Bolsonaro
Valor: "Foi uma campanha despolitizada, de argumentos rasos e simplistas", diz Lula Guimarães
"Foram 4 horas e 8 minutos de exposição sobre a facada, só em telejornais, até o final do primeiro turno, com vitimização"
Por Malu Delgado, do Valor Econômico
SÃO PAULO - Campanhas eleitorais costumam ser uma mistura de circo com guerrilha, brinca o jornalista Luiz Flávio Guimarães, conhecido no marketing político-eleitoral como Lula Guimarães. Decantada a pressão que enfrentou na disputa presidencial, Lula Guimarães falou ao Valor sobre consequências que a eleição do WhatsApp pode gerar para o marketing político.
Segundo o especialista, que conduziu a campanha presidencial de Geraldo Alckmin (PSDB), a campanha na televisão não pode ser considerada desprezível. Ele alerta que cada candidato tem um perfil, e o de Bolsonaro casa como luva à linguagem das redes. "Essa exaustão de desgaste da classe política foi o fermento para crescer o bolo de conservadorismo no qual o Bolsonaro embarcou."
Ele realça que após o atentado do qual foi vítima Bolsonaro ganhou ampla exposição em entrevistas de televisão. "Nós calculamos 4 horas e 8 minutos de exposição sobre a facada, se juntássemos só os telejornais nacionais, até o final do primeiro turno. É uma exposição na TV de alta qualidade, porque é jornalismo, e não propaganda. E com vitimização", disse.
Guimarães lamenta o nível de despolitização desta campanha, que considerou "rasa". Para ele, "a sociedade, a política e os tribunais" precisam responsabilizar os autores da disseminação de mensagens obscuras e feitas no campo da ilegalidade. Neste sentido, para o marqueteiro, o WhatsApp não necessariamente é ferramenta de campanha eleitoral, mas sim de guerrilha.
A seguir, os principais trechos da entrevista:
Valor: Essa eleição presidencial marcou um novo paradigma sobre a influência da TV, por seu diagnóstico? Isso lhe surpreendeu, como profissional de marketing político?
Guimarães: Não acho que a TV seja desprezível, sinceramente. Se o Bolsonaro tivesse tido três minutos [na TV], seria eleito no primeiro turno. Não tenho dúvida. Assim como no caso do PT e do Haddad a televisão se mostrou muito eficaz para transferência de votos do Lula, em pouquíssimo tempo. O que vejo, também, é que alguns candidatos são adequados a alguns meios. O Bolsonaro é um candidato muito adequado para o tipo de comunicação que as pessoas consomem. Bolsonaro é espontâneo, polêmico. Esses dois elementos alimentam muito a rede social. Recebi uma pesquisa, um ano antes da campanha, mostrando que existia, na rede, um perfil de compartilhadores. Esse perfil aparece muito mais entre os radicais, tanto de direita, quanto de esquerda. Um ano antes da eleição já era perceptível um engajamento, bastante forte, dos apoiadores do Bolsonaro, muito mais ativos que os eleitores que se posicionam pelo centro.
Valor: E como analisar o poder da TV em paralelo ao das redes?
Guimarães: Apesar do reconhecimento de que Bolsonaro utilizou as redes de maneira muito intensa e eficaz, acho que é preciso este olhar equilibrado. A televisão, nas eleições estaduais, manteve sua forte influência. Bolsonaro é muito adequado para as redes sociais. Já Alckmin é formal, e talvez a informalidade seja a característica mais consumida nas redes. Outra coisa que é preciso destacar, que é um registro polêmico, mas verdadeiro: Bolsonaro tem um crescimento muito espontâneo nas redes sociais, no WhatsApp e no Facebook, mas não dá para dimensionarmos o quanto disso foi bancado, patrocinado por alguém.
Valor: Além do custo financeiro, a disseminação das mensagens parecia seguir padrão de conteúdo e formato, com trabalho profissional.
Guimarães: Sim, exato. Custa dinheiro e organização. As mensagens tinham lógica de pauta, conteúdo e direcionamento. Por mais espontâneo que seja, quem faz isso é profissional.
Valor: Depois da execração dos marqueteiros, agora é a vez do marketing político obscuro das redes?
Guimarães: Evidentemente as campanhas no Brasil tiveram muito caixa dois, muitos candidatos que se elegeram com isso. Mas muitos trabalharam com orçamento baixo, não ficaram milionários e fizeram um trabalho correto. Os marqueteiros continuam tendo papel importantíssimo. Tivemos eleições que foram vencidas por marqueteiros super competentes. No Rio Grande do Sul, o Eduardo Leite (PSDB) teve uma campanha feita pelo Fábio Bernardi, que é excelente. A campanha no Pará, do Hélder Barbalho (MDB), foi feita pelo Ricardo Amado, responsável pela vitória dele. Há uma série de profissionais que foram responsáveis por vitórias políticas nos Estados, muito bem conduzidas.
Valor: Essa foi a eleição do WhatsApp no Brasil?
Guimarães: O alerta mais importante para a sociedade, para a política e para os tribunais é procurar responsabilizar o autor de determinado tipo de comunicação e de mensagem. Em campanhas sempre houve a mensagem apócrifa, o jornal apócrifo, o lambe-lambe, os 'matraqueiros', pessoas colocadas em ônibus e locais públicos para disseminar mensagens falsas. Isso sempre existiu, mas não com o poder, a velocidade e a abrangência do WhatsApp. A ferramenta é muito mais um elemento de guerrilha do que de campanha. Alguns candidatos investiram muito nesta guerrilha. Como ela é ilegal, do ponto de vista da lei eleitoral, algumas candidaturas não investiram nisso.
Valor: Mas em que medida os profissionais do marketing foram surpreendidos por esta ampla rede de apoio de Bolsonaro?
Guimarães: Há dois fenômenos que temos que considerar fortemente para estudo: os protestos de 2013 e a greve de caminhoneiros [em maio deste ano], que parou o País de maneira acachapante. Esses dois movimentos foram caracterizados pela mobilização rápida via WhatsApp. Até que ponto a sociedade precisa encontrar mecanismos para se prevenir destas ferramentas, que são libertárias, mas de fakenews, e de uma atuação organizada que pode dar mais margem a radicalismos? O Brasil foi o campeão do uso do Orkut. Está em segundo lugar mundial de usuários do Facebook. Temos uma sociedade muito ávida por compartilhamentos, pelo uso destas redes sociais e interação. Aí não dá para saber se isso é o responsável pelo Bolsonaro ou o Bolsonaro foi o responsável por isso na eleição.
Valor: Como foi administrar todas as cobranças externas, do partido e do candidato para que a TV desse resultado?
Guimarães: Nosso posicionamento foi por procurar, logo de cara, ampliar os eleitores do Alckmin no campo azul, que já tinham sido eleitores do PSDB e migraram para o Bolsonaro. Na primeira semana de campanha, aumentamos muito a rejeição do Bolsonaro e crescer nossos pontos. A facada interrompe esse processo. Aí há uma inversão completa. O tempo de televisão que o Bolsonaro passa a ter nas matérias de jornalismo, além da isonomia que as TVs dão, passa a ser o maior de todos os candidatos. Nós calculamos 4 horas e 8 minutos de exposição se juntássemos só os telejornais nacionais, da facada até o final do primeiro turno. É uma exposição na TV de alta qualidade, porque é jornalismo, e não propaganda. E com vitimização.
Valor: A estratégia de desconstrução de Bolsonaro teve que se revista rapidamente.
Guimarães: Esse foi o maior desafio da campanha, como continuar fazendo a desconstrução do Bolsonaro sendo que ele tinha sido vítima de uma facada. Nossa opção naquele momento foi reforçar os atributos positivos do Alckmin em comparação aos demais. Nossa dificuldade é que o Alckmin representava, naquele momento, o establishment, seja por ter sido governador por 4 vezes, seja por ter apoio do Centrão.
Valor: O centrão acabou sendo um tiro no pé?
Guimarães: Não sei, talvez se não tivesse o Centrão o resultado tivesse sido ainda pior.
Valor: Essa campanha trouxe esse debate sobre comunismo. Como enxerga isso sob o ponto de vista do marketing?
Guimarães: Essa campanha trouxe uma despolitização. Ela deixou de debater os temas nacionais mais importantes e passou a ter argumentos muito rasos, e apoiados pelo excesso de fakenews, que dominaram a pauta. Até agora não sabemos claramente o que o Bolsonaro propôs porque ele nunca propôs, não foi a debates. Mas sobretudo em relação à qualidade da comunicação é uma campanha de argumentos rasos e simplistas. Esse apelo de que a esquerda significa uma ameaça comunista é tão inadequado! Onde é que o comunismo dá certo hoje no mundo? Não estamos na Guerra Fria.
Valor: O que predominou no debate eleitoral foi o antipetismo ou o antiestablishment?
Guimarães: Uma mistura das duas coisas. O PT, pelo tempo que ficou no poder, de certa maneira significa o establishment. De 2002 até agora o PT ficou no poder, há um desgaste pelos fracassos do governo Dilma, pelos escândalos de corrupção. E, de alguma maneira, se atribuiu à esquerda um certo de liberalismo, falta de valores morais. A direita fez esse discurso e isso colou. Você é gay, então é de esquerda. Você é artista, então é de esquerda. Assim. Chegou uma hora em que as pessoas achavam que tudo o que podia ser alternativo era de esquerda.
