Bolsonaro
William Waack: Ordens e internet
É notório que Jair Bolsonaro governa para e pela internet. Com resultado que está ficando muito nítido pelos trabalhos da CPI da Covid: a existência de uma espécie de dualidade de mando com prejuízos diretos no combate às diversas crises. O pecado original foi o papel importantíssimo das redes sociais na vitória dele em 2018. São ferramentas indispensáveis para ganhar eleições, mas instrumentos precários para governar – e é pensando nelas que Bolsonaro baseia suas ações.
“Postagens na internet não são ordens”, disse seu ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello, ao depor na CPI da Covid num esforço bem orientado por advogados para desmentir o óbvio. Sim, no caso do governo Bolsonaro, são ordens (mas em juridiquês não são). O próprio Pazuello postou um célebre vídeo – na internet – ao lado de Bolsonaro, dando conta de que um manda (o presidente) e o outro (o general intendente) obedece.
“Mas era coisa de internet”, desculpou-se Pazuello. O efeito é o mesmo: Bolsonaro consagrou essa dualidade de mando dentro do próprio governo. Dedicado como sempre à atividade de animador de redes digitais, suas “ordens” que não são “ordens” servem no mínimo (com muita boa vontade) para criar confusão interna. No caso da pandemia, a CPI foi razoavelmente bem-sucedida também em demonstrar a existência de uma estrutura paralela de assessoramento governamental que, no fundo, é a avaliação de quais conteúdos obtêm melhor resposta nas redes digitais que Bolsonaro pretende atingir.
Ocorre que dualidade de mando paralisa qualquer administração complexa, como é o caso do governo brasileiro. Na prática, Pazuello e seus antecessores se viram divididos entre o que eram as posturas recomendadas pelas áreas técnicas (na questão de uso de medicamentos, por exemplo) e o que o presidente pregava nas suas redes – além da exigência aos ministros de um tipo de lealdade já fartamente comparado ao “Führerprinzip”, a ideia de que o líder tudo sabe e nunca falha.
O que aconteceu no combate à pandemia já era repetição do que afetara anteriormente setores como economia ou política externa (mas não só). Na economia, por exemplo, Bolsonaro promoveu grande alarido, com enormes prejuízos para a Petrobrás, ao dizer que ia interferir na formação de preços de combustíveis. Repetiu a “fórmula” com o Banco do Brasil, deixando os agentes econômicos nos mais diversos níveis preocupados sobre qual seria, afinal, o limite da intervenção estatal. Era o que vinha dizendo o ministro da Economia ou o que o presidente falava para sua turma na internet?
Na política externa essa “dualidade de mando” criou uma situação esquizofrênica para o principal parceiro comercial brasileiro, a China. Valem os ataques que Bolsonaro reitera nas redes ao regime chinês ou as súplicas dirigidas a Pequim por parte de ministros (como a da Agricultura) e governadores (como o de São Paulo) pela manutenção de laços para garantir exportações e suprimento de insumos para vacinas?
Bons observadores que são da cena brasileira (Pequim sabe cuidar de seus interesses), talvez os chineses se orientem pelo comportamento de duas instâncias políticas hábeis até aqui em lidar com Bolsonaro. Uma é o STF, que lhe impôs limites severos e pensa sempre uma jogada política adiante do presidente e que não mais responde às provocações feitas por ele através das redes digitais.
Outra instância política é a do Centrão, que congrega notórios especialistas em sobrevivência política e defesa dos próprios interesses. Os articuladores da base de sustentação de Bolsonaro no Legislativo chegaram ao acordo tácito de deixá-lo falando sozinho. Com eles não existe mais dualidade de mando, pelo menos no que se refere à distribuição de verbas entre parlamentares: tomaram conta disso, e deixaram o que tem de batata quente para ser decidido entre os ministros do Desenvolvimento Regional e o da Economia, por exemplo.
O resto é Bolsonaro falando para a internet.
Fonte:
O Estado de S. Paulo
https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,ordens-e-internet,70003720588
Malu Gaspar: Para escapar da CPI, Pazuello inventa a ‘coisa de internet’
Depois de muito tentar se esquivar da CPI da Covid, o ex-ministro da Saúde e general Eduardo Pazuello conseguiu no Supremo Tribunal Federal um habeas corpus para ficar em silêncio e evitar se incriminar. Mas a ordem do ministro Ricardo Lewandowski foi expressa: Pazuello podia, sim, ficar quieto sobre as coisas em que se envolveu, mas não podia mentir quanto aos atos de outras pessoas.
Criou-se então um dilema para o general. Ficando em silêncio, ele estaria dando à CPI o roteiro de seus crimes. E, não podendo mentir para proteger terceiros, seria obrigado a apontar as responsabilidades de Jair Bolsonaro no fracasso do combate à pandemia. Pazuello tinha ainda a opção de ficar quieto o tempo todo. Não teria sido o primeiro a fazê-lo numa CPI. Mas investiu-se de brios de militar e decidiu que não passaria para a história como um covarde. E, assim, produziu uma inovação simbólica dos tempos que vivemos: a “coisa de internet”.
Cada vez que alguém o questionava a respeito de uma ordem de Bolsonaro contra a vacina ou pela adoção da cloroquina como instrumento de política pública, lá vinha Pazuello dizendo que aquilo era “coisa de internet”, “postura de internet” ou algo do gênero.
Foi como ele explicou a resposta de Bolsonaro a um seguidor no Facebook. Pazuello acabara de anunciar a compra de 46 milhões de doses de CoronaVac numa reunião com governadores, mas o bolsonarista apelou na rede social para que o presidente não comprasse a vacina chinesa. “O povo brasileiro não será cobaia de ninguém”, escreveu Bolsonaro. “Qualquer coisa publicada, sem qualquer comprovação, vira TRAIÇÃO”, arrematou.
Para Pazuello, não foi nada demais: “Aquilo foi apenas uma posição do agente político na internet”. O próprio general teria cometido apenas uma coisa de internet ao declarar o inesquecível “um manda, o outro obedece”, no vídeo em que aparece prestando vassalagem ao capitão, logo depois de ter sido desautorizado via Facebook.
Segundo o que se depreende do discurso do ex-ministro-general, o que o presidente diz nas redes sociais ou em suas lives não tem caráter de ordem e não precisa nem ser verdade. São balelas que nem ele mesmo, Pazuello, levava a sério.
