes reestreante no protagonismo político e candidatos tucanos tisnados pelas escandalosas relações entre seu ex-candidato (Aécio Neves) e o megaempresário Joesley Batista – que o PSDB, apesar dos esforços de seu Presidente interino (Tasso Jereissati), tratou de minimizar.

Além do isolamento da Rede, do vácuo de alternativas e da desmoralização do PSDB, Bolsonaro também se beneficiou da rigidez fisiológica do centrão-MDB e ideológica da esquerda, que manteve-se atada ao partido (PT) que capitaneou os megaesquemas de corrupção desnudados, à exaustão, no Mensalão e no Petrolão. Mas, nem a tibieza oposicionista da centro-esquerda, nem a crise da velha política associada à canonização de LILS, podem explicar o desenlace eleitoral. Concorreu de maneira decisiva para tal, mesmo que a compreensão geral não seja muito clara a respeito, o esgotamento do bloco histórico responsável pela redemocratização do país (vide “Os perigos que se avizinham e o antídoto”).

É neste contexto crítico que deve ser visto o futuro governo e sua oposição. O bloco histórico em agonia, da inclusão consumista-financista, impõe duas tarefas básicas, de dificuldade assimétrica, ao novo governo: o fim do compromisso neopatrimonial, que marca a modernização conservadora brasileira e veio a se constituir em pilar central de variados arranjos políticos ao longo do séc. XX – com importantes inflexões no Estado Novo (1937-1945) e no período militar (1964-1984), sem maiores resultados por conta do infantilismo de esquerda que os antecedeu –, e a reindustrialização do país, cujo ápice foi o “milagre brasileiro” (1967-1979) – cujo retrocesso se deveu à incapacidade do regime de superar o caráter elitista de seu bloco histórico.

A indicação do Juiz Sérgio Moro para o (super)Ministério da Justiça coloca o novo governo em posição privilegiada para enfrentar tal desafio histórico, na busca da racionalização da máquina de Estado – objetivo acalentado desde o DASP (1938) e levado à cabo marginalmente, ao sabor das conveniências políticas, com os resultados conhecidos, na média: Estado grande, com baixa eficiência, perdulário e refém de corporações (privadas e públicas) que atrofiam seu desempenho enquanto parasitam seus recursos em benefício próprio.

A persistência do neopatrimonialismo, uma versão avançada e urbana do velho patrimonialismo mercantil lusitano[ii], se liga a uma modernidade cujos atores foram tragados pelo Estado ao longo de sua constituição – caso dos sindicatos de trabalhadores e patrões a partir de 1930[iii] –, quer pelas assimetrias institucionais dos primeiros (déficit de representatividade), quer pela vontade ativa do Estado de manter controle sobre a sociedade esmagando os que dele tentavam escapar. As desigualdades regionais, no imenso território, e a resiliência das antigas práticas coronelísticas – urbanização adentro, mesmo sem “coronéis” –, ajudaram na sobrevivência do modelo nos interstícios da Constituição de 1988.

O desmonte desta herança maldita, que desde a Primeira República (1889-1930) conecta a base eleitoral municipal ao governo central, por meio da “política de governadores” e suas casas legislativas, terá forte impacto sobre a eficiência e universalidade das políticas públicas, mas ainda assistirá a uma árdua resistência, dada sua capilaridade federativa, que exigirá, para ser suplantada, não da mera descentralização, mas dela acompanhada da instituição de núcleos qualificados de gestão, com a obrigatoriedade de contratação de pessoal técnico especializado para as funções administrativas regionais e municipais – algo que não se ouviu falar até o momento.

Seja como for, a ruptura, evitada por todas as coalizões governistas na Nova República, se eficazmente concluída, tem potencial para alçar Jair Bolsonaro ao rol dos estadistas nacionais, forçando o centro e a esquerda a repensar suas estratégias para não serem varridos para a margem da disputa política, como foi a direita no fim melancólico do regime militar (Governo Figueiredo, 1979-1985).

Mas, mesmo que obtenha sucesso na agenda de modernização do Estado, com impacto ao nível econômico mais básico, é certo que o novo governo não poderá prescindir do suporte econômico de setores estratégicos, capazes de sustentar a renda agregada, suportar o consumo (privado e público) e os investimentos (idem). Para isso, a indústria, setor por excelência da propulsão tecnológica e da economia de escala, capaz de sustentar amplas cadeias produtivas e estabilizar a modernização no longo-prazo – problema estrutural do Brasil ao longo do séc. XX, que foi posto em segundo plano desde a redemocratização em proveito da distribuição (consumo) –, terá que reassumir a centralidade perdida, na agenda econômica e política, desde a crise do modelo militar-autoritário.

As tensões que se prenunciam no âmbito da nova coalizão dirigente (do velho bloco histórico), portanto, vai muito além daquela que desafiará Sérgio Moro, na Justiça, em relação à máquina estatal e os três poderes, avançando decisivamente na disputa entre Paulo Guedes (liberais) e Onyx Lorenzoni/militares (desenvolvimentistas), que, embora também guarde relação com a pauta racionalizaste do Estado, não se esgota nela, desafiando a mediação do Presidente eleito com resultados imprevisíveis.

O certo é que a ameaça de tudo se desmanchar no ar, sob a crise do bloco histórico, poderá levar a um rearranjo de forças ainda mais forte do que o verificado nas urnas. Ao centro político, ao que tudo indica, caberá um papel de apoio crítico ao novo governo sob a égide do liberalismo (mercado e instituições), funcionando como um freio à radicalização (popular) da pauta antineopatrimonial no que ela implica em "refundação da república” – pretensão tida por alguns como "ataque dissimulado à democracia” –; o mesmo com relação à problemática do desenvolvimento retardatário, que encerraria em alguma forma de revalorização da regulação econômica – tida como antípoda ao mercado e à democracia.

Por tudo isso, o centro-democrático, que agrupa os fundadores do PSDB, o PPS e a Rede, entre outros, tende a um oposicionismo parlamentar e intelectual moderado, de escassa repercussão social, podendo oscilar, à esquerda e à direita, em pautas específicas.

Já à esquerda, a cisão representada por Ciro Gomes e sua pauta desenvolvimentista, explicitamente vocacionada para a construção de um novo bloco histórico centrado no trabalho e na indústria, necessitará, para ser bem sucedida, do esgotamento da pauta liberal-econômica do novo governo, sem alternativa consensual na agenda governativa vitoriosa. Ao mesmo tempo, precisará o pedetista suplantar o protagonismo petista, aferrado ao neocorporativismo de minorias e ao socialdesenvolvimentismo de compromisso (neopatrimonial) como estratégia de viabilização do "Estado popular”. Não será fácil, dada nossa tradição populista.

Todavia, o novo dinamismo político inaugurado pela novíssima frente radical de direita promete, além das incertezas, grandes oportunidades às forças políticas capazes de entender a natureza da crise e dispostas a interpelar, a seu modo, os desejos da maioria dos brasileiros.

Notas:

[i] Vide Gazeta do Povo, in. <https://especiais.gazetadopovo.com.br/eleicoes/2018/pesquisas-eleitorais/datafolha/pesquisa-datafolha-abril-2017/> em 3/11/18

[ii] Vide Raimundo Faoro, Os Donos do Poder: formação do patronato político brasileiro (vol.2); ed. Publifolha/SP, 2000, cap. III.

[iii] Vide Armando Boito, O Sindicalismo de Estado no Brasil, ed. Unicamp/Campinas, 1991.

