Bolsonaro

Míriam Leitão: Novo governo e o tempo do mercado

Bom humor do mercado financeiro com o governo Bolsonaro pode mudar se não for aprovada uma reforma da Previdência consistente

O governo Jair Bolsonaro terá menos tempo do que se pensava da confiança do mercado. Se não for feita uma reforma da Previdência consistente, o entusiasmo inicial dos investidores locais pode mudar de direção. Os estrangeiros sempre estiveram mais céticos em relação à aposta de que o novo governo fará um ajuste fiscal robusto e uma importante redução do tamanho do Estado. Isso é o que se pode ouvir em conversas com analistas de bancos e economistas.

Ninguém acha que reformar o sistema de pensões e aposentadorias seja a panaceia, mas o que os analistas dizem é que sem isso não há como se ter um programa realmente sustentável de redução dos gastos públicos em nenhum dos três níveis de governo.

— E se for uma reforminha não conseguirá enganar ninguém que sabe fazer contas — diz um economista de prestígio no mercado brasileiro.

Na verdade, entre os economistas que trabalham no setor financeiro há entusiasmo entre os mais jovens, que foram os primeiros a acreditar que ele representaria uma guinada liberal no governo, a despeito de, em toda a sua vida política, ter dado sustentação ao nacional-estatismo. Os mais sêniors nos bancos e consultorias têm visão mais completa do cenário e acham que tem havido excessivos curtos-circuitos na equipe do novo governo e há muitas contradições. A avaliação de um economista com muita experiência em setor público é que: “eles se prepararam para uma campanha e não para um governo”. Isso é que explica cenas explícitas e diárias de improviso. Os integrantes da futura administração têm que passar por um rápido período de aprendizado e, por isso, o resultado é incerto.

Um exemplo foi a promessa que o futuro ministro da área econômica, Paulo Guedes, fez de distribuir com os estados parte dos recursos da licitação futura de petróleo dos campos da cessão onerosa. Se o socorro aos estados ocorrer antes da aprovação da reforma da Previdência terá sido um erro essa promessa. E haverá um custo.

No mercado, já foi absorvido que a reforma da Previdência não será aprovada este ano, mas a expectativa é que seja no primeiro semestre de 2019. O problema é qual reforma seria aprovada. A do presidente Temer foi sendo desidratada ao longo do tempo, e no futuro governo fala-se em reduzir ainda mais seu alcance e ampliar a sua já longuíssima transição.

Investidores estrangeiros estão em compasso de espera e vão aguardar os primeiros movimentos do próximo período legislativo, para ver como será a relação do executivo com o Congresso. Este ano houve muita volatilidade nos mercados emergentes. Houve crises de confiança em relação à Argentina, Turquia e ao próprio México. Por isso, olham o Brasil com cautela. Eles não se deixam convencer pelo discurso ideológico antiesquerda. Querem ver o que o novo governo pode “entregar”.

O Brasil tem uma situação de fragilidade fiscal externa criada em grande parte pelos erros da administração econômica petista. O relato dos erros e da crise ocupou esta coluna durante anos, material que resultou em um livro meu de título “A verdade é teimosa”. E por ser assim, insistente, mesmo quando as narrativas dizem o contrário, é que a verdade está nos números da dívida pública, que cresceu perigosamente, e do déficit público, que permanece alto mesmo com as melhoras recentes conquistadas pela boa equipe econômica atual.

— Pouca gente do novo governo entendeu a dimensão da crise econômica e o esforço que terá que ser feito para enfrentá-la — disse um economista-chefe de banco.

Ninguém duvida que Paulo Guedes é um grande economista. A dúvida recai sobre sua capacidade de atuar no setor público com a habilidade e a efetividade adequadas. Seu estilo pode criar arestas entre os políticos. Ele conseguiu vitórias até agora em manter Mansueto Almeida e trazer Joaquim Levy de volta da diretoria financeira do Banco Mundial. Mas por mais influente que ele seja, haverá outros focos de poder no governo Bolsonaro com visão totalmente diferente e que podem conflitar com a área econômica. O futuro chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, e parte da base do novo governo são adversários da ideia de reforma da Previdência defendida pela maior parte dos especialistas. O novo chanceler, Ernesto Araújo, tem visão diferente de Guedes no comércio internacional. O mercado, como bem sabe Paulo Guedes, é volátil e, como os ventos, pode mudar bruscamente de direção.


Bernardo Mello Franco: Novo documentário sobre 2016 ajuda a entender 2018

Estreia nesta semana o 3º documentário sobre o impeachment. A queda de Dilma já parece pré-história, mas o filme ajuda a entender como Bolsonaro se elegeu

Estreia na quinta-feira “Excelentíssimos”, o terceiro documentário sobre o impeachment de Dilma Rousseff. A derrubada da ex-presidente já parece pré-história, mas o filme mantém interesse pelo que viria a seguir. As cenas captadas em 2016 ajudam a entender o processo que desembocou na vitória de um candidato da direita radical em 2018.

O diretor Douglas Duarte chegou a Brasília com o objetivo de mostrar os bastidores do Congresso. A crise o convenceu a abandonar o roteiro original. O foco passou a ser a articulação para varrer o PT e a esquerda do poder.

Com a promessa de que o filme só seria exibido depois da votação, os deputados adotam uma sinceridade incomum em conversas gravadas. “Eu vou ser franco com você”, diz o emedebista Carlos Marun. “Fosse o que dissessem lá, eu votaria a favor do impeachment. Se dissessem lá que ela roubou um picolé, eu votaria”, admite.

No discurso oficial, a razão do processo de impeachment eram as pedaladas fiscais. Mais tarde, Marun seria recompensado com o cargo de ministro do governo Michel Temer.

Em outra sequência, o documentário acompanha uma reunião fechada em que líderes partidários contam votos para derrubar a presidente. Mendonça Filho, do DEM, interrompe a conversa para saber se os microfones estão abertos.

Diante da resposta afirmativa, a equipe é convidada a deixar a sala. Entre os novos deputados presentes, dois virariam ministros de Temer. Um terceiro, Onyx Lorenzoni, chefiará a Casa Civil de Jair Bolsonaro.

O presidente eleito foi um coadjuvante no impeachment, mas tem papel de destaque no filme. Numa comissão dominada por ruralistas, ele se refere a líderes sem-terra como “vermes” e “carrapatos”. Seu filho Eduardo chama o presidente da Contag de “vagabundo”.

As cenas gravadas no gramado em frente ao Congresso mostram como os Bolsonaro estavam afinados com o humor das ruas. Numa passagem que ilustra a fúria contra o sistema político, deputados pró-impeachment tentam confraternizar com os manifestantes, mas são convencidos a voltar sob uma chuva de pedradas.

