Bolsonaro
Ricardo Noblat: Evangélicos derrotam Bolsonaro
Sinais. Fortes sinais!
A bancada dos deputados evangélicos da Câmara celebrou, ontem, sua primeira vitória sobre o presidente eleito Jair Bolsonaro. Ele havia convidado Mozart Neves Ramos, diretor do Instituto Ayrton Senna, para ser o próximo ministro da Educação.
Como Mozart, aos olhos dos evangélicos, é um educador liberal a ponto de ser elogiado pela esquerda, o nome dele foi vetado. O que fez Bolsonaro? Trocou Mozart pelo colombiano Ricardo Vélez Rodríguez, professor emérito da Escola de Comando e estado Maior do Exército.
Fogos de artifício espocaram no Rio onde mora o pastor Silas Malafaia, que se revoltara com a escolha de Mozart. E em Richmond, no estado norte-americano de Virgínia, onde mora o ensaísta de direita Olavo de Carvalho, padrinho da indicação de Vélez Rodríguez.
O ensaísta e o futuro ministro têm pelo menos duas coisas em comum. Primeira: Olavo foi comunista por dois anos no final dos anos 60 do século passado, e Vélez Rodríguez de esquerda no seu país. Segunda: os dois migraram para a direita tão logo se viram em apuros.
Para quem se apresentou durante a campanha como não político apesar de ser deputado há 30 anos, disposto, uma vez eleito, a enfrentar as pressões dos seus pares por cargos aqui e acolá, Bolsonaro demonstrou que não será bem assim.
Prometeu fazer um governo “sem concessões a ideologias” para se contrapor a quase 14 anos de governos do PT marcadamente ideológicos. Era conversa para enganar eleitores, e deve ter enganado muitos deles, talvez o suficiente para vencer.
Inexiste governo ideológico porque é impossível encarar as questões sem partir de um ponto de vista. A visão do PT sempre foi de esquerda. A de Bolsonaro, de extrema direita com um viés militarista. Nada a ver apenas com o conservadorismo que é outra coisa.
A democracia restaurada por aqui desde 1985 passará por seu mais estressante teste a partir de janeiro de 2019. Deus é Pai!
Bernardo Mello Franco: O olavismo passou de piada a doutrina oficial de governo
O ideólogo Olavo de Carvalho já havia emplacado um trumpista no Itamaraty. Agora escolhe o ministro da Educação, que repete suas teses sem usar os palavrões
Jair Bolsonaro correu o risco de acertar na escolha do ministro da Educação. Mozart Ramos tinha currículo para o cargo. Ex-reitor da Universidade Federal de Pernambuco, hoje diretor do Instituto Ayrton Senna, conquistou respeito no meio privado e na academia. Sua indicação parecia boa demais para ser verdade. E era.
O educador foi vetado pela bancada evangélica, aliada do presidente eleito. “Somos totalmente contra o nome dele”, resumiu o deputado Sóstenes Cavalcante. Ele participou da comitiva que foi do Congresso ao CCBB, quartel-general do futuro governo, para torpedear a nomeação que já era dada como certa.
A pressão funcionou. Ontem Bolsonaro cancelou a reunião que selaria a escolha de Ramos. Em seu lugar, recebeu o procurador Guilherme Schelb. As credenciais do novo ministeriável eram desconhecidas. Em poucos minutos, o enigma se desfez: ele havia virado propagandista do projeto Escola Sem Partido.
Sem deixar a Procuradoria, Schelb se tornou um ativista de rede social. No Facebook, sustenta que há um complô para “doutrinar” e “erotizar” criancinhas nas escolas. Entre seus alvos, estão a ministra Cármen Lúcia, a atriz Fernanda Lima e o ex-presidente Barack Obama.
É uma militância lucrativa. Ele mantém um site para agendar palestras e vender o curso on-line “Família educa, escola ensina”. Um lote de cartilhas sai por R$ 1.700. O pastor Silas Malafaia apoiou sua nomeação com entusiasmo. “Esse é o cara!”, vibrou, no Twitter.
O lobby evangélico bateu na trave. À noite, Bolsonaro anunciou a nomeação de Ricardo Vélez Rodríguez. Apresentou-o como “filósofo autor de mais de 30 obras, atualmente professor emérito da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército”. Esqueceu de apontar o pai da indicação: o ideólogo e polemista Olavo de Carvalho.
O guru ultraconservador já havia emplacado o trumpista Ernesto Araújo nas Relações Exteriores. Agora apadrinha o ministro da Educação, que repete suas teses reacionárias com a vantagem de não usar palavrões. O olavismo passou de piada a doutrina oficial de governo. Parece ser a hora de adaptar um lema de outros tempos: “Chega de intermediários, Olavo para presidente!”.
Eliane Cantanhêde: Escola sem religião
Nem ‘escola sem partido’ nem religião definindo ministro da Educação
Há quem seja rechaçado pelos seus defeitos e há quem seja pelas suas virtudes. É neste segundo caso que se encaixa o doutor Mozart Neves, educador, engenheiro químico, ex-reitor da UFPE, ex-secretário de Educação de Pernambuco e diretor do Instituo Ayrton Senna, uma das referências em Educação no Brasil.
Qual o “defeito” de Mozart a impedi-lo de assumir a Educação do governo Jair Bolsonaro? Ele é respeitadíssimo na área, tem foco na alfabetização, na valorização do professor, na igualdade de condições para os brasileiros das diferentes regiões, rendas, etnias. Não tem partido, não é militante de esquerda nem de direita. O negócio dele é educação, educação, educação, como gosta de martelar o senador Cristovam Buarque.
Então, o que há de errado? Resposta: a bancada evangélica acha que ele é bom demais. Tão bom que não quer “politicar” ainda mais a educação com o “escola sem partido”, como certamente discorda também da escola pública com religião. Nem partido nem religião nas escolas brasileiras. E Bolsonaro foi obrigado a optar entre a simbologia do Instituto Ayrton Senna e o desejo de poder da Bancada Evangélica.
É uma área tão sensível como a educação, pois, que provoca o primeiro embate entre o Congresso e o futuro presidente, que desde a campanha despreza as negociações de varejo, partido a partido, e se concentra nas de atacado, com as frentes partidárias. Dá menos trabalho, calculou Bolsonaro, há quase 30 anos na Câmara. Deve entender de política. Ou não?
