Bolsonaro
Ricardo Noblat: Como fazer os eleitores de idiotas
Pode isso?
Em vídeo postado no Youtube, André Marinho, filho do empresário Paulo Marinho, por sua vez suplente de Flábio Bolsonaro eleito senador pelo PSL do Rio de Janeiro, confessa que distribuiu “mihares de áudios imitando e se fazendo passar pelo presidente Jair Bolsonaro durante a recente campanha eleitoral.
Foi na casa dos Marinhos, no alto Leblon, que Bolsonaro passou a gravar parte dos seus pronunciamentos veiculados nas redes sociais e na televisão depois de ter-se recuperado do atentado a faca em Juiz de Fora. No vídeo, André parece ao lado dos amigos Kim Kataguiri e Arthur do Val, representante do Movimento Brasil Livre.
Fux mata no peito
Barganha quase completa
Uma vez que o presidente Michel Temer sancionou a decisão do Senado de aumentar de R$ 33,7 mil para R$ 39 mil o salário dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), em troca o ministro Luiz Fux revogou a liminar de sua autoria que garantia o pagamento de auxílio-moradia a juízes de todo o país.
Mas como o aumento só cairá no contracheque dos ministros a partir de janeiro, Fux teve a cautela de determinar que só a partir daí seja suspenso o pagamento do auxílio-moradia. A assinatura de Temer no ato de sanção não bastou, pois. Em janeiro, o presidente da República será outro. Vai que ele dá o dito pelo não dito…
A liminar de Fux data de 2004. Ele a justificou à época com o argumento que o benefício estava previsto na Lei Orgânica da Magistratura Nacional Ao revogá-la, o ministro ressaltou que o benefício era justo, mas que o magistrado precisa “levar em conta a situação econômica do país.” Um drible de corpo…
Se o benefício era justo e estava previsto em lei, não deveria ser retirado. A ser retirado, que jamais fosse em troca de um aumento de salário para os servidores mais bem pagos da República. Quando nada porque há um rombo bilionário nas contas públicas, a situação econômica do país é péssima e cobra sacrifícios de todo mundo.
Não é só a insensibilidade social da toga que espanta, embora não surpreenda. É a barganha conduzida pela mais alta corte de justiça do país e a maneira como a lei é interpretada de modo muitas vezes a favorecer hoje o que se contraria amanhã. Isso explica porque está em queda a confiança dos brasileiros na justiça.
Eliane Cantanhêde: Governo verde-oliva
Bolsonaro monta governo de generais e a única surpresa é na articulação política
Taí, essa ficou difícil de entender no futuro governo Jair Bolsonaro: um general na articulação com o Congresso? Duas explicações plausíveis: ou vai mudar tudo ou pôr um general é para intimidar deputados e senadores e inibir pedidos de verbas e cargos que os militares – como, de resto, a sociedade – consideram pouco republicanos.
É assim que o futuro governo “não é militar”, como dizem generais, brigadeiros e almirantes, mas cada vez mais vai assumindo o jeito, a cara, a cor e o cheiro dos militares do Exército, que somam sete no primeiro escalão, por ora.
Além do próprio presidente, que passou para a reserva como capitão, temos o vice Hamilton Mourão, general de Exército (quatro estrelas) que saiu recentemente do Alto-Comando e ainda tem um pé, e amigos, lá dentro.
Também general de quatro estrelas da reserva, Augusto Heleno não apenas tem muita influência sobre Bolsonaro como foi deslocado da Defesa para o Gabinete de Segurança Institucional (GSI), para ficar bem perto do gabinete do presidente e com acesso à maior fonte de poder: informação.
Entram para a linha de frente do governo também os generais Fernando Azevedo Silva, na Defesa, Carlos Alberto Santos Cruz, na Secretaria de Governo, e Joaquim Brandão, a ser anunciado para a Infraestrutura, juntando Transportes e Comunicações.
E tem mais: um dos homens fortes na formatação do projeto de poder é o general Sérgio Etchegoyen, atual chefe do GSI, homem inteligente, preparado, de grande linhagem militar e boa capacidade de articulação com políticos e sociedade civil. Não faz sentido deixá-lo fora do governo. Só falta saber exatamente onde se encaixará.
Uma falha na montagem é o excesso de verde-oliva, ou seja, de Exército, e a ausência do branco da Marinha e do azul da Aeronáutica, que teve uma espécie de prêmio de consolação: o futuro ministro da Ciência e Tecnologia, Marcos Pontes, é tenente-coronel da reserva da Aeronáutica e formado em engenharia pelo ITA, o instituto de excelência da Força Aérea. Mas ele não foi escolhido por nada disso, mas por ser astronauta, uma estrela.
O Palácio do Planalto e seu anexo (onde é a Vice-Presidência) vão ficar lotados de militares, mas, além do incômodo nas duas outras Forças, há um outro problema: os civis, Gustavo Bebianno (Secretaria-Geral) e Onyx Lorenzoni (Casa Civil) não estariam ficando asfixiados nessa composição?
Lorenzoni já está perdendo a coordenação dos ministérios para o vice Mourão e nunca se viu vice coordenar ministros. Além disso, ele pode estar sofrendo novo ataque especulativo, porque atua desde já como articulador político do governo, promovendo encontros, almoços e jantares com líderes partidários, mas o secretário de Governo, que será o general Santos Cruz, é que vai coordenar os projetos. Até onde vai a atuação de um e até onde vai a do outro? Não está claro.
Essa questão é chave para o êxito do futuro governo, que assume com um baita rombo nas contas públicas, já levou uma lambada do Senado com o aumento dos salários dos ministros do Judiciário (sancionado ontem por Temer) e pode ficar refém de um Congresso sempre insubordinado, que sabe usar o seu poder e já ameaça impor nova derrota a um governo que nem começou.
Em 2017, muitos parlamentares renegociaram suas dívidas com o governo obtendo descontos de até 90% de juros e 70% de multas. Quem sai perdendo é o Tesouro. E o Estado alerta que os congressistas de 2019 têm R$ 660 milhões de dívidas com a União, a começar de Jader Barbalho (R$ 135 milhões). Ou a articulação política do Planalto joga unida, azeitada e competente, ou vem aí mais uma derrota. Aí, já pode esquecer a reforma da Previdência.