Durante a votação decisiva, manifestantes de verde e amarelo urram palavrões contra o PT e seus aliados. “Sua bicha!”, reage um homem ao ouvir o voto de Jean Wyllys, do PSOL. “Fora, Dilma, sua p...”, grita uma mulher ao festejar o resultado final. No lado derrotado, o descontrole aflora quando uma militante chama o deputado José Carlos Aleluia, do DEM, de “fascista” e “bandido assassino”.

“Excelentíssimos” fica devendo bastidores do grupo afastado do poder. Dilma só aparece em solenidades no palácio e numa rápida saída, cercada de seguranças. O deputado Sílvio Costa desponta como voz solitária do governismo. Numa fala tragicômica, ele desdenha da oposição. “Sabe qual é a probabilidade de ter impeachment? É a mesma de eu casar com a filha do Obama. Zero!”, garante.

Um discurso de Temer mostra que os vencedores também fizeram previsões furadas. “O povo precisa colaborar e aplaudir as medidas que venhamos a tomar”, diz o vice ao virar presidente. Não foi exatamente o que aconteceu.


Celso Lafer: A política externa e seus desafios

Cabe ao Brasil se orientar na diplomacia pelos princípios consagrados na Carta

Discuti neste espaço em 19/2 a relevância da política externa como política pública. Sublinhei que ela tem como nota identificadora avaliar a abrangência das necessidades internas do País e ponderar quais as possibilidades externas de torná-las efetivas. Pontuei que a conversão de necessidades em possibilidades requer um apropriado juízo diplomático que leve em conta os ativos e as especificidades do País e saiba orientar-se num mundo com as características do atual, dentro do qual se dá a inserção internacional do Brasil. Vale a pena retomar a discussão nesta antevéspera da posse do presidente Bolsonaro.

Destaco inicialmente que o novo governo partirá de um meritório reposicionamento da política externa empreendido no governo Temer pelos chanceleres José Serra e Aloysio Nunes Ferreira, que se dedicaram a conduzi-la como política de Estado. Deixaram de lado, num movimento que o resultado das eleições endossou, uma preponderante política de governo, inspirada pela visão circunscrita de um partido e seus interesses.

Aponto, por exemplo, o resgate da válida vocação original do Mercosul como expressão de regionalismo aberto, empenhado no livre-comércio, devidamente escoimado das distorções provenientes das preferências político-ideológicas.

A tarefa de damage control proveniente da erosão do soft power do País deverá ser uma faceta da condução da política externa. Trata-se de um dado das percepções, repercutidas na mídia internacional, que resultam de manifestações do presidente na campanha eleitoral em matéria de direitos humanos e convivência democrática. Para a erosão acima mencionada tem também contribuído a ideológica irradiação externa em circuitos de esquerda de uma autocentrada “narrativa” petista.

A agenda diplomática do próximo governo lidará, respaldada pela qualificada competência dos quadros do Itamaraty, com alguns significativos campos de atuação da política externa de um país.

Passo a comentá-los na sua abrangência, lembrando, como dizia Hannah Arendt, que somos do mundo, e não apenas estamos no mundo.

O primeiro campo é o estratégico. Diz respeito aos riscos de guerra que permeiam a vida internacional e o que um país pode significar para outros como aliado, protetor ou inimigo. No mundo atual, caracterizado por tensões difusas que exacerbam os conflitos e instigam a geografia das paixões, magnificando a insegurança internacional, esse é um campo relevante. Tem peso maior ou menor tendo em vista a lógica própria das regiões que compõem, com sua especificidade, a arquitetura do sistema internacional. É um tema forte da agenda do Oriente Médio, da Ásia e de países como EUA, China, Índia ou Rússia. É menos premente para o Brasil, em paz com seus vizinhos desde o fim do século 19, empenhado em fazer de suas divisas fronteiras de cooperação, e que sempre esteve mais distante dos focos de tensão da vida internacional. A menor premência não exclui, no entanto, a relevância.

O campo dos valores diz respeito às afinidades e dissonâncias que resultam de distintas formas de conceber a vida em sociedade. As dissonâncias, hoje em dia, num sistema internacional heterogêneo e fragmentário são consideráveis. Estão comprometendo a universalidade da agenda normativa, propiciando a intensidade das aspirações de identidade e reconhecimento, que obedece ao ímpeto centrífugo de sublevação dos particularismos, e revigorando o zelotismo dos fundamentalismos religiosos e políticos. Essa é uma das causas do drama de escala planetária dos refugiados que também nos afeta por causa dos desmandos autoritários da Venezuela de Maduro.

No contexto dessa Torre de Babel, cabe ao Brasil, na especificidade das conjunturas, orientar-se nas suas posições diplomáticas pelos princípios que regem as relações internacionais do País, consagradas na Constituição (artigo 4.º).

O campo das relações econômicas internacionais é prioritário para o Brasil. Explicita a importância de outras economias num mundo interdependente e globalizado, conferindo significado aos mercados, para importações e exportações, obtenção de financiamentos, atração de investimentos e de inovações.

No mundo contemporâneo isto tem como pano de fundo as novas tecnologias, que vêm levando à reorganização dos modos de interagir e produzir, de que é exemplo o papel das cadeias globais de valor da produção e da comercialização. Tem também como pano de fundo uma multipolaridade econômica não regida por um abrangente multilateralismo comercial de que são amostras o unilateralismo das guerras comerciais em andamento e as ameaças que pairam sobre a OMC.

É nesse contexto que o próximo governo deverá buscar convergências na diversidade na lida com as parcerias econômicas do País, incluídas as de nossa região, com acordos comerciais, e com os temas da liberalização comercial. Estes passam pelos desafios do acesso a mercados, dificultados por barreiras não tarifárias, por obstáculos em matéria de convergências regulatórias e por protecionismos, em especial de produtos agrícolas.

Finalizo com a agenda do meio ambiente, campo inter-relacionado com o dos valores e o das exigências de uma economia internacionalmente competitiva. Lembro que o acesso a mercados de outros países passa crescentemente por produtos e processos que atendam a requisitos de sustentabilidade ambiental. Meio ambiente sob a égide do conceito de desenvolvimento sustentável consagrado na Rio-92 insere os custos da sustentabilidade do meio ambiente nos processos decisórios públicos e privados. Meio ambiente é indivisível, por isso é internacional. Afeta a todos – as gerações presentes e futuras. Basta pensar no impacto das mudanças climáticas. Daí a relevância no plano interno da transição para uma economia de baixo carbono e de energias renováveis e limpas na matriz energética e de dar sequência aos compromissos internacionais de redução de emissões do Acordo de Paris.