Valor: O que fica para o marketing político pós-Bolsonaro?
Guimarães: A sociedade e o mundo caminham com movimentos de ação e de reação. De certa maneira o que nós colhemos agora, na campanha do Bolsonaro, não deixa de ser uma reação ao governo do PT e ao que o Brasil passou nos últimos tempos. Essa exaustão de desgaste da classe política foi o fermento para crescer o bolo de conservadorismo no qual o Bolsonaro embarcou. Da mesma maneira que isso é uma reação, Bolsonaro agora passa a ser uma ação que deve provocar outra reação. E essa reação pode gerar, inclusive, o crescimento de uma força e crescimento de uma esquerda que estava desarticulada.
Acho que vamos ter, agora, uma avalanche de profissionais vendendo o jeito Bolsonaro de fazer campanha, com presença nas redes sociais. Mas isso tem que ter adequação, ao candidato, à circunstância. O discurso tem que casar com o perfil do candidato. O programa de cinco minutos do Bolsonaro no segundo turno tinha pouco conteúdo político, era mais um ataque ao PT. Era muito mais antagonista do que um programa construtivo.
Fernando Gabeira: Sobreviver ao ano que vem
Não sei se exagero, mas sinto-me como se fosse a luta pela sobrevivência de um país viável
É um momento de escolha de ministros, definição da estrutura do governo. Não importa o que saia daí, o que nos espera no ano que vem é inescapável: o Brasil pode quebrar. A reforma da Previdência não é só um momento de alívio para o governo Bolsonaro, mas também para 14 Estados em profunda crise financeira, entre eles Rio de Janeiro, Minas e Rio Grande do Sul.
Visitei Minas para ver melhor o que aconteceu nas eleições. Inédita na História, a vitória de Romeu Zema, do Partido Novo, contou com 71,8% dos votos. Foi um salto no escuro, preferível para os eleitores aos velhos partidos que dominaram o Estado: PSDB e PT.
A melhor forma de começar uma nova época é realizar a reforma da Previdência. Não resolve tudo, mas indica que o mais difícil foi feito. Paradoxalmente, a reforma é a maneira de seguir vivo até 2022, mas significa, no primeiro instante, uma perda de popularidade. Na Rússia, a reforma previdenciária roubou muitos pontos de aceitação do governo Putin. Sufocada pela Copa do Mundo, a resistência manifesta-se também numa desconfiança, uma sensação de perda.
Segundo o Moscou Times, essa reforma foi decidida por Putin, mas seu déficit talvez pudesse ser facilmente coberto pelos excedentes do petróleo. Mas e os investimentos, a defesa? O governo precisava se antecipar.
No caso grego, a reforma talvez não tenha desgastado tanto a esquerda no poder. Era claramente inevitável. E havia a pressão da União Europeia. O ressentimento acabou canalizado para Angela Merkel.
No caso brasileiro, a reforma da Previdência tem uma chance singular. Ela é claramente uma forma de neutralizar o processo de transferência de renda dos mais pobres para os mais ricos. Ela tem um quê de Robin Hood, mas esse encanto sozinho não basta para emplacá-la. Em primeiro lugar, será preciso convencer os pobres de que, no fundo, estão ganhando com as mudanças; em segundo lugar, e isso é colossal, vencer a resistência das corporações, algumas articuladas com partidos da esquerda.
O ajuste fiscal será a primeira grande prova tanto para Bolsonaro como para Zema.
O ano que vem marca o início de uma fase triunfante do liberalismo. Ele bateu o marxismo no terreno, mas também partilha com ele um certo idealismo. Um vê no Estado o caminho da salvação, o outro vê no mercado. Como observa John Gray na sua crítica à Nova Direita na Inglaterra, ambos ignoram que são construções humanas e, como tal, imperfeitas.
Uma conclusão de Gray é que essas correntes idealistas veem a vida política de uma forma que conduz a derrotas. Elas tendem a investir num projeto de esperanças transcendentais, numa época sem fé. O conselho realista de Gray é baixar a bola, aceitar a humilde tarefa de uma improvisação sem fim, em que um bem é comprometido para salvar outros, uma espécie de equilíbrio entre os males necessários da vida humana e a perspectiva sempre presente do desastre a ser despachada para outro dia.
Não chego a tanto. Ele teorizava sobre os liberais que concluíam sua passagem pelo governo. Aqui, os vencedores precisam pôr suas ideias em ação.
Mas não consigo esquecer a experiência vivida no Congresso. Vi muitos grandes projetos. E vi sua trajetória real. Alguns deles costumo comparar com o grande peixe pescado pelo velho Santiago no romance O Velho e o Mar, de Hemingway. Comido aos pedacinhos, chegou à praia apenas como um grande esqueleto.
Assim como foi com o marxismo, os liberais vitoriosos correm o risco do que se chama húbris ideológico. Húbris é uma palavra grega que traduzimos como excesso de autoconfiança. De modo geral, esse excesso de autoconfiança é inerente à nossa prática de perseguir princípios universais, esquecendo a política como uma humilde discussão racional, uma acomodação mutual, em busca de um modus vivendi.
De qualquer forma, o Estado brasileiro é uma carga pesada nas costas da sociedade.
Lembro-me de que há quase uma década já discutíamos isso, da ineficácia de algumas estatais aos gastos escandalosos da máquina. Numa das comissões temáticas, questionei os gastos anuais do governo com viagens: R$ 800 milhões. Naquela época já havia um leque de possibilidades tecnológicas, do Skype às teleconferências. Essa escolha liquidaria os gastos. Mas reduziria os ganhos do funcionalismo com diárias.
A relação dessa gigantesca máquina político-partidária com a sociedade precisa ser resolvida em favor das pessoas.
O aumento dos juízes do STF vai nos custar R$ 6 bilhões. É um preço alto, caro, em bens e serviços. Mas tem um lado pedagógico: ficou claro para todo mundo como a elite burocrática se apossa de uma parte maior do bolo, numa sociedade mergulhada na crise econômica.
Creio que muitas pessoas votaram contra isso. Se minha presunção é verdadeira, está em curso uma modesta revolução cultural. Muitas pessoas que viam no Estado um provedor, e de certa forma a Constituição o moldou assim, começam a vê-lo como um obstáculo, sanguessuga.
Isso é o caminho para que seja revisto, de acordo com as circunstâncias históricas e culturais do Brasil de hoje. Não será necessariamente mínimo, que é uma construção ideal. Ele será o que resultar desse que, para mim, é o grande embate de 2019.
No passado, quando terminavam as eleições as pessoas se voltavam para seus problemas, o que é saudável. A verdadeira força transformadora, no entanto, virá da sociedade, e não de esquemas ideais. É possível que, num quadro de crise, ela continue alerta, pois agora começa a viver as consequências de sua escolha.
Não será um ano fácil. Aos que podem, é recomendável ao menos uma semana de férias. Isso porque a economia é apenas uma variável. Além dos 12 milhões de desempregados, parte do território urbano é ocupada por grupos armados, as cadeias são um barril de pólvora, a corrupção se estende pelo interior.
Não sei se exagero, mas sinto-me como se fosse a luta pela sobrevivência de um país viável.
Bruno Boghossian: Medidas amargas serão teste de popularidade para Bolsonaro
Por quase cinco anos, o Brasil adiou o ajuste de suas contas por razões políticas. Dilma Rousseff escondeu o rombo nos cofres do governo para garantir um segundo mandato. Michel Temer tentou, mas não conseguiu convencer sua base aliada a abraçar uma reforma da Previdência às vésperas de um ano eleitoral.
Jair Bolsonaro será obrigado a enfrentar um teste de popularidade logo na largada. A agenda econômica que serviu de pilar para sua campanha é sabidamente amarga e precisará ser apresentada o quanto antes.
A mudança no sistema de aposentadorias é um assunto especialmente incômodo. Nas últimas semanas, o próprio presidente eleito deu sinais de hesitação diante de medidas que podem ser dolorosas. “É complicado, mas você tem de ter o coração nessa reforma também. Não são apenas números”, disse, há três dias.
O equilíbrio entre ajuste fiscal e popularidade depende de certa habilidade política. No fim dos anos 1990, o professor Kurt Weyland estudou o sucesso de reformas neoliberais implementadas em países da América Latina, comparando duas hipóteses que poderiam explicar o apoio àqueles remédios amargos.
A primeira sugeria que governos poderiam criar benefícios sociais direcionados às classes afetadas pelas medidas de arrocho. A outra sustentava que os ajustes só conseguem respaldo da população quando a economia está em crise profunda.
Ao analisar seis países, Weyland afirmou que o segundo conceito, batizado de teoria do resgate, explica o apoio inicial às reformas. Depois que a economia se estabiliza, as recompensas da primeira hipótese ajudam a consolidar o aperto.
Em outras palavras, alguns presidentes tiveram sucesso em convencer os eleitores de que as coisas podem piorar um pouco antes de melhorar. Em um Brasil com 13 milhões de desempregados, a justificativa deve pegar mal, mas pode funcionar.
Eliane Cantanhêde: Vem aí o novo Itamaraty, ‘trumpista’ e ‘bolsonarista’
O presidente eleito, Jair Bolsonaro, deu muitas voltas até chegar ao ponto zero e anunciar quem ele queria desde o início para Relações Exteriores: o diplomata “trumpista” e “bolsonarista” Ernesto Araújo, que é “júnior” (nunca exerceu a função de embaixador), mas encantou Bolsonaro como intelectual chegado aos clássicos, contrário ao globalismo, pró-Ocidente e fascinado por Donald Trump.