[iv] Universidade Estadual do Norte-Fluminense (Darcy Ribeiro).


César Felício: Ministério do Trabalho, cadáver metralhado

Menos pressionados, governos abandonam mediação social

O fim do Ministério do Trabalho retrata, mais que uma posição administrativa ou ideológica, uma constatação de natureza política: há uma decadência nítida, que não está restrita ao Brasil, da capacidade de trabalhadores urbanos em sindicatos influenciarem nas esferas de poder.

Se o Brasil vai acabar com uma instituição que cumprirá 88 anos de idade no dia 26, a Argentina já o fez este ano. Mauricio Macri fundiu o Ministério do Trabalho com o da Produção no país vizinho.

Menos pressionados, governos abandonam a função de mediadores de conflitos sociais. Lentamente, volta-se ao verdadeiro significado de uma frase dita na década de 20 pelo então governador de São Paulo, futuro presidente Washington Luiz. "A agitação operária é um questão que interessa mais à ordem pública do que à ordem social, representa o estado de espírito de alguns operários, mas não de toda a sociedade".

Macri está longe de ser um esquerdista e Bolsonaro pertence ao universo da ultradireita, mas o sapo não pula por boniteza, mas por precisão, como uma vez escreveu Guimarães Rosa. Outros fossem os tempos e dificilmente Bolsonaro deixaria de preencher a vaga do Trabalho. Do mesmo modo como a criação de vaga, na esteira da revolução de 1930, não encontra explicação em uma opção ideológica de Getúlio Vargas. Atendeu-se a uma demanda histórica.

O primeiro ministro do Trabalho, Lindolfo Collor, avô de um futuro presidente, era um conspirador varguista de primeira hora. Montou a pasta com a colaboração de advogados de organizações de trabalhadores, como Evaristo de Morais Filho, e industriais, como Jorge Street. Sua principal tarefa era normatizar a existência dos sindicatos, empregados e trabalhadores. A meta era garantir espaços para cada um, e consequentemente, estabelecer limites. O Estado dirimia as controvérsias e tutelava a representação política das partes. Lindolfo rompeu com Getúlio, para nunca mais se reconciliar, dois anos depois.

Coube ao segundo ministro, Salgado Filho, que posteriormente seria o primeiro ministro da pasta da Aeronáutica, criar a carteira de trabalho de hoje, a azul, a que Bolsonaro menospreza diante da prometida "verde e amarela", suposto canal de criação de mais empregos com menos direitos.

O terceiro, Agamenon Magalhães, posteriormente um hierarca do PSD pernambucano, expurgou os sindicatos de todos os elementos com alguma ligação com as forças políticas que apoiavam o comunista Luiz Carlos Prestes. Ajustava-se a máquina à linha oficial. Uma no cravo, outra na ferradura: também foi Agamenon que criou o seguro contra acidente de trabalho e a indenização por demissão sem justa causa.

O quarto ministro, Valdemar Falcão, costumava substituir Getúlio em discursos nas primeiras transmissões do que hoje é a "Voz do Brasil". Foi em sua gestão que se criou a Justiça Trabalhista. Na democratização em 1945, tornou-se o presidente do Tribunal Superior Eleitoral. Seu sucessor, Alexandre Marcondes Filho, foi marcado pela promulgação da CLT, em 1943. Da pasta sairia para estruturar o PTB varguista. Mas nos anos 50 foi ministro da Justiça de Café Filho, alinhado com a UDN.

O começo da história do Ministério do Trabalho explica porque ele durou até hoje, sobrevivendo ao regime militar. Era um freio, um garantidor da ordem social, montado por lideranças muito conservadoras.

O Ministério do Trabalho só esteve no eixo de uma guinada política, concentrando sobre si o fogo de toda a oposição, nos idos de 1953, quando comandado por João Goulart. O então ministro de Vargas definitivamente emulou Perón e mandou dobrar o salário mínimo. Soltava-se a válvula: o país vinha em uma onda de greves maciças e violentas, que aumentavam a influência comunista no meio sindical. A ação de Jango movia o PTB para a esquerda e continha a ação do proscrito PCB.

A pasta voltou a ganhar papel protagonista na gestão de Luiz Marinho, no governo Lula. Data daí a criação da política de reajuste do salário mínimo em vigor. O instrumento foi ferramenta importante para garantir alguns anos de calmaria para o petismo, depois do tumulto do mensalão.

É desnecessária a crônica dos últimos dez anos. Os movimentos sociais foram para a periferia política depois do advento da militância polarizada insuflada pelas redes e a pasta tornou-se pouco mais que um ninho de cavações e sinecuras de políticos de segundo time. A atuação do Ministério na tramitação da reforma trabalhista demonstra a tese.

Bolsonaro mata o que já estava morto. Não há mais redes de proteção, no universo institucional, para conflitos sociais de qualquer natureza, muito menos capital e trabalho. Bolsonaro é um produto desta anomia, não sua causa.

Semelhanças e diferenças
Com seus megaministérios e entusiasmados amadores na gestão pública à frente deles, o governo Bolsonaro lembra o de Fernando Collor. Nem mesmo falta a animosidade em relação à imprensa.

Collor criou uma superpasta da Infraestrutura, outra de Economia e enxugou também área sociais. Bolsonaro também vai por aí. Os dois eram desacreditados no início de suas campanhas. Os dois usaram à larga o anticomunismo e o discurso anticorrupção durante o processo eleitoral. Há três diferenças essenciais entre o governo de 1990 e o que toma forma agora.

Não existe um Paulo César Farias, para, entre outras coisas, construir uma animosidade entre o poder público e a elite empresarial. Não há um fenômeno econômico desestabilizador da sociedade como era a hiperinflação de então. E Bolsonaro na sua equipe ministerial monta um eixo na farda e na toga, duas áreas negligenciadas na gestão collorida. São diferenças essenciais e o insucesso de Bolsonaro, se sobrevier, não tomará a forma que tomou a desgraça de Collor. Tolstoi já dizia que cada um é infeliz à sua maneira.


El País: Contradições preocupam entorno de Bolsonaro, mas não afetam campanha permanente no WhatsApp

Presidente eleito lança nomes para testar aceitação de seus ministeriáveis e, na imprensa, sofre críticas pelo improviso. Nos grupos do aplicativo, um dos motores da campanha, apoiadores seguem mobilizados

Por Afonso Benites, do El País

Por três meses, um grupo de 50 pessoas esboçou um plano de Governo para Jair Bolsonaro (PSL). Coordenado pelo general Augusto Heleno, os especialistas em diversas áreas tentaram detalhar dados para que, caso eleito, o capitão reformado pudesse tomar as decisões da maneira mais célere possível já no período da transição governamental. O plano, no entanto, parece ter subestimado a sanha de políticos e aliados por cargos, as reações que parte da sociedade civil com relação aos cortes de determinados ministérios e com as falas do futuro presidente que estremeceram as relações com países árabes e a China.

