Bolsonaro
Alberto Aggio: Depois das eleições, oposição democrática
Jair Bolsonaro (PSL) venceu o segundo turno das eleições presidenciais com mais de 10 milhões de votos de diferença contra Fernando Haddad (PT). Não foi uma vitória esmagadora, mas foi incontestável e, sobretudo, legítima. Em janeiro de 2019, com a alternância democrática de poder, prevista na Constituição, Bolsonaro assumirá o posto maior da República.
Na democracia, a quem vence cabe a tarefa de governar; a quem perde, fazer oposição. A vitória eleitoral de Bolsonaro não significa a imposição de uma única força política ao país, numa visão simplista de alguns de seus apoiadores, segundo a qual o vencedor “leva tudo”. Os pilares da democracia brasileira, assentados na Constituição de 1988, continuam a dar os parâmetros para a nossa convivência política e social.
Não há dúvida que essa vitória representa uma mudança política significativa na história recente do país. Fala-se do esgotamento ou do final de um período da política brasileira e do advento de uma nova fase. Superando as forças políticas que lideraram a democratização, o presidente eleito traz novamente a direita ao poder depois de décadas em que ela havia sido alijada, com o fim da ditadura militar. O resultado eleitoral em seu conjunto representou a condenação das oligarquias políticas que controlaram o poder nos últimos anos e o rechaço ao conluio entre a “coisa pública” e os interesses dos grandes grupos econômicos.
A direita que se expressa por Bolsonaro não é a mesma dos idos de 1964 e nem poderia ser. Permanece nela, é verdade, um certo ranço e uma retórica anticomunista obtusa e anacrônica face ao fato de que o fim de “comunismo histórico” carrega quase 30 anos nas costas, não havendo nenhuma sinalização do seu reaparecimento ao redor do mundo. Nessa eleição, a direita emergiu travestida de um “populismo iliberal”, seguindo a vaga planetária, além de expressar inclinações reacionárias e autoritárias. O novo presidente é um personagem, a um só tempo, pragmático e midiático – sem ser carismático –, que se utiliza mais de uma retórica instrumental de caráter pentecostal do que propriamente fascista. Tudo isso não é pouco para nos alertar quanto aos riscos que corre a democracia. Contudo, a vitória de Bolsonaro não deve ser vista como um retorno ou uma condenação antecipada do país aos “anos de chumbo”.
Na montagem do governo, com uma reforma administrativa em curso que reduz o número de Ministérios, o presidente eleito parece visar mais a composição de um quadro de referência de mudanças – no qual estão indicativos neoliberais, mas também da democracia política –, do que a emulação de um líder que prepara a instalação de um regime fascista ou de uma ditadura, mesmo que seja de forma gradual. Será certamente um governo de direita porque essencialmente apela à ordem de maneira ameaçadora e quase brutal, pensa mudanças econômicas a partir da régua neoliberal, com poucas ou nenhuma concessão de caráter social, além de ser regressivo, restritivo e anacrônico no plano cultural e ambiental, sem falarmos no plano comunicacional, até agora o mais tenebroso no seu comportamento.
Uma das tarefas essenciais da oposição democrática – que precisa ainda ser construída e articulada – é a de agir para evitar que o estilo (de um violentismo performático) e as inclinações autoritárias do presidente eleito e do seu entorno se transformem em regime político. Os atores políticos que se perfilam no campo oposicionista terão uma árdua tarefa pela frente, em particular a esquerda que terá que se reconstruir uma vez que a linguagem da antipolítica que predominou nessas eleições a atingiu profundamente em suas lideranças, ideias e valores.
Derrotado nas eleições, o PT parece não ver razões para alterar seu posicionamento, fixando-se numa posição de antagonismo irredutível. A considerar o discurso de Fernando Haddad na noite em que se deram a conhecer os resultados, o PT se mantém no interior da célebre divisão “nós versus eles” instituída pelo partido desde os governos Lula. Para o partido, a oposição a Bolsonaro deverá assumir a representação política de uma “outra nação”, aquela que lhe rendeu 46 milhões de votos, na qual a palavra-chave é a da “resistência” a uma espécie de “governo de ocupação”, na infeliz expressão do Wanderley Guilherme dos Santos. Aqui abro um parêntesis: de fato, “resistência” é uma noção cuja origem é a ocupação nazista na França e Itália, que se conformou num referente histórico para a esquerda; na luta contra a ditadura no Brasil, aqueles que haviam aderido à luta armada, ao retornarem à luta política, formularam a “narrativa” da resistência com o intuito de legitimarem essa mudança sem contudo realizarem nenhuma autocrítica; hoje, como se vê, o PT prepara uma nova artimanha, evitando rever seu passado recente com rigor e a devida autocrítica.
A perspectiva de “resistência” que o PT apresenta à oposição vive da expectativa de que o governo Bolsonaro fracasse rotundamente e, quanto mais rápido melhor. Lembra vivamente um retorno às origens e, com isso, uma vocação para o isolamento. O PT não compreende que o tempo não passou em vão, que a sociedade amadureceu e que as forças políticas já não se deixam enredar por artimanhas. Considerando os resultados eleitorais, a situação da esquerda é claramente defensiva e de recomposição. O antagonismo irredutível do PT é condenação ao isolamento.
Claro está que o PT é um ator problemático para oferecer uma estratégia de oposição democrática ao governo Bolsonaro. Além da sua leitura obtusa da nova conjuntura política, o PT ainda se vê acorrentado à miragem da libertação de Lula e das fábulas (o golpe de 2016) que contaminam sua visão a respeito do que se passou no país desde 2013. O PT não reconhece que o partido, e em particular o lulismo, são vistos hoje pela sociedade como duas expressões consagradas da corrupção que o eleitorado condenou nessas eleições. É largamente reconhecido que o principal fator que deu a vitória ao representante do PSL foi o antipetismo, sem mencionarmos os milhões de desempregados que emergiram e cresceram assustadoramente desde o governo Dilma Rousseff.