A principal recomendação do futuro presidente ao seu chanceler é promover a “regeneração” do Itamaraty. Leia-se: eliminar os vestígios, programas e diplomatas da era PT, particularmente ligados ao ministro dos oito anos do ex-presidente Lula, Celso Amorim. “Fazer uma limpeza, mudar tudo”, resume-se na equipe de Bolsonaro.
Na prática, porém, Araújo terá uma tarefa bem mais imediata: apagar incêndios criados por manifestações tão leigas quanto perigosas do futuro chefe sobre China, Egito, Palestina e mundo árabe, assim como assustou o Mercosul e a União Europeia. Sair da ONU? Do Acordo de Paris? Mudar a embaixada em Israel para Jerusalém?
No Itamaraty, o clima é de apreensão. Na área militar, de comemoração. Num, o temor de uma caça às bruxas e um novo viés ideológico às avessas. Na outra, a certeza de que o PT será varrido e a política externa voltará à sua tradição de pragmatismo e respeito aos interesses nacionais.
Bolsonaro demorou a anunciar Araújo porque testou uma extensa lista de candidatos ao Itamaraty e, além de serem bombardeados, não fariam dobradinha dos sonhos: presidente e chanceler anti-PT e pró-Trump com a mesma intensidade. Isso diz tudo da política externa na nova era.
Bernardo Mello Franco: Um bolsonarista na casa de Rio Branco
O presidente eleito terá um chanceler à sua imagem e semelhança. Ernesto Araújo emula o discurso do chefe contra o ‘globalismo’ e é admirador de Donald Trump
O novo presidente terá um chanceler à sua imagem e semelhança. O futuro ministro Ernesto Araújo não é apenas um bolsonarista de carteirinha. Ele também emula o chefe no discurso contra o “globalismo”, a “ideologia de gênero” e o “marxismo cultural”.
O ideário do novo chefe do Itamaraty pode ser consultado no blog “Metapolítica 17”. A página é dedicada a uma militância fervorosa a favor do capitão e contra o PT. Ele se refere à sigla como “Partido Terrorista”. Em tom imodesto, diz que pretende “ajudar o Brasil e o mundo a se libertarem da ideologia globalista”.
“Se o PT ganhar, vai extinguir todas as luzes da decência e da liberdade”, escreveu, a uma semana da eleição. Ele acusou os petistas de tramarem um “regime de partido único, ditatorial, (...) um governo que controlará sua vida a partir da educação pré-escolar, que administrará sua família, que controlará o que você pensa e diz”.
O futuro chanceler também ecoa Bolsonaro na pregação contra a China, maior parceira comercial do Brasil. Ele sugere que é preciso resistir à “China maoísta que dominará o mundo”. O discurso parece levemente fora de época. A potência asiática começou a abandonar o maoísmo em 1978, com as reformas de Deng Xiaoping.
Em outro post, o embaixador que nunca chefiou uma embaixada repete clichês da direita hidrófoba. Diz que o socialismo “perverte o milagre da concepção com a ideologia do aborto, perverte o sexo com a ideologia de gênero e o feminismo” e “perverte a fé cristã”.
O anti-intelectualismo também desponta nos textos de Araújo. Para ele, “o povo é muito mais são e sábio do que a classe instruída”. As crianças brasileiras receberiam uma “educação cínica e anti-patriótica onde [sic] se ensina uma história sem heróis e onde professores sub-marxistas tentam criar pequenos militantes”.
Num artigo mais extenso, publicado em 2017 na revista “Cadernos de Política Exterior”, o diplomata ostenta admiração por Donald Trump. Compara o presidente americano a Reagan e Churchill e sustenta, sem ironia, que ele pode “salvar o Ocidente”. Ao que tudo indica, o Itamaraty está prestes a entrar num novo período de alinhamento automático à Casa Branca.
El País: Ernesto Araújo, o chanceler contra o “marxismo cultural” que mira Trump
Presidente eleito ignora indicações de diplomatas mais moderados e nomeia ‘trumpista’ convicto para o Ministério de Relações Exteriores
Por Ricardo Della Coletta, do El País
Assim que o diplomata Ernesto Araújo foi anunciado pelo presidente eleito Jair Bolsonaro como futuro ministro das Relações Exteriores, começou a circular nas redes sociais o texto pelo qual ele ficou mais conhecido entre os servidores do Itamaraty. Intitulado Trump e o Ocidente, Araújo rende ao longo de 36 páginas loas ao mandatário dos Estados Unidos, a quem vê como uma espécie de cavaleiro cruzado pelo resgate da identidade do Ocidente no mundo moderno. Para o novo chanceler, Donald Trump não é o chefe da superpotência mundial que toma decisões desconexas, arbitrárias e caóticas. Longe disso: Araújo o vê mais como alguém que atua "na recuperação do passado simbólico, da história e da cultura das nações ocidentais".
Publicado no segundo semestre de 2017, o artigo, segundo um diplomata ouvido pelo portal UOL, gerou forte impacto nas filas do Itamaraty, um ministério marcado pela rígida hierarquia da carreira diplomática e por uma tradição de independência e de não alinhamento automático aos grandes blocos internacionais. Araújo se posicionou ali claramente como um trumpista, partidário da visão altamente nacionalista —e antiglobalista— que o presidente dos Estados Unidos encampa.
Com esse histórico, parece apenas natural que Araújo tenha apoiado abertamente Jair Bolsonaro, o político que desfruta do apelido de Trump tropical,apesar das diferenças que o separam. Em plena campanha presidencial, o novo chanceler começou a publicar um blog com fortes críticas ao PT (para ele o Partido Terrorista) e elogios a Bolsonaro. É nesse blog, por exemplo, em que ele comparou uma das manifestações pró-Bolsonaro em Brasília a campanha pelas Diretas Já e aos protestos de rua que levaram ao impeachment de ex-presidenta Dilma Rousseff. "O movimento popular por Bolsonaro não se nutre de ódio, mas de amor e de esperança...", escreveu.
O agora chefe do departamento de Estados Unidos, Canadá e Assuntos Interamericanos do Ministério das Relações Exteriores, Ernesto Henrique Fraga Araújo passou na frente de outros diplomatas que estavam cotados para comandar a política externa brasileira no Governo Bolsonaro. Ao longo dos últimos dias circularam nomes de funcionários de carreira que eram considerados mais moderados, embora distantes do pensamento de alianças sul-sul que foram a digital dos Governos do PT no Itamaraty (e que Bolsonaro promete extirpar). O próprio vice-presidente eleito, general Hamilton Mourão, havia dito que um dos cotados era o atual secretário-executivo do ministério, Marcos Galvão.
Nesse sentido, a escolha de Araújo, de 51 anos, um pregador contra o "marxismo cultural", não deixa de ser uma surpresa. Principalmente por mostrar que, ao invés de uma escolha menos polêmica, que evitaria ainda mais rusgas com países cruciais como a China, principal parceiro comercial do Brasil, Bolsonaro optou por não abrir mão de alinhar o Brasil ao movimento global de ascensão da direita populista —em muitos lugares pela extrema direita— liderado por Trump. Um alinhamento que começou ainda antes de o capitão reformado do Exército ter sido eleito, quando seu filho, Eduardo Bolsonaro, visitou nos Estados Unidos o ex-estrategista do Republicano, Steve Bannon.
‘Interesse nacional’
O presidente eleito apresentou o novo chanceler em uma coletiva de imprensa nesta quarta-feira em Brasília. Em um rápido pronunciamento, Araújo defendeu que o País mantenha "relações excelentes" com todos os seus parceiros comerciais. "Antes de tudo [é preciso] garantir que este momento extraordinário que o Brasil está vivendo, com a eleição do presidente Bolsonaro, se traduza dentro do Itamaraty numa política efetiva, numa política em função do interesse nacional, de um Brasil atuante, feliz e próspero".
No texto que publicou no ano passado, Araújo faz uma forte defesa do nacionalismo e apresenta Trump como um representante do que define como "anticosmopolitismo radical". "Cada Estado tem o dever, e não só o direito, de trabalhar pelo seu povo, o Estado só se legitima se for nacional, enraizado numa comunidade, e cada pessoa se desenvolve como membro", diz, ao comentar um dos discursos do presidente norte-americano.
De forma bastante erudita, Araújo traça um histórico da civilização ocidental, que ele afirma reunir "laços de cultura, fé e tradição que nos fazem quem somos". Valores que estariam ameaçados pelo globalismo e por um abandono da própria identidade ocidental, que incluiria aí, entre outras coisas, a rejeição ao conceito do nacionalismo. "Somente um Deus poderia ainda salvar o Ocidente, um Deus operando pela nação —inclusive e talvez principalmente a nação americana", conclui Araújo em seu texto.
William Waack: ‘Se esse troço der errado’
Militares apostam em medidas liberais na economia para o governo Bolsonaro dar certo
No começo desta semana, um grupo seleto de investidores reunidos em Nova York ouviu em inglês de um integrante do “núcleo duro” do futuro governo que o presidente eleito, Jair Bolsonaro, quer mesmo aplicar um choque liberal na economia brasileira. Quer privatizar 100 de 160 estatais. Leiloar bons contratos para interessados em investir em infraestrutura. Reformar um sistema tributário caro. Priorizar, acima de qualquer coisa, o ajuste fiscal. E mudar o comércio exterior, no sentido de maior abertura.