Apesar de parecer caótica para quem vê de fora, preocupar alguns membros de sua equipe e provocar críticas de analistas que detectam improviso, a estratégia bolsonarista parece não afetar seus apoiadores nas redes sociais. Pelo contrário. Nos grupos de WhatsApp, a campanha não terminou e a mensagem plataforma, surte efeito. Nem se fala das idas e vindas do presidente eleito. Tecem críticas ao exame nacional do ensino médio (Enem) – que apresentou questões sobre o uso de dados na Internet para manipular usuários e sobre um dialeto utilizado por gays e travestis—; mobilizam-se contra o reajuste dado pelos senadores aos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF); seguem fazendo piadas e memes com os candidatos derrotados Fernando Haddad (PT) e Manuela D’Ávila (PCdoB). Também elogiam o capitão reformado quando ele anuncia quatro mulheres entre os membros de sua equipe de transição, ainda que essas quatro não representem nem 10% do total de vagas do grupo. Em outros momentos sugerem uma lista de veículos ou sites alternativas que não teriam sido "aparelhadas pela esquerda", reproduzem os tuítes de Bolsonaro falando sobre seus indicados para o Governo ou dizendo que vai “abrir a caixa-preta do BNDES”.

Nos discursos oficiais e informais, os balões de ensaio são lançados a todo momento. E não só por assessores ou políticos satélites do novo grupo do poder, mas pelo próprio Bolsonaro. Até agora, o presidente eleito se mostra sensível a uma reação nas redes: à possível avaliação de que está se aliando com corruptos. Por exemplo, ele já disse que o deputado federal Alberto Fraga (DEM-DF), candidato derrotado ao governo do Distrito Federal, teria uma função em sua gestão. Depois de centenas de reclamações pela Internet, as quais lembravam que Fraga já fora condenado por receber propina, ele parece ter recuado. Outro caso é o do senador Magno Malta (PR-ES), apontado pelo futuro mandatário como o ministro da Família, cargo esse ainda a ser criado. Depois das reações, Bolsonaro afirmou que talvez o parlamentar pudesse colaborar de alguma maneira, mesmo que não fosse com um cargo formal, nenhuma decisão foi anunciada até o momento. Malta era o vice-presidente dos sonhos de Bolsonaro por que traria maior tempo de TV e por compartilhar as mesmas ideias conservadoras nos costumes. Por opção própria, preferiu disputar a reeleição ao Senado, e depois de dois mandatos seguidos perdeu. Um dos eleitos no seu Estado, Fabiano Contarato, é o primeiro senador declaradamente homossexual.

Enquanto isso, entre apoiadores de Bolsonaro, o que viraliza são vídeos de seu ídolo cumprimentando policiais militares ou boatos, sem qualquer base factual, de que o STF fará sessões secretas. Administrador de 75 desses grupos no WhatsApp, o empreendedor Carlos Nacli, que vive em Portugal, diz que essa estrutura nas redes foi mantida para dar suporte às “pautas que serão importantes ao desenvolvimento do Brasil”. Tudo porque eles entendem que a imprensa não apoia o futuro mandatário. “Ficamos assustados com a perseguição que grande parte da mídia faz com o Bolsonaro. Parecem especialistas em tentar sabotar o presidente eleito”.

Nada está decidido e racha entre ruralistas
Entre analistas e no mundo político de Brasília, o jogo é outro e para ele Bolsonaro também faz testes e calibra mensagens. Na quarta-feira, lançou mais um: afirmou que extinguirá o Ministério do Trabalho, que é uma das pastas mais antigas do Governo com 88 anos de fundação. Mas não detalhou como isso ocorreria. As reações foram quase imediatas. Parte da elite industrial já havia sugerido a unificação desse ministério com o do Desenvolvimento, Indústria e Comércio exterior. Mas o próprio Ministério do Trabalho emitiu uma nota se queixando da possibilidade de extinção. "O futuro do trabalho e suas múltiplas e complexas relações precisam de um ambiente institucional adequado para a sua compatibilização produtiva, e o Ministério do Trabalho, que recebeu profundas melhorias nos últimos meses, é seguramente capaz de coordenar as forças produtivas no melhor caminho a ser trilhado”. Ainda não houve uma definição formal também.

Na prática, nesta primeira semana de funcionamento da equipe de transição, ainda não se sabe qual será o tamanho da estrutura ministerial. Oscila entre 16 e 18 pastas. Ora a Agricultura será unificada ao Meio Ambiente, ora não. Em um momento a Indústria se junta à Fazenda, em outro estão separadas. Nem mesmo ministro que era dado como certo na Defesa, o general Augusto Heleno, segue assim. Ele acabou sendo promovido para o Gabinete de Segurança Institucional (GSI), bem mais próximo do presidente. Ao invés de comandar as três forças armadas, chefiará uma área responsável pela segurança do presidente e que tem o controle da Agência Brasileira de Inteligência (ABIN).

O anúncio mais recente, a escolha da deputada federal e presidente da Frente Parlamentar Agropecuária, Tereza Cristina (DEM-MS), para o ministério da Agricultura abriu um racha entre conselheiros do presidente eleito. Nabhan Garcia, amigo de Bolsonaro há duas décadas e presidente da União Democrática Ruralista, esperava ser ele o indicado para a pasta. Ou ao menos de ter sua indicação, do deputado Jeronimo Goergen (PP-RS), aceita. Perdeu uma queda de braço para o futuro ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni (DEM-RS), e acabou jogado para escanteio.

A equipe de transição de Bolsonaro também teve sua primeira baixa e uma ameaça de demissão. Marcos Aurélio Carvalho, dono de uma das agências responsáveis pela venda ilegal de pacotes de disparos de mensagens pelo WhatsApp durante a campanha, estava entre os nomeados remunerados para o grupo. Depois da divulgação de seu nome e as críticas consequentes, pediu para deixar de receber pela participação nos trabalhos e disse que seria voluntário na equipe. Houve ainda uma ameaça de demissão. O economista Marcos Cintra, um dos membros da equipe, escreveu um artigo defendendo uma mudança nos tributos para transações bancárias, o que foi interpretada como a criação de novos impostos. Em entrevista à Band, Bolsonaro reclamou de Cintra. “A decisão que eu tomei, quem criticar qualquer um de nós publicamente, eu corto a cabeça”, afirmou.

Os embates também ocorrem com o seu vice, o general Hamilton Mourão. Enquanto Bolsonaro diz que não sabe quem indicará para a Defesa, já que Heleno foi para o GSI, Mourão afirma que a tendência é de que um oficial da Marinha ocupe o posto. Mais uma vez, o presidente eleito precisar intervir para dizer apenas que um “quatro estrelas” ocupará o cargo. Ou seja, alguém que esteja no topo da carreira militar, independentemente da força que ocupar.


Sandra Starling: O que o capitão deveria aprender com Caxias

As circunstâncias impõem que revisitemos a Revolução Liberal de 1842. Naquela ocasião, o povo rebelou-se em Minas Gerais e São Paulo contra a centralização do poder político, promovida pelos conservadores, em 1840, em favor da Corte imperial, por meio do chamado Ato de Interpretação do Ato Adicional de 1834. Contavam também com o apoio dos Farrapos, que ainda resistiam no Rio Grande do Sul. Em Minas Gerais, eram liderados por Teófilo Otoni. Seus correligionários − e ele próprio − foram derrotados em uma batalha ocorrida num local denominado Muro de Pedra, nos arredores de Santa Luzia. Quem conduzia as tropas imperiais era Luís Alves de Lima e Silva, o então barão de Caxias. Preso, Teófilo Otoni foi conduzido a Ouro Preto. Seria julgado em Mariana por crime de lesa-majestade, correndo o risco de ser condenado à morte.