Para ser crível e não se lançar à luta de olhos vendados, os democratas devem começar por saber o que fazer diante de suas circunstâncias, com realismo e uma perspectiva generosa de futuro. (Esse artigo, finalizado em 04/11/2018, foi publicado originalmente em Política Democrática Online 2, novembro de 2018, p.18-19)
Folha de S. Paulo: Jair Bolsonaro deverá ter base aliada instável no Congresso Nacional
Apenas 3 das 15 maiores legendas da Câmara deverão dar apoio formal a novo governo
Por Bruno Boghossian, da Folha de S. Paulo
BRASÍLIA - O critério de escolha de ministros e o modelo de articulação política adotado pelo presidente eleito, Jair Bolsonaro (PSL), devem fazer com que o próximo governo entre em campo com uma coalizão instável no Congresso Nacional.
Metade dos principais partidos do país diz que pretende colaborar com o presidente eleito, mas só 3 das 15 maiores siglas da Câmara dos Deputados dizem estar dispostas a integrar oficialmente a base governista.
A relação entre esses partidos e o novo governo indica que Bolsonaro terá um núcleo enxuto de sustentação política.
Para aprovar projetos de seu interesse, o presidente eleito dependerá também de siglas que têm simpatia por sua agenda, mas permanecem em órbitas afastadas.
A Folha consultou os presidentes, dirigentes e líderes dos 15 maiores partidos da Câmara. Além do PSL de Bolsonaro, apenas DEM e PTB discutem uma adesão formal à base aliada do próximo governo.
"Estamos dispostos a contribuir com o país. Nosso apoio estará vinculado exclusivamente à concordância com a agenda que o governo terá para o país", afirma ACM Neto, presidente do DEM.
A sigla terá três ministros no governo Bolsonaro —Onyx Lorenzoni (Casa Civil), Tereza Cristina (Agricultura) e Luiz Henrique Mandetta (Saúde)—, embora a cúpula da legenda negue que tenha feito as indicações.
Juntas, as bancadas desses três partidos terão 91 integrantes na Câmara.
Para aprovar um projeto de lei, basta que a maioria dos deputados presentes seja favorável, mas mudanças na Constituição (como a reforma da Previdência) precisam de quorum qualificado de três quintos dos parlamentares, o equivalente a 308 votos.
Durante a campanha, Bolsonaro afirmou que não faria uma articulação com partidos políticos. Aprovaria suas propostas com os votos das frentes parlamentares temáticas, como a ruralista e a evangélica.
Na última semana, entretanto, o presidente eleito e seus aliados começaram a abrir canais com bancadas partidárias e seus dirigentes.
O futuro ministro Onyx Lorenzoni se encontrou com Valdemar Costa Neto, chefe do PR, e com os deputados do MDB.
Nos próximos dias, o próprio Bolsonaro estará com integrantes dos dois partidos, do PRB e do PSDB.
Para garantir apoio no Congresso, o presidente eleito precisará contar com uma segunda fileira de siglas —que pretendem se comportar de maneira independente a partir de 2019, sem ter ligação direta com os líderes do novo governo.
Entre as 15 maiores legendas, 5 afirmam que estarão fora da base aliada, mas reconhecem afinidades entre suas bancadas e a pauta apresentada por Bolsonaro até agora. Líderes de MDB, PSD, PRB, PSDB e Podemos afirmam estar nesta categoria.
Esses partidos somam 138 deputados. Nas votações em que essas legendas também estiverem alinhadas aos interesses do Palácio do Planalto, portanto, a virtual base governista pode chegar a 229 votos.
"Não vamos integrar a base aliada, mas nossa bancada tem grande afinidade com a maioria dos projetos do futuro governo", diz Gilberto Kassab, presidente licenciado do PSD, que tem 34 deputados.
Neste segundo círculo, Bolsonaro deve encontrar parlamentares adeptos de sua pauta econômica, mas a agenda de costumes é vista com restrições. O projeto Escola sem Partido é rechaçado pela maioria das siglas, enquanto a redução da maioridade penal encontra maior concordância.
O apoio dessas legendas pode ajudar o governo, mas dirigentes acreditam que o compromisso de seus parlamentares com o Planalto não será tão rígido quanto o dos deputados das siglas aliadas.
Do outro lado do plenário estarão cinco partidos que devem declarar oposição a Bolsonaro. Juntos, PT, PSB, PDT, Solidariedade e PSOL terão 139 deputados na Câmara.
Para contornar a possível instabilidade, o novo governo tentará expandir seus canais com os parlamentares. Segundo Onyx, a relação com deputados e senadores se dará com líderes dos partidos e com bancadas de cada região, além das frentes temáticas.
"No primeiro momento, vamos ver quais partidos e bancadas se sentem à vontade para participar e se proclamar da base no novo modelo", disse Onyx à Folha. "Sem dúvida, chegaremos a uma base na faixa de 320 a 350 deputados, e sem 'toma lá, dá cá'."
A resistência de Bolsonaro à realização de uma partilha de cargos do primeiro escalão ainda motiva apreensão.
Em conversas reservadas, dirigentes do PP e do PR se dizem aborrecidos com a atitude da equipe de transição na montagem do governo.
Há anos, essas legendas dominam feudos na cúpula da administração federal: o PP no Ministério das Cidades, e o PR nos Transportes.
As direções dos dois partidos dizem que não farão parte da base aliada e ainda não admitem apoiar as propostas do governo.
Caso não ocorram novas adesões ao núcleo governista, a base aliada formal de Bolsonaro terá um desenho inédito com seus 91 deputados. Desde a redemocratização, presidentes recorreram à distribuição de cargos para construir coalizões que beiravam os 400 integrantes na Câmara.