Cida Damasco: Família vende (quase) tudo
Privatização ganha força. BB, Caixa, Eletrobrás e Petrobrás estão na mira
Não há quem duvide do papel das concessões e privatizações na política econômica do futuro governo. O compromisso com o liberalismo e a necessidade de ajuste fiscal a curtíssimo prazo tornam sua importância mais do que estratégica. Vital é o adjetivo apropriado. O perfil da equipe econômica, completada na semana passada, prova que o chefe Bolsonaro e seu superministro Paulo Guedes, até agora com carta branca, pretendem dobrar a aposta na privatização. Dois polos de poder cuidarão dessa tarefa: uma secretaria específica para desmobilização e desinvestimento sob o guarda-chuva de Guedes, que será entregue ao empresário Salim Mattar, dono da Localiza, e uma estrutura subordinada diretamente à Presidência, para tratar das concessões de infraestrutura.
É verdade que as previsões sobre desestatização divulgadas durante a campanha pecam pelo exagero, segundo economistas dos mais variados matizes. Primeiro, Guedes falou em se desfazer de todas as estatais – no total, são 144, sob controle direto e indireto da União –, depois Bolsonaro falou em sair de 100 delas e, já na boca das eleições, ambos cacifaram uma previsão de receita de R$ 2 trilhões com venda de participações nas empresas, de ativos e renovação de concessões.
Mas, mesmo considerando que a realidade vai derrubar alguns desses “sonhos”, está claro que levar adiante um programa parrudo de privatizações é indispensável para um governo que precisa reduzir o endividamento e, pelo menos num horizonte próximo, não tem como abater os gastos significativamente.
Nesta semana, uma iniciativa ainda da gestão Temer deve criar condições para que Bolsonaro, já na chegada ao Planalto, inicie uma ofensiva desestatizante. Está marcada para quinta-feira a divulgação dos editais de licitação de 12 aeroportos, quatro portos e uma ferrovia, que permitirão a realização de leilões já no primeiro trimestre – um pacote de concessões que deve resultar numa arrecadação de R$ 1,5 bilhão e investimentos de R$ 6,4 bilhões.
Mas, se a decisão de limpar a carteira de empresas pertencentes ao Estado é ponto pacífico, ainda há dúvidas sobre o destino de estatais que são ícones do patrimônio nacional. O que vai acontecer exatamente com a Petrobrás, com a Eletrobrás e com o Banco do Brasil? Muitos observadores ficam arrepiados só de ouvir falar na possibilidade de o Estado brasileiro abrir mão desses ativos. Mas, aos poucos, começam a ser estabelecidos alguns parâmetros para o “emagrecimento” dessas empresas, que buscam conciliar os desejos dos liberais com os limites dos nacionalistas, especialmente nas alas militares.
O BB e a Caixa deverão pôr à venda alguns “pedaços” relativos a atividades laterais das instituições, como já deixaram claro seus novos presidentes, Rubem Novaes e Pedro Guimarães – o mercado dá como certa, por exemplo, a oferta da área de seguros do BB. Segundo antecipou Novaes, essa venda em “pedaços” seria via mercado de capitais. A Eletrobrás, cuja inclusão na lista de privatizações do governo Temer foi objeto de grande debate, também deve seguir a linha de privatização parcial, com a preservação da área de geração de energia em poder do Estado.
Quanto à Petrobrás, o caso mais emblemático entre os emblemáticos, tudo indica que ficará concentrada na atividade de exploração e o foco será o pré-sal. A julgar pelas declarações do vice Mourão e do próprio Bolsonaro, a porta está aberta para a venda da distribuição de combustíveis e do refino – na primeira, a participação da Petrobrás no mercado já está abaixo de um quarto, embora, na segunda chegue à marca de 90%. Nos últimos dias, inclusive, a movimentação das ações da Petrobrás nas bolsas já reflete claramente essas indicações de reestruturação.
Mais uma vez, acertadas as diferenças entre as turmas que se abrigam no governo Bolsonaro, as discussões sobre privatização vão acabar no Congresso. E, quando se trata de estatais de setores estratégicos, pode-se imaginar o quanto essas discussões tendem a esquentar e, por isso mesmo, se alongar. Guardadas as devidas proporções, foi o que aconteceu na gestão Temer. Afinal de contas, é no Congresso que interesses de regiões e corporações se manifestam – seja por meio de partidos ou de bancadas. Um teste decisivo para a chamada “vontade política” do novo governo.
Fernando Gabeira: Mais médicos, menos fantasia
Organizações humanitárias mostram que estar ao lado dos mais fracos não é, unicamente, consequência da visão socialista
Os cubanos foram embora. O Programa Mais Médicos não existe mais, tal como foi criado no governo Dilma. Sou otimista quanto ao futuro do programa. Talvez possa ser feito de uma forma melhor.
Breve, a discussão ideológica ficará para trás, e então poderemos nos concentrar no que realmente interessa: a saúde de milhões de brasileiros.
A grande oportunidade que está diante de nós é a ida de milhares de jovens médicos brasileiros para o interior. As condições salariais são atraentes. O dinheiro ficaria no Brasil. Mas não é esse o principal ganho. O encontro de milhares de jovens da classe média urbana com os rincões do Brasil pode representar para eles um grande aprendizado.
Já houve grandes momentos históricos em que esse encontro se deu. Na Rússia, no século XIX, quando milhares de estudantes foram compartilhar o cotidiano dos camponeses. Havia muito romantismo, ideias revolucionárias, uma visão idealizada dos pobres do campo. Embora o resultado tenha sido revoluções esmagadas, foi um período rico para a própria cultura russa.
Aqui, no Brasil, as idealizações não são as mesmas. Minha impressão é que os brasileiros vão encontrar no interior surpresas positivas sobre as pessoas que vivem lá. Os russos se decepcionaram porque esperavam ver nos camponeses um reflexo de suas fantasias urbanas.
A ida dos médicos brasileiros teria o mesmo valor pedagógico que a carreira oferece aos militares: percorrer diferentes pontos do país, sentir a diversidade, acreditar mais ainda no potencial do Brasil.
Não há contraindicação ideológica. Ouso dizer mesmo para uma juventude de esquerda dos grandes centros: o choque cultural seria benéfico. Certamente, sairia mais realista.
Meu primeiro trabalho na TV, creio em 2014, foi sobre uma cidade do Maranhão chamada Buriti Bravo. Já era uma aproximação com o Programa Mais Médicos. Uma visita às cidades mais desamparadas, no Maranhão e no Amapá.
Semana passada, procurei algumas pessoas como o escritor Antonio Lino, que fez uma dezena de viagens para escrever sobre o Mais Médicos. E também o sanitarista Hermano Castro, da Fiocruz.