Não, não era Paulo Guedes falando. Era o vice-presidente Hamilton Mourão. Combinam as ideias representadas por Guedes com a cabeça de quem passou mais de 30 anos pela formação de escolas militares, como são todos os oficiais envolvidos de uma forma ou outra com o novo governo? Pelo jeito, parece que sim. Mourão descreveu para os investidores em Nova York como “um bom negócio” a fusão da Embraer com a Boeing (chamada de “entreguismo” pelo retrógrado pensamento de esquerda no Brasil).
Na mesma ocasião, Mourão ecoou também o que o seu antigo chefe, o comandante do Exército, disse em várias entrevistas, a mais recente delas ao correspondente no Brasil do Financial Times – uma das mais influentes publicações internacionais e uma das poucas a não cair na narrativa de que o Brasil estaria elegendo uma nova ditadura militar. Os militares não vão se meter em política, garantiu o general Villas Bôas.
Mas em política eles estão profundamente mergulhados. Atuaram em dois momentos nevrálgicos – a possível concessão de habeas corpos a Lula no STF e nos momentos seguintes ao atentado contra Jair Bolsonaro – para evitar o que chamam de “ameaça de caos social e político”. Temiam uma bagunça generalizada, e a possível rebeldia de coronéis. Vários integrantes dos altos escalões penduraram a farda, vestiram o terno e foram para posições estratégicas (do ponto de vista político sobretudo) no governo. Alguns oficiais generais de farda participaram ativamente nos bastidores da campanha do presidente eleito. Embora a instituição das Forças Armadas não esteja oficialmente metida em política, a teia de relacionamentos profissionais e pessoais entre os “de fora” e os “dentro” do governo é de enorme coesão.
Relevante aqui, portanto, é saber o que eles pensam, e qual é o País que querem. A caricatura grotesca tem ocupado muitas vezes o lugar da análise, e a caricatura dos militares parados na década dos 1970 com a mentalidade de estatismo, autarquia e segurança nacional entendida em sentido muito estrito cedeu lugar para a convicção, entre os militares, de que soberania nacional é o resultado de economia forte e razoavelmente aberta, e que não há automatismos ou subordinações claras em alianças externas, sobretudo em relação às que prometam acesso a tecnologias e geração de conhecimento.
Há mais um aspecto político do papel dos oficiais militares: muitos comandantes viram na onda que levou Bolsonaro ao Planalto um freio no que eles chamam de “esquerdização” da sociedade brasileira. Nesse sentido, o olfato político dos militares que dizem não se meter em política parece ter sido muito melhor do que a “sabedoria” de políticos profissionais. Eles enxergaram cedo que ordem, segurança, hierarquia e honestidade – valores que boa parte do eleitorado identifica com militares – ajudariam a eleger Bolsonaro.
O problema está na frase pronunciada em tom de brincadeira pelo General Heleno, um dos nomes de maior prestígio em todo o estamento militar. “Se esse troço aí (o governo Bolsonaro) der errado, a única coisa boa da minha geração foi ter visto o Pelé jogar”, disse Heleno.
Jairo Nicolau: O triunfo do Bolsonarismo
Como os eleitores criaram o maior partido de extrema direita da história do país
Até o início do horário eleitoral, a visão dominante sobre as eleições de 2018 era a de que repetiria os padrões dos pleitos anteriores. Nem PT nem PSDB acreditavam no fenômeno Bolsonaro.
No sábado, véspera do primeiro turno das eleições, fui a uma festa de família em Nova Friburgo, minha cidade natal. Durante o dia, no inevitável passeio pela avenida principal da cidade, deu para perceber os sinais de campanha presidencial, o que não tinha ocorrido em nenhum momento no Rio de Janeiro: dezenas de cabos eleitorais balançando bandeiras, muita gente vestindo a camisa amarela com a foto de Bolsonaro estampada.
Em conversa com familiares, comecei a dimensionar a força do bolsonarismo na cidade. No grupo de 25 pessoas que jogam vôlei com a minha irmã, apenas ela e mais três disseram que não votariam no candidato do PSL; no grupo de vinte que jogam a tradicional pelada de fim de semana com o meu cunhado, apenas ele e mais quatro não iam votar em Bolsonaro. O mais inesperado foi ouvir relatos sobre antigos colegas de colégio, figuras silenciosas e discretas, que tinham se transformado em virulentos defensores de Bolsonaro nas redes sociais. Adotando uma “tática de enxame”, eles se especializaram em conjuntamente atacar páginas do Facebook de amigos que postassem qualquer crítica ao capitão.
Friburgo é uma cidade conservadora, mas saí de lá com a sensação de que Bolsonaro estava muito mais forte do que eu imaginava. De volta ao Rio, ao votar no primeiro turno, encontrei uma situação muito mais equilibrada. Meu passatempo, durante a longa espera, foi tentar identificar o voto dos eleitores das filas vizinhas. Alguns, atendendo ao pedido da campanha de Bolsonaro, chegaram com a camisa da Seleção brasileira. Vi muitos com adesivos de candidatos do PSOL e de Ciro Gomes. Será que as urnas em geral estariam mais próximas da maré bolsonarista vista em Friburgo ou do cenário mais equilibrado das filas de uma escola de Botafogo?
Já faz alguns anos que não ligo a tevê para acompanhar a apuração. Prefiro baixar o programa do TSE e abrir o site de um grande jornal, navegando conforme as minhas escolhas. Esse ano, porém, como os resultados demoravam a aparecer, resolvi seguir as previsões feitas pelas pesquisas de boca de urna. À medida que os resultados eram divulgados nos jornais televisivos e outros eram compartilhados via WhatsApp por amigos que estudam eleições, mais estupefato eu ficava.
No Rio de Janeiro, o juiz Wilson Witzel, candidato apoiado pela família Bolsonaro, chegava em primeiro lugar, desbancando Eduardo Paes, líder em todas as pesquisas que foram publicadas desde o começo do ano. Imediatamente, recebo mensagens de toda a parte. Quem é esse juiz? Em Minas Gerais, os petistas sonharam com o crescimento do candidato do Novo, um empresário chamado Romeu Zema. Mas não imaginavam que ele tirasse o governador Fernando Pimentel da disputa no segundo turno. A sensação de que essa era uma eleição de ruptura com a velha ordem partidária ficou clara quando apareceram os dados para o Senado de Minas, com a ex-presidente Dilma amargando o quarto lugar. Era isso mesmo? Sim. Uma ex-presidente vitoriosa em quatro turnos naquele estado estava atrás de outros três concorrentes.
Os resultados da noite deixaram os analistas de política sem adjetivos. O uso de analogias climáticas, embora meio desgastado depois de anos de crise (quem não se lembra da “tempestade perfeita”?), foi a opção. Estávamos diante de um “tsunami” eleitoral, do “furacão” Bolsonaro, da “avalanche” de votos do PSL. Restava falar da velha ordem política também com imagens de destruição. O sistema partidário estaria “em escombros”, “em ruínas”, teria vindo ao chão diante de uma “hecatombe” de renovação.
Afinal, quais eram as bases do sistema partidário que teria sido destruído no primeiro turno do pleito de 2018?
Vale a pena voltar no tempo e lembrar a grande instabilidade que marcou a primeira década da vida partidária após a redemocratização. Cinco partidos foram fundados ainda no regime militar: PDS, PMDB, PT, PDT e PTB. Entre 1985 e 1994, nada menos do que 68 partidos foram organizados e disputaram pelo menos uma eleição. Dentre esses, destacam-se o PFL, o PSDB, o PL, o PCdoB, o PSB e o PRN.
Mais do que pelo grande número de legendas, o período foi caracterizado pela crise que afetou os partidos tradicionais. Nas eleições presidenciais de 1989, os candidatos do PMDB e PFL – os dois partidos responsáveis pela vitória na eleição de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral – tiveram um desempenho pífio. Ulysses Guimarães, presidente da Assembleia Constituinte que encerrara seu trabalho um ano antes da eleição, obteve 4,7% dos votos. Aureliano Chaves, ex-vice-presidente da República, alcançou apenas 0,9%.
A vitória de Fernando Collor pelo PRN, legenda à qual se filiou apenas para concorrer à Presidência, e o subsequente governo de Itamar Franco, presidente que se desfiliou do PRN e governou sem estar vinculado a nenhuma legenda, ilustram bem o quadro de crise do sistema partidário nos primeiros anos da década de 90.
Podemos definir o ano de 1994 como o início do sistema partidário com características mais ou menos estáveis, que perduraria por duas décadas até as eleições de 2014. Destaco três principais características desse sistema.
A primeira delas é a polarização entre PT e PSDB na disputa presidencial. Os dois partidos chegaram em primeiro ou em segundo lugar em todos os dez turnos disputados entre 1994 e 2014. Nas duas eleições em que o PSDB venceu no primeiro turno (1994 e 1998), o PT chegou em segundo lugar. Nos oito turnos em que o PT venceu (2002, 2006, 2010 e 2014), o PSDB chegou em segundo lugar.
A segunda característica é o papel central do PT no sistema partidário. Será difícil para os historiadores do futuro não chamarem esses vinte anos de “era do PT”. O partido ficou à frente da Presidência por mais tempo do que qualquer outro na história da República. Mesmo durante o governo Fernando Henrique Cardoso, o PT conseguiu ser um ator relevante, comandando uma combativa oposição.