Fernando Collor formou uma base de 219 parlamentares. Fernando Henrique Cardoso buscou PSDB, PMDB, PFL e PTB e chegou a 397 no primeiro mandato. Michel Temer conseguiu 365.
O Estado de S. Paulo: Presidencialismo de coalizão ‘não vai acabar’, avisa sociólogo
Mas o que Bolsonaro quer é enfraquecer caciques nos partidos e acabar com a ‘porteira fechada’ para as nomeações, avisa o sociólogo Murillo de Aragão
Sonia Racy/Direto da Fonte, de O Estado de S. Paulo
Jair Bolsonaro toma posse daqui a 29 dias “com uma base completamente diferente e uma agenda nova” mas continuará precisando de apoio para aprovar seus projetos. “Isso significa que o governo de coalizão não vai desaparecer. Mas as conversas decisivas passam a ser com bancadas, e não com lideranças partidárias tradicionais”, enfatiza o cientista político Murillo de Aragão nesta entrevista a Gabriel Manzano.
A agenda do presidente eleito, nesta semana, inclui reuniões com cerca de 100 parlamentares das principais legendas, em Brasília, “e isso mostra que os partidos não serão abandonados”, destaca o analista. “O que está saindo de cena, sim, é o controle de lideranças do Congresso sobre nomeações. O que acaba é o critério de porteira fechada”.
Doutor em Ciência Política e Sociologia e dono da Arco-Advice, que faz pesquisa e análise de políticas públicas em Brasília, Aragão já começa a preparar sua viagem a Nova York – onde todo início de ano, em janeiro e fevereiro, dá aulas de política brasileira na Universidade de Columbia. No seu balanço sobre o que muda e o que fica na cena política do País com o novo presidente, ele destaca: “Teremos um governo que vem com a chancela da Lava Jato”. E que traz “não só uma renovação de pessoas, mas também de costumes”.
Como explicar uma transição tão tranquila depois de se falar tanto em “ruptura” com o que havia antes?
Temos de fato uma transição muito positiva. Para começar, não há uma incompatibilidade ideológica entre o governo que sai e o que entra. Há uma continuidade na economia e nada do atrito que aconteceu na passagem de Dilma Rousseff para o Temer. Naquela ocasião não houve a menor boa vontade de se passar informações.
Mas há diferenças claras. Quais destacaria?
Primeiro, Bolsonaro chega com uma base política completamente diferente da que havia e que era a tradicional do meio político brasileiro. Segundo, agora há um viés ideológico – não chega a ser conflito, mas é algo mais à direita do MDB histórico. Terceiro, ele traz muitos quadros que não eram do círculo de poder, gente outsider ou do baixo clero. Por fim, um quarto ponto, essencial: vem com a chancela da Lava Jato. De certa forma, diria que este “é” um governo da Lava Jato. Se essa operação do MP e da PF atrapalhou os governos Dilma e Temer, agora ela vai ajudar o governo Bolsonaro. É uma diferença devastadora. E tem mais: o que veremos agora será um governo dialogando não com partidos, mas com bancadas. Esses pontos não são padrão na nossa história parlamentar.
Diria que o presidencialismo de coalizão está no fim?
Não, não vejo assim. O presidencialismo de coalizão no Brasil não vai acabar por causa do modo Bolsonaro de governar. Eles vão precisar de coalizões para aprovar projetos e emendas importantes. Como não temos um partido com maioria absoluta em ambas as casas, a criação de uma base torna a negociação inevitável. O que há de novo nessa relação é o esvaziamento do poder dos caciques tradicionais. E, junto a isso, o fim da fórmula “porteira fechada” para nomeações. Resta saber se vai funcionar, né?
Bolsonaro reúne-se nos próximos dias com cerca de 100 parlamentares dos principais partidos. Não lhe parece que é “mais do mesmo”?
Não me parece. Imagino que as pautas não terão conexão com interesses dos partidos. O que se percebe é que o presidente quer conexão direta com o Congresso, mostrar que os políticos não serão abandonados. Claro, essa iniciativa ajuda a bloquear algum movimento – já se falou nisso… – para isolar o PSL nas duas casas.
O governo FHC, nos anos 90, dialogava com bancadas…
Mas havia menos partidos do que hoje. E quem agrega votos, hoje? São as bancadas. Há dezenas delas – as mais organizadas são a ruralista, a evangélica, a de segurança pública, a da saúde e a dos funcionários públicos. Algumas vezes elas superam o poder de mobilização das lideranças partidárias. Manter a ligação com elas vai ser um fator decisivo.
A conversa constante com o Legislativo exige pragmatismo, concessões. O risco de atritos vai fazer parte desse jogo, não?
Apesar de o apoio popular ao eleito ser relevante, esses riscos não podem ser desprezados. O apoio de bancadas é um bom ponto de partida mas talvez não seja suficiente. Os partidos vão continuar decidindo na divisão dos cargos das mesas diretoras e das principais comissões técnicas. Aí, se o governo não estiver bem articulado com sua base política poderá ter surpresas. Exemplo: setores do atual Centrão podem se aliar ao PT para reagir a essa estratégia, visando construir certa autonomia nas duas casas. Ou seja, o Executivo terá que demonstrar perícia na coordenação dos grupos.
Você falou, anteriormente, num custo e curva de aprendizado da nova equipe. O que quer dizer?
Que eles vão pagar o preço da inexperiência. Novo governo pressupõe novo modelo de diálogo, nova organização do Executivo, dos ministérios, trazendo gente de fora do sistema… O governo terá que aprender. A Dilma Rousseff, por exemplo, nunca aprendeu.
Além disso a equipe é diversificada, não? Os estilos de Sergio Moro, Hamilton Mourão, Paulo Guedes ou Ernesto Araújo não chegam a ser harmônicos…
Sim. E outro ponto é que o governo vem com bandeiras quentes da campanha eleitoral que agora terão de ser transformadas em políticas concretas. Custo e curva de aprendizado são exatamente isso. Transformar intenções em realidades.