Minhas primeiras conclusões: o programa é essencial para as cidades cobertas; ele pode ser feito majoritariamente por brasileiros, o que não significa que alguns estrangeiros não possam participar, dentro das regras do jogo. Constatei também que o gargalo é a formação desse tipo de médico. Isto estava previsto no programa de Dilma, mas não foi bem desenvolvido. É preciso ser realista. Apesar dos salários, ainda é muito difícil fixar um jovem médico no interior. A realidade me leva de novo ao mundo das ideias.
A única maneira de atenuar realmente o problema é uma valorização simbólica desse tipo de trabalho. Transmitir um pouco, por exemplo, a chama que ilumina um grupo como o Médicos Sem Fronteiras, que leva ajuda a pessoas em grandes dificuldades. No caso, o governo comprar essa ideia talvez não ajude tanto quanto se fosse aceita pelo mundo cultural. Não proponho heróis positivos, são pessoas de carne e osso que merecem um reconhecimento maior.
Tanto os cubanos quanto a esquerda encaram esse trabalho como o produto de uma visão socialista, e desafiamos a verem na medicina um mercado, e não adotarem suas teses.
Esquecem que a exportação de serviços médicos é um importante item no comércio exterior cubano. É um negócio de Estado. Não só o Médicos Sem Fronteiras, mas inúmeras organizações humanitárias no mundo demonstram que essa presença ao lado dos mais fracos não é, unicamente, uma consequência da visão socialista.
Para completar a semana, ouvi uma conferência do ministro alemão Cristoph Bundscherer num painel sobre indústria 4.0. Paradoxalmente, ele falava de um futuro tecnológico com diagnósticos à distância, portanto, com menos médicos.
Se combinarmos a formação dos novos médicos com uma abertura para o mundo tecnológico, é possível atenuar esse grande problema brasileiro.
No momento, temos um pepino. No futuro, talvez nos lembremos da passagem dos cubanos apenas como um doloroso aprendizado. É raro um contrato ser rompido assim, numa área tão sensível, sem que tenhamos salvaguardas. Isso faz parte do legado. Ideologias se interessam pelas ideias, não pelas pessoas.
Fernando Limongi: O Presidencialismo de delegação
Bolsonaro encontra conforto quando delega a gestão
Continua a montagem do governo Bolsonaro. Boa parte das pastas já foi distribuída e o perfil do governo do capitão ganha nitidez.
Fiel à promessa de campanha, o presidente eleito evitou o que chama de 'toma-lá-dá-cá', recusando-se a 'comprar' apoio dos partidos, por meio da distribuição de pastas ministeriais.
Em editorial, "O Estado de S. Paulo" saudou o princípio adotado para compor o novo governo, decretando a morte do malsinado presidencialismo de coalizão, responsável por "uma parte considerável das desventuras nacionais".
A lógica nem sempre convive bem com a análise política. Pode ser que, no passado, a distribuição de pastas ministeriais visasse tão somente a 'compra' de apoio, numa troca de cargos por votos no Legislativo, sem base em compromissos programáticos.
Mesmo que esta fosse uma descrição acurada do modus operandi dos governos Fernando Henrique, Lula, Dilma e Temer, dela não decorre a impossibilidade do Executivo negociar com partidos em bases programáticas.
Tal raciocínio assume o fisiologismo como característica intrínseca dos partidos brasileiros, sobretudo dos 'partidos de aluguel'. Obviamente, seguidores de Bolsonaro não podem comungar do juízo, pois teriam que incluir o 'programático' PSL.
A inconsistência lógica do raciocínio não para aí. Assume-se que excluir os partidos garantiria lisura à transação. Contudo, cargos podem ser loteados de diversas formas. Se os nomeados representam grupos de interesse ou bancadas setoriais, como a ministra da Agricultura, o mesmo tipo de troca escusa poderia estar por detrás da nomeação.
O realismo político recomenda a leitura da Constituição, onde está dito que leis são aprovadas mediante a maioria dos votos dos legisladores e, no caso de emendas constitucionais, como a reforma da Previdência, por maioria qualificada de 3/5. Assim, se o presidente eleito tem uma agenda política, e esta agenda pede a aprovação de leis, terá que contar com o apoio de uma maioria organizada e consistente no Legislativo.
Em última análise, a suposição de que esta maioria só pode ser obtida à base de fisiologismo nada tem a ver com o grupo com qual se negocia, se com partidos ou bancadas setoriais. Se levados a sério, argumentos deste tipo questionam a legitimidade dos interesses representados pelos parlamentares, das demandas que fazem. Em outras palavras, a crítica ao presidencialismo de coalizão não condena a coalizão ou os partidos, mas a representatividade do Legislativo.
No presidencialismo, de coalizão ou não, sem as concordâncias do Executivo e do Legislativo não se muda o status quo legal. Simples assim. Como o PSL só controla algo como 10% das cadeiras, para obter o apoio necessário para aprovar matérias o presidente terá que contar com votos dos demais partidos de centro e de direita.
A esquerda pode querer fazer uma oposição intransigente, mas não tem cadeiras suficientes para paralisar o governo, pois o PT e seus aliados, em contabilidade generosa, não controlam mais do que 20% das cadeiras.
O fato é que os resultados eleitorais foram francamente favoráveis a Bolsonaro. Nenhum dos presidentes que o antecedeu encontrou condições tão cômodas para implementar seus propósitos. O folclórico MDB, para dar só um exemplo, foi reduzido a pó de traque, isto é, não há partidos com força suficiente para 'chantagear' Bolsonaro.
Até o momento, Bolsonaro e sua equipe ignoraram completamente o Poder Legislativo. O caso do orçamento é paradigmático. A equipe de transição desconsidera o trabalho da CMO, responsável pela elaboração da lei orçamentária que o governo terá que executar no ano que vem. Coisas miúdas e mundanas, como o organograma ministerial, devem ser previstos pela lei. A despeito dos pedidos reiterados do relator da matéria, a equipe de transição não envia as diretivas à comissão.
Voltando ao presidencialismo de coalizão, não é difícil perceber que a competência não oferece um guia completo para todas as decisões presidenciais. Como mostra o caso do Ministério da Educação, a qualificação do indicado varia de acordo com a fonte escutada, se Viviane Senna, a bancada evangélica ou Olavo de Carvalho.