Teria sido melhor para o Brasil que fosse mesmo assim. Bolsonaro faria sua bravata virtual, os minions se agitariam e aplaudiriam, e no dia seguinte tudo voltaria ao normal.
Acontece que não é.
Se o que presidente da República fala nas redes ou aos microfones fosse apenas “coisa de internet”, o Butantan não teria feito três ofertas de vacinas ao Ministério da Saúde e ficado sem resposta. Pazuello não teria levado cinco meses para finalmente assinar o contrato com o Butantan e nem ignorado as ofertas da Pfizer por sete meses. O Exército brasileiro não teria iniciado a produção de 3 milhões de doses de cloroquina, mesmo sem demanda nem comprovação de eficácia em pacientes de Covid.
Se, no governo Bolsonaro, “coisa de internet” não fosse para valer, Paulo Guedes não teria sido obrigado a demitir um secretário da Receita que defendeu a volta da CPMF, o imposto do cheque. Tampouco teria recuado da tentativa de trocar o nome do Bolsa Família para Renda Brasil. E os fiscais do Ibama que, numa ação legal, inutilizaram o maquinário de comerciantes de madeira clandestina extraída da Amazônia, em 2019, não teriam enfrentado um procedimento administrativo por parte da chefia.
São apenas alguns exemplos entre muitos. Diga Pazuello o que quiser, nada mudará o fato de que Jair Messias Bolsonaro foi eleito fazendo “coisa de internet” e governa à base de “coisa de internet”. O compromisso do presidente com as “coisas de internet” é tão sério que suas lives de quinta-feira nunca falham, esteja ele onde estiver. É na internet que ele dá ordens, grita, desautoriza e constrange. É pela internet que ele convoca manifestações contra as mais diversas ameaças a seu sempre perseguido governo patriótico. E claro, é também via internet que se constata quais de suas “coisas de internet” são mesmo só bravatas que não devemos levar a sério.
Infelizmente para os brasileiros, as atitudes de Bolsonaro na condução da pandemia não estão entre as “coisas de internet” que devemos ignorar. Pazuello, pelo menos, não o fez. Preferiu dar uma desculpa esfarrapada a deixar transparecer, mesmo que de forma oblíqua, em que momentos o capitão mandou, e ele obedeceu, e em que outras ocasiões — se é que houve — ele foi apenas mais uma vítima do negacionismo presidencial. Com isso, o general afrontou a inteligência do distinto público, mas não decepcionou seu capitão. Provou na prática que, até hoje, o presidente manda e ele obedece. E isso, definitivamente, não é coisa de internet.
Fonte:
O Globo
Merval Pereira: Não há chance de dar certo
Além das mentiras já comprovadas do ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello, que o noticiário em tempo real já explora desde ontem, e os jornais de hoje estão certamente aprofundando, os depoimentos à CPI da Covid até agora estão desvelando a maneira primitiva com que as decisões não são tomadas no governo Bolsonaro.
Juntando com a operação da Polícia Federal realizada ontem sobre a venda ilegal de madeira para os Estados Unidos, denunciada pelo próprio governo americano, temos a prova cabal de que não é apenas a questão ideológica que interfere na formação de um governo totalmente disfuncional.
O (ainda?) ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, e diversos escalões do Ibama, inclusive seu presidente, foram apanhados por uma investigação sigilosa que incomodou Bolsonaro, que fez trocas no Ministério da Justiça e na Polícia Federal na tentativa de controlar as instituições do Estado brasileiro e viu-se surpreendido com a independência da PF.
Um exemplo típico, e fundamental, dessa disfuncionalidade é a crença de que as palavras de Bolsonaro nas redes sociais e nas lives fazem parte apenas do seu “etos político”, e não representam orientações do governo. Ao explicar a famosa frase “um manda, outro obedece”, Pazuello disse que era “uma frase de internet”, isto é, uma resposta para ajudar o político Bolsonaro, que estava sendo criticado por seus seguidores nas redes sociais porque o Ministério da Saúde havia anunciado a compra da CoronaVac, a “vacina chinesa” do Doria.Seria uma releitura abrutalhada de Maquiavel, que separava a ética política da ética moral, ou então de Max Weber, uma referência para os que querem ser servidores públicos conjugando a “ética da convicção”, dos princípios morais aceitos em cada sociedade, e a “ética da responsabilidade”, que prevalece na atividade política.
Se houvesse um lado B de Bolsonaro, que para fora do governo enviasse uma mensagem, e agisse com bom senso, não teríamos tido a tragédia sanitária de que Pazuello é cúmplice. Basta assistir ao vídeo da famosa reunião ministerial que precipitou a saída do ex-ministro Sergio Moro para ver que o Bolsonaro das redes sociais é o mesmo nas entranhas do governo.
Ao mentir na CPI, tentando livrar a cara do presidente, o ex-ministro da Saúde comete um “crime continuado”, mesmo fora do governo. Os fatos o desmentem. O caso do avião oferecido pelos Estados Unidos para levar oxigênio para Manaus, na crise sanitária ocorrida dentro da pandemia no Brasil, é exemplar da incapacidade de trabalho em equipe deste governo.
O ex-chanceler Ernesto Araújo não falou com o governo da Venezuela, nem com o dos Estados Unidos, por questões ideológicas. E também não encaminhou, segundo Pazuello, um pedido formal com as características dos cilindros que seriam apanhados na Venezuela para levar a Manaus. Já havia feito isso quando recebeu a carta da Pfizer oferecendo vacinas. Não comunicou ao presidente Bolsonaro porque supôs “que o governo tinha recebido a carta”.
Pazuello soube que havia um avião dos Estados Unidos pronto para trazer oxigênio, mas não fez nada, pois não lhe perguntaram nada, só informaram. Ernesto Araújo disse que cabia ao Ministério da Saúde dar as informações técnicas para o voo. Os dois não se falaram, demonstrando que as autoridades do governo tiveram comportamentos burocráticos durante a crise humanitária em Manaus.
Pazuello reafirmou uma visão provinciana das negociações internacionais sobre as vacinas. Disse que mostrou ao representante da Pfizer o tamanho do Brasil num mapa, assim como o presidente Bolsonaro dissera anteriormente que o mercado brasileiro era tão grande que poderíamos negociar o preço das doses. Deu tudo errado, e, ao final, compramos a vacina da Pfizer pelo preço definido no início das negociações, perdendo tempo e prioridade na distribuição das doses.