✽ Celso Lafer é professor emérito do Instituto de Relações Internacionais da USP, foi ministro das Relações Exteriores (1992 e 2001-2002)


Luiz Sérgio Henriques: Política e valores

Com o bloco vitorioso em 28 de outubro, difícil exagerar as dificuldades que teremos à frente

Buscar clareza e coerência em planos, projetos e ações pode ser algo muito difícil ou impossível em meio a este mal-estar generalizado contra o “sistema”, quando mapas de voo não existem ou são trocados e retocados ao sabor das circunstâncias, como vimos com os programas na última campanha presidencial. Personagens antes evidentemente postos à margem passam a protagonistas, figuras da tradição soletram apressadamente o novo vocabulário “antiestablishment”, tendências e visões de mundo se misturam sem muita lógica e fazem nascer um mundo mais imprevisível do que o habitual.

Examinemos algumas referências notórias do bloco vitorioso em 28 de outubro. O intelectual ultraliberal, ele próprio um emblema da reforma que se quer imprimir à economia, promete-nos uma “sociedade aberta”, que não se sabe como conciliar com a retórica repressiva do líder político que avaliza perante os “mercados”. Esse mesmo líder, de formação corporativa e, à sua maneira, laica, escora-se em apoiadores religiosos que não raro parecem querer guiar-se por uma noção arcaica de “poder direto”, ou quase isso, na pretensão de moldar e controlar, por via legislativa, costumes e comportamentos que países livres delegam ao arbítrio dos indivíduos. E não por acaso uma anti-ideologia de gênero, tão confusa e mal explicada quanto sua antípoda, ameaça trazer prejuízos generalizados para os direitos civis.

Mas não é só. Um anticomunismo extravagante pretende servir de cimento ao novo bloco: uma dessas ideias flagrantemente fora de lugar, incapazes de criar um sistema de orientação para a sociedade e o próprio Estado, uma vez que temos os pés e a cabeça projetados muito além da guerra fria e da contraposição entre ordens antagônicas que ela supunha. Não se pode imaginar, por exemplo, que uma anacrônica Cuba nos ameace de algum modo, como modelo de transformação ou de organização social, ou que a verdadeira revolução comunista do século 20 tenha ocorrido em 1949, e não em 1917, de tal forma que devêssemos agora desafiar o dragão chinês, quando antes tínhamos de nos alinhar automaticamente contra o bolchevismo russo.

Esse emaranhado de ideias e situações, hoje envolto numa pesada capa de chumbo ideológica, tem dado corpo a debates infindáveis e muito pouco produtivos no plano da chamada guerra de culturas ou de valores. Em geral, o palco é o fornecido pelas redes, o esquematismo é a regra, os contrastes se extremam até o ponto da caricatura e da demonização. E quando entramos com ingenuidade nesse conflito tal como ele nos é dado, terminamos por nos vestir com apetrechos de outrora, como se “fascistas” e “comunistas” estivessem fadados a se engalfinhar indefinidamente nas ruas virtuais e – pior ainda – não virtuais, fazendo confluir potencialmente a violência simbólica e a física.

Há, obviamente, quem ganhe e quem perca com a atmosfera de conflito “mortal” entre valores. Ganham sobretudo os que apostam na degradação da vida democrática tal como se configurou nas instituições e nos procedimentos estabelecidos a partir da Reforma, do Iluminismo e das revoluções liberais do século 18, em cuja sequência cabe inserir a ideia moderna de esquerda e o próprio marxismo. Este último – não nos esqueçamos –, ao surgir como expressão dos setores subalternos do mundo industrial, pode ser entendido como uma potente heresia do liberalismo ou, em outras palavras, como a ala “esquerda”, mais extrema, dos processos de secularização e laicização, de modo que não é possível extirpá-lo da cena pública como indesejável elemento de perturbação.

Intrinsecamente plural, aliás, tal próprio processo de secularização não pode ser pensado como cancelamento da “ilusão religiosa” ou simples afirmação do ateísmo. As religiões, de fato, não são expressão da infância da humanidade ou dos períodos menos iluminados pelas ciências e pelas correntes radicais do humanismo. Se um valor estratégico como a tolerância, em todos os seus múltiplos sentidos, nasce historicamente como solução para as guerras de religião, confinando esta última à esfera privada e desligando-a dos poderes temporais, o vigoroso retorno da dimensão religiosa a que temos assistido assinala uma inflexão interessantíssima, a ser pensada e vivida como possibilidade de aprofundamento da nossa humanidade comum.

Na verdade, o moderno laicismo nada tem de “ateu”, ainda que, sem dúvida, incorpore plenamente os que não creem. Nutre-se do pleno reconhecimento do papel público das religiões, aceitando alguns de seus princípios como fontes constitutivas do “partido da liberdade do espírito”, para usar uma expressão do socialismo democrático contemporâneo de vocação nitidamente ocidental. E por isso aquele tipo de laicismo perde com as instrumentalizações ideológicas rasteiras do fenômeno religioso, que suprimem ou dificultam o diálogo e a compreensão mútua. Perde, em resumo, com a tal guerra de valores, bem como com os anátemas e as exclusões que ela incessantemente repõe em circulação.

Difícil exagerar as dificuldades que teremos à frente. Alternativas políticas ou econômicas propriamente ditas, que, mesmo operacionalmente imprecisas, ambicionam mudar a face do capitalismo brasileiro, têm convivido no espaço público com delicados temas éticos, agitados muitas vezes de forma superficial, quando não leviana, à maneira de memes de internet ou bravatas politicamente incorretas. Tais aspectos eticamente relevantes também deixam marca em políticas públicas que darão um sentido regressivo ou inovador às nossas relações sociais cotidianas, ao modo como nos comportamos uns com os outros. Os democratas devem não só avaliar os resultados práticos da reforma que se pretende, como também impedir que se enxovalhe a ideia da História como criação acidentada, mas permanente, de valores já irrenunciáveis, como, entre outros, o da tolerância.


O Globo: Brasil deve passar por um novo ciclo de redução de taxas de importação

Corte de tarifas reduziria preços, mas 3 milhões de trabalhadores precisarão de requalificação

Por Eliane Oliveira, de  O Globo

BRASÍLIA - Considerado um dos países mais fechados do mundo, o Brasil está prestes a passar por um novo ciclo de redução de tarifas de importação, visto somente no início dos anos 1990, durante o governo Collor. A forma e a velocidade em que esse processo vai acontecer ainda são desconhecidas, mas estimativas conservadoras da equipe de transição do presidente eleito, Jair Bolsonaro, projetam que, 20 anos depois de concluída a abertura comercial, haverá uma queda de até 16% nos preços domésticos. As exportações, por sua vez, vão crescer, mas cerca de 3 milhões de trabalhadores terão de ser requalificados para buscar oportunidades em outras áreas.

Segundo estudo produzido pela Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE) da Presidência da República, encaminhado para análise pela equipe de transição, esse contingente de trabalhadores estaria concentrado, principalmente, nos segmentos de couro, têxteis, vestuário, automóveis e bens de capital. A tendência é que essas pessoas migrem para a área de serviços, ou caiam na informalidade. Os autores da pesquisas recomendam a adoção de políticas públicas, como a oferta de programas de qualificação profissional, para realocar os desempregados.