A deputada Tereza Cristina foi líder do PSB e é do DEM, mas foi lançada à Agricultura pela Frente Parlamentar do Agronegócio. O deputado Luiz Henrique Mandetta, também do DEM, assume com apoio da Frente Parlamentar da Saúde. O fato de serem ambos do mesmo partido e do mesmo estado, Mato Grosso do Sul, é mera coincidência.
Falta contemplar a Frente Evangélica, essa contra uma escola “desideologizada”, e a da Bala, ou melhor, do desarmamento. O deputado Alberto Fraga, derrotado para o Governo do DF, tentou pular no barco, mas não colou. O que será que a turma dele vai reivindicar agora?
A lição que Bolsonaro vai aprendendo, mesmo se tenta resistir a ela, é que a democracia tem suas manhas. Quem tem mais votos ganha a eleição e quem perde respeita o resultado, mantendo o direito de minoria de fazer oposição. Isso vale tanto para os parlamentares quanto para o presidente.
O Congresso extrapolou todos os limites na prática do toma lá, dá cá e nas sucessivas tentativas de mudar leis e regras para garantir a impunidade dos enrolados em suspeitas e denúncias. E Bolsonaro se elegeu com a promessa de mudar o jogo, fazer diferente, não ceder a chantagens. OK. Excelente.
Ele, porém, não pode simplesmente jogar o tabuleiro e as peças fora. Pode até tentar impor o jogo dele, mas vai ter de jogar. O mesmo “povo” que lhe deu o mandato enviou junto os deputados e senadores, essenciais não só para aprovar leis, medidas, emendas, mas para o sucesso ou não do seu governo.
O teste de forças com a Frente Evangélica, uma das principais forças do bolsonarismo, é um aviso do que Bolsonaro vai enfrentar na Presidência, como qualquer presidente. E a corda bamba é a mesma: se cair para um lado, a opinião pública grita; se for para o outro, vai largando náufragos de mau humor, prontos a dar o troco na primeira votação. Não raro, e dependendo da irritação, na primeira, a segunda, na terceira...
Presidentes (assim como crianças, homens, mulheres, patrões e empregados) não fazem tudo o que querem, mas o que podem. A grande sabedoria é poder fazer o máximo do que querem, atraindo atenção, simpatia, boa vontade e sólidas alianças. Depende de talento, personalidade, experiência, vontade e equipe. Ah! E saber perder, quando necessário.
William Waack: Jair, o que a gente vai dizer?
Não falta muito para o Brasil ser chamado a assumir lado numa briga de cachorros muito grandes
O grande espetáculo geopolítico do século ganhou mais ritmo. O Departamento de Comércio do governo americano acaba de divulgar uma lista de novas tecnologias que terão exportação restringida. Elas incluem inteligência artificial, computação quântica e robotics. A lista de restrições às exportações dessas tecnologias é claramente desenhada para preservar o avanço americano em relação à China.
A divulgação da lista ocorreu poucas horas depois de um áspero duelo de discursos no encontro da cúpula econômica dos países da Ásia e do Pacífico entre o presidente da China (ao qual a imprensa internacional já se refere como imperador) e o vice-presidente americano Mike Pence (Trump esnobou o encontro). A guerra de palavras entre Beijing e Washington tornou mais difícil acreditar numa solução breve para a declarada guerra comercial entre os dois gigantes da economia mundial.
Mais ainda: na guerra de discursos, China e Estados Unidos descreveram-se mutuamente como potências coloniais na Ásia. Pence pediu aos países da região (e outros fora dela) que não aceitem “dívida externa” (uma referência à grande iniciativa estratégica chinesa de projetos de infraestrutura em vários países) que possa “comprometer sua soberania”. E Xi Jinping acusou os EUA (embora não tivesse mencionado o nome) de solapar o sistema de regras internacionais “por motivos egoísticos”.
Se alguém ainda tinha alguma dúvida, a ascensão da China resulta num confronto geopolítico de proporções inéditas, e tanto o desafiante (a China) como o desafiado (os Estados Unidos) comportam-se totalmente de acordo ao que previam algumas teorias sobre Relações Internacionais: a superpotência americana não pode tolerar o surgimento de uma outra superpotência capaz de dominar sozinha uma parte do mundo. E, inicialmente, dedica-se a uma clássica política de “containment” (comparável à da Guerra Fria com a União Soviética). A China já denuncia esse tipo de “cerco”.
As mesmas teorias supõem que inicialmente a China crescerá de forma harmônica e pacífica, até sentir que sua própria segurança (e crescimento) estão em risco – o ponto já parece ultrapassado. É esse tipo de tensão geopolítica que tem trazido medo nos últimos meses aos mercados internacionais – mais até do que as disputas comerciais travadas em termos de “guerras”. Aqui entra o papel de indivíduos. Xi Jinping, o novo imperador chinês, não deixa de maneira alguma a impressão de ser um dirigente propenso a ceder a pressões externas. Ao contrário: ele parece convencido de que o único objetivo dos Estados Unidos é o de conter a China.
Xi vai se encontrar dentro de alguns dias na cúpula do G20 com Donald Trump, o homem que acredita que conflitos geopolíticos dessa magnitude colossal se resolvem com “amigos” conversando ao redor de um campo de golfe (como ele fez com Xi Jinping na Florida). De fato, a cúpula chinesa aparentemente diferencia entre as instâncias tradicionais de formulação de condutas externas americanas (departamentos de Defesa e Estado), que se engajaram no “containment” como estratégia frente à China, e a figura de Trump.
O problema, porém, ficou claro para as outras potências que lidaram com chineses e americanos nos últimos tempos. Cada vez mais Washington e Beijing pedem aos líderes de outros países que assumam um lado nessa disputa monumental. Mesmo com tantos oceanos nos separando dos EUA e da China, não vamos escapar de ouvir a mesma pergunta: qual o lado?
E aí, Jair, o que a gente vai responder?