E quanto ao presidente? Ele tem um currículo político discreto, mas ao mesmo tempo é focado, sabe o que quer. Como será esse encaixe entre o que ele tem para dar e o que o País precisa?
Apesar de não ter sido um político do alto clero, Bolsonaro sempre teve uma identificação com seu eleitorado – tanto que retornou seguida vezes ao mandato no Congresso. Foi fiel a esse eleitorado e este lhe deu a base para chegar à Presidência. Ser do baixo clero não significa incompetência, significa apenas que ele não entrava no jogo das lideranças. E, como ressaltei, sua atuação é, de certa forma, ligada à Lava Jato – afinal, ela esvaziou um sistema político e com isso inviabilizou qualquer candidatura do establishment. Agora, ao virar presidente, ele assume uma postura mais prudente. Aquela testosterona toda que exibiu na campanha vai dando lugar a coisas mais pragmáticas.
Por exemplo?
Ele quer manter um controle bem próximo de duas questões fundamentais. A primeira, a fiscal, que é gravíssima, principalmente nos Estados e municípios. A segunda, a da segurança pública. Nesse sentido, ele quer empoderar dois núcleos do poder, Paulo Guedes e Sergio Moro. Vamos ver se o modelo dará resultado. Ele busca um comando bastante próximo, para jogar junto.
Há quem ache suspeita a apregoada renovação do Congresso, dizendo que ele é sempre o mesmo no controle de seus espaços.
Essa renovação do Congresso é um fenômeno vinculado à rotina política anterior. Mas o fator Lava Jato significa alguém no Ministério da Justiça avisando: “Olha, as regras de comportamento são outras agora”. O novo Legislativo vai se dar conta de que o jogo mudou.
Naquele ambiente de luta por verbas, por votos, por cargos, o que significa “mudou”?
Que não é só uma renovação de pessoas, mas também de costumes. Essa eleição traduziu o resultado de uma tomada de posição da sociedade. O eleitorado foi buscar um candidato de fora do establishment político – também no caso de alguns governadores e muitos deputados – e espera deles um novo tipo de comportamento. Esse é o primeiro ponto. O segundo é saber se esse Congresso vai ser reformista. Cabe lembrar que, de um modo geral, o Legislativo tem sido, sim, reformista.
Faz parte desse cenário uma esquerda fazendo o que gosta – oposição – e o PT tentando se reerguer. Que força a oposição poderá ter?
O primeiro ponto a mencionar é que a esquerda brasileira é arcaica, uma esquerda do século 20 – mais na sua primeira metade –, que enveredou pelo populismo, o clientelismo, o ideologismo… O PT deixou-se contaminar por isso tudo. Numa visão ideal, eledeveria fazer a autocrítica dos erros que praticou, entender a necessidade de o Brasil ter um ambiente progressista para os negócios, não só em direitos e garantias, mas também na geração de empregos, de negócios, como os outros países são. E que, para o bem do País, não atuasse de forma radical contra o debate das reformas. Mas o que foi que vimos? Que eles jogaram todas as cartas na “hipótese Lula”. Não deu certo. Antagonizaram-se com outras forças de esquerda e o que temos hoje é uma profunda desconfiança entre os três principais blocos dessa área – PT, PSB e PDT.
E ainda vão enfrentar a raiva do Ciro Gomes pelo caminho…
Sim, e o que o Ciro e o Cid Gomes fizeram é a prova disso. Deram o troco por tudo o que o PT lhes fez. Agora o partido terá de se reinventar para não se transformar num partido menor. Mas essa reinvenção é dramática. O PT se transformou numa religião e quebrar dogmas é muito complicado.
Você preside o Conselho de Comunicação Social do Congresso. O que será da comunicação no novo governo?
O governo Temer conseguiu avançar numa significativa agenda de reformas, mas teve uma trágica gestão na comunicação. Bolsonaro usa bem as redes sociais, mas comunicação é bem mais que imprensa e redes sociais. Exige visão estratégica, manter a população informada e uma base de sustentação mobilizada. Um exemplo: a reforma da Previdência tem de ser encarada como uma questão política, fiscal, social e de comunicação. Sem comunicação eficiente, ela não passará.
Leandro Colon: Diversionismo petista
Documento de diretório nacional omite falhas eleitorais e enfraquece oposição a Bolsonaro
O diretório nacional do PT se reuniu em Brasília um mês depois da derrota eleitoral de Fernando Haddad para Jair Bolsonaro.
No sábado (1º‘), divulgou um documento final do encontro. O balanço de oito páginas é recheado de clichês e bravatas capazes de fazer inveja a panfletos de centros acadêmicos.
O partido transfere a responsabilidade por seu fracasso na disputa presidencial ao que chama de “classes dominantes”, formadas, segundo o petismo, por políticos, setores da mídia, parte do judiciário, e “algumas forças externas”, todos agindo desde o final do segundo turno de 2014, diz a conclusão do diretório.
Em outro trecho, a sigla afirma que, após o impeachment de Dilma Rousseff, a “coalizão golpista não cessou sua caçada judicial contra o PT e o presidente Lula”. “Com a condenação e a prisão injustas dele, setores que dirigem o judiciário trabalharam para legitimar a narrativa da extrema direita: o PT apresentado como uma ‘organização criminosa’”, destaca o comando petista.
O documento diz ainda que a candidatura de Lula foi cassada “ilegalmente” e que foi correta a estratégia de “lutar até o limite” pela manutenção da candidatura do ex-presidente, condenado e preso em Curitiba. “Lula Inocente! Lula Livre!”, termina a resolução aprovada no sábado.