Apesar dessa projeção, o estudo indica que o efeito final sobre o emprego formal será positivo. Em 85% de um total de 558 microrregiões (conjunto de cidades de médio porte ou polos habitacionais) pesquisadas, o resultado se concentraria num intervalo de -0,25% a +0,25% de variação no emprego formal. Mesmo os casos mais extremos variam entre -2% e +2% da força de trabalho.

Queda média de 5% no preço
O estudo estima uma queda média de 5% nos preços de produtos de 57 setores econômicos em função do aumento da concorrência por causa das importações. Os cálculos foram feitos levando em conta informações como produção, emprego, salário, preços, importação e exportação. Em setores que hoje são muito protegidos, como automóveis, maquinários, couro, têxteis e vestuários, a redução seria ainda mais expressiva: de 6% e 16%.

Os autores do estudo defendem a liberalização comercial. Ressaltam que uma redução nas tarifas médias brasileiras e uma maior abertura ao comércio internacional tenderiam a aumentar não só as importações brasileiras, mas também as exportações e o grau de eficiência da economia. Citam como exemplos bem-sucedidos Chile, Indonésia, Coreia do Sul e Taiwan.

Os sinais emitidos por fontes da equipe Bolsonaro é que esse processo deve ser feito gradualmente ao longo do mandato. O agronegócio, com algumas exceções, como vinhos, leite e derivados, já é bastante aberto nas trocas comerciais e, por isso, não deve ser tão afetado pela abertura. Por outro lado, quanto mais longa a cadeia produtiva e mais elevada a tarifa de importação, maior será o impacto. Hoje, os produtos industriais importados no Brasil são taxados em até 35%, alíquota máxima permitida pela Organização Mundial do Comércio (OMC).

- O setor industrial teria dificuldades para resistir a uma abertura comercial acelerada - afirma Welber Barral, consultor internacional e secretário de Comércio Exterior no governo Lula.

Uma grande preocupação, hoje, é como se dará a queda das alíquotas de importação. A avaliação do setor industrial é que ela deveria ser feita com uma negociação na qual o Brasil possa obter vantagens em troca da liberalização de seu mercado.

 

Custo Brasil elevado
Além disso, o novo governo deveria adotar e propor medidas ao Legislativo para reduzir o custo de produção nacional, estimado em 30%, devido a fatores como juros, alta carga tributária, câmbio e transportes.

- O país não está preparado para uma abertura comercial. Primeiro, é preciso reduzir o custo Brasil, para que possamos ter condições de igualdade com nossos concorrentes. Senão, estaremos beneficiando os fornecedores estrangeiros - destaca José Augusto de Castro, presidente da Associação de Comércio Exterior do Brasil (AEB).

O presidente da Associação Brasileira da Indústria Têxtil (Abit), Fernando Pimentel, por sua vez, garante que o setor não teme esse novo ciclo. No entanto, defende que a abertura não pode ser feita de forma unilateral:

- O mundo é feito de trocas, e é através dos acordos negociados que se obtêm concessões - diz dele.

Para Thomaz Zanotto, diretor titular de relações internacionais da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), é preciso levar em conta que o país passou por uma grande crise econômica, cuja consequência foi um estoque de 12,5 milhões de desempregados:

- Todos queremos um país mais aberto e mais integrado ao mundo. O novo governo deve adotar políticas para haver mais negócios no Brasil, e a abertura comercial deve ser paulatina, levando em conta setores mais sensíveis. Há todo um conjunto de coisas que precisam ser feitas com bastante cautela. O problema não é o remédio, que está correto, mas sim a dosagem e a rapidez.


Míriam Leitão: Risco concreto na política comercial

Diplomacia comercial exige visão estratégica e pragmatismo. No clima, o risco é não ouvir a ciência. Nos dois casos há perdas econômicas

Não adiantará ter mantido separados os ministérios da Agricultura e do Meio Ambiente se a pessoa indicada representar uma visão idêntica à do ruralismo. Há um temor entre climatologistas de que se repita no MMA o que houve no Itamaraty. A mistura pode ser explosiva. Se o Brasil sair do Acordo de Paris, reduzir ainda mais a ação dos órgãos de controle e tiver uma política que estimule o desmatamento, o agronegócio brasileiro enfrentará barreiras comerciais aos seus produtos.

O temor entre cientistas, no governo ou fora dele, é que, depois de um chanceler que nega a mudança climática, possa ser nomeado para o Ministério do Meio Ambiente alguém com essa mesma visão. O nome que mais inspira preocupação é o do pesquisador da Embrapa Evaristo de Miranda. Ele é conhecido na área por apresentar estudos como se fossem científicos, mas com metodologia e dados questionáveis. Certa vez, divulgou um estudo sobre o impacto das APPs na agropecuária brasileira. Foi rebatido por um trabalho coordenado pelo climatologista Antonio Nobre, feito pelo Instituto de Pesquisas Espaciais e Instituto de Pesquisas da Amazônia, em que se comprovou que Evaristo de Miranda havia exagerado em 309% esse impacto das APPs. Ele não é controverso pelo que acredita, mas pela maneira como usa suas bases de dados para confirmar sua teoria.

O que parece, ao grupo que prepara o governo Bolsonaro, a vitória da ideologia de direita, consagrada nas eleições, pode ser, na verdade, o risco de problemas comerciais no futuro. Uma parte do agronegócio brasileiro sabe das ameaças, tanto que o setor se dividiu diante da proposta de acabar com o Ministério do Meio Ambiente e entregar o assunto para o Ministério da Agricultura. Mas os nomes que circulam, e não apenas o de Evaristo, mostram que se quer fazer a mesma coisa, de outra forma. O Ministério existiria mas seria submetido às teses do ruralismo mais atrasado.

No caso do Itamaraty, os custos do caminho já escolhido por Bolsonaro podem ser imensos. A ideologia já fez muito mal à política externa em tempo recente. O ministro Celso Amorim, no governo Lula, a despeito de sua carreira brilhante, submeteu os diplomatas ao absurdo da leitura dirigida. O então vice-chanceler Samuel Pinheiro Guimarães escalava os livros que tinham que ser lidos por todos os diplomatas. Essa doutrinação extemporânea acabou em 2007 quando o então ex-embaixador nos Estados Unidos Roberto Abdenur deu uma entrevista contra o que definiu como “uma coisa vexatória”. O ex-ministro Celso Lafer chamou de “lavagem cerebral”. Esse é um dos problemas que ocorrem quando se quer impor uma ideologia — naquele caso, a de esquerda — ao corpo diplomático. O pior prejuízo foi a decisão de desperdiçar em postos burocráticos alguns dos mais brilhantes diplomatas brasileiros que, supostamente, não se enquadravam na “ideologia”. O custo financeiro, pago pelo país, foram os calotes nos empréstimos concedidos a países sem condição de pagar.