No caso, Bolsonaro quis abrir uma nova franquia do Posto Ipiranga. Como fez com Guedes e Moro, procurou apoio fora de seu círculo restrito para legitimar sua indicação. Entretanto, não foi possível encontrar para algum notável disposto a aderir integralmente ao seu programa para a educação. Sem alternativas, Bolsonaro voltou ao seu círculo íntimo, recrutando o novo ministro entre os ungidos por seu guru.
Para dizer o mesmo de outra forma, não são nada claros os critérios usados para aferir a competência de Ricardo Vélez Rodríguez ou Luiz Henrique Mandetta. No caso deste último, Bolsonaro esclareceu que o conhece há pouco e que não trocaram mais do que algumas poucas ideias. Ainda assim, mesmo contando com informações tão limitadas, Bolsonaro o guindou à posição de Marechal, confiando-lhe a missão de "provar a todos de que a saúde tem jeito com pessoas de bem e apoios dos mais variados."
No início da campanha, sempre que indagado, Bolsonaro não escondia sua falta de preparo e conhecimento sobre economia, educação e saúde. Em mais de uma oportunidade, como na sabatina da CNI, pediu ajuda e deixou claro que estava disposto a deixar que os interesses organizados assumissem a gestão das políticas setoriais.
Em suma, Bolsonaro constrói um governo balcanizado e compartimentalizado. É meio cada um para um si, sem a coordenação de uma liderança unificadora, autorizada a resolver os inevitáveis conflitos entre os titulares das pastas.
O presidente eleito encontra conforto quando delega a gestão. Por enquanto, este foi o modelo adotado para distribuir pastas ministeriais. Nasce o presidencialismo de delegação. Tem tudo para dar errado.
*Fernando Limongi é professor do DCP/USP, da EESP-FGV e pesquisador do Cebrap.
Dorrit Harazim: Oremos
Como Trump, Bolsonaro mescla o conceito de cristandade com liberdade individual, autodeterminação espiritual
Por ocasião da cerimônia de posse de Donald Trump, coube à pastora televangélica Paula White ser uma das lideranças espirituais elencadas a orar pelo 45º presidente dos Estados Unidos. Expoente do braço do cristianismo que promete recompensa divina àqueles que dão para receber, a religiosa prega a linha mais fundamentalista do Evangelho da prosperidade. Tudo certo, uma vez que toda cédula de dinheiro americano contém a frase “In God We Trust” (Em Deus confiamos). É a religião do pais.
Na ocasião, ouviu-se também o sermão de Franklin Graham, filho de Billy, o mais influente pregador evangélico do século XX e interlocutor espiritual de 12 presidentes americanos que antecederam Trump. Franklin comparou Trump a Ciro, o Grande, o conquistador persa que derrotou os babilônios e libertou o povo judeu, e sugeriu que o novo ocupante da Casa Branca libertaria o país dos pecados inerentes a Washington/Babilônia. (O fato de a antiga Pérsia ser hoje o inimigo mais obsessivo do presidente é uma dessas vírgulas do acaso).
Trump continua a contar com a fidelidade dos 81% de evangélicos brancos que o elegeram, apesar de ele mesmo ser de denominação presbiteriana, e não pentecostal ou neopentecostal. Seu triunfo mais astuto foi ter incorporado politicamente o termo “cristão” como sinônimo de civilização branca protestante. Em recente artigo no jornal “The Guardian”, Matthew Bowman, estudioso do assunto e autor de “Christian: The Politics of a Word in America”, demonstra como a direita religiosa se apropriou do termo ao longo dos últimos 150 anos, e passou a arbitrar o que é e o que não deve ser qualificado de cristão. A palavra usada como ferramenta política, histórica e política, sempre acoplada ao conceito de “civilização ocidental”, tem dado frutos.
Pouco menos de um mês atrás, na primeira aparição pública de Jair Bolsonaro como vitorioso nas urnas, o senador capixaba Magno Malta puxou uma oração improvisada para o futuro presidente. Ele mesmo, Malta, não se reelegera. Chegou a ter o nome veiculado para vice e talvez contasse com algum posto de primeiro escalão ao segurar a mão de Bolsonaro e agradecer a Deus pela vitória do “presidente de todos nós, um presidente que ama a pátria, um cristão verdadeiro”. Enfiado numa apertada camiseta verde-amarela com os dizeres “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”, o pastor concluiu a pajelança entoando o slogan da vitoriosa campanha.
No Brasil de hoje, um em cada quatro eleitores se define como evangélico, e um terço votou em Bolsonaro, apesar de ele ser registrado como católico no Tribunal Superior Eleitoral. Casado há cinco anos com a evangélica Michelle de Paula Firmo Reinaldo, e batizado pela Assembleia de Deus dois anos atrás nas águas do Rio Jordão, o presidente eleito também mescla o conceito de cristandade com liberdade individual, autodeterminação espiritual e comportamento moral. E aceita, junto com Donald Trump, a ideia de que o apogeu disso tudo está na civilização cristã e na necessidade de defendê-la onde houver inimigos entrincheirados.
O ideólogo dessa linha de pensamento chama-se Steve Bannon, influente guru midiático da atualidade e principal arquiteto da vitória eleitoral de Trump, alem de único estrategista a prognosticar a vitória do Brexit quando nem os ingleses a levavam a sério. Não tardou para que Bannon passasse a ser cortejado por poderosos em busca de maior garantia no poder. O chamado “Movimento” — fundado por ele com sede na Bélgica para fomentar uma reviravolta populista na Europa — já recebeu a adesão de dois países governados por cruzados anti-migrantes — a Itália e a Hungria. “Prefiro reinar no inferno a servir no paraíso”, ensina o guru parafraseando o Satã do paraíso perdido de John Milton.
Ele agora mira nas eleições de maio próximo no Parlamento Europeu e promete implodir a construção continental para ressuscitar as nações-estado. En passant, já começou a estender seu poder de sedução sobre o clã Bolsonaro.
A ideia de uma Escola Sem Partido tem tudo para ser computada por Bannon como um passo na direção certa. Medida com DNA semelhante já fora adotada pela administração Trump em dezembro passado, quando o Center for Disease Control and Prevention (CDC), principal agência americana de proteção da saúde publica, recebeu a recomendação de evitar certas palavras para aumentar as chances de alocação de recursos. Entre elas, “feto” , “transgênero” e “diversidade”.
Foram sugeridas alternativas. No lugar de “com base na ciência”, por exemplo, seria mais estratégico dizer “recomendação científica em consonância às normas e desejos da comunidade”.
Palavras escrevem História, como sabemos. Oremos.