Sugestões internas foram dadas para que esse balanço incluísse autocríticas, inclusive sobre a política econômica do segundo governo Dilma Rousseff, considerada nos bastidores por figuras petistas como peça importante do declínio partidário.
Mas, não. No fim, optou-se por ignorar erros, como insistir em uma candidatura que jamais prosperaria, além de não admitir omissões que levaram a uma corrupção desenfreada nos governos do partido.
Legendas se organizam para uma oposição a Bolsonaro e não querem nem ver por perto o PT, que elegeu a maior bancada da Câmara. Uma oposição forte e coesa é imprescindível para o jogo democrático. A arrogância e o diversionismo dos petistas só favorecem o novo governo.
Elio Gaspari: O agronegócio não é uma ‘bancada do boi’
Contaminado por um setor paleolítico, o agronegócio brasileiro paga pelo que não é e não consegue mostrar o que é. Prova disso é que a defesa dos seus interesses é atribuída ao que denomina “bancada do boi”. Nessa bancada há trogloditas que querem queimar matas, calotear dívidas e invadir terras alheias. Defendendo-os, Jair Bolsonaro chega mesmo a acreditar que os quilombolas são um problema nacional.
Dois renomados historiadores — Herbert Klein, de Columbia e Stanford, e Francisco Vidal Luna, da USP — entregaram à editora da Universidade de Cambridge o texto de “Feeding the World” (“Alimentando o Mundo”), onde contam a história da revolução ocorrida na agricultura brasileira nos últimos 50 anos, acelerada neste século. O livro sairá em dezembro e a tradução, no ano que vem. O que houve foi uma revolução de verdade. De país atrasado, o Brasil tornou-se o maior exportador de soja, carnes processadas, laranjas e açúcar. É o quinto maior produtor de cereais. Enquanto a indústria nacional patinou depois da abertura da economia, o agronegócio adaptou-se, expandiu-se e adquiriu competitividade internacional.
Entre a década de 1980 e os últimos oito anos a produtividade das áreas plantadas cresceu 150%. Essa revolução juntou empreendedores e uma elite técnica formada com vigor chinês. Em 1999 o Brasil tinha seis mil estudantes de agronomia. Em 2007 eram 48 mil (40 mil dos quais em instituições públicas). Entre 1998 e 2017 foram produzidas oito mil dissertações de mestrado e três mil teses de doutorado. No pico desse êxito está a Embrapa, que se tornou um dos melhores centro de pesquisas agrícolas do mundo. Hoje o Brasil tem a terceira maior indústria de sementes.
Klein e Luna não deixam assunto sem análise, inclusive os problemas de pobreza e atraso, mas expõe uma revolução que está acontecendo. Ela é descrita em São Paulo, no Sul, e surpreende no Centro-Oeste. Uma migração espontânea, selvagem no início, transformou Mato Grosso num celeiro. Em 1970 lá existiam 600 tratores, 15 anos depois eram 20 mil. Em 1980, quando chegou a soja, cultivaram sete mil hectares. Em apenas nove anos, chegaram a 1,7 milhão de hectares. As taxas de fertilidade e mortalidade infantil caíram, enquanto a expectativa de vida subiu cerca de 20 anos desde 1960. Hoje o Mato Grosso tem um dos mais altos índices de terras tituladas (77%).
O agronegócio carrega entre 20% e 25% da economia nacional porque é moderno. A contaminação paleolítica obriga-o a ser ouvido como um Yo-Yo Ma tocando num violoncelo rachado. Carne? Joesley Batista. Meio ambiente? Jair Bolsonaro e seus conselheiros do agronegócio durante a campanha eleitoral.
O Globo: Generais fazem alerta sobre contaminação política e risco de associação entre governo e militares
Presença de militares do Exército no Planalto pode levar a um esvaziamento de decisões a cargo do Ministério da Defesa
Por Vinicius Sassine, de O Globo
BRASÍLIA — A presença de pelo menos três generais do Exército no Palácio do Planalto e na linha de frente do governo que começa no próximo dia 1º de janeiro pode levar a um esvaziamento de decisões a cargo do Ministério da Defesa — pasta responsável por supervisionar as três Forças Armadas — e a uma contaminação política das forças, com risco de associação direta entre governo e militares. A avaliação é feita reservadamente por generais com poder de decisão no governo Michel Temer e no futuro governo de Jair Bolsonaro .
O presidente eleito decidiu cercar-se de generais da reserva do Exército para governar. Seu principal conselheiro, que vem influenciando a composição do governo de forma decisiva, é o general Augusto Heleno, indicado para ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI). O general Carlos Alberto dos Santos Cruz será ministro da Secretaria de Governo. E o vice-presidente eleito, general Antônio Hamilton Mourão, quer despachar de dentro do Planalto, à frente de projetos de infraestrutura, de concessões na área e de uma espécie de coordenação dos ministérios.
Diante dessa configuração, passaram a ser frequentes as afirmações no sentido de que governo e Forças Armadas são dissociados e não devem ser confundidos, embora tenham saído do Exército alguns dos principais nomes da gestão Bolsonaro. A preocupação de generais que fazem circular essas afirmações é com uma associação direta entre a Presidência da República e as Forças Armadas, especialmente em eventuais crises que venham a ocorrer ao longo do governo.
Se algo não sair bem...
Ainda na campanha presidencial, o entusiasmo na caserna com a candidatura de Bolsonaro — capitão do Exército até o ingresso na carreira de político, em 1989, quando foi eleito vereador — já era bastante amplo, contaminando as mais diferentes escalas da hierarquia militar. Reservadamente, generais com poder de decisão apontam que será possível dissociar o governo dos militares e que as escolhas de Bolsonaro são coerentes com o que afirmou durante a campanha. O presidente eleito já falava na disputa em cercar-se de militares para governar. Mesmo assim, esses oficiais manifestam preocupação.