Perto de Sabará, Caxias ficou sabendo que Teófilo Otoni estava sendo conduzido, de Santa Luzia a Ouro Preto, a pé, com pernas e braços atados. Determinou que lhe fosse dada montaria e que as correntes fossem retiradas. Assegurou-lhe, ainda, que teria direito a um julgamento imparcial. No tribunal, Teófilo Otoni assumiu sua própria defesa e foi absolvido. Sua fama espalhou-se. A partir daí, os membros do Partido Liberal, no Segundo Reinado, passaram a ser conhecidos como os “luzias”. Anistiado em 1844, Teófilo Otoni foi eleito para a Câmara dos Deputados, lá permanecendo até 1850. Afastou-se da política por uma década, período em que fundou uma colônia agrícola e uma companhia de comércio e navegação no vale do Mucuri. Construiu, ainda, a famosa estrada de ferro Bahia-Minas.

Nos anos 60 do século XIX, os eleitores mineiros colocaram-no como o primeiro da lista tríplice da qual o imperador deveria escolher um senador. Após muita relutância, d. Pedro II o alçou ao Senado, no limiar da Guerra do Paraguai. Teófilo Otoni havia se formado, com louvor, como oficial da Marinha no Primeiro Reinado. Fora o melhor aluno de sua turma. Acinte: na cerimônia de colação, negou-se a beijar a mão de d. Pedro I, por se considerar republicano. Já no Senado, em famoso discurso, quando o Brasil se encontrava na defensiva contra as tropas de Solano López, propôs que os militares brasileiros fossem conduzidos por um combatente que conhecia bem. Tratava-se de um adversário político, do Partido Conservador: o senador Luís Alves de Lima e Silva, agora, marquês de Caxias. Sob o comando de Caxias, os brasileiros ganhariam a guerra, em 1869. No mesmo ano, Teófilo Otoni, o Senador do Povo, morreria. Seu enterro reuniu, até então, a maior multidão que se aglomerou nas ruas do Rio de Janeiro.

O capitão eleito diz que seguirá os passos de Caxias, o Pacificador. Seria bom que alguém lhe narrasse a relação do “Patrono do Exército” com o Senador do Povo. Ali se vê como a política pode ser exercida de forma altaneira entre oponentes que se respeitam e que não veem o adversário como o inimigo subversivo a ser varrido deste país.


Míriam Leitão: Erros e improvisos do novo governo

Governo fala dos seus planos antes de formulá-los e já colheu a primeira derrota no Senado, que concedeu reajuste ao Judiciário

O novo governo parece estar sempre improvisando em cena aberta. Ontem o presidente eleito Jair Bolsonaro falou em acabar com o Ministério do Trabalho, depois em dividi-lo em três partes. Na véspera, o futuro ministro da Economia falou em dar uma “prensa” no Congresso e assim a administração nem começou e já colheu a derrota da aprovação do reajuste do Judiciário. Toda transição pode ter idas e vindas, mas não se pode anunciar um plano de governo antes de formulá-lo.

Na campanha eleitoral houve pouco esclarecimento sobre o programa do candidato que venceu as eleições. O que foi divulgado cumpria a formalidade da legislação eleitoral, mas continha algumas ideias que têm sido de fato desenvolvidas. O ataque à faca sofrido pelo candidato interrompeu e silenciou a campanha. Depois, o pouco falar foi parte da estratégia para não perder eleitores. Isso fez com que o país escolhesse sem um adequado conhecimento das ideias da candidatura. Bolsonaro se elegeu em parte pelo antipetismo, em parte pela ilusão de solução simples para problemas complexos, como a liberação de armas para superar a crise na segurança.

Nesses dias pós-eleitorais tem havido uma sucessão de ideias lançadas, e das quais se recua logo depois. Ontem, o próprio Bolsonaro afirmou que acabaria com o Ministério do Trabalho, depois que o dividiria em três. O problema é que o Brasil está enfrentando neste momento a pior crise do seu mercado de trabalho, com 12,5 milhões de desempregados e 4,8 milhões de pessoas que integram o grupo do desemprego por desalento. Neste ponto de fragilidade, um dos riscos de uma mudança atabalhoada é enfraquecer a fiscalização contra o trabalho análogo à escravidão e o trabalho infantil. A ideia de que essa fiscalização fique dentro de um Ministério da Família pode simplesmente não dar certo. É arriscado também desorganizar programas sociais como o seguro-desemprego.

O governo se elegeu avisando que reduziria o número de ministérios e está fazendo isso, mas talvez fosse mais sensato fazer a reforma primeiro e anunciá-la de forma concatenada. O superministério econômico, como já disse aqui, pode dar certo se o ministro Paulo Guedes conseguir bons quadros para administrar as áreas-chave como Orçamento e Gestão e souber gerir os muitos assuntos que ficarão sob seu comando. O setor empresarial está pressionando para se criar o Ministério da Produção para sair da área de influência de Guedes, mas se acontecer isso estará sendo quebrada a ideia original do Ministério da Economia.

O movimento que levou o juiz Sérgio Moro para dentro do governo foi bem-sucedido e há grande expectativa em torno do trabalho que o futuro ministro fará, e que ele explicou em entrevista concedida na terça-feira, de forma organizada e cortês. A ideia de manter o presidente da Petrobras, Ivan Monteiro, se for confirmada, será outro acerto da administração Bolsonaro. O governo Temer tem recebido os representantes da nova equipe com informações, dados, transparência num esforço que vinha sendo preparado desde a campanha e que será muito útil para quem chega.

Contudo tem havido ruídos demais. No começo da semana, Bolsonaro chamou de “farsa” o índice de desemprego, ofendendo o IBGE e mostrando desconhecimento de como o índice é calculado. O Instituto tem 82 anos de bons serviços prestados ao país e reconhecimento internacional. Depois, Bolsonaro repetiu uma afirmação que fez várias vezes na campanha e que poucos prestavam atenção. Falou em renegociar a dívida interna. O futuro ministro Paulo Guedes teve que negar que tenha qualquer intenção de fazer isso. Ontem, uma fala de Guedes é que precisou ser explicada, a que ele sugere que se dê uma “prensa” no Congresso.

Antes de pressionar quem quer que seja, o governo primeiro precisa decidir que reforma quer aprovar. Bolsonaro tem falado em reduzir a idade mínima da reforma da Previdência que tramita no Congresso para 62 anos, e afirmou que não se pode “quebrar contrato” com quem trabalhou e contribuiu. O projeto que passou pela Câmara, sob ataque de alguns dos aliados de Bolsonaro, inclusive o futuro chefe da Casa Civil, tem regra de transição lenta, e não está quebrando contrato. A forma mais certa de perder uma votação é o governo estar dividido sobre o que realmente quer de um projeto.


Eugênio Bucci: Do tiririquismo ao bolsonarismo

Antes de ser expressão de um projeto, Bolsonaro é produto de um protesto cego e selvagem

No dia seguinte ao segundo turno, na segunda-feira 29 de outubro, o primeiro dos três editoriais do Estado, Salto no escuro, apontou um fenômeno intrigante na cena política: “Até pouco tempo atrás, o ex-capitão do Exército era apenas um candidato folclórico, desses que de tempos em tempos aparecem para causar constrangimentos nas campanhas - papel cumprido mais recentemente pelo palhaço Tiririca, aquele que se elegeu dizendo que ‘pior do que está não fica’. Pois a ‘tiriricarização’ da política atingiu seu ápice, com a escolha de um presidente da República que muitos de seus próprios eleitores consideram completamente despreparado para chefiar o governo e o Estado”. A eleição de Jair Bolsonaro representaria, portanto, o arremate de um momento histórico em que “a tiriricarização da política atingiu o seu ápice”.