Política Democrática online de novembro repercute eleição de Bolsonaro
Publicação traz reportagem especial sobre economia movimentada por pessoas em situação de rua, além de dez artigos e uma entrevista exclusivos
A edição de novembro da revista Política Democrática online chega ao público, nesta quarta-feira (21), com dez artigos e uma entrevista exclusivos sobre os cenários políticos brasileiro e norte-americano após a eleição do deputado federal Jair Bolsonaro (PSL) para a Presidência da República para o mandato de 2019 a 2022. Em formato multimídia, a publicação traz ainda uma reportagem especial sobre a vida de pessoas em situação de rua, a forma como elas movimentam uma economia marginalizada e o desmonte das ações de atendimento a esse segmento da população em Brasília.
No destaque desta edição, a entrevista com o sociólogo Sérgio Abranches mostra que a direita inicia novo ciclo de poder com a vitória do ex-capitão do Exército para a presidência. “Agora, voltará a haver oposição orgânica, com o PT centrado no PSL e no Bolsonaro. Isso muda a dinâmica do jogo político, das relações entre o legislativo e o executivo”, diz ele, em um dos trechos. “Será um duro teste às instituições, à democracia. Mas acho que a Constituição de 1988 nos legou instituições que se revelaram suficientemente robustas ao longo de vários traumas”, acrescenta.
Produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), vinculada ao Partido Popular Socialista (PPS), a revista critica, em seu editorial, a escolha do embaixador Ernesto Araújo para a chefia do Ministério das Relações Exteriores. “A julgar pelos escritos do futuro ministro, diretrizes da política externa passarão a ser o antiglobalismo e o alinhamento com o governo americano, o nacionalismo econômico, a desconfiança em relação às pautas da sustentabilidade e dos direitos humanos, além da renúncia à defesa da democracia como sistema político”, diz um trecho.
A revista também traz uma reportagem especial que conta o drama de pessoas em situação de rua na capital federal e denuncia o desmonte das políticas públicas na área de assistência social no Distrito Federal (DF). Dados obtidos pela revista Política Democrática online por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI) mostram que, em 2018, o governo voltou a reduzir as verbas do setor, alcançando o segundo pior investimento em dez anos, atrás apenas dos que foram efetivamente realizados em 2016. No DF, segundo dados oficiais, chega a 3,5 mil o número de pessoas em situação de rua nesta época do ano.
Entre os artigos publicados, os analistas políticos colaboradores da revista abordam diversos temas relacionados ao atual momento político brasileiro e internacional, a partir da ótica das eleições legislativas norte-americanas. Outros assuntos relevantes e de interesse públicos também estão contemplados nesta edição, como é o caso das fake news, a ampliação da desigualdade e o conservadorismo no Congresso Nacional, assim como as reservas internacionais e o ajuste fiscal.
A seguir, confira a relação de todos os conteúdos da edição de novembro da revista Política Democrática online e seus respectivos autores:
Editorial | Política em tempos sombrios
Artigo | As reservas internacionais e o ajuste fiscal (Paulo Guedes): José Luis Oreiro
Artigo | O Congresso mais conservador desde a redemocratização: Antônio Augusto de Queiroz
Charge | E agora as notícias de Brasília: Jcaesar
Artigo | Lições do DIC na era Collor: Luiz PauloVellozo Lucas
Entrevista Sérgio Abranches | Vitória do ex-capitão do Exército encerra disputa PT X PSDB (André Amado, Caetano Araújo, José Carlos Lima, Davi Emerich, Lucas Brandão e Priscila Mendes)
Artigo | Bolsonaro – Uma epifania digital em rede: Paulo Baía
Artigo | As doces, atraentes e estimulantes fake news (Sérgio Denicoli)
Artigo | Ampliação da desigualdade não é um problema econômico (Vinícius Müller)
Artigo | Depois das urnas, oposição democrática (Alberto Aggio)
Reportagem | Pessoas em situação de rua na economia marginal (Cleomar Almeida)
Artigo | Reação anti-trump marca eleições legislativas dos EUA (José Vicente de Sá Pimentel)
Artigo | Para uma crítica do tempo presente (Luiz Sérgio Henriques)
Artigo | Contemporâneos do futuro (Roberto Freire)
Bernardo Mello Franco: O velho PFL volta ao coração do poder
O DEM já garantiu três ministérios no governo Bolsonaro. As nomeações causam ciúmes em outros partidos, que ameaçam boicotar a reeleição de Rodrigo Maia na Câmara
O atual superintendente da Polícia Federal no Paraná, Maurício Valeixo, foi indicado pelo futuro ministro da Justiça, Sergio Moro, para comandar a corporação. A nova gestão terá como foco o combate à corrupção e ao crime organizado. Valeixo atuou no caso Banestado e na Lava-Jato ao lado de Moro. Depois de amargar 13 anos na oposição, o DEM retomou a vocação governista com Michel Temer. Mas é pelas mãos de Jair Bolsonaro que o partido voltará ao coração do poder.
Na gestão que termina, o antigo PFL comandou a pasta da Educação. Na que começa, terá três ministérios para chamar de seus. Até a semana passada, a sigla já havia garantido a Casa Civil e a Agricultura. Agora ampliou seus domínios para a Saúde, com a escolha do deputado Luiz Henrique Mandetta.
O partido não ocupava tanto espaço na Esplanada desde 2001, quando o presidente Fernando Henrique Cardoso rompeu a aliança com Antonio Carlos Magalhães. No ano seguinte, Lula se elegeu e a legenda passou a definhar. Sua bancada federal despencou de 105 deputados eleitos em 1998 para apenas 21 em 2014.
Nem a mudança de nome foi capaz de interromper a queda. A sigla continuou a encolher nas urnas e viu seu único governador ser preso por corrupção, num escândalo que ficou conhecido como “mensalão do DEM”. Sem acesso ao Diário Oficial, o partido chegou perto de desaparecer. Até que foi salvo pelo impeachment.
O presidente da legenda, ACM Neto, diz que os três novos ministros foram escolhas pessoais de Bolsonaro. “São bons nomes, mas não são indicações partidárias”, afirma. Ele reconhece, no entanto, que as nomeações já causam ciúmes em outros partidos. “O DEM não pode ser penalizado porque tem bons quadros”, argumenta.