Eliane Cantanhêde: Sujeito (não tão) oculto
Talvez fosse melhor Jair Bolsonaro trocar a metafísica do distante Olavo de Carvalho pelos critérios de Paulo Guedes
Assim como o “Escola sem Partido” significa na verdade trocar um partido por outro, a nova ordem está trocando a “ideologização da esquerda” pela “ideologização da direita”, sob a mesma inspiração, grandiloquência, antipetismo, atingindo em cheio duas das áreas mais sensíveis: Relações Exteriores, com o diplomata Ernesto Araújo, e Educação, com o filósofo Ricardo Vélez Rodríguez.
A inspiração vem de fora, do também filósofo Olavo de Carvalho, ideólogo da direita brasileira, que mora desde 2005 nos Estados Unidos, tem Twitter em inglês e já avisou que até topa um cargo no governo do qual ele é mentor, mas com uma condição: que seja lá, nos EUA, como embaixador. O PT já era e Jair Bolsonaro está chegando, mas bom mesmo continua sendo a Virgínia.
Assim como Ernesto Araújo causou enorme perplexidade ao ver o “globalismo” como complô interplanetário liderado pela “China maoista” para exterminar o Ocidente e os valores cristãos, Vélez Rodríguez se coloca como um Dom Quixote na guerra pela preservação do “valores tradicionais de nossa sociedade”. Ambos, aliás, pelo mesmo veículo: seu blog anti-PT e pró-Bolsonaro.
Professor emérito da Escola de Comando do Estado Maior do Exército e professor colaborador de Pós-graduação em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora, o futuro ministro da Educação se destaca por ser contra o PT, o Enem, as cotas, a ideologia de gênero e, claro, a favor do “Escola sem Partido”, mas sem pressa.
Nascido na Colômbia, está convencido de que as escolas brasileiras vêm sendo usadas para impor à sociedade uma doutrinação marxista e desmontar os valores tradicionais “no que tange à preservação da vida, da família, da religião, da cidadania, em suma, do patriotismo”.
Ou seja: na visão do novo governo, o Itamaraty e as escolas estão infestados de comunistas, contaminados pela ideologia marxista, servindo de instrumentos para o “climatismo” e o “antinatalismo”, conceitos criados por Araújo para explicar como os ambientalistas, abortistas e ateus se articulam para, ardilosamente, destruir o mundo.
No “Novo Brasil”, portanto, há o risco de expurgos, dedos em riste, dossiês, acusações, suspeitas, danças estonteante de cadeiras, sabatinas para apurar a ideologia de servidores e professores concursados e “depurar” o Estado. Ou é só impressão, um temor delirante? Tomara que sim.
Num campo mais concreto: assim como o futuro chanceler deve explicações sobre como projetar a imagem do Brasil, atrair investimentos, melhorar as condições de comércio e fortalecer parcerias, espera-se que o ministro da Educação diga com clareza o que ele pretende fazer pela... educação.
Pela valorização dos professores, qualidade do aprendizado, a escola como fator de igualdade de oportunidades, a qualificação dos jovens, a excelência das universidades. No primeiro texto depois de anunciado, ele prometeu focar nos municípios, na perspectiva individual e nas diferenças regionais. E terminou com a saudação bolsonarista: “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”.
Com Mozart Neves, sabia-se o que ele significava e pretendia, porque ele não divaga sobre ideologias e ameaças fantasmagóricas e é, sim, uma reluzente referência do Instituto Ayrton Senna. Precisa dizer mais? Por isso, foi descartado com tanta ligeireza e escorraçado pela bancada evangélicas, que testou forças e ganhou.
Talvez fosse melhor Jair Bolsonaro trocar a metafísica do distante Olavo de Carvalho pelos critérios de Paulo Guedes. Vamos combinar que as escolhas do ministro da Fazenda para salvar a economia do País estão sendo bem mais pragmáticas, úteis e consensuais do que as do filósofo erudito para salvar o mundo e o Brasil dos próprios demônios dele.
Mauricio Huertas: Um novo nome para um novo ser e um fazer diferente
Tchau, velha política. Ninguém aguenta mais esses partidos decadentes, obsoletos, fechados em si mesmos, com falsos líderes que não representam nada além dos seus próprios interesses.
Não chega a ser novidade que a sociedade clama por mudança. Das manifestações espontâneas de 2013 ao resultado das urnas em 2018, não foram poucos os recados da população descontente com o atual sistema e descrente nos representantes da mesmice. Agora basta!
O Brasil exige renovação de nomes, métodos, práticas e conceitos. Busca entre um extremo e outro a saída, errando e aprendendo. O que nós precisamos, deste lado do balcão, é oferecer uma alternativa democrática, sensata, honesta, viável e coerente. Estamos empenhados, portanto, para que tenha sucesso essa nova formatação política que pode ser originada do diálogo do PPS com a Rede Sustentabilidade e os movimentos cívicos surgidos da desilusão com os partidos tradicionais.
A democracia brasileira vive o fim de um ciclo iniciado com a chamada "Nova República", em 1985. Naquela onda das Diretas Já e da esperança com a vitória de Tancredo no colégio eleitoral, a ditadura militar tinha virado entulho histórico. Veio o primeiro baque com o governo Sarney, que forjou Collor, que acarretou Itamar, que projetou FHC, que gerou Lula, que inventou Dilma, que alçou Temer e que culminou em Bolsonaro, sepultando de vez esse período festivo da democracia.
O fracasso e os malfeitos do PT frustraram a esperança da maioria do povo que o elegeu quatro vezes consecutivas, traíram a história de uma geração e enxovalharam todo um campo político democrático que havia derrotado com honra e mérito a ditadura no Brasil. Tanto fizeram que provocaram não apenas ojeriza, ódio e antipatia à esquerda democrática, mas reanimaram os sentimentos mais abjetos daquela direita truculenta execrável que parecia morta, mas que somente hibernava nas últimas três décadas.
A tarefa que se coloca agora aos integrantes deste campo democrático é defender as conquistas do estado de direito, com seus princípios republicanos e as garantias fundamentais da cidadania. O Brasil pode e deve mudar seus representantes a cada eleição, isso é salutar. O que não podemos é andar para trás. Seguiremos firmes no combate ao populismo, à polarização burra e simplória, aos extremismos de direita ou de esquerda e à forma fisiológica, corrupta e patrimonialista de se fazer política.