O embaixador Ernesto Araújo tem posições das quais não se pode dizer que representem uma corrente no MRE. Ele é idiossincrático. Araújo é definido por um embaixador como “um Steve Bannon sem o maquiavelismo do ex-assessor de Trump, mas com um ingrediente místico”. O novo ministro tem o direito de pensar o que quiser, mas o problema é que quando vira política de Estado isso muda de figura. Suas posições contra a integração nas cadeias globais de produção vão no sentido oposto ao que o futuro ministro da Fazenda anunciou que fará. Paulo Guedes quer aumentar a abertura comercial para integrar o Brasil, ainda que tarde, à economia global.

Seguir os Estados Unidos cegamente tem vários riscos. Ontem, o presidente americano recuou em parte da guerra comercial com a China. Ou seja, se o Brasil embarcar na visão antiChina — que compra 23% de tudo o que exportamos — tem o risco de ficar falando sozinho, porque Trump muda de ideia frequentemente sobre tudo. No comércio internacional, Brasil e Estados Unidos são às vezes competidores. Na soja, por exemplo. Quando Trump aumenta o subsídio aos seus produtores, prejudica o nosso produto. Diplomacia comercial exige visão estratégica e pragmatismo. Na questão climática, a ideologia produzirá perdas econômicas concretas. E é esse o cenário que está ficando mais provável na formação do governo.


Merval Pereira: Uma crise política

O programa pode ser feito integralmente por profissionais brasileiros, pois o fato é que o país não tem falta de médicos

A crise que pode afetar milhões de brasileiros com a saída imediata dos médicos cubanos deve ser atribuída, em primeiro lugar, ao governo de Cuba, que decidiu usar os carentes brasileiros para retaliar um governo de direita que venceu a eleição presidencial com críticas ao programa e a Cuba.

Ficou claro que o governo Bolsonaro iria exigir que os médicos cubanos fizessem o teste para revalidação do diploma, com o que Cuba não concorda. A exigência nem é uma decisão ideológica, mas as críticas ao que seria “trabalho escravo” dos médicos, sim, e com razão.

A forma de pagamento do trabalho, com o governo cubano ficando com a maior parte do salário, e a proibição de que as famílias dos médicos viajem junto, representam uma atitude de governo que não se coaduna com os hábitos e costumes de uma democracia, com uma ameaça implícita aos que deixaram suas famílias por lá.

A saída poderia ter sido anunciada com antecedência, para não deixar desamparados os milhões de brasileiros atendidos pelos médicos nos rincões do país. A solução, porém, é mais fácil do que parece.

No lugar dos cerca de 8 mil médicos cubanos que deixarão o país, basta convocar imediatamente os cerca de 8 mil médicos que se candidataram na mais recente seleção para o programa, para apenas 983 vagas oferecidas aos brasileiros.

O programa, na verdade, pode ser feito integralmente por médicos brasileiros, pois o fato é que o país não tem falta de médicos, mas o problema é a má distribuição deles pelo território nacional. Mais da metade está no eixo MG, RJ, SP, PR, SC E RS.

Segundo o médico Marco Lages, do hospital Miguel Couto no Rio, temos mais que o dobro da recomendação da Organização Mundial de Saúde, em vez de um mínimo de 1 médico para cada mil habitantes, temos 2,18.

O problema começa por um dos princípios do SUS, transferir a responsabilidade da gestão da saúde para cada município ou estado. Um médico que aceita proposta de uma prefeitura para trabalhar em outra cidade, larga tudo para se transferir para essa região, não tem garantias e pode se dar mal quando muda o prefeito ou acaba a verba. Lages diz que essa situação é comum.

Com a chegada do Mais Médicos, diversos desses brasileiros foram demitidos para a contratação de cubanos. A fonte do pagamento passou a ser o Governo Federal, os estados e municípios ficam sem esse gasto. Além disso, o Governo Federal tinha o interesse político de usar o programa cubano, que é uma das maiores fontes de recursos de Cuba, a exportação de mão de obra médica.

O médico Marco Lages diz que a alocação de médicos brasileiros poderia ser organizada com um Plano de Carreira de Estado que Bolsonaro prometeu na campanha presidencial. A formação desse médico cubano que se transformou em um produto de exportação tão ou mais importante que a cana-de- açúcar e o tabaco, é criticada pelo Conselho Federal de Medicina, que os vê como técnicos preparados para emergências, mas não com a formação completa, e por isso o Revalida deveria ser um filtro.

O médico Francisco Cardoso, perito previdenciário em São Paulo, escreveu um artigo no portal do Conselho Federal de Medicina no início do programa Mais Médicos contando a origem desses médicos cubanos, profissionais formados em "saúde básica", que trabalham em áreas remotas, rurais e periferias, com base em experiências bastante antigas feitas na Alemanha e na antiga União Soviética. São, segundo ele, práticos de saúde, ou paramédicos como são chamados hoje em dia, e exerciam cuidados básicos junto às populações dessas regiões.

Lages relembra que não somos o único país continental com problemas de acesso à saúde no interior. Canadá e Austrália passam por isso também. E como eles resolveram? Com médicos estrangeiros, mas com uma diferença: todos são avaliados em 2 ou 3 fases antes de assumir o emprego no Yukon ou no Outback, ambientes tão inóspitos quanto a caatinga ou a selva amazônica.

Seria até possível usar paramédicos ou técnicos médicos para uma ação de emergência em áreas carentes nos rincões brasileiros. Seria possível também fazer trabalhos sociais em regiões inóspitas, dentro do espírito de pagar o financiamento do FIES estimulado pelo governo, como está em estudos. Já sabemos que no momento existem pelo menos 8 mil médicos brasileiros querendo trabalho.

Correção
O secretário-geral do Itamaraty no início da gestão do chanceler Celso Amorim era Samuel Pinheiro Guimaraes, e não Sebastião como escrevi por um lapso de memória.


João Domingos: Bolsonaro e o Congresso

O presidente da República não pode ficar neutro nas disputas pela Câmara e Senado

Depois de uma reunião na quarta-feira com o deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ), que busca apoio do presidente eleito para se reeleger presidente da Câmara, Jair Bolsonaro disse que pretende ficar neutro nessa questão. Lembrou que existem também outros candidatos se lançando ao comando da Câmara, todos eles “muito bons”, conforme entrevista à TV Record, no mesmo dia.

Muita gente entendeu que, ao falar da existência de outros candidatos “muito bons”, Bolsonaro quis dizer um não para Rodrigo Maia, embora com outras palavras. É possível que não seja exatamente isso. Que ele esteja interessado em ganhar tempo. O presidente eleito nem assumiu e quatro deputados que pertencem à sua base, ou por serem do PSL, ou por terem abraçado a candidatura de Bolsonaro, já lançaram suas candidaturas à presidência da Câmara: Delegado Waldir (PSL-GO), João Campos (PRB-GO), Capitão Augusto (PR-SP) e Alceu Moreira (MDB-RS).