O temor principal é com crises ao longo do governo, que podem arrastar os militares para o centro das cobranças da população. O problema é se “alguma coisa não sair bem”, nas palavras de um general. Por isso, os generais que despacharão dentro do Palácio do Planalto se esforçarão para manter uma separação entre governo e Forças Armadas, diz ele.
O risco mais concreto, na visão de generais em posições de tomada de decisão, é de esvaziamento do Ministério da Defesa. Nas palavras de um general, é real o risco de que “um se sente na cadeira do outro”. Outro general afirmou ao GLOBO que o único representante político das Forças Armadas é o Ministério da Defesa. Assim, não caberia a mais ninguém qualquer decisão relacionada às três forças do país.
Bernardo Mello Franco: O presidente no zoológico
Bolsonaro comparou os índios a animais no zoo. Em Brasília, vai enfrentar a primeira deputada indígena. ‘Ele tem que parar de falar coisas erradas’, diz Joênia Wapichana
É exótica a fauna que habitará o Planalto a partir de 2019. O governo de Jair Bolsonaro vai reunir pavões, gorilas e outros bichos. Aos olhos do presidente eleito, os animais são os outros. Na sexta-feira, ele comparou os índios que vivem em reservas a feras no zoológico.
“Na Bolívia, tem um índio que é presidente. Por que no Brasil devemos mantê-los reclusos em reservas como se fossem animais em zoológicos?”, provocou o capitão.
Bolsonaro não chega a repetir Manuel da Nóbrega. No século XVI, o padre dizia que “índios são cães em se comerem e matarem e são porcos nos vícios e na maneira de se tratarem”.
As palavras são outras, mas a visão parece a mesma. Para o presidente eleito, o índio é comparável a um animal. Se quiser ser “um ser humano igual a nós”, tem que abandonar seu território e migrar para a periferia das cidades. O discurso soa como música para ruralistas, grileiros e mineradores, todos ansiosos para explorar as terras protegidas.
Bolsonaro não esconde o que pretende. “No que depender de mim, não tem mais demarcação de terra indígena”, disse, no mês passado. A ameaça tem alvo certo. Segundo a Funai, o país tem 130 territórios em processo de demarcação. Outros 115 estão em estudo.
“Índios não estão em reservas, muito menos em zoológicos. Índios vivem em territórios próprios, que são garantidos pela Constituição”, esclarece o antropólogo Mércio Gomes, professor da UFRJ e ex-presidente da Funai.
Ele diz que o capitão deveria se inspirar no marechal Cândido Rondon, que criou o Serviço de Proteção ao Índio e chegou a ser indicado ao prêmio Nobel da Paz pelo físico Albert Einstein. “Nem a ditadura revogou terras indígenas. Apelar ao exemplo de Rondon é apelar às melhores tradições do Exército”, afirma.
O discurso de Bolsonaro preocupa a advogada Joênia Wapichana. Em 2008, ela foi à tribuna do STF defender a demarcação da Raposa Serra do Sol. Dez anos depois, tornou-se a primeira mulher indígena a ser eleita deputada.
“A demarcação das terras e a proteção dos povos indígenas estão amparadas na Constituição. São deveres do Estado, não dependem da vontade de nenhum governo”, afirma a parlamentar, eleita pela Rede em Roraima.
A Carta de 1988 determinou que as demarcações fossem concluídas em cinco anos, mas o processo já se arrasta há três décadas. “Está mais do que atrasado”, constata a deputada.
Na sexta, o presidente eleito insistiu na tese de que as terras indígenas poderiam se separar do Brasil. “Não pode usar a situação do índio para demarcar essa enormidade de terras que poderão ser novos países no futuro”, disse.
“Esta é uma questão ultrapassada. O Supremo já deixou claro que as terras indígenas pertencem à União”, rebate Wapichana. “Os índios são cidadãos brasileiros. Nossa luta é pelo respeito e pelos direitos que estão na lei”.
A deputada lembra que Bolsonaro já se desculpou com a presidente do Tribunal Superior Eleitoral por suas “caneladas”, um eufemismo para as notícias falsas que questionavam as urnas eletrônicas. “Agora ele tem que parar de falar coisas erradas sobre os índios. É bom pensar um pouco para não ter que pedir desculpas depois”, conclui.
Merval Pereira: Complexo de vira-lata
Nosso complexo de vira-lata nos faz enxergar subserviência onde há gentileza, mas também leva nossa política externa a macaquear a de Trump
Para mostrar que a continência de Bolsonaro ao assessor americano John Bolton não passou de um gesto de gentileza, e não subserviência, como apregoa a oposição, tratei na coluna de ontem do complexo de vira-lata, que faz com que distorçamos o sentido de um gesto, mas também leva Eduardo Bolsonaro, deputado federal, filho do presidente eleito, a usar um boné com os dizeres “Trump 2020” numa visita oficial aos Estados Unidos. E nossa política externa a macaquear a de Trump, visto pelo futuro chanceler Ernesto Araújo como um deus político que vai salvar o Ocidente. Logo nós, latinos, que nem mesmo somos considerados ocidentais pela cultura anglo-saxã. Pois bem, encerramos esta semana na Academia Brasileira de Letras um ciclo de palestras justamente sobre como nos vemos como povo.
Fizemos um balanço do legado do movimento barroco, o que o escritor Jorge Maranhão chamou de “barroquismo brasileiro”, que se mantém enraizado na nossa cultura. Abordamos as distorções entre a teoria e a prática, o pensar e o agir, o código moral e a conduta social (o caso do cidadão que combate a corrupção, mas dá uma propina para ao guarda da esquina), a observância da lei, num país em que há leis que simplesmente não pegam.
Uma transposição cultural desastrosa do barroco, segundo a visão classicista de Jorge Maranhão. Mas pudemos entender também a criatividade da nossa cultura, compreender mais profundamente as influências musicais, as festas como o carnaval, o cinema de Glauber Rocha, o mais recente filme do acadêmico eleito Cacá Diegues, “O Grande Circo Místico”, obras por excelência barrocas.