Temos como pauta mínima a defesa das instituições democráticas, dos direitos e liberdades individuais e coletivas, tais como a liberdade de opinião, de expressão e pensamento, a proteção constitucional às minorias, o direito de ir e vir, a livre organização e associação, e a liberdade de imprensa, bem como a urgência das reformas do Estado brasileiro e a efetividade do desenvolvimento sustentável, com ações objetivas em favor da qualidade de vida, seja no âmbito econômico, ambiental ou da justiça social.
O nosso maior desafio é consolidar essa nova formatação política diante da crise do atual sistema eleitoral-partidário e do esgotamento (aqui e no mundo) deste modelo da democracia representativa em vigor, que já não atende a demanda da população diante dos avanços tecnológicos e dos anseios por uma participação mais direta e objetiva nas decisões que afetam o nosso dia-a-dia e projetam o futuro da sociedade.
Que esse novo movimento de cidadania possa erigir livre das armadilhas burocráticas e das amarras hierárquicas dos velhos partidos, permitindo que se faça uma política verdadeiramente nova e diferente das práticas usuais tão deploráveis, que seja mais acessível, palatável e inteligível para as novas gerações.
Que mantenha sua lisura e independência, que defenda e exercite a plena liberdade de expressão e a pluralidade ideológica, contribuindo para o aperfeiçoamento constante da democracia, com princípios e valores republicanos compartilhados para a construção de uma sociedade mais justa, civilizada, solidária, democrática e sustentável.
Demétrio Magnoli: Os dois Bolsonaros
Ao planejar a ofensiva, Bolsonaro desenha também o caminho da retirada
Sabe-se que, historicamente, Bolsonaro não é um, mas dois. A narrativa convencional registra uma ruptura radical. O capitão turbulento que evoluiu como parlamentar de convicções nacional-estatistas converteu-se, no umbral de sua campanha presidencial, ao manual econômico do ultraliberalismo.
Sob essa luz, um Bolsonaro sucedeu ao outro, abandonando o personagem original numa reentrância do passado. Contudo, a montagem do governo conta-nos uma história diferente, sugerindo a hipótese de que os dois Bolsonaros convivem num mesmo indivíduo dilacerado entre personas contraditórias.
Paulo Guedes, o ultraliberal de caricatura, concentra poderes inauditos, enfeixando as pastas da Fazenda, do Planejamento e da Indústria e Comércio. O czar da Economia nomeou os integrantes de uma equipe econômica composta por liberais competentes, de credenciais impecáveis. Já o núcleo militar do governo é composto por generais da reserva oriundos da tradição geiseliana.
Os tempos são outros, a obsessão estatista passou, dissolveu-se a geopolítica da Escola Superior de Guerra. Mas, entre os deuses do mercado e os do planejamento, as “forças da ordem” sempre penderão para o segundo. O Bolsonaro original vive nesse núcleo militar, selecionado por ele mesmo, não por um terceiro.
Os dois Bolsonaros são extremistas ideológicos, mas de sinais opostos. Um Bolsonaro tem consciência da presença do outro. De certo modo, o primeiro vigia o segundo, traçando-lhe limites. O presidente eleito refutou a proposta de Guedes de saltar para um regime previdenciário de capitalização individual recordando-lhe que os cidadãos confiam na promessa constitucional de que suas futuras aposentadorias têm a garantia do Tesouro.
Roberto Castello Branco descartou a privatização integral da Petrobras alegando não possuir um “mandato” político para tanto. A visão otimista diz que a convivência de extremismos simétricos arredondará as arestas agudas, produzindo um vetor reformista e pragmático.
Os dois Bolsonaros conversam a sós, divergem e convergem, esboçam planos de contingência. Desses diálogos ocultos, vazam indícios indiretos, colunas de fumaça em meio aos campos sujos.
O presidente eleito atribuiu a nomeação de Joaquim Levy ao livre arbítrio de Guedes (“Ele é quem está bancando o nome”) e foi além, marcando nitidamente as posições no palco do poder: “Quem ferrou o Brasil foram os economistas. Eles são parte importante do nosso plano de governo. Eles não podem errar, não têm o direito de errar.”
A tradução óbvia: Bolsonaro investe numa apólice de seguro para a hipótese de fracasso, que seria jogado às costas dos economistas, os “eles” inclinados a “ferrar o Brasil”. A tradução menos óbvia: a apólice do segundo Bolsonaro é o primeiro. A visão pessimista diz que, diante das esperadas resistências corporativas às reformas econômicas, o Bolsonaro liberal renunciará à Presidência em favor do Bolsonaro estatista.
No centro da mensagem da campanha de Bolsonaro não estava a economia, mas a agenda de valores e costumes. O “mercado”, essa entidade flácida, pervasiva, excitável, apostou especulativamente na mensagem secundária vocalizada por Guedes.
A escalação da equipe econômica preserva as expectativas criadas à margem dos palanques, mas os observadores menos tolos registram elevadas taxas de incerteza. Quando escolhe a terceira pessoa do plural —“eles”— para se referir à sua própria equipe econômica, o presidente eleito sugere que, ao planejar a ofensiva, desenha também o caminho da retirada.
“Guedes não dura seis meses”. A profecia partiu de Cid Gomes, porta-voz informal do irmão, que é pretendente a líder da oposição. O profeta interessado pode estar certo ou errado, mas entendeu algo relevante: no caso de Bolsonaro, em lugar de se sucederem, os estágios crisálida e borboleta se confundem.
*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.
Marco Aurélio Nogueira: Riscos e incógnitas na política externa
Faltam prudência e sentido estratégico, sobra desejo de ‘mudar tudo o que está aí’
Nada pode ser pior para um país que almeja o status de potência média emergente e pretende jogar o jogo da diplomacia internacional do que a adoção de uma política externa enviesada pela ideologia.
A ideologia é inerente à política, doméstica ou internacional, pelo simples fato de que impregna as escolhas e as condutas humanas. Ela é muito mais sinônimo de orientação ideal do que de “distorção do real”, mas suas lentes, quando mal calibradas, podem de fato cegar e promover atos descompensados, que desorganizam e prejudicam.
Países escolhem parceiros e posicionamentos internacionais em função dos interesses nacionais, de valores, tradições e estilos de atuação, da correlação de forças, de metas estratégicas e possibilidades efetivas. Muitas vezes, porém, os condutores da política externa se deixam guiar por esquemas de solidariedade e alinhamento mais afinados com orientações e escolhas ideológicas. Entram e saem de blocos e arranjos motivados por tais esquemas, e não pelos interesses de seu Estado e de sua população.