Como já foi dito, há também a candidatura de Rodrigo Maia, e uma sexta, a do vice-presidente da Câmara, Fábio Ramalho (MDB-MG).

Bolsonaro assumirá a Presidência da República depois de exercer o cargo de deputado, seguidamente, por 27 anos e 11 meses. Nesse período, ele entendeu de sobra como é que funcionam os mecanismos do Congresso. O próprio Bolsonaro, que se declara um militante do baixo clero, e que nunca assumiu a direção de uma comissão qualquer, função pela qual seus colegas brigam até de foice, já se lançou candidato à presidência da Câmara. Sua única intenção era, ao pulverizar a disputa, atrapalhar a eleição de um deputado do PT. Isso quem revela é ele mesmo.

O capitão reformado do Exército sabe que a divisão de candidaturas inviabiliza a eleição de um representante de determinado grupo. Desse modo, como quatro aliados dele se lançaram à disputa, e só um pertence ao PSL, nesse momento o melhor a fazer é anunciar a neutralidade. Até porque o Delegado Waldir já disse que se a direção do PSL o mandar se recolher, ele não a obedecerá. Lançará sua candidatura de forma avulsa. Quanto aos outros, o máximo que Bolsonaro pode fazer é pedir a eles que abram mão da disputa, pois pertencem a partidos que, teoricamente, pelo menos, estão fora do alcance das ordens do presidente eleito, embora aliados.

Com a divisão na base de Bolsonaro, abre-se o espaço para que Rodrigo Maia e Fábio Ramalho trabalhem suas candidaturas. Maia tem boa aceitação no PT e nos partidos de centro-esquerda. Caso estes façam um acordo com o atual presidente da Câmara, e desistam de lançar candidatura própria, tornarão Maia bastante competitivo.

Por fora, e aí mora o perigo para Bolsonaro, corre o deputado Fábio Ramalho. Fabinho, como é conhecido o vice-presidente da Câmara, é quem mais entende de baixo clero hoje. Ele está trabalhando intensamente. Aposta no racha da base do governo para se dar bem. E até se arrisca a um palpite: “Sou o próximo presidente da Câmara”. Ramalho costuma fustigar o ocupante do Planalto. O presidente Michel Temer sabe como ele trabalha.

Por mais que Bolsonaro tenha vendido na eleição a imagem do antipolítico – o que não é, pois de seus 63 anos de vida 30 foram passados na Câmara de Vereadores do Rio e na Câmara dos Deputados –, ele sabe que um presidente da República não pode ficar neutro na disputa pela presidência da Câmara. E também pela presidência do Senado. Mas nesta, pelo menos por enquanto, não se vê uma divisão na base do futuro governo. E Renan Calheiros (MDB-AL), que vai costurando sua volta ao cargo, parece estar disposto a negociar.

A petista Dilma Rousseff quis ficar neutra na disputa pela presidência da Câmara, em 2015, mesmo sabendo que Eduardo Cunha (MDB-RJ) era o favorito e lhe seria hostil. Dez meses depois de assumir a chefia da Câmara, Cunha aceitou o pedido de impeachment de Dilma.


Correio Braziliense: Bolsonaro terá uma base consistente de 222 deputados e 23 senadores

Levantamento mostra que Jair Bolsonaro terá o apoio inicial de até 260 deputados e 39 senadores. Para aprovar a PEC da Previdência, o presidente eleito precisará negociar com o Congresso a fim de chegar, ao menos, aos 308 votos na Câmara e 54 no Senado

Por Rodolfo Costa, do Correio Braziliense

O presidente eleito, Jair Bolsonaro (PSL), deve iniciar a gestão com o apoio de 222 deputados federais e 23 senadores, de acordo com a Queiroz Assessoria Parlamentar e Sindical. A consultoria Arko Advice coloca um cenário melhor, com 260 votos favoráveis na Câmara e 39 no Senado. De qualquer forma, os números apontam para muitos desafios que precisarão ser superados. Afinal, o pesselista ainda não dispõe de votos para aprovar nem um Projeto de Lei Complementar, que exige a maioria absoluta, ou seja, de 257 deputados e 41 senadores. O apoio também é insuficiente para aprovar Propostas de Emenda à Constituição (PEC), como a da reforma previdenciária, que necessitam de 60% dos congressistas em ambas as Casas.

A ampliação da base no Parlamento exigirá muito traquejo político. Afinal, a base calculada de 222 votos inclui deputados que foram eleitos propondo pautas que têm afinidade com o discurso de Bolsonaro durante a campanha, como defesa da segurança pública, combate à corrupção e resgate dos valores da “família tradicional” e dos “bons costumes”. A proximidade com a retórica bolsonarista, no entanto, não garante o embarque de todos os parlamentares à base.

Para consolidar a compatibilidade programática e ideológica de agendas entre governo e congressistas da chamada base de apoio consistente será fundamental apostar em uma boa capacidade de articulação. Para especialistas, Bolsonaro precisará entender que governar também é distribuir e descentralizar as tomadas de decisão, para que possa acomodar os diversos pontos de vista e interesses. É o que sustenta o cientista político Enrico Ribeiro, coordenador legislativo da Queiroz. “Se quiser fazer reformas grandes, precisará ter capacidade de negociar e pensar em qual país vai propor e até onde pode ceder”, advertiu.

O alerta vale, sobretudo, para parlamentares do Centrão, bloco político composto pelos maiores partidos no Congresso que não estão na oposição: PP, DEM, PR, PRB e PSD. A afinidade e a adesão à pauta governista de políticos dessas legendas pode garantir votos contra ou a favor, a depender da articulação do Executivo. Deputados e senadores do MDB e do PSD, por sinal, podem compor a chamada base de apoio condicionada, que tem afinidade, mas tende a apoiar conforme o tema e a conveniência.

Prévia
A base condicionada aponta para um apoio de 105 deputados e 28 senadores. Na soma com a base consistente, garante votos suficientes para aprovar uma PEC. A margem, entretanto, é apertada. Para solidificar condições favoráveis de aprovar até emendas à Constituição com folga, será necessário articular com PSDB e Novo, no caso da Câmara. Ambos os partidos são considerados independentes.

Os primeiros sinais para construir uma boa relação com o Congresso foram dados. A articulação política do governo trabalha junto aos integrantes do PSL a abdicação da Presidência da Câmara e do Senado. Mas a chave para o namoro ser duradouro passa por negociações prévias com o Parlamento. O analista político Antônio Augusto de Queiroz, diretor de Documentação do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap), alerta para o risco de encaminhar propostas sem dialogar anteriormente.