Mas como interpretar a “tiriricarização”? Num primeiro fôlego, poderíamos entendê-la como a mudança de estado de uma travessura impertinente que começa a se levar a sério. Por obra da “tiriricarização”, o velho voto de protesto, que já levou as massas a sufragar o macaco Tião, no Rio de Janeiro, passa a adquirir um certo conteúdo menos efêmero, menos piadista - e mais, por assim dizer, ideológico.

A operação mental aí implicada parece um tanto ilógica, mas ocorre de fato. Em São Paulo pudemos vê-la de perto com aquele nanico agigantado, barbudo e calvo cujo nome era Enéas. Aos poucos, ele foi se metamorfoseando. De um tipo meramente farsesco, hilário, determinado a expor, com sua extravagância vocal, o ridículo da política, Enéas adquiriu a identidade de liderança de extrema direita, com inclinações bélicas que chegavam ao elogio da bomba atômica. Elegeu-se com votações assombrosas de gente que o levava a sério e se impôs como um puxador de votos.

O palhaço Tiririca, em pessoa, enveredou por uma modalidade um tanto distinta da mesma distorção. Com sua peruca prateada, repele qualquer programa de governo. Sua forma de se levar a sério é se eleger como um paspalhão e exercer seu mandato como um parlamentar nulo. Seus bordões - “pior que tá não fica” ou “enganei você”, o primeiro de corte abertamente fraudulento, o segundo mais confessional - enxovalham a política de alto a baixo. Sua ideologia consiste em rechaçar por inteiro as instituições representativas, parasitando-as por dentro e pichando-as por fora.

Por certo que existe no surgimento de tais personagens o amargor de uma deterioração da cultura política. Essa enfermidade da opinião pública, no entanto, não se manifesta como doença, mas se afirma como se fosse a própria cura. A “tiriricarização” é a patologia que se pretende vacina.

De minha parte, em lugar de “tiriricarização”, tenho preferido o substantivo tiririquismo (meu primeiro artigo sobre o assunto, neste mesmo espaço, foi publicado em 18 de setembro de 2014). O tiririquismo compraz-se em mandar os políticos e as autoridades plantar batatas. Como escrevi há quatro anos, “o tiririquismo dá ao povo uma mentira que até o povo sabe que é mentira, mas na qual é divertido acreditar”.

Há aqui uma diferença a assinalar. A figura de Jair Bolsonaro não inspira propriamente um sentimento “divertido”. Em vez disso, ele parece proporcionar uma emoção de saga heroica aos que acreditam nele. Fora isso, não há consistência programática em seu personagem, assim como não há em Tiririca. Ninguém sabe bem o que Bolsonaro vai fazer ou deixar de fazer no governo, como bem identificou o editorial do Estado: “O problema é que ninguém sabe quais são as ideias do presidente eleito, admitindo-se que ele as tem. (...) O eleitor escolheu Bolsonaro sem ter a mais remota ideia do que ele fará quando estiver na cadeira presidencial”.

É nessa perspectiva que a Nação deu, nas palavras deste jornal, “um salto no escuro”. Não surpreende que, mesmo antes da posse, trapalhadas comecem a pipocar no Planalto Central: a mudança da Embaixada do Brasil em Israel para Jerusalém, antecipada pelo eleito, provoca promessas de retaliações comerciais pelo mundo árabe; a promessa de tipificar como terrorismo as ações de protesto dos movimentos sociais já encontrou resistência na entrevista concedida na terça-feira por Sergio Moro, escalado para assumir o novo “Superministério” da Justiça. E por aí vai. “Salto no escuro”.

Claro que Bolsonaro e Tiririca são figuras que em nada se assemelham. O primeiro é mais grave e menos picaresco que o segundo. O primeiro é mais trágico. Podemos - e até devemos - considerar analogias entre o bolsonarismo e o macarthismo americano, ou entre o bolsonarismo e o ideário fascista, mas - e aqui não vai nenhuma nota jocosa -, tragédias a parte, não se pode deixar de levar em conta as raízes tiririquistas do bolsonarismo.

Entre outros sinais, essas raízes se deixam ver pela forte rejeição da política que se concentrou no pacto vitorioso nas eleições em outubro. Parece haver, dentro desse pacto, um frêmito pulsional de descartar a política, que não teria mais serventia alguma. Tiririquismo puro, mas aqui de corte mais violento.

Nessa matéria, o Brasil não está só. Uma onda antissistema vem atropelando a política mundo afora. O tiririquismo bolsonarista seria a forma brasileira dessa onda. Em alguns países, ela carrega uma expressão humorística, como no caso de Beppe Grillo, na Itália. Em outros, ela é apenas autoritarismo nacionalista de mau gosto.

Ian Bremmer, presidente da Eurásia, uma das mais respeitadas empresas de consultoria política no mundo, captou os motores da onda antissistema: “Um grande descontentamento com corrupção, serviços públicos e o establishment” (ver a reportagem de Beatriz Bulla neste jornal, 4/11, pág. A11). Bolsonaro surfa nessa onda antiestablishment, em que a comédia aciona o desastre. Antes de ser expressão de um projeto, é produto de um protesto. Um protesto cego e selvagem.

*Jornalista, Eugênio Bucci é professor da ECA-USP


William Waack: Depois da onda

Não há muito tempo para Bolsonaro e equipe aprenderem a governar

Não havia muita dúvida que uma campanha improvisada, intuitiva, com propostas genéricas em vários campos e muito voluntariosa – a campanha eleitoral de Jair Bolsonaro – produziria um começo de governo idem. E o que parecia tão fácil de ser dito (a promessa de delegar vastas áreas a ministros competentes e do ramo) seria tão difícil de ser feito.

Não havia muita dúvida ainda que personalidades, digamos, exuberantes na expansão de seus campos de atuação e imbuídas de muito zelo no exercício de suas ampliadas atribuições (Paulo Guedes, Hamilton Mourão, Sérgio Moro, Eduardo Bolsonaro) provocariam um constante vai e vem do que pode não pode, vale não vale, disse não foi dito. Especialmente (não é o caso de Moro) quando planos de governo ainda parecem em estágio inicial de elaboração.

Não havia muita dúvida também que outro elemento muito vantajoso na hora de conquistar corações e mentes de eleitores – a promessa de refutar o toma lá dá cá, escapando do varejo da politicagem – retardaria a montagem do governo e as articulações com parlamentares. É inegável que o conhecimento interno da máquina pública, dominado por partidos estruturados, nunca é inútil.

Não havia, em momento algum, dúvida que, na falta de profissionais designados para falar do assunto, o falatório sobre política externa oriundo da campanha provocaria ruídos em meio a poucas certezas difusas e – novamente – obrigaria o próprio Bolsonaro a esboçar correções verbais. Reiterar que o Brasil quer uma política externa “sem viés ideológico” é ainda pouco.

É perfeitamente normal a diferença entre o que se diz em campanha e o que se vislumbra, exequível ou não, quando começa a transição para a fase de governar – ainda mais para uma equipe, como a do atual governo em formação, que vai ter de aprender “on the job”. Mas o ponto é outro: estamos vendo apenas o início de um fenômeno típico de grandes mudanças políticas trazidas por ondas como esse tsunami que elegeu Bolsonaro.

Peço perdão ao leitor para utilizar aqui uma comparação que não deve ser levada ao pé da letra, mas creio ajudar a ilustrar meu argumento. Cobri como repórter duas ondas de enormes mudanças políticas: a que depôs a monarquia no Irã e a que arrebentou o Muro de Berlim. Claro que o ocorrido no Brasil não guarda proporções com esses fatos históricos, e o ponto em comum me parece ser um em especial: a onda que derruba o sistema é formada por vários e diversos componentes, encontra um símbolo e um catalisador, arrasa o que pretendia derrubar, e o depois fica para depois.