A primeira vítima de retaliação pode ser Rodrigo Maia, que tentarás e reeleger na presidência da Câmara. Deputados de siglas como PP, PR e PSD já ameaçam boicotá-lo em fevereiro. Naturalmente, podem mu darde ideia se saciarem o apetite por cargos no novo governo.
O problema é que Bolsonaro não dá pistas do que fará com os ministérios que ainda estão sem dono. Na dúvida, parlamentares que apoiaram outros candidatos ao Planalto têm se revezado na tribuna para cortejá-lo. “Os primeiros passos que o presidente eleito toma são extremamente assertivos, corretos e não só bem-intencionados, mas também numa visão de estadista”, desmanchava-se ontem o deputado Domingos Sávio, do PSDB.
El País: Bolsonaro empodera o DEM e embaralha disputa na Câmara
Partido do Centrão emplaca três representantes na Esplanada e ganha protagonismo não visto desde governo FHC. Investigado por fraude, Luiz Mandetta é escolhido para o Ministério da Saúde
Há 20 anos, o PFL, partido que se transformou no DEM, era um dos mais poderosos do país. Tinha 105 deputados federais eleitos, a vice-presidência da República, quatro ministros e o comando do Senado Federal. O presidente da ocasião era Fernando Henrique Cardoso (PSDB), um parceiro dos então pefelistas por quase uma década. Agora, o presidente que foi eleito por uma legenda inexpressiva e prometendo se descolar dos partidos políticos tradicionais, Jair Bolsonaro (PSL), volta a conferir um protagonismo ao DEM, que elegeu apenas 29 deputados. Nesta terça-feira, Bolsonaro indicou o seu terceiro ministro filiado ao partido. Luiz Henrique Mandetta, deputado federal por Mato Grosso do Sul, comandará a pasta de Saúde. Com a escolha, Bolsonaro interfere indiretamente na disputa pela presidência da Câmara dos Deputados, em que o atual presidente, Rodrigo Maia (DEM-RJ), tenta a reeleição.
Com exceção de Lorenzoni, que é considerado da cota pessoal do presidente eleito, os outros tiveram seus nomes sugeridos por frentes parlamentares que atuam nas áreas específicas. Além disso, Mandetta, que é médico ortopedista, foi um dos consultores de Bolsonaro na pré-campanha. “Eu o ajudei quando ele precisou com orientações sobre a saúde. E, apesar de não estar na coligação dele, eu votei no Bolsonaro, é claro”, disse o futuro ministro ao EL PAÍS. Tereza, por sua vez, é a presidente da Frente Parlamentar Agropecuária. Na reta final do período eleitoral, ela posou para fotos ao lado do então presidenciável declarando apoio a ele. Oficialmente, nesta eleição, o DEM esteve na coligação de Geraldo Alckmin (PSDB), que acabou na quarta colocação, em articulação com a reformulação do chamado Centrão.
Quando indagado se estaria havendo um loteamento de cargos para beneficiar o DEM, Bolsonaro disse que era coincidência os três serem do mesmo partido. “O Onyx Lorenzoni sempre esteve comigo muito antes do primeiro turno. A Tereza Cristina é do DEM, mas foi indicação da bancada da agricultura. O Mandetta também. Parlamentares dos mais variados partidos indicaram ele (sic). Por coincidência, pertence ao DEM. Nada a ver no tocante a partido. Não são indicações para atender interesses político-partidários, e sim interesses especificamente dessas áreas de saúde e agricultura”, afirmou o futuro mandatário.
Na avaliação do professor e cientista político Humberto Dantas, doutor pela Universidade de São Paulo (USP), não deveria haver estranheza nesta aproximação de Bolsonaro com o DEM. “O Bolsonaro se ancora no DEM porque o DEM pensa como o Bolsonaro em boa parte dos casos. Não é um partido tão estranho para o universo político que o Bolsonaro orbita", afirma o professor. Em 2005, quando a sigla ainda era PFL, Bolsonaro esteve em suas fileiras por alguns meses. Foi um dos oito partidos ao qual esteve filiado em sua carreira política de quase três décadas.
O jogo pelo comando da Câmara
O primeiro reflexo dessa presença maciça de membros do DEM no Executivo pode ser vista na Câmara dos Deputados. O candidato à reeleição Rodrigo Maia (DEM-RJ) esperava ter o apoio, ainda que indireto, do grupo de Bolsonaro para a reeleição. Mas os sinais que veem do quartel-general da transição de Governo são pouco claros ou até desanimadores para Maia: na semana passada, por exemplo, Bolsonaro disse que não interferiria na disputa pelo comando da Câmara, mas pontuou que "existem outros candidatos muito bons".
Por conta da interlocução que possui com várias legendas, inclusive de oposição, Maia, por ora, segue favorito ao cargo. Porém, sem esse aval de Bolsonaro, os votos dos aliados do capitão reformado do Exército podem se diluir entre outros cinco postulantes, João Campos (PRB-GO), Alceu Moreira (MDB-RS), Luciano Bivar (PSL-PE), Delegado Waldir (PSL-GO) e Capitão Augusto (PR-SP). Outros nomes que já se colocaram na disputa são: Fernando Giacobo (PR-PR), Fábio Ramalho (MDB-MG) e João Henrique Caldas (PSB-AL). Uma frente de esquerda, formada por PSB, REDE, PCdoB, PDT, PSOL e PT ainda pode lançar um nome, mas com reduzidas chances de sucesso.
A indicação de Mandetta cria um problema adicional para os planos de Maia. O grupo de partidos de centro-direita que dá sustentação ao presidente da Câmara, o chamado Centrão, já começou a se queixar do que considera o tamanho desproporcional dado ao DEM na Esplanada dos Ministérios. Partidos como o PR e o PP, que têm muitos deputados simpáticos a Bolsonaro, consideram que um político de outra legenda deveria ser eleito para a presidência da Casa, para evitar uma excessiva concentração de poder nos quadros dos democratas. O próprio Maia fez queixas reservadas às nomeações de três deputados do seu partido para o governo, por considerar que isso atrapalha sua campanha pela chefia da Câmara.
Discurso X prática
Com a nomeação de Mandetta, Bolsonaro também joga por terra a sua meta de campanha de que seria intolerante com a corrupção. O deputado é investigado pelos crimes de tráfico de influência e fraude à lei das licitações. Os delitos teriam ocorrido no período em que foi secretário municipal de Saúde de Campo Grande (MS).