É um governo completamente disfuncional. Com esses depoimentos e declarações, não há a menor chance de dar certo.
Fonte:
O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/merval-pereira/post/nao-ha-chance-de-dar-certo.html
Pedro Cavalcanti Ferreira e Renato Fragelli: Governo fraco, soluções ruins
Uma leitura atenta do noticiário nacional, ao longo das últimas semanas, identifica sintomas eloquentes de uma sociedade que, envolta em conflitos internos, mergulhou voluntariamente na estagnação há quatro décadas. Somente as eleições de 2022 oferecem alguma esperança de correção de rumo, mas o quadro atual não permite alimentar grandes esperanças.
A reforma tributária, o mais importante item da pauta econômica em debate no momento, encontra-se num atoleiro. O relatório da Comissão Mista da Reforma Tributária divulgado pelo relator, deputado Agnaldo Ribeiro, mostra que o Congresso vem amadurecendo a compreensão do complexo tema. Até questões que costumam suscitar resistências de pessoas tão bem intencionadas quanto mal informadas, como a necessidade de haver uma alíquota única do IVA para todos os bens e serviços comercializados num mesmo município, parecem ter sido compreendidas por muitos legisladores.
Mas a aprovação de uma reforma tecnicamente consistente, sem graves concessões que comprometam sua eficácia, exigiria uma liderança e habilidade políticas inexistentes num governo capitaneado por Bolsonaro. Como pior do que manter temporariamente a desordem tributária atual seria aprovar definitivamente uma reforma ruim, tudo indica que o tema ficará para um futuro governo.
A sempre adiada privatização da Eletrobras segue no mesmo rumo. A MP original enviada pelo governo sofreu profundas alterações no Congresso que reduzem a atratividade da empresa para potenciais compradores privados, assim como criam incertezas que afetam outras empresas do setor elétrico.
Na nova versão da MP, a Eletrobras passaria ao setor privado, mas em seu lugar surgiria outra estatal gigantesca – a Eletronuclear – que herdaria as usinas nucleares e também Itaipu, além de ser obrigada a construir termelétricas movidas a gás em locais onde sequer há gasodutos. Dessa forma, a rentável Itaipu geraria os recursos para sustentar termelétricas economicamente inviáveis, além de outros penduricalhos, o que constituiria um subsídio cruzado injustificável.
Da mesma forma que no caso da reforma tributária, pior do que preservar por mais algum tempo a Eletrobras na mão do Estado seria aprovar uma privatização mal feita, de modo que tudo indica que a privatização ficará para um futuro governo.
Na Petrobras, a intervenção de Bolsonaro destinada a mudar a política de fixação de preços de combustíveis, baseada na paridade com os preços internacionais, apenas no intuito de agradar seus eleitores caminhoneiros, até agora não resultou em mudança naquela política. Isto porque o novo presidente, ao assumir o cargo, descobriu que não há outra política de preços economicamente viável. Mas já se pode prever que, como compensação ao capitão, a atual direção da empresa adiará as privatizações de refinarias, embora já haja uma decisão do Cade – bem como um Termo de Compromisso de Cessação de Prática assinado pela Petrobras – que prevê as privatizações.
Tampouco outras privatizações deverão avançar. Após o Ministério da Economia divulgar um detalhado inventário de participações acionárias da União que surpreendeu pela sua amplitude, as poucas privatizações ocorridas limitaram-se a vendas de subsidiárias de empresas estatais, bem como a licitações que transferiram ao setor privado a exploração de ativos – como aeroportos – de estatais mantidas. O estatista Bolsonaro repete a estratégia do PT que fazia concessões aos mercados de capitais, promovendo a contragosto algumas privatizações perfunctórias, mas limitava-as aos casos em que podia transferir ao setor privado apenas a exploração do serviço preservando a propriedade estatal do bem de capital.
No momento em que o Congresso discute a espinhosa PEC da reforma administrativa, cujo objetivo é racionalizar os elevados gastos com pessoal, o mesmo governo que enviou a PEC divulga um decreto oficializando o descumprimento do teto constitucional de remuneração de servidores. O próprio presidente da República é beneficiário direto do decreto. E a reforma proposta só valeria para novos funcionários, atrasando em décadas um ajuste necessário e o corte de privilégios.
As disfunções e a paralisia decisória ilustradas acima são o resultado de um governo sem maioria parlamentar chefiado por um político tosco sem convicções claras, além de um conservadorismo algo difuso mas extremamente reacionário. Após fomentar os mais diversos conflitos e tratar a pandemia com indescritível irresponsabilidade, Bolsonaro precisou buscar apoio no velho Centrão – que negou e atacou inúmeras vezes antes de abraçá-lo -, um bloco composto de 1/3 dos deputados para conseguir escapar do impeachment. Mas seus novos parceiros agora lhe impõem o preço do apoio sob forma de exigências cada vez mais caras, o que perpetua a paralisia.
Com a aproximação do calendário eleitoral, a sociedade se vê diante de um quadro desanimador. A principal candidatura de oposição, até o momento, é a de um ex-presidente envolvido em inúmeros escândalos de corrupção que governou durante um grande boom de commodities, o que lhe permitiu entrar para o imaginário popular como grande administrador e eleger uma neófita na política. As políticas equivocadas e distorcivas do segundo governo Lula foram aceleradas e ampliadas, por Dilma Rousseff. A Nova Matriz Econômica mergulhou o país numa profunda crise econômica que abriu espaço para a eleição de um primitivo anti-democrata, que não tem qualquer projeto significativo hoje além de sua sobrevivência política a qualquer preço.
Lula elegeu Dilma que, por sua vez, elegeu Bolsonaro. É preciso evitar que Bolsonaro eleja Lula. Não se pode escolher um projeto ruim, que provavelmente manterá o país em conflito e estagnado, substituindo-o por outro também ruim que deu errado no passado.*Pedro Cavalcanti Ferreira é professor da EPGE-FGV e diretor da FGV Crescimento e Desenvolvimento**Renato Fragelli Cardoso é professor da EPGE-FGV
Fonte:
Valor Econômico
https://valor.globo.com/opiniao/coluna/governo-fraco-solucoes-ruins.ghtml
Vinicius Torres Freire: Governo Bolsonaro passa a ter mais problemas com a polícia
O governo de Jair Bolsonaro deve ter problemas com a polícia por causa da CPI da Covid, a não ser que os senadores encomendem uma pizza bem podre ou que procuradores não despertem inquietos do seu sono profundo dos anos bolsonaristas. Pode ter mais coisa no mafuá, mas ainda há grande conivência das instituições, que estão disfuncionando.