Significa que os vários vetores da onda que mudou a política brasileira agora vão convergir ou divergir e é difícil neste momento prever resultados concretos. Na economia, por exemplo, a proposta de “abertura comercial” e o ataque da “questão fiscal (Previdência)” são coisas diferentes mesmo para os integrantes do chamado “núcleo duro” de Bolsonaro, incluindo o que cada um enxerga como “necessário” e considera “possível” dado o imenso desafio político.

Acabei me convencendo na cobertura de situações críticas de mudança, e considero o que acontece no Brasil como uma delas, que a evolução dos acontecimentos raramente é linear e seus principais atores (no caso, Bolsonaro) navegam muito mais ao sabor dos fatos e das circunstâncias que, em caso de ondas, são muito voláteis. Significa que o País está diante de uma oportunidade considerável de se alterar para melhor as condições gerais que até agora o mantêm preso na famosa armadilha do rendimento médio (nosso PIB per capita aumentou, mas a distância para as economias avançadas não está diminuindo).

Mas não é inevitável que isso aconteça. É preciso trabalhar rápido.


Eliane Brum: Bolsonaro quer entregar a Amazônia

Transformar as terras protegidas da floresta em mercadoria é a principal missão do presidente eleito

Ninguém se iluda com o vaivém da fusão ou não do Ministério do Meio Ambiente com o da Agricultura. É jogo de cena. Bolsonaro pode fingir que é democrata e ouviu a população, especialistas e o suposto agronegócio moderno, fingir que recuou porque escuta, mas o fato é que já está tudo decidido. Não é necessário fundir os ministérios para fazer o serviço sujo de abrir ainda mais a Amazônia para a exploração. Se concluir que é mais conveniente manter o ministério, basta escolher um ministro identificado com o projeto de comercializar a floresta. Quando o populista de extrema direita que, na prática, já governa o Brasil desde 29 de outubro, diz que botará alguém “sem o caráter xiita” à frente da gestão ambiental, é isso que está dizendo. Bolsonaro pode apregoar que não tem compromisso com nenhum partido, mas esta é apenas mais uma bravata. Os fatos mostram que ele deve bastante do sucesso de sua candidatura a dois grandes “partidos” não formais e poderosos, com atuação fora e dentro do Congresso: os ruralistas e os evangélicos. Essa conta ele vai ter que pagar. E, dado o seu perfil, vai pagar com gosto. A conta dos ruralistas é a Amazônia. E o que ainda resta do Cerrado.

O problema, e este é um enorme problema, é que todos pagaremos muito caro pela operação na Amazônia que Bolsonaro e seus articuladores já anunciaram de várias maneiras. Muitos com a vida. E não apenas a vida dos que morrem à bala, mas a vida dos que morrerão pelos efeitos da mudança climática. Há algumas coisas que quem ainda não entendeu precisa entender agora, já, se não quiser continuar fazendo papel de bobo.

Bolsonaro quer transformar o que é terra pública protegida em terra privada comercializável

As terras dos indígenas são terras públicas, de domínio da União. São minhas, são suas, são do país. Os indígenas, segundo a Constituição de 1988, que é a constituição da democracia, têm apenas o usufruto exclusivo de suas terras ancestrais. Podem viver nelas e delas, sem destruí-las, mas não podem fazer negócio com elas. Estas terras não são, portanto, mercadoria. Este é o ponto.

São muitos os fogos de artifício lançados por Bolsonaro, mas é na Amazônia que os olhos dos fiadores de sua candidatura estão cravados

Tudo indica que a principal meta do governo de Bolsonaro, ou a principal razão de ter um Bolsonaro à frente do Brasil, é transformar a floresta amazônica em mercadoria. Este é o trabalho prioritário de Bolsonaro para uma parcela poderosa dos articuladores de sua candidatura. Por uma razão bastante objetiva: é na Amazônia que está o estoque de terras supostamente ainda disponíveis no Brasil, para o avanço da pecuária e da soja, e é também na floresta que estão as grandes jazidas minerais.

Basta acompanhar os números da agropecuária, especialmente a partir dos anos 90, para constatar como tem crescido a importância da região amazônica para o gado e para a soja. Só de bois já são 85 milhões, três bois para cada humano. Também basta checar o congestionamento de pedidos de licenças de mineração na floresta. A Amazônia é a região do Brasil onde o capitalismo ainda vê espaço para a exploração predatória num país que vem sendo dilapidado desde as capitanias hereditárias. Enquanto Bolsonaro e seus estrategistas criam jogos de cena e fogos de artifício em outras áreas, é na floresta que os olhos dos fiadores de sua candidatura estão cravados.

Os indígenas têm sido tratados como “entraves para o progresso” – ou para “o desenvolvimento” – há vários governos, inclusive os do PT. Porque os indígenas são de fato “entraves”. Mas entraves para a destruição da Amazônia. De novo, basta olhar os mapas e os números. É nas terras indígenas, seguidas pelas unidades de conservação, onde a floresta está mais preservada. Como o direito ao usufruto das terras ancestrais é garantido pela Constituição, os indígenas são os principais entraves para a conversão da floresta em mercadoria.

Há uma mudança recente na estratégia de desqualificação dos indígenas. Em anos anteriores, a campanha que buscava tirar a legitimidade do seu direito às terras ancestrais concentrava-se em convencer a população que: 1) os indígenas teriam terras demais; 2) uma parcela dos indígenas seria composta por falsos indígenas ou, como chegaram as ser chamados, “indígenas paraguaios”. Ser índio e usar celular ou uma camiseta da seleção brasileira era propagandeado como incompatível por aqueles que querem botar a mão em suas terras. Os indígenas eram tratados como uma espécie de estrangeiros nativos, uma contradição em si, mas vista como normal por uma parcela dos brasileiros.

Houve uma mudança de tática para botar a mão na terra dos indígenas: de “índio falso” a “ser humano como nós”

Bolsonaro tem uma expressão estúpida, claramente não é um leitor assíduo, os olhos perseguem cursos erráticos quando fala, mas ele não é burro. Ninguém passa 28 anos no Congresso e mesmo assim consegue se vender como “não político” e “antissistema” e se eleger presidente, sem alguma inteligência. Talvez aqueles do seu círculo que pensam manipulá-lo facilmente terão alguma surpresa. Mais espertos ainda são aqueles que estão ao redor dele, dentro e fora do país, sustentando seu projeto autoritário.

Essa esperteza marca a mudança de tática de Bolsonaro com relação aos indígenas durante a campanha e também após eleito. O discurso passa a ser o de que “o índio é um ser humano como nós”. O que é óbvio e que jamais precisaria ser dito não houvesse uma intenção oculta. Segundo Bolsonaro, o indígena quer “empreender”, quer “evoluir”. O que significa isso? Significa, como Bolsonaro já explicou, que os indígenas deveriam ter o direito de vender e arrendar a terra, algo que está em curso no Governo e no Congresso há bastante tempo.

Os indígenas supostamente gostariam de ser como os brancos. Mas ser como brancos em qual sentido? No sentido de poderem tornar a terra mercadoria, uma característica intrínseca “dos brancos”. E então a terra pode ser vendida e aberta à exploração. “Evoluir” e “empreender”, no entendimento de Bolsonaro, é dar à floresta o mesmo status que um carro, uma mesa, um celular ou um pirulito. Mas, atenção. O presidente eleito também diz: “Os índios não querem ser latifundiários”.