Os outros dois indicados pelo DEM também são alvo de denúncias. Tereza Cristina é suspeita de conceder incentivos fiscais à JBS de maneira irregular quando foi secretária da Agricultura em Mato Grosso do Sul. Ambos negam os crimes. Já Lorenzoni admitiu que recebeu recursos de caixa dois da JBS em 2014, mas o inquérito contra ele foi arquivado.
Sempre que questionado sobre o envolvimento desses seus subordinados, Bolsonaro diz que confia neles. No domingo passado, por exemplo, afirmou que Tereza goza de toda a sua confiança. “Eu também sou réu no Supremo. Tenho que renunciar? Ela já foi julgada? É apenas um processo representado, [assim] como já fui representado umas 30 vezes na Câmara e não colou nenhuma”, afirmou à Agência Brasil.
José Eduardo Faria: O Brasil pós-eleição
É preciso entender a dinâmica da política para julgá-la no âmbito do regime democrático
Pelo que disseram os candidatos em suas campanhas, o resultado da eleição presidencial não trouxe novidades. Mostrou a crise da democracia representativa, que não atende aos valores e às aspirações dos eleitores. Revelou que as paixões políticas cederam vez ao maniqueísmo, ao desconcerto e à perplexidade. Sinalizou que a radicalização dos extremos só foi possível por causa da decomposição das bases de centro-esquerda e centro-direita. E deixou claro que, num contexto de fragmentação partidária, que marca um ponto de inflexão na crise de legitimidade das instituições, o desafio é refletir sobre a política e suas possibilidades e seus limites.
Mas em que medida a insatisfação generalizada pode produzir transformações democráticas, a começar pela reconstrução do sentido de responsabilidade, pela recuperação da noção de estratégia e pela formulação de um projeto de nação? Teria sido possível evitar que o segundo turno se resumisse à alternativa entre ceticismo e melancolia, cinismo e pragmatismo?
A votação obtida pelo candidato da direita, cujo discurso se resumiu à promessa de ordem e à manifestação do desejo de que o País de hoje volte a ser o de 40 anos atrás, apontou a disseminação, num segmento expressivo do eleitorado, da ideia de que a política é corrupta e dispensável. Nesse sentido, basta ver o que têm afirmado os parlamentares eleitos por esse eleitorado. O problema, contudo, é outro. Até que ponto uma postura antipolítica é melhor do que uma má política? Desqualificar a política não é também um modo de renunciar à representação de interesses e às aspirações de igualdade, inclusão e justiça?
Na perspectiva realista dessas indagações, lembro o ano de 1999, quando, ao assumir seu segundo mandato, Fernando Henrique enfrentou uma crise cambial e foi objeto de pedido de impeachment apresentado pelo PT. Para rechaçá-lo o presidente loteou postos típicos da burocracia estatal entre partidos sem credibilidade moral. A estratégia deu certo, mas irritou parte da comunidade uspiana, a ponto de um professor emérito, próximo do PT, tê-lo acusado de “ser uma personalidade insensível às misérias da condição humana”. Em 2002, eleito pelo partido que formulara o pedido de impeachment, Lula foi denunciado no caso do mensalão e também loteou o Ministério para não cair. Nas duas ocasiões, as justificativas de membros da comunidade acadêmica próximos ao PT e ao PSDB foram iguais. Não se faz política se não se puser a mão na massa fecal em que se converteu o presidencialismo de coalizão, disseram os primeiros. Entre os segundos, outro docente emérito da USP afirmou que, apesar da politicagem escrachada matar a política, não se faz política sem dissimulação, troca de favores e indulgências. Por razões históricas, afirmou, no Brasil a política obedece a três premissas: o exercício do poder confunde-se com a gestão de recursos escassos, essa gestão invariavelmente cruza a zona cinzenta da amoralidade e como a política é competição é preciso que os políticos e governantes criem espaços de tolerância para certas faltas, sem os quais é impossível governar (Cf. J. A. Giannoti, Estadão, 19/6/2005).
Não é o caso de retomar os clássicos do pensamento social brasileiro para discutir a moralidade pública e as implicações éticas do presidencialismo de coalizão. É, sim, o caso de rever expectativas com relação à política, para saber se ela é ou não prescindível e examinar se não esperamos dela o que não pode proporcionar numa sociedade como a nossa. É preciso entendera dinâmica da política, para julgá-la no âmbito de um regime democrático. A democracia é um modelo político em que os fins em confronto são múltiplos e muitas vezes colidentes, dada a diversidade de atores econômicos e sociais.
As democracias consolidadas são um sistema cujas instituições e regras constituem uma urdidura capaz de absorver insegurança e garantir estabilidade. Mas por se mover no terreno pantanoso da instabilidade e do desequilíbrio, esse sistema é vulnerável ao questionamento de valores, à intolerância e à indeterminação das identidades políticas. Por isso a efetividade da democracia está condicionada à sua capacidade de aprender a lidar com contingências, desenvolver sistemas de prevenção e gerir conflitos decorrentes do aumento da complexidade socioeconômica. Para tanto, contudo, são necessárias lideranças políticas que a democracia, paradoxalmente, não tem formado.
A crise de moralidade pública é um dos sintomas da patologia da política brasileira, tendo sido decisiva no resultado do pleito. Mas para enfrentar essa crise é necessário afastar esse paradoxo, criando as condições para que a dinâmica democrática abra caminho para lideranças novas, comprometidas com as liberdades públicas, e não para um populista incapaz de entender que governar não é bater na mesa, fazer ameaças ou citar a Bíblia, mas articular apoios, formular políticas públicas e implementar programas. Assim, o que se tem hoje é um cenário de intolerância e mediocridade, de uma crise potencial de governabilidade e de risco de ameaças aos marcos constitucionais, resultante da simbiose entre a fragmentação do sistema partidário, o oportunismo de suas lideranças, a debilidade dos mecanismos de mediação, o negativismo dos eleitores e a opção dos candidatos que disputaram o segundo turno por se desqualificarem reciprocamente, vendo-se não como adversários, mas como inimigos, recusando-se a aceitar que o outro faz parte de sua sociabilidade.