A Polícia Federal bateu na porta de Ricardo Salles, vulgo Boiada, e turma Investiga corrupção na facilitação de contrabando de madeira ilegal. Um dos coronéis de Eduardo Pazuello engavetou a investigação de dispensas de licitação esquisitíssimas em obras do Ministério da Saúde, esclarecimento solicitado pela Advocacia-Geral da União, caso revelado pelo Jornal Nacional da Globo.
O TCU está com uma auditoria quase pronta sobre as omissões do Ministério da Saúde no combate à epidemia. O caso, porém, é meio ignorado pela “opinião pública” e ainda não apareceu no palco da CPI.
A gente quase toda esqueceu dos inquéritos das “fake news” e dos comícios golpistas _este trata do financiamento dos atos em favor de intervenção militar. Cozinham em banho-maria no Supremo. Quando vamos ter resultados? Quando a campanha bolsonarista disparar milhões de zaps na eleição de 2022 ou quando tentar um golpe contra o resultado das urnas?
Em parte por falta de dinheiro, em parte por incompetência, o governo Bolsonaro não oferece oportunidades para grandes negócios, embora esteja apenas no começo o empreendimento que é a Codevasf. Essa estatal que toca obras no interior pobre de Minas, Nordeste e agora Norte foi também entregue ao centrão e serve de lugar de desova de emendas parlamentares.
A grande obra de Bolsonaro é, claro, a montanha de cadáveres da epidemia, que mal começou a ser investigada.
A CPI ainda lida com o estrelato, o dela mesma e o das estrelas convocadas, não apenas as do general Pesadello, mas ministros e nomes graúdos. Falta precisão nas perguntas do inquérito, trabalho com documentos, cronologias de decisões, preparo mais fino.
Falta principalmente chamar quem participou das reuniões ditas “técnicas”, recebeu ordens e recomendações, assinou papeis, burocratas de carreira ou gente envolvida qualquer que tenha costas menos quentes e mais motivos para dizer a verdade.
Falta falar com gente de fora do governo. Onde estão os documentos e mensagens do caso da falta de oxigênio em Manaus? O que diz empresa fornecedora? O que dizem secretários de Saúde e hospitais sobre a falta de remédios para entubar pessoas quase à morte? Há papelada, mensagens e telefonemas que tratam disso tudo.
Ainda há uma moleza geral no tratamento dos escândalos dos tempos Bolsonaro, com a colaboração da Procuradoria-Geral da República. A rachadinha da familícia foi quase enterrada A muito custo, saiu a CPI da Covid. A CPI do desastre ambiental está atolada no Congresso, sem ao menos assinaturas suficientes.
O centrão é conivente com Bolsonaro. Arthur Lira, presidente da Câmara, é coadjuvante, e Rodrigo Pacheco, presidente do Senado, ora finge-se de morto na cripta, qual uma Julieta Bolsonaro.
Bolsonaro, enfim, cometeu dezenas de crimes de responsabilidade. É a encarnação cotidiana da falta de decoro e da ameaça autoritária. Tornou-se moda dizer que é apenas uma farsante, que não se deve levar a sério o que diz (o próprio general Pesadello sugeriu isso na CPI). A maior parte da elite brasileira tolera essa imundície; o impeachment é quase impossível. Mas há crimes suficientes para comer Bolsonaro pelas bordas.
Fonte:
Folha de S. Paulo
Bruno Boghossian: Mentiras de Pazuello na CPI são quase uma admissão de culpa
Eduardo Pazuello prestou um serviço à CPI da Covid. No primeiro dia de depoimento do general, os senadores queriam saber detalhes sobre a sabotagem do governo à negociação de vacinas e sobre a tentativa de empurrar cloroquina para a população. O ex-ministro mentiu tanto sobre esses assuntos que praticamente entregou aos investigadores uma admissão de culpa.
O general sabe o que fez à frente do Ministério da Saúde. Na CPI, ele tenta reescrever essa história porque sabe que a realidade é uma coletânea de atos que contribuíram para o agravamento da pandemia. Pazuello tentou se proteger e blindar o chefe Jair Bolsonaro, mas acabou mostrando que o governo tem medo de seus próprios delitos.
O ex-ministro tratou como um delírio a guerra pública de Bolsonaro contra a Coronavac –que hoje representa a maioria das doses aplicadas no país. Pazuello disse que o presidente nunca deu a ordens para desfazer qualquer acordo com o Instituto Butantan para adquirir a vacina.
O próprio governo, porém, fez propaganda desse veto. Em 21 de outubro, depois que Pazuello anunciou a compra, o número dois do Ministério da Saúde negou o acordo e disse que o fato havia sido “mal interpretado”. Orgulhoso, Bolsonaro afirmou publicamente que havia mandado cancelar o negócio. Se o general não mentiu à CPI, acusou o presidente de ter mentido a seus apoiadores.
Pazuello também tentou ocultar o papel do governo no incentivo ao uso indiscriminado de cloroquina. O general disse que a plataforma do Ministério da Saúde que recomendava o remédio até para bebês nunca havia entrado em operação. Em janeiro, no entanto, durante um evento com a participação dele, uma secretária da pasta anunciou que o sistema já poderia ser acessado para facilitar o “tratamento precoce”.
A CPI investiga as ações em que o governo desprezou a imunização e estimulou o uso de um medicamento ineficaz. O país já conhece essa história, mas as confissões indiretas do general facilitam o trabalho.
Fonte:
Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/bruno-boghossian/2021/05/mentiras-de-pazuello-na-cpi-sao-quase-uma-admissao-de-culpa.shtml
Maria Cristina Fernandes: A CPI e o levante do Estado contra o Estado
O depoimento do ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello foi precedido de um levante do Estado contra o Estado. Dias antes, o presidente da República falhara nas duas tentativas de mobilização a seu favor num momento em que se vê acuado pela Comissão Parlamentar de Inquérito da Covid. Teve uma fria recepção do Alto Comando do Exército na discreta visita que lhe fez na semana passada e assistiu a pífia manifestação no sábado, em Brasília, em que apareceram mais caminhões e cavalos que apoiadores. Na véspera do depoimento mais aguardado da CPI, veio o levante, em três frentes.