As apostas atuais de integrantes do próprio PSL apontam para a vitória do deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ) e do senador Renan Calheiros (MDB-AL) na disputa pela Presidência de ambas as Casas. A perspectiva de sucesso dos dois sugere cuidado para o trato do governo com o Parlamento, uma vez que são pouco propensos a aceitar mandos e desmandos do Palácio do Planalto sem articulação prévia. “Não adianta hostilizar e ‘prensar’. Vai ter que saber que tem hora para negociar, recuar e não falar alto. E, antes de indicar uma prioridade, chamar não apenas frentes, mas também partidos”, alertou Queiroz.

O empenho dos responsáveis pela articulação política de Bolsonaro será primordial para o sucesso da aprovação de pelo menos 16 projetos de interesse do presidente eleito e equipe. Desses, quatro são mais complexos, sendo três projetos de lei complementar e uma PEC. O cientista político Cristiano Noronha, sócio e vice-presidente da consultoria Arko Advice, calcula um cenário mais favorável para a base de apoio no Congresso. Nas contas dele, são 260 votos favoráveis na Câmara e 39 no Senado.

Apesar da previsão de uma base mais robusta para o início de governo, Noronha admite que as conversas com os congressistas precisarão ser cirúrgicas, e as prioridades, objetivas. Para ele, não seria inteligente encaminhar pautas conservadoras no início do relacionamento com o Congresso. “Questões ideológicas, de valores e costumes podem ser mais difíceis de aprovar. Entre algumas pautas, não há consenso nem dentro da equipe ministerial. A agenda econômica é mais definida e tem respaldo dos próprios governadores”, ponderou.

Dupla articulação

No caso dos tucanos, o cientista político Enrico Ribeiro ressalta que o partido é rachado internamente, com alas que são oposição, neutras e outras de apoio. “E provavelmente o partido batalhará para ter um presidenciável em 2022. Os parlamentares votariam conforme o tema e os interesses próprios, independentemente de cargos e emendas”, justificou. Já os liberais do Novo são propensos a votar de acordo com pautas que apontem para as liberdades econômicas e individuais.

 


Bernardo Mello Franco: Bolsonaro lançou o Menos Médicos

O discurso agressivo contra os cubanos esconde o verdadeiro problema. O novo governo parece não ter ideia de como substituir os 8.332 médicos que deixarão o país

A sete semanas da posse, Jair Bolsonaro contratou a primeira crise do novo governo. A saída de Cuba do Mais Médicos pode deixar 24 milhões de brasileiros sem assistência básica de saúde. Ninguém poderá dizer que ele não se empenhou por este desfecho. Na campanha, o presidente eleito fez ofensas e ameaças aos médicos vindos da ilha. Hoje eles somam 8.332. A maioria atua em periferias ou grotões onde os doutores brasileiros não querem trabalhar.

“Vamos expulsar com o Revalida os cubanos do Brasil”, discursou o então candidato em agosto, do alto de um trio elétrico em Presidente Prudente.

Em outra fala, divulgada nas redes sociais, ele inflou os números do programa e prometeu “dar uma canetada mandando 14 mil médicos lá para Cuba”. Acrescentou que os profissionais poderiam se alojar em Guantánamo, onde os EUA mantêm uma prisão militar.

Os médicos cubanos não escolheram o regime que governa sua terra natal, mas se tornaram alvo da cruzada de Bolsonaro contra os “vermelhos”. Na campanha, o discurso pode ter rendido votos. No governo, ameaça gerar um apagão na saúde dos mais pobres.

Em cinco anos, mais de 20 mil cubanos passaram pelo Mais Médicos. Em um terço dos municípios atendidos, foram os únicos a aceitar as vagas oferecidas pelo programa. Hoje são ampla maioria em aldeias indígenas e comunidades ribeirinhas.

Além do Brasil, outros 66 países mantêm contratos de cooperação médica com a ilha. O dado mostra que a importação de doutores não é invenção do PT, como costuma sugerir o presidente eleito.

O adeus dos cubanos era questão de tempo, mas Bolsonaro reagiu com irritação ao anúncio de Havana. Na quarta-feira, ele comparou os profissionais a “escravos” e chegou a dizer que não haveria comprovação “de que eles sejam realmente médicos”. Conversa de palanque, porque o programa exige diploma superior e conhecimento dos protocolos do SUS.

O discurso agressivo esconde o verdadeiro problema: o novo governo parece não ter ideia de como substituir os cubanos que deixarão o país. Até aqui, só conseguiu organizar o lançamento do Menos Médicos.

No aniversário de 129 anos da República, o “príncipe” Luiz Philippe de Orleans e Bragança, eleito deputado pelo PSL, disse que o Brasil não tinha “nada a comemorar”. O novo regime está cheio de entusiastas da ditadura militar, mas também há quem sonhe com uma volta aos tempos do Império.


Eliane Cantanhêde: Pensamento de Bolsonaro

Chanceler Ernesto Araújo dá revestimento teórico às falas do futuro presidente

O presidente eleito Jair Bolsonaro ficou fascinado com o diplomata Ernesto Araújo, não apenas porque ele endeusa Donald Trump e demoniza o PT, mas porque consegue uma façanha espetacular: conferir um arcabouço teórico para as ideias atabalhoadas e descoordenadas que Bolsonaro lança no ar nas mais variadas áreas.

“Brilhante intelectual”, na definição do futuro presidente, Ernesto Araújo usou os seus dons teóricos não apenas para instigar ou corroborar as posições leigas de Bolsonaro na política externa, mas também sobre família, religião, aborto, PT, Trump, China. Só não se meteu, por enquanto, na área militar e diretamente na economia.

Enquanto chanceler, ele estará mais para assessor do presidente, desses que escrevem seus discursos, desenvolvendo de forma articulada as ideias do chefe. Bolsonaro adora Trump? Araújo lhe fornece motivos teóricos. Implica com a China, maior parceiro comercial do Brasil? Lá está ele a postos para dar alguma sustentação à implicância.

O cruzamento entre o que Bolsonaro dizia e o que Ernesto Araújo escrevia na campanha presidencial mostra de forma clara, óbvia, que os dois têm o mesmo pensamento sobre a vida e o mundo, apesar de formas bem diferentes. Um sai falando o que lhe vem na cabeça. O outro em textos grandiloquentes.

Nos Cadernos de Política Exterior, Ernesto Araújo escreve que “somente um Deus poderia ainda salvar o Ocidente, um Deus operando pela nação – inclusive e principalmente a nação americana”. E conclui: “Trump pode ainda salvar o Ocidente”. Seu xará Ernesto Geisel ficaria horrorizado, mas a profunda admiração a Trump é uma das muitas coisas que unem o futuro presidente e seu chanceler.

No seu blog “Metapolítica 17”, Ernesto Araújo alerta contra a “China maoísta que vai dominar o mundo” e, assim como o futuro presidente já falou em romper com o Acordo de Paris, ele ataca: “O climatismo é basicamente uma tática globalista de instilar o medo para obter mais poder”.