Como essa simbiose tende a sobrecarregar a capacidade adaptativa dos sistemas governamentais e a agravar a desagregação da sociedade, no cenário pós-eleição ainda não dá para saber se o que nos espera é a “floração do esteio” ou, o que é mais provável, “uma noite polar, glacial, sombria e rude”, como disse Max Weber em célebre conferência.
*José Eduardo Faria, Professor da USP e da GVLAW
Demétrio Magnoli: O pânico dos intelectuais
Desde o 28 de outubro, dia do triunfo de Bolsonaro, os intelectuais universitários —ou, ao menos, grande parte deles —entraram em transe. Uma aflição incontida os leva a acreditar nos artefatos retóricos que produziram antes do desenlace, de olhos postos no embate eleitoral. Pelo que vi e ouvi, nossos acadêmicos creem que um “neofascista” tomou o poder e consolidou o “golpe do impeachment”. De fato, acreditam que nossa democracia implodiu, e já vivemos sob um embrionário regime de força. Não vale a pena refutar ideias tão extravagantes. Mais útil é investigar como pessoas cultas são capazes de ceder a tais desvarios. Suspeito que isso tenha relação direta com o medo — mas não exatamente o medo do autoritarismo de Bolsonaro.
Intelectuais, no sentido em que uso aqui o termo, geralmente são funcionários públicos. Suas vidas, seus salários e suas aposentadorias dependem do Estado. Medo de perder emprego ou renda — eis uma hipótese tentadora para explicar o fenômeno em curso. Se a chama do autoritarismo pulveriza a democracia, nenhuma lei ou tribunal protegeria os direitos dessa parcela do funcionalismo encarregada de pensar. O medo, porém, estende-se bem além disso.
Bolsonaro foi alvo de mais manifestos de intelectuais e artistas que o comum dos candidatos não petistas. A tradição moderna de manifestos eleitorais merece exame sociológico. Artistas os assinam pois cultivam a reconfortante ilusão de que seus fãs têm interesse em saber o que eles pensam. Intelectuais, por outro lado, têm plena ciência de que suas preferências eleitorais não mudam nem um mísero voto, em Belford Roxo ou no Leblon. Ao contrário do que parece, eles não assinam manifestos para impulsionar um candidato ou partido, mas para beneficiarem a si próprios.
Manifestos oferecem prestígio a quem os firma —e prestígio é o que buscam, acima de tudo, os intelectuais. A assinatura no pé do texto reafirma uma conexão ideológica, renova um tecido de cumplicidades sentimentais, valoriza um nome por meio da associação a outros e o recoloca em circulação no mercado das ideias. É uma iniciativa de marketing heterodoxo que difunde uma marca e, potencialmente, amplia oportunidades profissionais. A classe dos caçadores de prestígio teme a perda coletiva de prestígio sinalizada pela ascensão de Bolsonaro ao Planalto.
O governo central exerce forte influência sobre o valor de mercado dos intelectuais universitários. Do poder público depende o financiamento das universidades federais. Ministérios e empresas estatais recrutam na academia assessores para seus órgãos de direção e incontáveis comissões técnicas. Os partidos governistas recorrem aos conselhos de acadêmicos. Nas mesas de jantares de Brasília, administradores públicos, políticos e empresários reservam lugares para os pensadores profissionais. O governo Bolsonaro tende a promover uma desvalorização massiva dos intelectuais. Daí decorre o pânico viscoso que goteja nas universidades.
Desde o fim da ditadura militar, o fenômeno só tem um precedente, de escassa relevância, no efêmero governo Collor. Na principal transição política da Nova República, de FH a Lula, a classe dos intelectuais conservou intacto seu prestígio —ainda que, naturalmente, tenham ocorrido transferências de valor no interior dela. O cenário muda por completo quando o Planalto passa ao controle de um governo hostil à imensa maioria dos intelectuais universitários. O pânico tem sentido, mas não o sentido expresso nas palavras doídas dos intelectuais.
O governo Bolsonaro certamente desafiará tanto as instituições democráticas quanto a plena vigência das liberdades públicas e individuais. A democracia, porém, não foi abolida. Não vivemos num “regime de exceção” instalado pelo “golpe do impeachment” e sedimentado com o triunfo do candidato de extrema direita. Os gritos roucos de alerta que emanam das universidades são traduções equívocas da percepção dos intelectuais de que lhes fecham as portas de uma casa acolhedora. Os intelectuais enganam a si mesmos — e, no processo, enganam a opinião pública.
Vinicius Torres Freire: Névoa forte um mês antes da posse
Economia pode emperrar com planos genéricos e ambiciosos demais de reformas
Faz três semanas, o país está entretido com a remontagem das peças do Lego Ministério do presidente eleito, Jair Bolsonaro. De seu plano de ação, sabe-se apenas de reformas ainda indistintas em uma névoa de ambições grandes. No entanto, afora a semana de festas, falta um mês para a posse.
Em parte, o jogo da transição interessa, pois se trata de definição de grupos de poder, de alianças sociais (ou da falta absoluta delas) ou de preliminares de reformas graves na administração e nas políticas públicas.
Em parte, se trata apenas de fetichismo, da tentativa de chegar ao corte prometido em campanha, a um número cabalístico e populista de ministérios, o que na imaginação popularesca passa como “corte na carne”.
Pode bem ser que o governo tenha planos secretos. Mas a gravidade anormal da situação econômica requer urgência em certas decisões.
O governo de transição de Bolsonaro pretendeu por um momento votar a reforma da Previdência de Michel Temer, que pouco antes chamara de “porcaria”. Dada a indiferença do Congresso, cogitou aprovar pedaços apenas do projeto temeriano lipoaspirado.
No caso de reforma alguma em 2018, diz que vai começar do zero, propor uma reforma dupla e gigante (a do sistema atual e a criação de um novo, de poupança individual), de elaboração complicada e aprovação mais ainda, que pode levar o 2019 inteiro no Congresso.
Esse prazo dilatado em si mesmo já seria um problema, mas o menor deles. Uma reforma mais ambiciosa, de caráter duplo, em um Congresso novo, com velhas lideranças dizimadas, conduzido por uma coordenação política inexperiente e ainda incompleta tende a gerar incerteza, que desidrata o crescimento econômico desde 2014, inclusive o de 2018.