O “Antagonista” revelou o edital que permitiria a compra pelo Ministério da Justiça, em pregão eletrônico, de um sistema de processamento de dados que permite cruzar informações de redes sociais de mais de 15 mil alvos. Entre os usuários beneficiários estariam as secretarias de segurança pública de 13 unidades da federação. Horas depois, o “UOL” revelaria que, por obra e graça do vereador Carlos Bolsonaro, a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) havia sido excluída do rol de instâncias que teriam acesso ao novo sistema.
Também na noite que antecedeu o depoimento, o “Jornal Nacional” revelaria indícios de fraudes em contratos do Ministério da Saúde no Rio durante licitações conduzidas durante a gestão Pazuello. A superintendência do ministério no Rio, conduzida por um coronel, contratou, sem licitação, empresários que já foram condenados pela Justiça Militar em fornecimento à Aeronáutica.
E, finalmente, na manhã em que Pazuello era aguardado na CPI, Brasília foi sacudida pela operação da Polícia Federal que resultou em busca e apreensão na casa e no gabinete do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, no afastamento do presidente e da diretoria do Ibama e na quebra de sigilos bancário e fiscal de todos. A investigação apontou desvio de conduta dos alvos na validação de madeira ilegal exportada.
A operação foi recebida como uma resposta da PF contra o afastamento do superintendente da corporação no Amazonas que havia denunciado Salles por obstrução de seu trabalho na fiscalização de madeireiros. O que lhe deu mais relevância, porém, foi o fato de ter nascido da congênere do Ibama nos Estados Unidos, que detectou o carregamento de madeira com documentação ilegal em território americano, e, principalmente, o fato de a operação ter contornado a Procuradoria-Geral da República.
Já havia indícios de que foi a Abin que reagiu ao escanteamento no pregão do “aparelho espião” pelo Ministério da Justiça. Também parecia claro terem saído dos órgãos de controle dos gastos federais as informações sobre a esparrela de obras pelo Ministério da Saúde no Rio. Foi a operação contra Salles, porém, que demonstrou, inequivocamente, a PF contornando uma das instituições que mais blinda o presidente da República, a PGR. É o Estado contra o Estado que está em curso.
O mal do ex-ministro, portanto, nada teve de súbito. A última inquirição antes da suspensão do depoimento, feito pela senadora Eliziane Gama (Rede-MA), foi sobre a contratação de obras em galpões do Ministério da Saúde no Rio que nada tinham a ver com a covid. O ministro disse que a dispensa de licitação se justificara pela insegurança das instalações (quando a maioria trabalha de casa) e que o serviço não seguira adiante.
Ao longo de cinco horas Pazuello foi capaz de dizer que presidente Jair Bolsonaro ordenava uso da cloroquina, aglomerações e boicote à vacina aos seus seguidores nas redes sociais mas não ao seu ministro da Saúde. Parecia convencido de que o governo lhe daria proteção. Foi quando a CPI se aproximou de seus próprios erros, como no caso das obras no Rio, que Pazuello parece ter sido acometido do medo de que, assim como faltara a Salles, a retaguarda de cima também poderia não ser suficiente. Foi a primeira vez que seu advogado sugeriu o uso do habeas corpus para não falar. Pazuello o rejeitou mas, em seguida, despencou.
Tampouco parece ter sido coincidência que o levante do Estado contra o Estado tenha deixado mais explícitas as tensões internas da CPI. O senador Ciro Nogueira (PP-PI), de amigo-irmão do senador Renan Calheiros (MDB-AL), passou à chantagem ao vivo e em cores. O relator buscava saber de Pazuello a razão de ter aceitado a intermediação da vacina da Bharat Biontech pela Precisa, empresa em litígio com o Ministério da Saúde, quando Ciro o aparteou com uma ameaça de convocação do consórcio de governadores para explicar a pressão pela Sputnik.
Também ficou explícita a insegura coesão da bancada de oposição. A maioria de sete é garantida pelos dois senadores do PSD, cujo presidente, Gilberto Kassab, tem dado sinais cada vez mais eloquentes de que estará no barco petista em 2022. Assim o fará também o senador Otto Alencar (BA), aliado do PT em seu Estado. O presidente do colegiado, Omar Aziz (AM), porém, sinalizou ontem, mais uma vez, que a ameaça de investigação sobre os Estados o mantém na fronteira dos dois blocos da CPI. Quando o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) quis mostrar documento do inquérito que corre no Amazonas que desmentia Pazuello ele alegou sigilo daquela investigação.
A despeito das tensões internas, a pressão da CPI foi capaz de fazer Pazuello recuar pelo menos duas vezes. Depois de dizer que o Tribunal de Contas da União havia obstruído a compra da vacina da Pfizer foi obrigado a voltar atrás quando o relator reportou desmentido oficial. Também recuou na data em que disse ter tomado conhecimento da crise de oxigênio no Amazonas depois de os senadores trazerem à tona evidências factuais que o confrontaram. Apesar de blindar o presidente, deixou claro que ele era informado, semanal ou quinzenalmente, de todos os atos e ações da pasta, o que é um óbice para futuras alegações de que Bolsonaro nada sabia sobre condutas a serem incriminadas.
A afirmação de Alencar, senador-médico que socorreu Pazuello, de que ele poderia ter continuado a depor ontem, sugere que a interrupção atendeu tanto a contingências do ex-ministro quanto dos senadores. É na conclusão do depoimento hoje que será possível aferir se a CPI será água ou gás na ebulição do Estado contra o Estado.
Fonte:
Valor Econômico
https://valor.globo.com/politica/coluna/a-cpi-e-o-levante-do-estado-contra-o-estado.ghtml
Ricardo Noblat: À espera da nova onda do vírus, e na torcida para que não venha
Acendeu a luz amarela em gabinetes de autoridades médicas de Estados populosos. No país, a média de mortes caiu continuamente nos últimos 30 dias. Mas a média de casos subiu nos últimos 15 dias com a circulação recorde de pessoas, diz Atila Iamarino, doutor em ciências pela Universidade de São Paulo.