Não é difícil adivinhar quem vai comprar as terras ou explorar suas riquezas. É bastante esperto o discurso de “ser humano como nós”, que converte o que é sequestro das terras dos indígenas em um “direito” dos indígenas a poderem fazer o que querem com elas, inclusive e principalmente vendê-las, arrendá-las ou abri-las para exploração. Assim, o que hoje é terra pública – minha, sua, do país – passaria para a mão privada de poucos.

Esse projeto de usurpação das terras da União tem avançado de várias maneiras ao longo dos últimos anos, inclusive com o apoio de setores do PT. O governo de Dilma Rousseff já tinha intensificado a aproximação com os ruralistas iniciada no governo de Lula. Figuras como Kátia Abreu e Gleisi Hoffmann foram decisivas para o desmantelamento da Fundação Nacional do Índio (Funai). Não é permitido esquecer que, até 2016, quando foi afastada por um impeachment sem fundamento, Dilma foi a presidente que menos tinha demarcado terras indígenas.

Já com os quilombolas, povos muito mais frágeis que os indígenas, a estratégia empregada para avançar sobre as suas terras ainda é a antiga. Por que Bolsonaro falaria tanto em quilombo e quilombolas durante a campanha? Porque um de seus serviços no poder é botar a mão nas terras a que os descendentes de escravos rebelados têm direito constitucional.

Bolsonaro se vende como alguém de língua solta, mas ele é um homem que calcula e sabe por que lança frases racistas para consumo midiático

Como as terras dos indígenas, as dos quilombolas já deveriam estar demarcadas, mas há uma grande parcela que ainda não está. Como o Brasil é um país estruturalmente racista e, nos últimos anos, o protagonismo negro alcançado com medidas como as cotas raciais nas universidades incomodou muitos dos potenciais eleitores de Bolsonaro, desqualificar os quilombolas se revelou um caminho mais fácil. Sem contar que os quilombolas têm muito menos expressão internacional e ecos no imaginário do que os indígenas.

Quando Bolsonaro escolhe contar sobre uma visita a um quilombo na palestra no Clube Hebraica, no Rio de Janeiro, não é algo que surge do nada na sua cabeça, como parece à primeira vista. Ele está calculando. Quando ele diz que “o afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas”, seguida por “nem para procriar servem mais”, ele não está sendo apenas o racista habitual. Ele está calculando. E atingindo o alvo, preparando-se para “legitimar” para a opinião pública a futura retirada de direitos dos quilombolas às suas terras.

Depois de ter sido denunciado por racismo, Bolsonaro mudou de tática e uniformizou o discurso: “Eles (os quilombolas) querem ser libertos. (...) Acho até que se quiser vender aquela área quilombola, que venda, opinião minha. Se quiser explorar, tirar minério, ter maquinário, a exemplo do seu irmão fazendeiro do lado...”. É fundamental prestar atenção na operação de linguagem para botar as mãos nas terras ancestrais: o indígena “é ser humano como nós”, o quilombola quer ser “liberto”. Para tornar-se humano como nós e ser liberto tem que ter o “direito” de vender as terras hoje protegidas. O complacente Supremo Tribunal Federal absolveu Bolsonaro da denúncia de racismo pouco antes da eleição.

O discurso da “indolência” e da “malandragem”, associado a indígenas e negros, também aventado por seu vice, o general reformado Hamilton Mourão, é o capítulo anterior ao capítulo do “ser humano como nós”. Ambos estão no manual sobre como transformar terras públicas protegidas em terras privadas exploradas por poucos. O capítulo introdutório, como todos sabem, é o extermínio direto dos povos da floresta, seguido pelo dos negros. As três estratégias ainda convivem simultaneamente no Brasil, como os números de assassinados mostram. Mas, no mundo globalizado, é sempre melhor evitar o sangue e eliminar os corpos de uma maneira mais “limpa”.

E esta maneira será tentada primeiro dentro da lei, também no governo populista de extrema direita de Bolsonaro. Esta é uma característica dos governos autoritários que estão sendo produzidos dentro da democracia. Basta olhar para outros casos do mundo. Bolsonaro vai intensificar e acelerar o que já vinha acontecendo nos últimos anos. O “novo” Código Florestal, um tremendo retrocesso na proteção do meio ambiente, é um exemplo. Mas talvez o exemplo mais cristalino seja o daquela que foi chamada de “Lei da Grilagem”.

Grilagem, como se sabe, é o roubo de grandes porções de terras públicas. Houve casos de “grilos” maiores do que países da Europa na floresta amazônica. Por muito tempo, a grilagem foi feita na base da pistolagem. Ainda é. Mas também vem sendo feita na base da lei. Em julho de 2017, Michel Temer (MDB) sancionou uma lei “regularizando” terras públicas que foram tomadas até 2011 no limite de 2.500 hectares, o equivalente a 57 Vaticanos. Bastava expandir a produção de “laranjas”, legalizando de 2.500 em 2.500 hectares, para tornar legal o roubo de enormes porções de floresta.

Enquanto for possível, a barbárie será consumada dentro da lei; depois, pode valer a alternativa de Mourão

Esta foi a “Lei da Grilagem número 2”. A “Lei da Grilagem número 1” é de 2009, ainda no governo Lula (PT), quando foram “regularizadas” terras públicas ocupadas até 2004, no limite de 1.500 hectares. Ou seja: a “lei” foi só melhorando para os ladrões de terras públicas. Em seguida, eles passam a ser chamados de “fazendeiros”, “desbravadores” ou representantes do “agronegócio”. São duas as operações: uma no plano da lei, outra no plano da linguagem. “Regularizar”, em vez de “legalizar”, arranca pela linguagem o caráter criminoso da operação de grilagem, responsável pelo maior número de mortes no campo e na floresta.

É também por esse caminho que a Amazônia vem sendo destruída. Assim como não foi o PT que inventou a corrupção no Brasil, também não será Bolsonaro que inventará a legalização do crime de grilagem. Essa operação já vem acontecendo há muito, se acelerou enormemente no governo Temer e deverá ganhar proporções inéditas no governo de Bolsonaro. Tudo dentro da lei. A princípio. E enquanto for possível. O judiciário já deu provas contundentes de que não é capaz – e em muitos casos não deseja – barrar essa operação de legalização do crime.

Para botar a mão na terra ancestral dos indígenas, porém, é mais complicado. O agrobanditismo vem atacando por vários flancos. Um deles é o que chamam de “marco temporal”. Sempre colocam um nome esquisito, que pouco diz para a maioria, para confundir a população. Por esse instrumento, só teriam direito às suas terras os povos indígenas que estavam sobre elas em 1988, quando a Constituição foi promulgada.

Para ficar mais fácil de entender, é mais ou menos o seguinte: você foi expulso da sua casa por pistoleiros ou por projetos do Estado. Era, portanto, fugir ou morrer. Mas você perde o direito de voltar para a sua casa porque não estava lá naquela data. Não é só estapafúrdio. É perverso. Mas esta é uma maneira “legal” de consumar algo criminoso. E assim impedir a demarcação das terras indígenas ainda não demarcadas.

Bolsonaro já declarou que não vai “demarcar nem um centímetro a mais de terras indígenas”. A aprovação da tese do “marco temporal” é só uma das maneiras e depende do Supremo Tribunal Federal, este que o filho do presidente eleito disse que “basta um cabo e um soldado para fechar”. Talvez nem isso, já que o presidente do STF, ministro Dias Toffoli, já se submete ao autoritarismo por gosto pessoal, como quando fraudou a história ao dizer que o período de 21 anos de regime de exceção no Brasil não foi ditadura, mas um “movimento”.