Para além do sucesso eleitoral, um aspecto que sempre chamou a atenção no PT foi a sua capacidade de organização. Enquanto os outros partidos mantiveram uma estrutura organizacional tênue, com baixo envolvimento dos filiados em suas atividades, o PT inovou ao apostar em uma estrutura capaz de mobilizar milhares de quadros para as suas fileiras.
Os cientistas políticos David Samuels e Cesar Zucco, no livro Partisans, Antipartisans and Nonpartisans: Voting Behavior in Brazil (2018), mostraram como a divisão PT/anti-PT foi importante na escolha dos eleitores. Caso raro, o principal concorrente do PT não foi outro partido, mas um sentimento genérico com nome próprio: antipetismo.
Uma terceira característica do sistema partidário brasileiro é a fragmentação. Contrastando com a disputa concentrada para a Presidência, o quadro no Congresso Nacional é de alta pulverização, tendência que vem se aprofundando desde os anos 90. Para se ter uma ideia dessa dispersão: em 1994, as quatro legendas mais importantes (PSDB, PMDB, DEM e PT) tinham, juntas, 308 cadeiras na Câmara dos Deputados; em 2014, passaram a deter apenas 210. A predominância dos quatro partidos não é por acaso. PT e PSDB controlaram a Presidência, enquanto o PMDB (depois MDB) e o PFL (depois DEM) foram centrais no controle do Congresso Nacional.
Depois da perplexidade com os resultados de boca de urna do primeiro turno divulgados pela televisão, voltei ao computador para analisar os dados oficiais da apuração. Ao abrir os resultados de deputado federal do Rio de Janeiro me dei conta que o sucesso de Bolsonaro tinha transbordado para os cargos proporcionais.
Quem é esse Hélio Lopes que chegou em primeiro entre os candidatos a deputado federal, elegendo-se com 345 mil votos, à frente de Marcelo Freixo? Encontro na internet a foto de Lopes. Lembro que recebi um santinho dele. Dias depois, me atualizo. Chamado por Bolsonaro de “Hélio Negão”, ele é subtenente do Exército e tentou ser vereador em Nova Iguaçu em 2016, quando recebeu 480 votos. Nas estatísticas não será considerado como um político que tenta um cargo pela primeira vez.
Numa eleição de tantas surpresas, nada foi mais espantoso do que a votação obtida pelo Partido Social Liberal para a Câmara dos Deputados. O partido obteve 11,3% dos votos e 10,1% das cadeiras. Havia conseguido eleger apenas um deputado federal nas quatro das cinco eleições que disputou antes de 2018. Era um dos partidos a serem barrados pela cláusula de desempenho. A filiação de Bolsonaro e de seus seguidores ao PSL, em março desse ano, mudou inteiramente a sorte da legenda.
O PSL foi o partido que teve o maior crescimento desde as eleições de 1990, quando é possível comparar com a primeira eleição do regime democrático, em 1986. Em 1990, o PRN do então presidente Collor obteve 8,3% dos votos, enquanto o estreante PSDB recebeu 8,7%. Ambos já contavam com um grande número de deputados e tinham o apoio de importantes lideranças regionais.
Outra característica singular do PSL é o grande número de eleitos que disputam um cargo pela primeira vez. Dos 52 deputados federais eleitos, trinta nunca haviam concorrido. Nunca um partido elegeu tantos novatos como o PSL. Guardadas as proporções, é um fenômeno semelhante ao da ascensão do partido do presidente francês Emmanuel Macron (La République en Marche!) e do Movimento 5 Estrelas, na Itália; são novos partidos que levam dúzias de cidadãos sem experiência prévia aos legislativos nacionais.
Os diversos perfis da bancada do PSL feitos pela imprensa destacam a sua heterogeneidade. O que os une, além da admiração por Bolsonaro, é o fato de se posicionarem na extrema direita do espectro partidário. Só no fim da noite de domingo do primeiro turno da eleição, quando já era possível estimar o tamanho das bancadas de cada partido, me dei conta de algo surpreendente: os eleitores haviam criado o maior partido de extrema direita da história das eleições brasileiras.
Quando teria começado a ruína dos partidos e de parte da tradicional elite política do país? Não são poucos os analistas que atribuem a origem de tudo às manifestações que varreram o país em 2013. O forte conteúdo antipolítica dos protestos teria ajudado a minar a confiança da população no sistema representativo.
Além de pedir aos manifestantes que não usassem camisas com símbolos partidários e promover a queima da bandeira dos partidos, os protestos lançaram alguns bordões que expressam uma visão realmente negativa da política. “Partidos não” e “Não me representa” eram palavras de ordem reiteradas inúmeras vezes quando as pessoas se aproximavam da Câmara Municipal ou da Assembleia Legislativa.
É difícil dimensionar se 2013 teve um efeito mais duradouro sobre a avaliação dos brasileiros acerca dos seus representantes. O fato é que nas eleições do ano seguinte o impacto não foi perceptível. As pesquisas de opinião não indicaram um aumento da desconfiança em relação às instituições e aos partidos. A taxa de abstenção continuou praticamente a mesma da eleição anterior. Fora do padrão, apenas um aumento dos votos nulos e em branco para deputado federal, particularmente nos estados do Rio e de São Paulo.
Somente uma força externa muito poderosa poderia abalar um sistema de partidos estruturado em duas décadas de competição política, com diversos mecanismos de autoproteção. A Operação Lava Jato cumpriu esse papel. As investigações afetaram diversas legendas, mas sobretudo as três mais importantes: PT, PSDB e MDB. O PT teve vários de seus dirigentes presos e investigados, entre eles o ex-presidente Lula. Os principais dirigentes investigados do MDB tinham foro privilegiado (eram senadores e deputados), mas o que se viu na maior seção do partido, a do Rio de Janeiro, com a prisão de Sérgio Cabral, Eduardo Cunha e Jorge Picciani, foi suficiente para fazer um estrago sem precedentes na legenda. Vários dirigentes do PSDB investigados também se beneficiaram do foro privilegiado, mas a revelação das conversas de Aécio Neves com o empresário Joesley Batista também amplificou muito a rejeição ao partido.
Olhando para trás e relembrando a maré de denúncias contra a elite política que circulou entre 2015 e 2018, percebo como os analistas subestimaram os efeitos da Lava Jato. A operação mudou o patamar de rejeição em relação aos principais partidos. Todos foram igualados por participarem sem pudor de gigantescos esquemas de corrupção.
Até o começo do horário eleitoral, a visão dominante dos cientistas políticos sobre as eleições de 2018 era a de que repetiria os padrões dos pleitos anteriores. Eles acreditavam que: a disputa pela Presidência se daria novamente entre PT e PSDB; a renovação parlamentar seria baixa; e o trio PSDB/PT/MDB continuaria dominando a política brasileira.
O argumento dos que defendiam a tese de que “essa eleição é igual às últimas” baseava-se em duas premissas. Primeiro, a importância que a estrutura partidária e a montagem das coalizões de apoio nos estados havia tido em pleitos anteriores. Segundo, a nova legislação eleitoral, que concentrou o tempo de propaganda eleitoral e o dinheiro do fundo eleitoral nos grandes partidos; juntos, MDB, PSDB, PT e PP ficaram com 44% do dinheiro.
A mesma visão parece ter orientado as ações dos dirigentes partidários. O PSDB optou por lançar Geraldo Alckmin, uma liderança tradicional, que já havia sido candidato à Presidência. O ex-governador de São Paulo, mais do que qualquer um dos nomes ventilados pelo partido, tinha a cara da velha política. O PSDB teve como prioridade a montagem de palanques estaduais e o apoio dos partidos para conquistar o que havia sido o melhor ativo de outras eleições: o tempo de propaganda na tevê.
A estratégia do PT também mirou o passado. A ideia parecia simples. Lula liderava as pesquisas com enorme vantagem. O que, por si só, seria uma evidência de que o eleitorado queria uma nova edição da época de ouro dos governos petistas. Como as pesquisas mostravam que um número expressivo de eleitores estaria disposto a votar em um nome indicado por Lula, a equação estava fechada. Confiando na força do ex-presidente e na teoria de transferência de votos, o PT se deu ao luxo de fazer a mais estreita coalizão eleitoral desde 1989. Só conseguiu o apoio do PCdoB – que retirou a candidatura de Manuela D’Ávila à Presidência – e do PROS.
Nada, porém, supera a crença dos partidos na manutenção da velha ordem do que o comportamento dos partidos do centrão (DEM, PP, PR, PRB e Solidariedade). É interessante lembrar que alguns deles haviam sido sondados pelo PT e outros pela candidatura de Ciro Gomes. Bolsonaro gostaria de ter o senador Magno Malta como seu vice, mas o PR não aceitou. Depois de semanas de negociação, os partidos resolveram apoiar qual candidato? Geraldo Alckmin.
PT e PSDB se prepararam para enfrentar um ao outro. Nenhum dos dois acreditava no fenômeno Bolsonaro. No último debate do primeiro turno na Rede Globo, a certa altura Alckmin escolheu Haddad para responder uma de suas perguntas. Durante minutos os dois falaram como se estivessem em 2014. Enquanto isso, Bolsonaro concedia uma entrevista nos seus termos à Rede Record do bispo Edir Macedo.