No momento em que o país soma mais de 430 mil mortes pela Covid-19 e somente 12% da população adulta está completamente imunizada contra o coronavírus, nove em cada dez brasileiros com 18 anos ou mais (91%) pretendem se vacinar ou já se vacinaram, aponta pesquisa Datafolha. Mas falta vacina
Os números da pesquisa confirmam a tendência de crescimento da adesão à imunização. Em dezembro último, os pró-vacinas somavam 73%. Em janeiro, após a aplicação das primeiras doses, o percentual deu um salto para 81%. Chegou a 89% em abril, no pico da segunda onda da pandemia. Mas falta vacina.
O governo Bolsonaro foi ágil em importar e fabricar drogas ineficazes contra a Covid-19, e inepto em comprar vacinas. Dispensou 240 milhões de doses, 70 milhões nas seis ofertas da Pfizer, mais 170 milhões oferecidas pela
O ritmo de vacinação está sendo lento demais, na opinião de 7 em cada 10 pessoas entrevistadas pelo Datafolha. Mas a lentidão se explica: falta vacina. Sobram drogas que não funcionam.
Kátia Abreu fecha a porta das embaixadas do Brasil para Ernesto Araújo
À parte as mentiras e esquivas em dizer a verdade, pouca coisa ficou de aproveitável do depoimento prestado à CPI da Covid por Ernesto
Fora as mentiras e dribles na verdade, o que restou de aproveitável do depoimento prestado à CPI da Covid-19 pelo embaixador Ernesto Araújo, ex-ministro das Relações Exteriores?
Poucas coisas. A mais destacada pelos senadores que o interrogaram: Araújo confirmou ter mobilizado a estrutura do seu ministério para a compra a outros países de hidroxicloroquina.
E disse que o processo de compra foi acompanhado por Bolsonaro. Atribuiu ao ex-ministro Eduardo Pazuello a decisão de pedir um número insuficiente de vacinas à Organização Mundial da Saúde (OMS).
O Brasil tinha direito a receber vacinas para imunizar 50% de sua população. Pazuello pediu um número de vacinas que só daria para 10%. Por quê? Que ele se explique, hoje, quando for depor.
Presidente da Comissão de Relações Exteriores do Senado, Kátia Abreu (Progressistas-TO) garantiu que jamais colocará em votação a eventual indicação de Araújo para uma embaixada.
Bolsonaro cogita indicá-lo para um cargo de representante do Brasil no exterior junto a alguma organização internacional, o que independe de aprovação do Senado. Poderá ser em Paris.
O Dia D e a Hora H do general Pazuello, ex-ministro da Saúde
Como ele se apresentará à CPI da Covid, fardado ou não? Enfrentará os senadores ou se calará? Ao falar, dirá a verdade, apenas a verdade?
No depoimento mais aguardado até agora pela CPI da Covid-19, o general Eduardo Pazuello, o terceiro ministro da Saúde do governo Jair Bolsonaro, dali posto para fora por incompetência fartamente demonstrada, tem uma difícil escolha a fazer.
Ou fala a verdade na contramão dos que foram ouvidos até agora, à exceção do contra-almirante Barra Torres, presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), ou cala-se sob a proteção do um habeas-corpus que lhe assegura tal direito.
Pazuello, em todo caso, deve acautelar-se. O habeas-corpus concedido pelo ministro Ricardo Lewandowski, do Supremo Tribunal Federal, só lhe permite fugir de perguntas que possam incriminá-lo em processo que responde.
Triste situação, essa, a de um general da ativa, especialista em logística militar, que aceitou o desafio de enfrentar a pandemia mais destruidora dos últimos 100 anos sem que tivesse o mínimo conhecimento da área de saúde.
Esfarrapada foi a desculpa que deu para tanto. “Missão dada, missão cumprida” é um ditado que significa: se um superior lhe dá uma tarefa, cumpra-a sem discussão. O ditado guarda parentesco com outro: “Manda quem pode, obedece quem tem juízo”.
Em resumo: na cabeça do general, uma vez convocado pelo presidente para servir a pátria invadida por um vírus certamente fabricado em laboratório estrangeiro, ele não poderia dizer não. Treinado para obedecer, deveria sempre dizer sim ao chefe.
Em que trajes ele se apresentará diante dos senadores e do país que assistirá seu depoimento transmitido ao vivo por emissoras de rádio e de televisão? A paisana, embora como ministro tenha usado farda? Fardado, na esperança de intimidar os senadores?
Alguns dos seus companheiros de farda, da ativa e da reserva, plantaram notas na mídia advertindo os senadores para o risco de humilhar um general, forçando-o a revelar o que não pode. A fazê-lo, talvez os brucutus rolassem na Esplanada dos Ministérios.
Bobagem! Os brucutus serão poupados para uma futura guerra contra algum dos países vizinhos. É o que os militares esperam desde a última, travada contra o Paraguai entre 1864 a 1870. Se vier, que seja rápida, pois munição só há para poucas horas.
A ver se os senadores, aliados do ex-capitão que acidentalmente se elegeu presidente, entregarão Pazuello à própria sorte ou se arriscarão o mandato para defendê-lo a qualquer preço, como não fizeram com o ex-ministro Ernesto Araújo.
Verdade que Araújo não vale uma missa, mas Pazuello valerá?
Fonte:
Metrópoles
Bernardo Mello Franco: A mutação dos bolsonaristas
A CPI da Covid produziu uma mutação nos bolsonaristas. Diante dos senadores e das câmeras de TV, os defensores do capitão perdem subitamente a valentia. Passam a falar baixo, renegam suas bravatas e fingem esquecer o que já disseram.
Na semana passada, o fenômeno ocorreu com Fabio Wajngarten. Conhecido pela agressividade nas redes sociais, o publicitário afinou ao usar o microfone. Adotou um tom humilde, quase servil, para tentar escapar ileso do depoimento.
O ex-secretário de Comunicação se disse vítima de “boatos maldosos” sobre a intermediação da compra de vacinas. No entanto, perdeu a memória ao ser questionado sobre um termo usado pelo ex-ministro Eduardo Pazuello. “Não sei nem o que significa pixulé”, desconversou. “Melhor assim, não é?”, ironizou o senador Renan Calheiros.