Haverá mais poças visguentas de incerteza pelo caminho, a julgar pelas vastas ambições e pensamentos ainda imperfeitos do futuro überministro da Economia, Paulo Guedes.
Além de coordenar a organização de seu megaministério, Guedes diz que pretende implementar um plano amplo de mudança dos impostos federais.
Além disso e ao mesmo tempo, reduziria as proteções comerciais (impostos de importação e outras), que guarnecem empresas brasileiras.
Em si, assim genérica, a ideia é boa. Mas nada se sabe do ritmo de proposição e implementação dessa reforma comercial e tributária (dependente de leis novas). Mais sabido é o impacto que tal intenção de mudança pode ter sobre planos empresariais.
Impostos, proteções comerciais e de outra espécie definem parte da rentabilidade de um empreendimento. Quanto mais incertas e amplas as mudanças, mais empresas podem ficar com o investimento na retranca. Não é destino ou previsão de fracasso, de confusão inevitável. Mas confusão pode haver sem que se explicitem sequência, viabilidade e transparência dos custos e dos benefícios da mudança tributária.
Muito plano de pré-governo é mera ficção, que se desmancha em realidade assim que o ministro toma pé do que se passa em sua pasta ou conhece projetos de longo prazo propostos e tocados pelos técnicos estáveis. Outros projetos se desmancham no ar ou são revistos no confronto político com o Congresso ou com a sociedade. Mas certos planos fundamentais têm de ser claros e prioritários.
Ambição demasiada cria incerteza e amplia riscos, o que pode emperrar a economia, o que, por sua vez, azeda o ambiente para reformas: entra-se em um pântano, em um círculo vicioso.
Elio Gaspari: A reunião da irresponsabilidade fiscal
Para quem temia que depois da eleição viesse mais do mesmo, ressurge a maldição do príncipe de Salinas no romance “O Leopardo”: “Depois será diferente, porém pior”
No mesmo dia em que anunciou um “momento de regeneração”, Jair Bolsonaro foi a uma esquisita reunião de governadores eleitos copatrocinada pelo paulista João Doria. Nada havia sido combinado com sua equipe. O que muitos governadores querem é suspender as exigências e os efeitos da Lei da Responsabilidade Fiscal. Uma legítima superpedalada, capaz de superar os çábios da “contabilidade criativa” que custou a presidência a Dilma Rousseff.
Como o presidente eleito ainda não desceu do palanque, fez brincadeira com a sua presença no conclave: “O que eles querem, eu também quero, dinheiro”. Antes fosse, o que eles querem é atropelar a lei que obriga os Estados a limitar em 60% o comprometimento das receitas com o pagamento de despesas de pessoal
O Rio está com um comprometimento de 81%. Minas Gerais, 79% e o Rio Grande do Sul, 78%. Isso para não se falar no campeão, o Rio Grande do Norte, com 88%. Ao todo, são 17 os Estados que ofenderam a LRF, mas nove governos comportaram-se como deviam.
Os governadores querem mais dez anos de prazo para cumprir uma lei de 2000 e prometem um conjunto de medidas para buscar o equilíbrio financeiro. Velha conversa, como a do Supremo Tribunal Federal que quer o aumento para já, prometendo o fim dos penduricalhos dos juízes para depois. Ademais, dentro de dez anos os governadores serão outros.
Bolsonaro deveria ter desarmado a cilada da reunião, expondo a irracionalidade do pleito. Doria, que governará o Estado que exibe melhor desempenho (54% de comprometimento, graças a Geraldo Alckmin), poderia ter evitado a ribalta.
Para quem temia que depois da eleição viesse mais do mesmo, ressurge a maldição do príncipe de Salinas no romance “O Leopardo”: “Depois será diferente, porém pior”.
REGISTRO
Foram muitos os nomes que entraram na dança para a cadeira de ministro das Relações Exteriores, mas o nome do diplomata Ernesto Araújo foi o primeiro a surgir, logo depois do segundo turno.
CONTINUIDADE
Quando Lula era presidente, o chanceler Celso Amorim chamou-o de “nosso guia”. Ernesto Araújo anuncia que assumirá o cargo certo de que a “mão firme e confiante de Bolsonaro nos guiará”.
BILATERAL
As “caneladas” de campanha de Bolsonaro deram à sua política externa dois resultados:
1) Submeteu o chanceler brasileiro a uma molecagem do governo egípcio porque prometeu levar a embaixada brasileira para Jerusalém. Fez que não notou.
2) Demonizou a participação de cubanos no programa “Mais Médicos” e provocará a retirada de oito mil profissionais. Segundo a Confederação Nacional dos Municípios, 1.575 localidades ficarão sem médico.
Daqui até a posse ele perceberá que relação bilateral tem dois lados.
MÉDICOS
Com a partida dos médicos cubanos, os novos ministros da Saúde e da Educação poderiam examinar as exigências para que médicos brasileiros formados no exterior revalidem seus diplomas para trabalhar em Pindorama.
A lei exige que o médico esteja “em situação legal de residência no Brasil”, mas o programa do governo não diz quanto tempo demorará o processo de revalidação.
Enquanto isso, o que faz o médico que se formou nos Estados Unidos e trabalha num hospital de Boston, vende limão na praia?
Eremildo é um idiota e acha que os médicos têm direito a uma reserva de mercado. Mesmo assim, por cretino, acredita que pode dar entrada na burocracia mesmo que o médico more num dos anéis de Saturno, desde que cumpra todas as exigências posteriores.
BANCO CENTRAL
Com tanta gente querendo ir para o governo, o presidente do Banco Central, Ilan Goldfajn, preferiu ir para casa.
Sentou na cadeira em 2016, com a economia em pandarecos, e presidiu o BC falando pouco e fazendo o certo, longe dos holofotes. Leva consigo o estilo de economistas como Pedro Malan e Otávio Gouveia de Bulhões.
PALPITE
Um veterano conhecedor do funcionamento do Palácio do Planalto acredita que Jair Bolsonaro restabelecerá a rotina da “Reunião das Nove” que vigorou nos anos dos generais.