Fui mais cético que meus colegas de ofício sobre a possibilidade de que a eleição de 2018 repetisse o padrão das eleições anteriores. Minha desconfiança se devia a duas razões. A primeira, mais genérica, pode ser resumida no sentimento de que, depois de três anos de crise política, dificilmente as estruturas do sistema partidário não sairiam abaladas. Lembro-me de uma conversa com a cientista política Maria Hermínia Tavares de Almeida, que também compartilhava do meu ceticismo, em que ela fez a pergunta definitiva: “Depois de tudo que aconteceu nesses anos, as eleições não vão mudar nada?”
A segunda razão é que venho há anos acompanhando a movimentação do candidato Bolsonaro. Por intermédio de um amigo que compartilha o material do candidato, assisti aos seus vídeos postados nas redes sociais, e os mais impressionantes deles mostravam o acolhimento efusivo que recebia de seus seguidores pelos aeroportos do país. Mas, apesar de não desprezar a força de Bolsonaro, minha expectativa sobre o que seria a eleição presidencial se revelaria totalmente equivocada. Consulto os slides de uma apresentação que fiz em março deste ano sobre o tema. Estimava que Bolsonaro teria algo em torno de 15% a 20% dos votos.
Minha aposta era que cinco candidatos (Marina, Alckmin, Ciro, Bolsonaro e o candidato do PT) disputariam entre si as duas vagas para o segundo turno; todos eles com potencial de votação semelhante, entre 10% e 20% dos votos. Uma pessoa cujo nome não lembro e que compartilhava de avaliação semelhante chegou a propor um número mágico: nesse cenário, o candidato que tivesse 17% dos votos passaria para o segundo turno.
Meu equívoco maior se deu quando projetava os resultados do segundo turno. Mais de uma vez, fui perguntado em debates e aulas sobre as chances de Bolsonaro vencer as eleições. Na resposta, sempre me lembrava do caso francês. Bolsonaro é candidato de um segmento específico do eleitorado, é um candidato de nicho, que lembra o desempenho do partido de extrema direita da França. Lá, a Frente Nacional consegue até chegar ao segundo turno, mas todas as forças do espectro político (da direita republicana à esquerda comunista) se juntam contra o partido, que é sempre derrotado. Não me lembro, mas provavelmente devo ter dito uma frase que muitos falavam em meados do ano: “O candidato do PSL será derrotado por qualquer um no segundo turno.”
Bolsonaro saiu do nicho. Esse é o fenômeno mais impressionante da campanha presidencial de 2018 e será o tema incontornável dos estudos sobre o comportamento político no Brasil nos próximos anos.
Como um candidato com uma história tão à direita no espectro político, com dezenas de vídeos em que revela seu racismo, sua homofobia e seu menosprezo pelas mulheres, foi capaz de conquistar uma parcela tão expressiva de eleitores de alta renda e alta escolaridade? Fui a São Paulo em junho e percebi que Bolsonaro já era o preferido dos motoristas de Uber e dos trabalhadores do hotel onde me hospedei. Em setembro, em nova viagem, soube que a comunidade judaica o apoiava em peso. O mesmo acontecia com a elite da cidade, outrora eleitora do PSDB.
O mais impressionante é que uma grande parte do eleitorado passou a apoiar Bolsonaro sem conhecer minimamente suas ideias. Recolhido no hospital ou em casa desde o atentado que sofreu em 6 de setembro, Bolsonaro compareceu somente aos dois primeiros debates da campanha. Sem dispor de tempo no horário eleitoral gratuito, também não detalhou nenhum dos seus projetos para o país. Minha impressão é que seus eleitores, ao votarem nele, imaginam escolher uma espécie de João Doria nacional.
Outra hipótese, mais óbvia mas não menos intrigante, é a que vê no antipetismo uma razão forte para Bolsonaro ter saído de seu nicho. A maré bolsonarista deveria menos aos méritos do candidato do que a uma força inercial da opinião pública. Dito de outro modo, qualquer candidato que disputasse contra o PT acabaria vencendo.
Usei o adjetivo “intrigante” no parágrafo acima por uma razão muito simples. Onde estava o antipetismo tão visceral que ninguém foi capaz de dimensioná-lo? Aos olhos de agora, parece que todo mundo já sabia da força do antipetismo, mas nenhuma pesquisa de opinião feita antes de a campanha começar foi capaz de capturá-lo. Ao contrário, as pesquisas mostravam que Lula reerguia o petismo e que o partido já recuperava seu tamanho como legenda preferida do país. Havia inclusive uma hipótese para explicar a força do petismo: “O governo Temer e a prisão do Lula teriam ressuscitado o PT.”
Estudos sobre o desenrolar da campanha eleitoral de 2018, particularmente sobre o papel das redes sociais, devem mostrar a evolução do antipetismo. Meu palpite é que tanto a ampliação do antipetismo, como a mudança de patamar desse sentimento (de um estágio relativamente leve para um visceral) deve-se à eficácia do que chamarei, na falta de expressão melhor, de máquina de propaganda da campanha de Bolsonaro.
As eleições para prefeito do Rio de Janeiro em outubro de 2016 e a greve dos caminhoneiros, em maio de 2018, mostraram a força de uma nova forma de comunicação e mobilização social: o WhatsApp. Falo especificamente desse instrumento porque ele é realmente uma inflexão na forma de os brasileiros se comunicarem. De novo, não tenho estudos, mas posso observar na minha rotina que o WhatsApp é o grande responsável pela inclusão de milhões de cidadãos de baixa renda e baixa escolaridade na era digital.
Somente a comunicação via redes sociais, cultivada nos últimos anos no país, poderia explicar a força e a rapidez com que as ondas de opinião se propagaram nessas eleições. Antes, velhas ondas de campanha demoravam dias para se formar e precisavam do “boca a boca” para se propagar. Agora, a propagação da informação faz-se de maneira veloz, em escala geométrica – como provavelmente ocorreu na impressionante campanha que levou o juiz Witzel a saltar de um dígito nas pesquisas feitas na quarta-feira antes da eleição para 41% dos votos válidos no primeiro turno.
A campanha também foi invadida por uma onda de fake news. Assisti a dezenas de vídeos, quase todos pró-Bolsonaro, com montagens toscas, adulterações de fatos e estatísticas inventadas. A Justiça Eleitoral não se preparou para lidar com o fenômeno. Diferentemente do que tinha feito em outras eleições, quando controlava os desvios e agressões da propaganda de rádio e televisão, nesse ano o silêncio foi a sua tônica.
Mas nem tudo foi fake news. Depoimentos e trechos de eventos foram difundidos com eficácia pela campanha do PSL. Ouvi pastores e lideranças empresariais pedirem voto para o Bolsonaro. Vi compararem algumas propostas do candidato com as do PT. Acabo de assistir a um vídeo em que um bispo finaliza a sua homilia repetindo, e sendo efusivamente aplaudido pelos fiéis, o principal bordão da campanha bolsonarista: “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos.”
Bolsonaro é, a meu juízo, o maior fenômeno da história das eleições no Brasil. Muitos o comparam com Collor em 1989, mas sua força e abrangência são bem maiores. Uma coisa parece certa. Com Collor, vimos a emergência de um fenômeno propagado pelas redes de televisão. Bolsonaro não só nos mostrou que a era da televisão está se encerrando, como uma nova era começa: a das campanhas feitas nos subterrâneos da sociedade, por meio das redes sociais.
Embora essa seja uma análise ainda inicial, minha sugestão é que o pleito desse ano é um exemplo do que os cientistas políticos chamam de “eleição crítica”: uma disputa que desestrutura o padrão de competição partidária vigente.
Enumero quatro elementos que demonstram que as eleições deste ano marcam o encerramento do sistema partidário que vigorou por duas décadas: o fim da polarização entre PT e PSDB nas eleições presidenciais; o fim da centralidade do primeiro como força organizadora do sistema partidário; o declínio dos dois maiores partidos de centro (PMDB e PSDB); e a emergência de um novo e expressivo partido de direita (PSL).
A onda bolsonarista foi tão forte que, nos dias que se seguiram ao primeiro turno, os prognósticos sobre o resultado do segundo turno podiam ser resumidos em duas perguntas: Qual será a diferença a favor do candidato do PSL? Será que ele superará o desempenho de Lula em 2002? (Nesse ano, o candidato do PT recebeu 61,3% dos votos válidos, a maior votação já obtida por um candidato a presidente.) As pesquisas publicadas na primeira semana após o segundo turno reforçaram a ideia de vitória por grande margem. Na pesquisa do Datafolha, o deputado do PSL vencia com 58% dos votos válidos; na pesquisa Ibope vencia com 59%.
Em razão da grande vantagem confirmada nas primeiras pesquisas, Bolsonaro manteve a mesma estratégia adotada no último mês de campanha do primeiro turno: priorizou a difusão de mensagens por intermédio das redes sociais, não participou de eventos públicos e nem compareceu aos tradicionais debates promovidos pelos principais meios de comunicação do país. A diferença é que sua campanha chegou ao rádio e à televisão.
Com apenas oitos segundos, o ex-capitão havia sido quase invisível nos meios tradicionais de comunicação no primeiro turno. No segundo, com os dez minutos do programa eleitoral e centenas de inserções, ele teve que dar uma atenção especial ao velho (e para ele novo) formato de comunicação.
Se pudermos recorrer a uma metáfora esportiva, a estratégia de Bolsonaro lembrou a dos times de futebol que, vencendo por larga vantagem, “jogam contra o relógio”. Deixam o tempo passar, trocam passes para o lado até que o juiz aponte para o centro do gramado.