Ontem a foi a vez de Ernesto Araújo sofrer um surto de amnésia. Pivô de múltiplas crises com a China, o ex-chanceler jurou que nunca criou atritos com Pequim. Renegou até o artigo em que se referiu ao coronavírus como “comunavírus”, endossando a teoria conspiratória de que os chineses teriam lucrado com a pandemia. “Vossa excelência renega o que escreveu. Aí, não dá!”, protestou o senador Omar Aziz.
Em outro momento, Ernesto disse que o ideólogo Olavo de Carvalho não era o guru da sua política externa delirante. “O senhor de fato é um homem muito ousado, muito corajoso”, debochou a senadora Kátia Abreu, antes de chamar o ex-ministro de “negacionista compulsivo”.
Apesar dos recuos e das gaguejadas, Wajngarten e Ernesto não conseguiram blindar o chefe. O publicitário admitiu que Jair Bolsonaro ignorou ofertas de vacinas da Pfizer. E o ex-chanceler confirmou que o presidente deu ordens para negociar a importação de cloroquina.
Ernesto deixou claro que sua gestão estava mais empenhada em travar lutas ideológicas do que em salvar vidas. Por discordar do governo da Venezuela, o ministro se negou a colaborar com o transporte de cilindros de oxigênio de Caracas para Manaus. Depois que a doação chegou, ele se recusou a dar um mísero telefonema para agradecer.
PF laçou a boiada de Ricardo Salles
A Polícia Federal laçou a boiada de Ricardo Salles. O ministro do Meio Ambiente foi o principal alvo da operação deflagrada nesta manhã. A polícia investiga sua participação num esquema de exportação ilegal de madeira.
A ação apura crimes de corrupção, advocacia administrativa, prevaricação e facilitação de contrabando. O ministro Alexandre de Moraes, do STF, determinou a quebra dos sigilos bancário e fiscal de Salles. Ele também afastou o presidente do Ibama, Eduardo Bim.
O governo de Jair Bolsonaro subverteu a razão de ser do Ministério do Meio Ambiente. Desde a posse do capitão, a pasta foi capturada por interesses econômicos ligados à exploração predatória dos recursos naturais.
Em vez de proteger as florestas, a gestão de Salles estimulou a ação de desmatadores, grileiros e garimpeiros. Na reunião ministerial de abril de 2020, ele escancarou sua estratégia: aproveitar a pandemia para ir “passando a boiada”. Era uma referência ao desmonte da legislação e dos órgãos ambientais no Brasil.
Em tempos normais, a operação da PF levaria à demissão imediata do ministro do Meio Ambiente. Como estamos no governo Bolsonaro, é preciso esperar para ver. A política antiambiental de Salles não é uma obra de um homem só. Estava sempre deixou claro que cumpre ordens do presidente.
Fonte:
O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/bernardo-mello-franco/post/mutacao-dos-bolsonaristas.html
Bruno Boghossian: CPI expõe arquitetura de um governo sem interesse em salvar vidas
Ernesto Araújo disse na CPI da Covid que nunca recebeu orientações para rejeitar parcerias que poderiam ajudar o país a produzir vacinas. Não foi necessário. A comissão já mostrou que a arquitetura do governo Jair Bolsonaro tornou praticamente impossíveis os esforços do país para salvar vidas na pandemia.
A política externa desvairada de Ernesto não foi uma exceção. A tensão contínua entre o Brasil e a China na negociação de insumos para fabricar imunizantes só existe até hoje porque o governo transformou o Itamaraty num joguete da direita radical.
O ex-chanceler tentou disfarçar, mas sabe que a diplomacia pode ajudar ou atrapalhar articulações desse tipo. No início da sessão, ele mesmo disse que o governo recebeu vacinas “graças à qualidade das nossas relações com a Índia”. Depois, precisou reconhecer que a bajulação permanente a Donald Trump não havia rendido frutos nessa área.
Ernesto descreveu um Itamaraty que se curvou aos delírios de Bolsonaro. O ex-chanceler afirmou ter intermediado um telefonema do presidente à Índia para pedir milhões de comprimidos de um remédio ineficaz. Admitiu, ainda, que nem sequer agradeceu à Venezuela pelo oxigênio doado a Manaus durante a crise de desabastecimento na capital amazonense. A coloração política do governo vizinho valeu mais do que as vidas que estavam em risco.
A diplomacia funcionou como peça auxiliar do negacionismo. Ernesto disse que trabalhou para adquirir cloroquina a pedido do Ministério da Saúde e que a pasta foi a responsável pela recusa de parte das doses de vacina disponíveis no consórcio Covax Facility. As duas decisões ficaram na conta de Eduardo Pazuello, próximo depoente da comissão.
A CPI já desenhou a estrutura de um governo que reproduz com precisão as obsessões do presidente. Nos dias pares, os ministros se omitem e demonstram desinteresse pela imunização dos brasileiros. Nos ímpares, sabotam a relação com países-chave e perdem tempo com medicamentos ineficazes contra a Covid.
Fonte:
Folha de S. Paulo
Ruy Castro: A arte de fazer perguntas
Nas últimas semanas, recorri à minha já quase secular trajetória pela imprensa para cometer dois artigos (“Perguntas à queima-roupa”, 7/5, e “Pequeno manual para a CPI”, 12/5), em que tentei passar a possíveis interessados —os senadores da CPI da Covid, por exemplo— algumas dicas sobre como fazer perguntas. Afinal, é delas que vivem os jornalistas, e alguns tiveram a sorte de trabalhar em veículos em que a entrevista era uma grande atração.
Um deles, a antiga Playboy, cujas entrevistas passavam tal seriedade que mesmo os mais alérgicos a elas, como Frank Sinatra e Miles Davis, aceitaram concedê-las. A própria edição brasileira, em sua melhor fase, nos anos 80 e 90, entrevistou empresários, candidatos à Presidência e até suas maiores inimigas: as feministas. E por que eram tão boas as entrevistas de Playboy? Porque seus repórteres tinham cláusulas pétreas a seguir na elaboração da pauta e na sua aplicação. Eis algumas.
Preparar-se para a entrevista como se fosse a última que o sujeito daria em vida. Ler sobre ele para aprender tudo que se sabia a seu respeito, para perguntar justamente sobre o que não se sabia. Fazer uma pauta com centenas de perguntas, com perguntas alternativas entre uma e outra, como repique à pergunta anterior.