Podem fazer isso de modo escancarado, imprudente, ou de modo cauteloso, realista, para que as preferências político-ideológicas se componham com os interesses nacionais e não joguem o país numa zona aberta de turbulência.
O presidente eleito, Jair Bolsonaro, fez sua campanha denunciando o “ideologismo” da política externa petista, que teria, em sua visão, submetido os interesses do Brasil a inflexões ideológicas distorcidas – como, de resto, aconteceria em todas as demais áreas do Estado. Para ele, a esquerda petista seria uma fábrica de doutrinação indiferente às necessidades do País.
Mas ao escolher para a chancelaria nacional um diplomata de perfil ideológico e doutrinário, com derivações regressistas em termos valorativos e intelectuais, Bolsonaro copia o que atribuía ao PT, só que com o sinal trocado.
A solidariedade petista é agora substituída pela submissão a Donald Trump, tido como estadista que “salvará o Ocidente” e corrigirá os desatinos do “globalismo”, retirando-o das mãos do “marxismo cultural”.
O diplomata Ernesto Araújo sustenta, por exemplo, que a globalização é um processo direcionado por uma ideologia (o globalismo) que está a serviço da China. Trump não seria o chefe esquisito de uma superpotência, mas o grande líder que reagiria à decadência do Ocidente e buscaria recuperar “o passado simbólico, a história e a cultura das nações ocidentais”. Despreza-se o que há de nacionalismo tosco e de rejeição às instâncias multilaterais no “trumpismo”, destacando nele tão somente um antiglobalismo mal definido.
O suposto é que a salvação viria pela vibração ideológica e cultural, já que a raiz do problema estaria na agressão feita pela globalização aos valores ocidentais por meio da intensificação do intercâmbio de pessoas, ideias, produtos e costumes. Na crítica à globalização, os antiglobalistas não destacam os problemas da reprodução ampliada do capitalismo, mas a dimensão espiritual e a defesa genérica da nação. “Somente um Deus poderia ainda salvar o Ocidente, um Deus operando pela nação — inclusive e talvez principalmente a nação americana”, escreveu o novo chanceler.
Preocupante será se Ernesto Araújo levar a sério as frases pretensamente filosóficas que ilustram seu pensamento. São frases que não soam bem na boca de um diplomata, especialmente porque colidem com os valores e as diretrizes típicas da política externa que, desde Rio Branco, vem sendo seguida pelo Estado brasileiro com as devidas atualizações.
Pode ser que não se transfiram para a gestão da política externa prática e se limitem a ser um marcador retórico. Se algo delas passar, o País terá muito mais ônus do que bônus e conhecerá prejuízos em seus interesses (políticos e econômico-comerciais), em seu posicionamento estratégico e em sua imagem internacional. Será levado a um isolamento contraproducente e estranho à sua História.
Uma diplomacia voltada para a submissão aos Estados Unidos e o isolamento entrará em atrito com três vetores importantes. O primeiro é o Itamaraty, com suas tradições de independência e de não alinhamento automático. O segundo é a proclamada política econômica de Paulo Guedes, que terá de se valer de um protagonismo internacional realista e pragmático, refratário a manobras isolacionistas e a perspectivas míticas de “salvação”. Em terceiro lugar, não terá passagem fácil entre os militares, cujo nacionalismo tem outro fundamento. Pode-se imaginar como as Forças Armadas assimilariam a ideia de Araújo de que o Brasil necessita de uma “metapolítica externa” para se situar e atuar “naquele plano cultural-espiritual em que, muito mais do que no plano do comércio ou da estratégia político-militar, estão-se definindo os destinos do mundo”.
Como política de Estado, a política externa não pode ser manejada exclusivamente em função de preferências governamentais, como emanação da vontade de um governante ou de um partido. Uma troca de governo não deve implicar a alteração radical da política externa, a não ser que almeje a completa desorganização do lugar do País no mundo. A permanência de certas diretrizes funciona como estrela-guia, garantia de acumulação e continuidade.
Com a escolha de Araújo, o presidente eleito atiça ainda mais a polêmica na área da política externa, depois das inadequadas declarações sobre a China, o Mercosul e Israel, além da questão com os médicos de Cuba. Faltam prudência e sentido estratégico, sobra desejo de “mudar tudo o que está aí”, o que poderá levar não à defesa do Brasil, mas a um açodado alinhamento com a ascensão global da direita populista, que tem no trumpismo um de seus motores.
Sairiam assim de cena os interesses nacionais, em benefício de um impreciso “nacionalismo” por delegação, de consequências imprevisíveis.
Sérgio Abranches: Uma coalizão para chamar de sua
Para conseguir governar, Bolsonaro terá que negociar com partidos, não apenas com bancadas temáticas
Para ter apoio duradouro e governar, Bolsonaro precisará formar maioria multipartidária. O presidente eleito, Jair Bolsonaro, prometeu não compor o Ministério por acerto com lideranças dos partidos. Terá um Ministério híbrido, com técnicos, militares e indicados por bancadas temáticas. É o primeiro governo assumidamente de direita. Tem uma ideologia bem definida, com uma proposta econômica liberal ortodoxa e uma pauta de valores conservadora e religiosa. A indicação de ministros setoriais pelas bancadas temáticas, como Agricultura e Saúde, ou o poder de veto da evangélica na Educação revelam a disposição de governar com as agendas dessas frentes parlamentares.
Significa que Bolsonaro não terá uma coalizão? Não. Apenas que a coalizão não será formada com base na troca de apoio por ministérios. É uma novidade a ser testada. Só a prática dirá se terá sucesso. A literatura acadêmica diz que, sem a representação da coalizão no gabinete, há risco para a governabilidade. O partido de Bolsonaro tem 10% dos votos na Câmara e 5% no Senado. Para governar, precisará formar maioria multipartidária. Quer usar meios novos para organizá-la. Mas, terá que negociar com partidos no Congresso. As bancadas temáticas não dão liga para coalizões duráveis. Apenas alianças tópicas. Unem-se no específico e se dividem no todo. Pode-se chamar como quiser, base de apoio, maioria, aliança. Será uma coalizão. Um termo neutro a significar apenas um acordo multipartidário para apoiar o governo. A diferença é que há meios espúrios e meios limpos para negociar coalizões. A maioria das democracias multipartidárias do mundo tem governos de coalizão negociados por meios lícitos.