Na campanha de Haddad, em contrapartida, inicialmente nada parecia funcionar. A tentativa de organizar uma frente democrática foi um fiasco. O petista recebeu apoio crítico do PDT e Ciro Gomes preferiu não declarar seu voto; Fernando Henrique Cardoso e outras lideranças nacionais do PSDB também preferiram não se manifestar; Marina Silva deu seu apoio quinze dias depois do domingo do primeiro turno. Chegavam notícias de que até mesmo os dirigentes do PT não acreditavam na sorte de seu candidato e temiam uma derrota humilhante. Em mais de uma conversa com amigos chamei a atenção para a “solidão de Haddad”. A sensação era outra: a do time que está sendo derrotado por uma grande diferença e conta os segundos para que o jogo acabe.
A incapacidade de Haddad e do PT para ampliar o seu arco de alianças foi relativamente compensada por um movimento de apoio, também cultivado nas redes sociais, que contou com grandes atividades de rua na última semana antes do pleito. Foi provavelmente por causa desse movimento que o candidato do PT não sofreu a derrota que se desenhava no começo do segundo turno. A comparação dos votos dos dois turnos, incluindo os votos nulos e em branco no cálculo, mostra que Haddad acabou crescendo mais (passou de 27% para 40% dos votos totais), do que Bolsonaro (passou de 42% para 50%).
Escrevo as linhas finais desse texto poucos minutos após a confirmação de que Bolsonaro é o novo presidente do Brasil. Escuto muitos gritos, panelas batidas e fogos para celebrar a vitória. O volume se assemelha ao das manifestações contra a ex-presidente Dilma Rousseff. Numa eleição de tantas novidades cabe registrar mais essa. Pelo menos no Rio de Janeiro, nunca tinha visto uma vitória eleitoral ser tão celebrada.
Ainda vou passar muitas semanas analisando os dados das eleições de 2018. Mas como não podia deixar de ser, começo observando o que ocorreu em Nova Friburgo: no primeiro turno, Bolsonaro obteve 63% dos votos válidos, Ciro Gomes, 16% e Haddad, 10%. No segundo turno, Bolsonaro obteve 73%. Já na minha zona eleitoral, no Rio, o quadro foi bem mais equilibrado no primeiro turno: Bolsonaro obteve 44% dos votos, Ciro, 30% e Haddad, 13%; no segundo turno Bolsonaro chegou aos 54%.
Olho os números e me dou conta de como Bolsonaro foi bem votado em outras áreas da cidade do Rio de Janeiro. Enquanto isso, os gritos pró-Bolsonaro e contra o PT continuam a ecoar lá fora. Realmente, estamos diante de um fenômeno eleitoral diferente de tudo que eu já tinha visto.
*JAIRO NICOLAU é cientista político e professor da UFRJ, é autor de Representantes de Quem?: Os (Des)Caminhos do seu Voto da Urna à Câmara dos Deputados
Míriam Leitão: Nó fiscal estadual ficará de herança
Tesouro divulgou que a crise fiscal dos estados piorou. Esse é mais um problema que o próximo governo terá que enfrentar
A situação fiscal dos estados piorou no ano passado, apesar da grande ajuda dada pelo governo, quando renegociou as dívidas deles e dos grandes municípios. A União deu mais 20 anos para pagar e reduziu o valor dos débitos para que a situação fiscal melhorasse. E o déficit primário dos estados saltou de R$ 2,8 bi para R$ 13,9 bilhões. Os governadores vão querer da administração Jair Bolsonaro mais ajuda para superarem atrasos com fornecedores e com funcionários. Esse será um dos dilemas do futuro governo.
Nem todos foram mal. O Espírito Santo foi o único a tirar A, a melhor nota de crédito dada pelo Tesouro. Em 2015, governadores e prefeitos de grandes cidades convenceram o governo Dilma a renegociar a dívida que já fora revista no período Fernando Henrique. Na época da pressão para a renegociação, o único governador a se opor foi Paulo Hartung. Ele dizia que a medida não resolveria o problema, como de fato não resolveu. A negociação ficou inconclusa por causa do impeachment. O governo Temer já começou pressionado por uma liminar do STF para fechar o acordo. Ele foi fechado, mas vários estados elevaram o gasto de pessoal acima da inflação. Isso tem sido recorrente. Nos últimos sete anos, o aumento real das despesas de pessoal nos estados foi de 31,58%.
Especialistas dizem que medidas fundamentais para enfrentar o problema são a reforma da Previdência e a mudança dos critérios de reajustes, com o fim dos aumentos automáticos. A folha salarial e a conta de pensões e aposentadorias é que pesam. Para se ter uma ideia, a despesa total dos estados aumentou R$ 48 bilhões, e a maior parte disso foi o gasto com ativos e inativos, que subiu R$ 25 bilhões. Esses dados são de 2017, comparados a 2016. Alguns estados ainda pioraram em 2018.
Essa é uma das várias bombas que o governo Jair Bolsonaro herdará. Como ele a enfrentará? A administração Temer melhorou a situação fiscal federal e aumentou a transparência dos indicadores. A realidade das contas “dos entes sub nacionais” está mais explícita a partir do relatório divulgado ontem com os números de 2017. Muitos estados registravam de forma incompleta os gastos com pessoal e inativos. O Rio Grande do Norte, por exemplo, contabilizava um gasto de pessoal de apenas 52,4% da Receita Corrente Líquida, mas o dado verdadeiro é 72%.O Tribunal de Contas do Estado (TCE) mandou o governo corrigir, mas nem todos os TCEs tiveram a mesma iniciativa. Em alguns casos, a diferença entre o que eles dizem gastar, e o que o Ministério da Fazenda calcula, chega a 20 pontos.
A Lei Complementar 156, da renegociação, além de mais prazo, permitiu a troca do indexador com retroatividade. A contrapartida era o cumprimento de limites de gastos. Sete dos 19 estados que renegociaram a dívida já avisaram que não vão cumprir o teto no ano que vem. O compromisso era limitar o crescimento da despesa primária ao IPCA de 2018 e 2019. O investimento não entra como despesa. O relatório divulgado ontem mostrou o quadro de problemas do ano passado, mas a situação continua a piorar e não por queda de receita. Em 2017, a receita subiu com o fim da recessão, mas as despesas aumentaram R$ 11 bilhões a mais do que a arrecadação.
Alguns estados como Rio, Maranhão, Mato Grosso do Sul e Minas Gerais tiveram aumentos fortes nas despesas dos ativos. Em outros, como Ceará, Espírito Santo e São Paulo, o aumento maior foi dos inativos. Seja num caso, seja no outro, é necessário que sejam feitas reformas. A da Previdência cria as condições para que os governadores aprovem as suas próprias reformas.
Há muita diferença de situação. O quadro da despesa líquida vai desde crescimento real de 20% no caso do Mato Grosso do Sul, até uma queda real de 4% no Espírito Santo, que junto com Pará, Paraíba e Amapá foram os únicos estados que tiveram redução de gastos. Os piores casos continuam sendo Minas Gerais, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, mas a esse grupo se juntou o Rio Grande do Norte, que deve piorar quando forem calculados os dados de 2018. Goiás também está na fila.
Alguns governadores foram eleitos agora e estão herdando a crise, por isso a tendência será correr para Brasília. Se o governo Bolsonaro ceder, ele pode descobrir que a conta só vai aumentar. Se não ceder, será um ponto de tensão na Federação.
Alexandre Schwartsman: A 'farsa' do desemprego
Economia não é para aspirantes; antes de falar do assunto, não custa passar no posto Ipiranga
Na semana passada, o presidente eleito se manifestou sobre as estatísticas de desemprego no país afirmando: “Vou querer que a metodologia para dar o número de desempregados seja alterada no Brasil, porque isso daí é uma farsa. Quem, por exemplo, recebe Bolsa Família é tido como empregado. Quem não procura emprego há mais de um ano é tido como empregado. Quem recebe seguro-desemprego é tido como empregado”.
Segundo o IBGE, a população brasileira em setembro deste ano era de aproximadamente 209 milhões de pessoas. Nem todos, porém, estão aptos a trabalhar. O IBGE define a População em Idade Ativa, PIA, como aqueles com mais de 14 anos, em torno de 170 milhões de pessoas.
Obviamente, apenas parte dos maiores de 14 anos está no mercado de trabalho. Alguns, por exemplo, estudam (ainda bem!), outros já se aposentaram, e há quem decida não tomar parte no mercado por uma série de motivos, alguns dos quais trataremos à frente.
Os que participam, seja trabalhando, seja buscando emprego, são definidos como “força de trabalho”, ou PEA (População Economicamente Ativa), e montavam a 105 milhões de pessoas em setembro.
Desses, 92,6 milhões estavam ocupados, e 12,5 milhões, desempregados. Assim a taxa de desemprego atingiu 11,9% (12,5÷105).
Essa é a definição internacional da taxa de desemprego, adotada por todos os países com boas estatísticas na área. No caso, se a pessoa recebe o Bolsa Família (sem estar empregada) ou o seguro-desemprego, ela obviamente não conta como empregada.
Caso esteja procurando trabalho, contará como desempregada (e participante da PEA); caso contrário, não aparecerá nessa estatística de desemprego.