O “marco temporal” é uma das estratégias legais para roubar os direitos dos indígenas determinados pela Constituição de 1988

Na segunda-feira, na mesma entrevista para a TV Bandeirantes, Bolsonaro reafirmou suas intenções e deixou claro com qual parte da população tem compromisso: “Afinal de contas, temos uma área mais que a região Sudeste demarcada como terra indígena. E qual a segurança para o campo? Um fazendeiro não pode acordar hoje e, de repente, tomar conhecimento, via portaria, que ele vai perder sua fazenda para uma nova terra indígena”. O presidente eleito tenta vender a falsa ideia de que as terras indígenas é que são “novas” e que o fazendeiro, que já as ocupou sabendo disso, é “surpreendido” pela notícia. Sem contar que o processo de demarcação é longo e criterioso, impossível de representar qualquer surpresa para quem invadiu terras indígenas ou foi lá colocado por projetos de governos passados.

A aprovação do marco temporal ajudaria a evitar novas demarcações de terras, mas não resolveria o problema das terras já demarcadas. Para abrir a Amazônia para a exploração do agronegócio e da mineração, além de estradas, ferrovias, pontes e hidrelétricas, Bolsonaro vai ter que mudar a Constituição de uma forma mais radical. Por isso o general Mourão, sempre falando na hora errada, já antecipou em setembro uma “nova Constituição”, feita por uma “comissão de notáveis”. Uma Constituição sem povo, portanto.

Como a declaração produziu mal-estar, Bolsonaro, notável por sua delicadeza de linguagem e de gestos, afirmou que “faltou um pouco de tato” ao seu general. O que significa isso? Que não era hora de mencionar a intenção. Nem era a forma de sugeri-la. Se não conseguir mudar a Constituição ou fazer uma nova Constituição, sempre há o que o mesmo Mourão já antecipou: a possibilidade de um “autogolpe”, com o apoio das Forças Armadas.

Alguns indicativos sobre o que está em curso. Em pesquisa recente, a antropóloga Ana Carolina Barbosa de Lima e os biólogos Adriana Paese e Ricardo Bonfim Machado mostraram que os municípios amazônicos que mais desmataram desde 2000 teriam elegido Bolsonaro já no primeiro turno. Nos municípios bolsonaristas, a média do desmatamento foi duas vezes e meia maior do que nos municípios que preferiram Fernando Haddad (PT). Segundo o Observatório do Clima, dados do Deter B, sistema do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais que monitora a Amazônia em tempo quase real, a taxa de desmatamento subiu 36% entre junho e setembro, período da pré-campanha e campanha eleitoral.

No governo Temer, o agrobanditismo está no poder. No governo Bolsonaro, eles serão o poder

Na Amazônia, fazendeiros e grileiros já apoiavam Bolsonaro quando a maior parte dos brasileiros ainda duvidava que ele seria capaz de vencer a eleição. Assim como muitos dos prefeitos do PSDB da região, que nunca cogitaram votar em Geraldo Alckmin. Também será interessante observar como Bolsonaro, que mesmo antes de assumir já está de namoro avançado com Donald Trump, vai lidar com os interesses da China, cada vez mais presente na floresta e uma das principais importadoras de soja do país.

É na Amazônia que vai se dar a disputa do governo de Bolsonaro. O Brasil já é o país mais mortal para defensores do meio ambiente, segundo a organização Global Witness, e o estado amazônico do Pará é o lugar mais letal do planeta. O “agronegócio” superou a mineração como causador das mortes. Todas as variáveis apontam que esta violência vai se multiplicar com Bolsonaro. Até o governo Temer o agrobanditismo estava no poder. Agora, ele será o poder. E com autorização para matar dada pelo próprio presidente, em suas várias manifestações durante a campanha.

A Amazônia pode parecer longe para a maioria dos brasileiros. Mas nada afetará mais o futuro próximo de todos do que o destino da floresta. No Brasil, a agropecuária e o desmatamento, ambos relacionados, são as principais fontes de gases de efeito estufa, responsáveis pelo aquecimento global. Em outubro, autores do relatório do Painel Intergovernamental das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (IPCC) já alertaram que a humanidade tem apenas 12 anos para limitar o aquecimento da Terra em 1,5 graus Celsius. Meio grau a mais multiplicaria os riscos de seca, inundações, calor extremo e pobreza para centenas de milhões de pessoas. Sem a maior floresta tropical do mundo em pé não será possível atingir essa meta. É por isso que Bolsonaro se tornou também uma ameaça para o planeta. Para enfrentar a crise climática e recuperar a floresta seria necessário um presidente com ideias opostas às de Bolsonaro.

Somente a Bacia do Xingu, segundo monitoramento do Instituto Socioambiental, teve 150 milhões de árvores derrubadas em 2018, e o ano ainda nem acabou. A floresta amazônica chega aos dias atuais já desmatada em cerca de 20%. Um estudo publicado no início deste ano na Science Advances, assinado por cientistas de renome internacional, o americano Thomas Lovejoy e o brasileiro Carlos Nobre, mostrou que a floresta alcançará um “ponto de inflexão” se o desmatamento alcançar entre 20% e 25%. A partir daí, a Amazônia sofreria mudanças irreversíveis, tornando-se uma região de vegetação esparsa e baixa biodiversidade.

Se a eleição de 2018 foi brutal, pelo resultado e pela decepção com os políticos de centro-esquerda, graças à sociedade civil democrática também foi uma das mais belas campanhas da história

Estamos muito perto deste ponto de não retorno. E Bolsonaro ainda nem assumiu oficialmente. Querendo ou não, gostando ou não, acreditando ou não, estamos todos implicados neste futuro bem próximo. Os sinais estão todos aí para quem é capaz de ver. Mas, se preferir não ver, também não vai adiantar nada. É rápido. É no tempo da sua vida e na da vida de seus filhos. E não é porque a gente finge que não existe que a crise climática vai deixar de existir.

Eleger Bolsonaro foi a pior ação para o Brasil e para o planeta. Mas está feito. A pergunta agora é: o que faremos para resistir ao que está por vir e proteger a floresta e com ela a nossa vida? A eleição de 2018 revelou algo duro, mas importante: os candidatos estavam aquém da população. Primeiro, Lula e o PT mostraram-se incapazes de articular uma candidatura de centro-esquerda que pudesse vencer o projeto autoritário. Depois, Ciro Gomes e Marina Silvaprovaram-se incapazes de subir no palanque do segundo turno para defender a democracia.

Mas as pessoas se moveram. Apesar da brutalidade de, mesmo assim, ter sido eleito um defensor da ditadura e da tortura, esta foi uma das campanhas mais bonitas da história recente. Poucas cenas são tão memoráveis quanto a de pessoas anônimas, sozinhas, que na tentativa de virar o voto para o projeto democrático, levantaram um cartaz no centro das cidades dizendo: “vamos conversar?”.

É dessa força que precisamos agora para, unidos com indígenas, quilombolas e ribeirinhos, lutarmos pela Amazônia e pela vida de todos. Mesmo que os eleitores de Bolsonaro não sejam capazes de perceber, resistir ao projeto destruidor da floresta já anunciado pelo presidente de extrema direita é também lutar pela vida deles e de seus filhos.

* Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum/ Facebook: @brumelianebrum