Nunca fazer duas perguntas ao mesmo tempo —faz-se a primeira e mantém-se a seguinte engatilhada. Ficar atento à resposta para possíveis buracos e ir a eles em seguida. Nunca cortar ou se intrometer numa resposta —afinal, o camarada está ali para falar. Em caso de súbito branco numa resposta, nunca tentar “ajudar” o entrevistado —ele que se obrigue a preenchê-lo e, ao fazer isso, dirá o que não queria.
E, se o entrevistado mentir, nunca chamá-lo de mentiroso na lata, claro, mas fazer com que ele perceba logo que você não se deixou tapear. Afinal, os repórteres, ao contrário da CPI, não têm poder de prisão.
Fonte:
Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/ruycastro/2021/05/a-arte-de-fazer-perguntas.shtml
Armando Castelar Pinheiro: As nuvens e o cenário eleitoral
A pesquisa do Datafolha divulgada há uma semana sugere um quadro eleitoral bem definido, com forte polarização entre o presidente Bolsonaro e o ex-presidente Lula, com grande vantagem para este último. Juntos, os dois respondem por 74% das intenções de voto dos que declararam sua preferência, com os restantes 26% pulverizados entre outros seis candidatos. A vantagem de Lula é clara: tem quase o dobro das intenções de voto de Bolsonaro, sua taxa de rejeição é bem menor (36% x 54%) e, segundo a pesquisa, venceria com facilidade no segundo turno, com 72% a mais de votos que o atual presidente.
A polarização interessa tanto a Bolsonaro como a Lula e há uma chance grande de que ela sobreviva até as eleições. Por outro lado, a ida às urnas é só daqui a 17 meses e, na memorável metáfora de Magalhães Pinto, ex-governador de Minas Gerais, “política é como nuvem, você olha e ela está de um jeito, olha de novo e ela já mudou”.
O que pode mudar esse quadro? Penso que pelo menos três fatores podem influir nessas preferências de voto: o avanço da vacinação, a recuperação da economia doméstica e o cenário externo.
Não têm faltado erros, tropeços e incertezas em nosso processo de vacinação. Porém, também há acertos e, graças a estes, e à nossa rede de saúde pública, experiente em campanhas de vacinação, esta tem avançado. Já foram aplicadas 55 milhões de doses e a expectativa é que, ainda este semestre, os mais vulneráveis estejam em grande parte protegidos.
Este mês, o Banco UBS publicou estudo prevendo que o Brasil atinja um patamar de relativa imunidade coletiva até o fim de setembro. Essa previsão se baseia em duas constatações: 1- que a vacina está reduzindo os casos graves naqueles que a receberam e 2 – que 98,5% das mortes, 96,2% das internações em CTI e 94,7% das hospitalizações até mês passado foram do grupo com 30 anos ou mais. Assim, conclui o estudo, se vacinarmos esse grupo, que compreende 56,1% da população, a pandemia ficaria menor. E essa meta, mesmo com hipóteses conservadoras sobre a disponibilidade de vacinas, seria atingível até setembro.
Outras instituições preveem que a imunidade coletiva só venha no final do ano, ainda que apontando que, dado que a vacinação foca nos grupos de risco, a saúde pública vai começar a melhorar antes disso. Em um ou outro caso, porém, a expectativa é que a pandemia perca força a partir do início de 2022. Isso reduziria a importância desse tema nas eleições de outubro, diferentemente do que ocorreu nas últimas eleições americanas.
A economia surpreendeu positivamente no início de 2021. Apesar dos efeitos contracionistas do fim do Auxílio Emergencial e das restrições decorrentes da segunda onda da pandemia, o PIB deve ter crescido em torno de 0,5% no primeiro trimestre, na série com ajuste sazonal. Ainda se espera uma queda do PIB no trimestre, mas para a segunda metade do ano a projeção é de recuperação da atividade.
Obviamente, se confirmado, o controle da pandemia no último trimestre do ano vai impulsionar a economia. Mesmo que isso se dê inicialmente de forma moderada, pelo receio das pessoas de se exporem, o impulso vai ganhar força ao longo de 2022.
É difícil prever quão forte ele será. A previsão do Focus é de alta do PIB de 2,4% em 2022, mas penso que pode ser mais, devido ao efeito positivo dos preços elevados das commodities e de as famílias gastarem a grande poupança acumulada durante a pandemia. A retomada da atividade será mais intensa nos serviços, beneficiando a geração de empregos, inclusive informais, favorecendo trabalhadores com maior propensão a consumir.
Também se espera um impulso fiscal positivo, ou pelo menos não tão negativo quanto este ano. Isso não só pela típica sazonalidade de anos eleitorais, mas também porque a regra do Teto de Gastos permitirá um aumento real dos gastos. Isso pois a inflação acumulada em 12 meses até junho, que é usada para ajustar o Teto, deve ficar em 8%, caindo para 5% no ano fechado, que interessa mais para reajuste de gastos obrigatórios.
A recuperação da economia poderá ser ajudada, ou não, pelo cenário externo. Hoje o foco está na alta da inflação e no receio de a reversão dos estímulos monetários nos EUA se iniciar já no fim deste ano. No passado, quando os EUA reduziram esses estímulos, os emergentes sofreram. Por outro lado, também lá fora o avanço da vacinação estimulará a atividade econômica e o apetite pelo risco. Se, de fato, nosso crescimento acelerar, a entrada de capital externo tende a aumentar, também ajudada pela Selic mais alta, e o real pode apreciar mais frente ao dólar, que segue sobrevalorizado para padrões históricos. Isso criaria um clima econômico mais favorável, inclusive ao investimento.
Claro, esse é apenas um cenário. Uma terceira onda é possível, a atividade pode outra vez surpreender, desta vez para baixo, e a normalização monetária americana pode nos atrapalhar muito. Se tivesse de apostar, porém, diria que o céu sob o qual se realizará a eleição de 2022 será menos tempestuoso que hoje, com “nuvens” mais voltadas para o futuro e menos para o passado.
*Armando Castelar Pinheiro é professor da FGV Direito Rio e do Instituto de Economia da UFRJ e pesquisador-associado do FGV Ibre.
Fonte:
Valor Econômico
https://valor.globo.com/opiniao/coluna/as-nuvens-e-o-cenario-eleitoral.ghtml