Para o professor Mario Guerreiro, outro palestrante, o homem brasileiro herda alguns dos traços do estilo barroco: a extravagância, a profusão de curvas, a irregularidade, a incoerência. Um país de mentalidade barroca. É a velha disputa entre o homo faber e o homo ludens.
Nelson Rodrigues, nosso grande escritor marcado pela exuberância dos sentimentos, dizia que não há no mundo figura humana tão complexa, tão rica, tão potencializada como o brasileiro. O historiador Alberto da Costa e Silva, da Academia Brasileira de Letras, o maior especialista brasileiro em África, tem uma visão positiva das heranças ibéricas e africanas: “Uma troca permanente de culturas, costumes, de modos de viver, de valores, de gostos de um lado para o outro”.
O antropólogo Roberto Da Matta resume o Brasil como múltiplo e rico, o país do carnaval e do feijão com arroz, da mistura e da fantasia. Mas também do jeitinho que dribla a lei, da hierarquia velada pela cordialidade, dos valores democráticos que lutam para se instalar.
A professora Denise Maurano fez uma bela palestra sobre a influência do barroco na cultura brasileira, no que ela tem de melhor e de pior. Se a carnavalização atrasa nosso desenvolvimento como sociedade, o carnaval é uma característica cultural importante no significado além da festa.
A antropóloga Maria Laura Viveiros de Castro analisa o carnaval como “festa pública e urbana por excelência, (que) conclama os cidadãos a reivindicarem territórios para a folia”. Ela nos lembra que o carnaval é também trabalho e arte e destaca que a influência ibérica da noção de tempo permitiu o surgimento de novas modalidades culturais, um tempo que não era simples adequação ao trabalho contínuo, mas de alternância entre trabalho e lazer, dança e labor.
O ex-presidente do Supremo Tribunal Federal Nelson Jobim abordou o juridiquês, esse idioma parecido com o português, salteado com termos em latim, que nos acostumamos a ouvir durante a transmissão dos julgamentos pela televisão. Rebuscamento da linguagem para dar mais solenidade ao que se fala.
Como tudo comporta visões diversas, o ex-presidente do STF criticou o televisionamento dos julgamentos, demonstrando que os votos ficaram mais longos. Mas ressaltou a vantagem da transparência do processo decisório do Supremo.
A propósito, o economista-filósofo Eduardo Giannetti vira do avesso o “complexo de vira-lata”, defendendo em recente livro que não ter pedigree é um caminho civilizatório tão válido quanto os de sociedades exemplos de desenvolvimento. Afinal, pergunta Giannetti, que mal há em ser vira-lata?
O ex-presidente dos Estados Unidos Barack Obama tornou realidade essa metáfora de Giannetti quando se declarou mutt, isto é, mestiço, ou vira-lata na acepção do nosso dia a dia.
Bruno Boghossian: Supremo precisa decidir se pode ou não se intrometer em outros Poderes
Um espectador desavisado poderia confundir as últimas sessões do STF com um ato de contrição. Lembrando o princípio da separação de Poderes, a maioria dos ministros sustentou que juízes não podem interferir nas competências de outras autoridades.
O argumento deve embasar a liberação do decreto de indulto natalinode Michel Temer. Não se deve esperar do tribunal, porém, uma revisão dos limites de sua atuação. O Supremo deixa intocada uma coleção de momentos em que se intrometeu no Executivo e no Legislativo.
Edson Fachin reconheceu a ironia. Ele ponderou que, se o STF não tem poderes para cassar o decreto, também não deveria anular a nomeação de ministros por um presidente.
A corte não teve esse espírito em episódios recentes. Em 2016, Gilmar Mendes suspendeu a nomeação de Lula como ministro da Casa Civil. Embora Dilma Rousseff tivesse autonomia para escolher sua equipe, o magistrado considerou o ato uma “falsidade” para proteger Lula.
No início deste ano, Cármen Lúcia deu aval à decisão de um juiz de primeira instância que proibiu a posse de Cristiane Brasil no Ministério do Trabalho. Uma decisão capenga dizia que ela não poderia assumir o cargo porque havia sido condenada em um processo trabalhista.
Os braços togados também alcançaram decisões econômicas. Ricardo Lewandowski chegou a travar a privatização de uma distribuidora de energia quebrada em Alagoas e proibiu o governo de adiar o aumento de salário de servidores.
Em 2017, na intromissão mais esdrúxula dessa classe, Luiz Fux cancelou a votação na Câmara do pacote anticorrupção. O ministro afirmava que o projeto de iniciativa popular não poderia ter sido alterado —ou seja, que os deputados não podem legislar como bem entenderem.
Nos próximos anos, o Supremo certamente será chamado para administrar tensões com o governo Jair Bolsonaro. O tribunal precisará se olhar no espelho para definir as fronteiras de sua atividade política.
Fernando Henrique Cardoso: Um novo caminho
Há espaço para propostas que juntem modernidade e realismo, sem extremismos
A última eleição foi um tsunami que varreu o sistema político brasileiro. Terminou o ciclo político-eleitoral iniciado depois da Constituição de 1988. Ruiu graças ao modo como se formaram os partidos, o sistema de voto e o financiamento das campanhas. A vitória da candidatura Bolsonaro funcionou como um braço cego da História: acabou de quebrar o que já estava em decomposição. Há muitos cacos espalhados e há a necessidade de reconstrução. Ela será feita pelo próximo governo? É cedo para dizer.
O sistema político-partidário não ruiu sozinho. As fraturas são maiores. Antes, o óbvio: a Lava Jato mostrou as bases apodrecidas que sustentavam o poder, sacudiu a consciência do eleitorado. Qualquer tentativa de reconstruir o que desabou e de emergir algo novo passa pela autocrítica dos partidos, começando pelo PT, sem eximir o MDB e tampouco o PSDB e os demais. Na sua maioria, os "partidos" são sopas de letras, e não agremiações baseadas em objetivos e valores. Atiraram-se na captura do erário, com maior ou menor gula.