O ciclo político-partidário que organizou governo e oposição nos últimos 24 anos esgotou-se. A fragmentação das bancadas dificulta a coalizão. Para ter maioria simples, 267 votos, Bolsonaro, no melhor cenário, precisaria dos oito maiores partidos da centro-direita. Para emendas constitucionais, a maioria é de 308. Demandaria incluir os onze maiores partidos. Nos dois casos, ou garante 100% dos votos de todos ou terá que incluir mais legendas. Será um teste de novos formatos para o presidencialismo de coalizão, em um contexto difícil para compor e coordenar coalizões.
*Cientista político, autor do livro “Presidencialismo de coalizão”
Claudia Safatle: A reforma da Previdência ou o caos
"É cortar, cortar e cortar", dizem fontes do novo governo
Aprovar a reforma da Previdência no primeiro semestre de 2019 é a prioridade do presidente eleito, Jair Bolsonaro. A importância desse prazo pode ser detectada no comentário de um dos economistas da transição: "Ou aprovamos a reforma da Previdência até junho ou será o caos", disse. Por mais que se possa considerar essa afirmação um exagero de retórica sustentado na suposição de que esse será o período da lua de mel do mercado com o novo governo, o fato é que os agentes econômicos internos e externos estão à espera da reforma. Sua aprovação será um sinal de determinação e sustentação política do governo decisivo para a expansão dos investimentos no país.
Sem novos investimentos, a recuperação da economia terá vida curta, minando a confiança e o emprego. Este seria o início de um processo de deterioração das expectativas que fatalmente enfraqueceria o governo de Bolsonaro.
Técnicos da transição foram despachados para o Rio de Janeiro, na semana passada, para se inteirar da proposta de reforma elaborada por especialistas em Previdência Social sob a coordenação de Arminio Fraga. O ex-presidente do Banco Central e sócio da Gávea Investimentos enviou ao futuro ministro da Economia, Paulo Guedes, um projeto completo e inovador de previdência que está sendo avaliado, juntamente com algumas outras propostas. Os emissários de Guedes conversaram com Paulo Tafner, um dos autores da proposta.
À reforma da Previdência se seguem dois outros objetivos que compõem o plano de voo para a economia: a redução da conta de juros com o uso das receitas de privatizações para abatimento da dívida do setor público; e a reforma do Estado, centrada na busca de um modelo menor e mais eficiente.
Por onde se olha, há sobreposições de estruturas e tarefas, diagnosticam os assessores recém-chegados na transição. Um pequeno detalhe confirma essa visão mais geral. Para tratar das empresas estatais há a secretaria das estatais do Ministério do Planejamento, uma área que também cuida do tema no Ministério da Fazenda e o PPI (Programa de Parcerias de Investimentos), ligado à Presidência da República, com um conselho e uma secretaria.
Ao reformular as estruturas do Estado, o governo poderá economizar de 20% a 30% dos gastos com cargos de confiança ou comissionados. Atualmente são mais de 23 mil cargos que recebem DAS (Diretoria e Assessoramento Superiores) ou funções comissionadas do Poder Executivo.
Para consertar o forte desequilíbrio fiscal, é crucial investir na reforma da Previdência, hoje o maior gasto do Orçamento. São R$ 591,45 bilhões em pagamento de benefícios, que devem gerar déficit de R$ 201,6 bilhões este ano só no regime geral (RGPS), segundo dados oficiais divulgados ontem pelo Ministério do Planejamento. Considerando a previdência do servidor público, esse déficit sobe para a casa dos R$ 300 bilhões.
Em seguida vem a conta de juros da dívida consolidada do setor público e a folha de pessoal da União. Nos últimos 12 meses até outubro, os juros nominais somaram R$ 401 bilhões (5,9 % do PIB) e a folha de salários consumiu cerca de R$ 300,6 bilhões (4,4% do PIB).
O déficit nominal, que inclui a conta de juros, alcançou R$ 488,8 bilhões (7,2% do PIB).
Os três gastos - benefícios previdenciários, juros e salários - estão na mira da nova gestão. "É cortar, cortar e cortar", enfatizou um assessor do futuro ministro da Economia, que adiantou: "Não dá mais para fazer remendos. Agora temos que ir na raiz dos problemas".
O drama dos "rombos" nas contas públicas é que a dívida bruta - compreendida por governo federal, INSS e governos estaduais e municipais - superou os R$ 5,24 trilhões e cresce a uma trajetória explosiva. Atualmente, a dívida equivale a 77,2% do PIB. Cabe ao novo governo interromper o crescimento e reduzir o endividamento como proporção do PIB para evitar o desastre de um "calote" futuro.
O Ministério da Economia está sendo montado segundo a perspectiva da reforma do Estado. Ele será resultado da fusão de três ministérios (Fazenda, Planejamento e Indústria e Comércio). Deverá comportar de quatro a seis secretarias, e isso eliminará as estruturas triplicadas. Ampliará substancialmente o raio de poder do futuro ministro Paulo Guedes, que terá sob a sua área de domínio todas as receitas e despesas da União.
O que norteia esse trabalho é, segundo assessores da área de gestão, construir de forma incremental os pilares do novo sistema econômico baseado nos princípios liberais. A ideia é trabalhar com o conceito de "equilíbrio geral", no qual os processos vão sendo construídos de forma a um ajudar na sustentação do outro.
Em outras palavras, a reforma da Previdência se combina com um processo de privatização que se complementa com as reformas administrativa e tributária, que reduz o peso do Estado sobre as empresas e as famílias. E essas etapas vão se alimentando de um crescimento mais firme da economia.
Os governos tentaram de tudo após a democratização para colocar o Brasil nos trilhos do crescimento econômico sustentável. Avançou em um período, mas regrediu em outro. Buscou-se todos os tipos de atalho com intervenções exacerbadas. A carga tributária subiu a patamares asfixiantes - de 26,7% do PIB em 1995 para mais de 32% do PIB atualmente - para dar conta do acelerado crescimento do gasto público. Não foi suficiente e, então, recorreu-se ao aumento do endividamento para financiar as despesas, deixando a dívida chegar a níveis perigosos.
Resta tentar um caminho ainda não explorado: cortar a despesa pública para que ela seja financiada por uma carga tributária compatível com o resto do mundo, reduzir o tamanho do Estado e abrir a economia.
A equipe econômica do presidente eleito avalia que "pela primeira vez na história o país terá o governo com uma agenda claramente liberal". Até então, medidas de cunho liberal foram adotadas de forma pontual, mais por necessidade do que por convicção. Uma dúvida é se e por quanto tempo Bolsonaro comungará das mesmas ideias de Paulo Guedes.