Ocorre que a taxa de desemprego descrita acima não esgota o conjunto de estatísticas sobre o mercado de trabalho. O IBGE também discrimina entre os ocupados aqueles que trabalham menos do que desejam e calcula a taxa de desempregados (12,5 milhões) e subocupados (6,9 milhões) com relação à PEA: 18,4% (19,4÷105).
Há, por outro lado, entre as pessoas que estão fora da PEA, as que gostariam de trabalhar, mas não estão buscando emprego, a chamada “força de trabalho potencial”, 8 milhões de pessoas.
A estatística mais ampla do IBGE a respeito (a taxa de subutilização da força de trabalho) junta os desempregados, os subocupados e a força de trabalho potencial, um conjunto de pouco mais de 27 milhões de pessoas como proporção da “PEA ampliada”, isto é, os 105 milhões da PEA mais os 8 milhões da força de trabalho potencial (123 milhões), revelando uma taxa de subutilização na casa de 24%.
A coexistência de várias medidas de desemprego não é uma jabuticaba.
Nos EUA, por exemplo, o Bureau of Labor Statistics publica a cada mês nada menos do que seis alternativas: a taxa denominada U3, calculada de forma similar à nossa, é a mais disseminada, 3,7% no mês passado; a taxa mais ampla, U6, se encontrava em 7,4%, o dobro da oficial, por incorporar também os que gostariam de trabalhar mais e os participantes da força de trabalho potencial.
Economia, apesar das aparências em contrário, não é para aspirantes. Como regra, antes de falar do assunto, não custa nada dar uma passada no posto Ipiranga.
Monica De Bolle: Escafandrista de subsolo
A verdade verdadeira, com tudo que está acontecendo, é que não fazemos a menor ideia do que virá pela frente
“Ano após ano, economistas teóricos produzem montanhas de modelos matemáticos e exploram em grande detalhe suas propriedades formais; econometristas tentam adequar funções algébricas de todos os tipos possíveis essencialmente às mesmas bases de dados sem avançar, de qualquer forma perceptível, a compreensão sistemática da estrutura e da operação de um sistema econômico real.” A observação é de Wassily Leontief, economista russo-americano vencedor do Nobel de Economia em 1973, célebre por seus estudos sobre como determinados setores da economia afetam outros setores, aquilo que muitos conhecem pelo nome técnico de “matriz insumo-produto”. Falecido em 1999, a observação meio niilista de Leontief continua muito atual.
Dia desses estava eu em um seminário aqui em Washington – vai-se a muitos seminários aqui em Washington – e alguém me perguntou o que iria acontecer com o Brasil, mais especificamente com a economia. Respondi com muita simplicidade, sem nenhuma ponta de ironia, “não faço a menor ideia”. Ao que a pessoa, surpresa, retrucou, “nossa, poucas vezes ouvi economista dizer isso”. Tomei como elogio e deixei para lá, mas a verdade é que não faço mesmo a menor ideia de como ficará o Brasil sob o novo regime. Tampouco sei dizer se o novo regime será novo mesmo ou mais do mesmo.
Há quem argumente que a economia está tão mal das pernas, as pessoas tão preparadas para alguma esperança ainda que passageira, que basta que o time de Bolsonaro não erre a mão. Basta que façam uma reforma da Previdência meio amuada, um ajuste fiscal acanhado, que os mercados estarão prontos para reagir com alegria, que o investimento retornará, que o novo governo será capaz de fazer a economia crescer ao menos um tantinho mais do que nos últimos anos, e que isso tudo já terá sido o suficiente para engatar um ciclo. Ciclo meio achacado, mas ciclo de alguma expansão. Segue o raciocínio que isso, em si, já daria ao novo governo ares de credibilidade. Sabem do que mais? É até possível. É até possível que o presidente eleito, mesmo que inexperiente nos ditames do Congresso Nacional, tenha apoio para alguma agenda econômica que caminhe lado a lado com a agenda retrógrada de costumes que anda despontando por aí.
Outra possibilidade é que fiquemos meio a ver navios, perdidos entre as brigas por poder no entorno de Bolsonaro, as desavenças entre membros da equipe econômica e articuladores políticos, as constantes reviravoltas que têm caracterizado o atual processo de transição. Contudo, é justo também dizer que processos de transição podem ser atabalhoados, sem que isso sinalize qualquer coisa sobre a capacidade de organização do governo uma vez instalado. Meu ceticismo impede que acredite fielmente nisso, mas esse é viés pessoal.
Ainda uma terceira possibilidade é que a turma de Paulo Guedes tenha grandes dificuldades para articular uma agenda que não foi discutida durante a campanha e que as reformas, por conseguinte, não saiam do papel, levando a um quadro de turbulência e inflação à vista. Para alguns, esse ainda é o cenário mais provável, mas às vezes me pergunto o seguinte: o País está tão farto da falta de rumo e tão preparado para ver vingar uma alternativa que não seja o PT – isso inclui vários setores da sociedade, do cidadão comum, ao empresário, ao congressista recém-eleito, ao trader sentado na mesa de operações – que quiçá tenha paciência para aguentar alguns desacertos iniciais assim como para aceitar reformas antes tidas como absolutamente impopulares e inviáveis. Sob esse cenário o tanque de Bolsonaro não atola de imediato, quiçá siga em frente até por um tempo mais longo do que o esperado, possivelmente.
A verdade verdadeira é que entre as mudanças políticas que ocorreram nessas eleições com a ascensão das bancadas, sobretudo da frente evangélica, a diluição dos partidos tradicionais com possibilidade de extinção de alguns, e um regime que parece não ter precedentes pois social-democracia de algum tipo é que não é, não fazemos mesmo a menor ideia do que virá pela frente. Portanto, a única imagem que me vem à mente no momento é a de um escafandrista no subsolo escuro, úmido, cavando cenários com as próprias unhas sem ter entendimento sistemático de nada. O inferno não são só os outros. O inferno é a consciência.
*Monica de Bolle é economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University
Elio Gaspari: Temer deveria zerar mimo do STF
Depois que o Senado aprovou o aumento de salários dos ministros do Supremo Tribunal Federal, o presidente eleito Jair Bolsonaro disse o seguinte:
“Complica para a gente, quando fala em fazer reforma da Previdência, tirar dos mais pobres e aceitar um reajuste como esse. Está nas mãos do Temer. Não sou o Temer, se fosse, você sabe qual seria minha posição. (...) Não tem outro caminho no meu entender, até pela questão de dar exemplo.”
Faltam 48 dias para Temer passar a faixa a Bolsonaro. Será no mínimo um péssimo exemplo jogar uma bomba que poderá chegar a R$ 4 bilhões anuais no Orçamento de um governo que nem começou. Mas isso não é tudo.
O Senado aprovou o mimo ao apagar das luzes da legislatura por 41 votos a favor, 16 contra, 20 ausências e uma abstenção. A sessão foi presidida pelo senador Eunício Oliveira, que disputou a reeleição e foi mandado para casa. Metade da bancada que votou a favor do aumento perdeu a cadeira, como Romero Jucá, ou desistiu do Senado, como Aécio Neves. Por ordem alfabética, o primeiro senador solidário com o reajuste dos ministros foi Acir Gurgacz, que cumpre pena de quatro anos e seis meses na penitenciária da Papuda.
A votação foi uma clássica xepa de feira. O aumento tramitava no Senado desde 2016, mas Eunício Oliveira levou-o ao plenário em regime de urgência. O relator do projeto na Comissão de Assuntos Econômicos, senador Ricardo Ferraço, deu parecer contrário e votou contra o reajuste.
Na sua conta, elevando-se o salário dos ministros de R$ 33.763 para R$ 39.293 provoca-se um efeito cascata que, com o tempo, vai se espalhar por toda a administração. Na mesma sessão, os senadores votaram também o aumento do salário da procuradora-geral da República. Por mais razão que tenham os ministros com seus salários, nenhum deles passará necessidades com um salário de R$ 33.763 e outros pequenos confortos. Na maioria, são pessoas patrimonialmente seguras por fortuna familiar, acumulação, sucesso profissional e mesmo por empreendedorismo.
O senador Eunício e muita gente boa garantem que o aumento irá só para os 11 ministros ou, quem sabe, só para os juízes dos tribunais superiores. Quem já viu uma comissão de frente entrar na Marquês de Sapucaí sem que houvesse atrás uma escola de samba pode acreditar nisso.
Juízes e desembargadores admitem a possibilidade de trocar alguns de seus penduricalhos depois que houver a propagação do aumento, mas não há quem garanta o sucesso dessa manobra. Muitos juízes, como Sergio Moro, recebem o auxílio-moradia e veem nele um complemento salarial. Seu derivativo carioca, o doutor Marcelo Bretas, acumula o mimo com o da mulher, que a ele tem direito pelos seus próprios méritos. (O fato de morarem no mesmo apartamento seria irrelevante.)
O troca-troca de mimos por penduricalhos nunca foi explicado direito. Se há aí um toma lá dá cá, alguém precisa mostrar a planilha com a conta, porque até agora a Viúva só dá, nunca toma.
Os salários da Justiça estão defasados, mas não se desembaralha o novelo com mimos para ministros acompanhados de inexequíveis promessas de contenções. Tudo ficaria melhor se, em vez de uma xepa de feira, Temer vetasse o aumento aprovado para os ministros, e Jair Bolsonaro chamasse sua turma para fazer a conta direito, mostrando-a aos contribuintes.
Um veto de Temer lustrará seu fim de governo e permitirá que a questão seja zerada, para ser discutida numericamente por um governo livre de ganchos processuais.