Também cria o conceito do “antinatalismo”: “A esquerda quer fazer tudo para que as pessoas não nasçam. Aborto, criminalização do desejo do homem pela mulher, contestação do patriarcado e da diferenciação entre os sexos, desmerecimento da reprodução, sexualização das crianças e dessexualização dos adultos...”. Logo, Ernesto Araújo, 51 anos, que jamais chefiou uma embaixada, além de ser nomeado para “botar pra quebrar” no Itamaraty – fechar postos e embaixadas, fazer uma profunda dança de cadeiras e alijar todos os que, sendo ou não, são acusados de petistas – é o pensamento vivo de Jair Bolsonaro.

Só falta saber o que vai ser da política externa. Endeusamento de Trump? Alinhamento automático a Washington, que nem o regime militar fez? Confronto com a China? Esvaziamento do Mercosul? Saída do Acordo de Paris? E a mudança da embaixada em Israel, de Tel Aviv para Jerusalém?

Afora não ser trivial diplomatas usarem blogs contra e a favor de candidaturas partidárias, os textos de Araújo, como diz um brilhante embaixador, que não tem nada de petista, são “de filosofia, religião, comportamento, mas, quando virar chanceler de fato, é pão-pão, queijo-queijo”.

É ótimo o Brasil aprofundar suas relações com os Estados Unidos, parceiro tradicional, o maior mercado e o maior investidor do mundo, mas daí à volta a um alinhamento automático e a caneladas na China, na Europa, no Mercosul e no Oriente Médio já são outros quinhentos.

A conta vem rápida e pesada. O Itamaraty está perplexo e os militares estão adorando, mas política externa é pragmatismo e defesa dos interesses políticos, econômicos, sociais e estratégicos do Brasil, que são bem diferentes dos americanos. Há uma nova onda ideológica e Ernesto Araújo é candidato a Celso Amorim às avessas.


Míriam Leitão: A equipe começa a ser formada

Mansueto fica e Campos Neto é indicado para comandar um projeto de BC independente como defende Ilan, que está de saída

Ilan Goldfajn ficou fechado, em total silêncio, enquanto se especulava se ele permaneceria ou não. Havia interesse em que ele ficasse até pela convergência natural entre a defesa do Banco Central independente pelo futuro ministro da área econômica, Paulo Guedes, e por Ilan, que ontem prometeu em nota continuar a apoiar o projeto nesse sentido em tramitação no Congresso. Mas um dos critérios para seguir no cargo era demonstrar interesse em ficar, o que não foi o caso do atual presidente do BC. O secretário do Tesouro Mansueto Almeida fica e mantém toda a sua equipe. Ana Paula Vescovi tem dito a todos que a procuram que quer ir para o exterior estudar.

Com a escolha de Roberto Campos Neto para presidir o BC, a equipe econômica começa a tomar forma. A ideia de Paulo Guedes sempre foi aprovar o Banco Central independente, o que é um passo adiante na autonomia que tem havido no órgão em alguns momentos. Ilan Goldfajn teve total autonomia e entregou o excelente resultado, reconhecido na área econômica do futuro governo, e comprovado pelo menos em dois indicadores. A inflação que estava perto de dois dígitos caiu abaixo do piso da meta e, com toda a turbulência do processo eleitoral, chega ao fim do ano no centro da meta. O segundo é a queda da taxa de juros para o menor nível da história do real, uma redução consistente, que atravessou estável esse período tenso. Ilan foi também ágil e firme nos momentos de maior tensão no mercado cambial. Avisou que só os efeitos secundários da mudança do patamar do câmbio seriam combatidos, ou seja, não subiria juros na vã tentativa de criar um patamar para o dólar.

Dentro da equipe que prepara o governo Bolsonaro há dois critérios para os convites, segundo um desses integrantes. “É preciso ter feito um bom trabalho", o que é o caso de Ilan e estar com vontade de permanecer no novo governo. Ontem no fim do dia, o presidente do BC explicou que “seu afastamento do cargo se dá por motivos pessoais" e que ficará no BC até que a indicação de seu sucessor seja aprovada pelo Senado.

Roberto Campos Neto é definido com uma palavra na equipe de transição: “excelente”. Atualmente no Santander, ele tem bastante experiência no mercado financeiro e já vinha colaborando com a equipe do novo governo. Foi escolha pessoal de Paulo Guedes, como tinha que ser. Chega com o desafio de manter a política monetária, mas ao mesmo tempo criar as condições para o aumento da competição no mercado bancário. Paulo Guedes vem dizendo desde a campanha que tem interesse em reduzir o custo da dívida pública e a própria dívida. Chegou a falar, depois da eleição, em vender parte das reservas cambiais com esse objetivo. Esta não é uma operação trivial.

O nome foi bem aceito pelos investidores. O fundo que acompanha os principais papéis de empresas brasileiras em Nova York acelerou a alta durante o dia, com as notícias sobre a indicação de Campos Neto. O EWZ subia mais de 2% à tarde. Isso indica que a bolsa por aqui deve abrir a sexta-feira em alta.

A permanência de Mansueto no Tesouro é importante por inúmeras razões. É um grande economista, com sólido conhecimento da máquina pública, e está tocando assuntos complexos como o quadro fiscal nos estados. Ele acompanha com o cuidado devido as bombas fiscais que estão armadas no Congresso e sabe como lidar com temas espinhosos que normalmente suscitam reações políticas. Depois dos grandes erros cometidos pelo governo Dilma na Secretaria do Tesouro, Mansueto, e antes dele, a economista Ana Paula Vescovi, tiveram que resolver problemas de muitos anos antes.

Não haverá solução fácil para o rombo fiscal do governo federal e dos governos estaduais, mas a atual equipe melhorou a qualidade das políticas públicas, dos indicadores e está fazendo uma correta transição administrativa, só comparável à que foi feita entre os governos Fernando Henrique e Lula. No caso dos estados, a convicção na equipe do governo Temer é que sem a reforma da Previdência não haverá melhora duradoura. Mas há formas de atenuar, como se pôde ver no Rio de Janeiro.

O governador Luiz Fernando Pezão conta que reduziu os gastos de pessoal como proporção da Receita Corrente Líquida de 70% em 2017 para 46% em outubro de 2018. E garante ter cumprido 12 das vinte metas. No governo federal a expectativa não é assim tão boa, mas os técnicos estão convencidos de que o estado se enquadrará abaixo do limite de 60%. O caso do Rio é importante porque é o único estado que entrou no Regime de Recuperação Fiscal. O Rio Grande do Sul não conseguiu e Minas nem foi conversar, preferindo tentar as liminares na Justiça. A melhora no Rio é em parte pela alta do petróleo — que a propósito voltou a cair —, mas também porque a partir do enquadramento no RRF houve mais disciplina. Não são poucos os desafios que esperam a nova equipe econômica que está sendo formada.