Pelo desenho de hoje, nela sentariam o presidente, o general Augusto Heleno, o economista Paulo Guedes e o deputado Onyx Lorenzoni. Trocando o ministério da Defesa pelo Gabinete de Segurança, logo depois da escolha de Sergio Moro para a Justiça, o general tornou-se um ministro que tem sala no Planalto. Não é pouca coisa.
RENOVA
O movimento Renova, que elegeu 16 parlamentares em diversos partidos, pretende se organizar de forma inédita no parlamento. Realizará reuniões periódicas e seminários para discutir projetos com empresários e organizações da sociedade civil.
SUPERPODERES
O economista Paulo Guedes, futuro “Posto Ipiranga” da economia, coordena 20 grupos temáticos.
Tomara que dê certo. Em 2004 o comissário José Dirceu coordenava 37 grupos de trabalho na Casa Civil. Um cuidava do hip hop.
DANÇA MINISTERIAL
Nos próximos dias, Bolsonaro concluirá sua dança ministerial. Anunciou fusões, desistiu, juntou abacaxi com banana e terminará cumprindo a sua promessa de redução do número de pastas.
Feito o serviço do primeiro escalão, começará o remanejamento de setores administrativos.
Nessa altura, vale lembrar uma história ocorrida com um oficial do Exército. Como capitão, serviu num quartel que tinha a forma de um quadrilátero. Voltou a ele como general e, surpreendido, comentou com um velho sargento:
— Fico feliz em ver que a barbearia continua no mesmo lugar.
O sargento esclareceu:
— General, a barbearia mudou tanto de lugar que deu a volta.
TUNGA NO LIVRO
As guildas dos livreiros e editores responderam ao que foi publicado aqui na semana passada contra a proposta que encaminharam a Michel Temer, para tabelar a mercadoria que vendem, limitando os descontos a 10% no primeiro ano de circulação de um volume.
Deram seus argumentos, reforçando-os com uma particularidade: “Para utilizar um exemplo conhecido do autor, seu título ‘A ditadura envergonhada’, lançado em 2002, com preço sugerido de R$ 40, custa hoje quase 50% a menos do que seu valor nominal de 15 anos atrás — corrigido pelo IGP-M, seria de R$ 115,80. No entanto, sua edição atual é vendida por R$59,90”.
Não entenderam nada. O signatário alegra-se quando seus livros são vendidos mais barato. Se alguém quiser vendê-los por menos de R$ 59,90, ótimo. Como ensinou o Conde Francisco Matarazzo, “mercadoria não tem preço de mercado, terá preço se tiver quem a compre”. Quando ele morreu, em 1937, era o homem mais rico do Brasil, com 20 bilhões de dólares em dinheiro de hoje.
Ascânio Seleme: Crimes de ódio, lá e aqui
Os números são impressionantes. Os crimes de ódios relatados nos Estados Unidos cresceram 17% de 2016 para cá, e vêm aumentando de maneira regular e consistente desde a eleição do presidente Donald Trump. No ano passado, 7.100 crimes desta natureza foram registrados, sendo que três em cada quatro ocorreram por questões raciais ou étnicas. Religião e orientação sexual são as outras duas motivações mais importantes de crimes de ódio, segundo relatório do FBI publicado na quarta-feira pelo jornal The New York Times.
Os dados divulgados estão com certeza subestimados. Apenas 12,6% das delegacias e outras instituições policiais relataram ao FBI crimes de ódios em suas jurisdições. Os departamentos de polícia de Miami e Las Vegas, por exemplo, não notificaram um caso sequer em 2017, o que é claramente impossível. Por outro lado, crimes que ficam apenas no campo da agressão verbal ou física muitas vezes não são sequer denunciados pelos agredidos, que não acreditam que a sua notificação vá resolver alguma coisa.
O elemento que causou o aumento expressivo nesse tipo de crime foi a crescente tensão política no país desde a posse de Trump. Nenhuma dúvida sobre a enorme mudança de clima, em se comparando o governo do presidente Barack Obama com o do seu sucessor. Os Estados Unidos pularam de um estado de espírito tranquilo e quase passivo, sob Obama, para um de permanente excitação, com Trump. O exemplo americano pode ser muito útil no Brasil, que, em 45 dias, inaugura novo governo que, sob todos os aspectos, quer se parecer com o de Donald Trump.
Um chefe de estado que transpira intolerância, como é o caso do presidente americano, contamina todo o tecido social. Se o presidente pode ser agressivo e destilar ódio, por que o cidadão não pode? A pergunta é ridícula, mas ela é sistematicamente feita nos Estados Unidos por pessoas suscetíveis, de perfil psicológico frágil e limitadas cognitivamente. E as respostas aparecem nesses dados coletados pelo FBI.
O presidente eleito do Brasil vem moderando de maneira consistente seu velho e conhecido discurso de ódio e intolerância. Se Bolsonaro tivesse mantido o mesmo tom, correríamos altíssimo risco de ver prosperar no país a mesma onda que atravessa os Estados Unidos desde a chegada de Trump. Também arriscamos trilhar o mesmo caminho se o futuro presidente tiver uma recaída e retomar seu antigo e antiquado perfil, hipótese que não pode ser de maneira alguma descartada. É cedo para dizer que Bolsonaro mudou.
São raras no Brasil agressões geradas por motivação política, como a do atentado contra o próprio Bolsonaro e o assassinato do petista Moa do Katendê. O que temos por aqui, e em abundância, são as agressões de natureza racial e de gênero, e os crimes em razão da orientação sexual do agredido, que são quase banais no Brasil. Esses crimes podem aumentar ainda mais se o futuro líder da nação não consolidar esta sua mudança de estilo.
Não discriminar e não deixar que se discrimine qualquer um e em nenhuma hipótese. Repudiar a agressão e o agressor. Deter, julgar e prender o agressor. Promover práticas de inclusão, investir, apoiar e priorizar as minorias. Bolsonaro deverá não apenas suavizar o seu discurso, mas efetivamente mudá-lo. O brasileiro saberá agradecer um sinal de grandeza de seu presidente. Mesmo os que o apoiam, os que votaram nele, e que são hoje a maioria no Brasil, vão aceitar e aplaudir um líder mais moderado.