Visto em retrospectiva, é compreensível que um sistema partidário sem atuação na base da sociedade se desmonte com aplausos populares. Os mais pobres encontram nas igrejas evangélicas – e em muito menor proporção na Igreja Católica e em outras religiões – recursos para se sentirem coesos e integrados. O povo tem a sensação de que os parlamentos e os partidos não atendem aos seus interesses. O eleitorado, contudo, não desistiu do voto e imaginou que talvez algo "novo", inespecífico, poderia regenerar a vida pública.
Não foi só isso que levou à vitória o novo presidente. Basta conhecer mais de perto a vida dos mais pobres nas favelas e nas periferias carentes de quase tudo para perceber que pedaços importantes do território vivem sob o domínio do crime organizado, violência que não se limita a essas populações, pois alcança partes significativas da população urbana e rural.
Inútil imaginar outros motivos para a vitória "da direita". Não foi uma direita ideológica que recebeu os votos. Estes foram dados mais como repulsa a um estado de coisas em geral e ao PT em particular. O governo foi parar em mãos mais conservadoras, e mesmo de segmentos abertamente reacionários, não pelas propostas ideológicas que fizeram, e sim pelo que eles simbolizaram: a ordem e a luta contra a corrupção. Não venceu uma ideologia, venceu o sentimento de que é preciso pôr ordem nas coisas, para estancar a violência e a corrupção e tentar retornar a algum tipo de coesão social e nacional.
Enganam-se os que pensam que "o fascismo" venceu. Enganam-se tanto quanto os que veem o "comunismo" por todos os lados. Essa polarização marcou a pugna política em outra época de antes da 2.ª Grande Guerra, ao fim da qual foi substituída pela polarização entre capitalismo liberal e socialismo.
Os problemas básicos do País continuarão a atazanar o povo e o novo governo. Este não será julgado nas próximas eleições por sua ideologia "direitista", mas por sua capacidade, ou não, de retomar o crescimento, diminuir o desemprego, dar segurança à vida das pessoas, melhorar as escolas e os hospitais, e assim por diante.
Com isso não quero justificar a "direita", dizendo que se for capaz de bem governar vale a pena apoiá-la, mas também não posso endossar a “esquerda”, quando ela deixa de reconhecer seus erros, conclama a votar contra tudo o que o novo governo propuser, sem considerar o que realmente conta: quais os efeitos para o bem-estar das pessoas, para o fortalecimento dos valores democráticos e para a prosperidade do País.
As mudanças pelas quais passamos, aqui e no mundo, são inúmeras e profundas. Pode-se mesmo falar numa nova "era", a da conectividade. Se houve quem escrevesse "cogito ergo sum" (penso, logo existo), como fez Descartes, se depois houve quem dissesse que o importante é saber que "sinto, logo existo", em nossa época, sem que essas duas afirmativas desapareçam, é preciso adicionar: "Estou conectado, logo existo". Vivemos a era da informática, das comunicações e da inteligência artificial, que sustentam o processo produtivo e formam redes entre as pessoas.
As novas tecnologias permitem formas inovadoras de enfrentar os desafios coletivos, assim como acarretam alguns inconvenientes, como a dificuldade de gerar empregos, a propagação instantânea das fake news, a formação de ondas de opinião que mais repetem um sentimento ocasional do que expressam um compromisso com políticas a serem sustentadas em longo prazo. Elas dependem de instituições, partidos, parlamentos e burocracias para serem efetivas.
As questões centrais da vida política não se resumem, no mundo atual, à luta entre esquerda e direita. No passado o espectro político correspondia a situações de classe, interpretadas por ideologias claras, assumidas por partidos. Na sociedade contemporânea, com a facilidade de relacionamento e comunicação entre as pessoas, os valores e a palavra voltaram a ter peso para mobilizar politicamente. Isso abre brechas para um novo populismo e uma exacerbação do personalismo. O desafio está em recriar a democracia. O que chamo de um centro radical começa por uma mensagem que envolva os interesses e sentimentos das pessoas. E essa mensagem, para ser contemporânea, não deve estancar num palavreado "de direita" nem "de esquerda". Deve, a despeito das divergências de classe que persistem, buscar o interesse comum capaz de cimentar a sociedade. O País não se unirá com o ódio e a intransigência cultural existentes em alguns setores do futuro governo.
Há espaço para propostas que juntem a modernidade ao realismo e, sem extremismos, abram um caminho para o que é novo na era atual. Esse percurso deve incorporar a liberdade, especialmente a de as pessoas participarem da deliberação dos assuntos públicos, e a igualdade de oportunidades que reduzam a pobreza. E há de ver na solidariedade um valor. Só juntos poderemos mais.
*Fernando Henrique Cardoso é sociólogo, foi presidente da República
Folha de S. Paulo: É exagero dizer que Bolsonaro é golpista, diz Almino Affonso, cassado em 64
Ex-ministro do Trabalho de Goulart afirma que quadro é diferente do que levou ao regime militar
Ricardo Kotscho e Catia Seabra, da Folha de S. Paulo
SÃO PAULO- Prestes a completar 90 anos, o ex-deputado Almino Affonso afirma que a omissão dos grandes partidos, sobretudo PSDB e MDB, abriu um vazio político no Brasil. Dele, surgiu Jair Bolsonaro.
Ministro do Trabalho de João Goulart (1961-64), Almino não vê hoje cenário propício a um novo golpe de Estado.
Mas, ao lamentar a falta de líderes capazes de ocupar esse vazio e lembrar a Alemanha assolada após a 1ª Guerra, afirmou: “O Hitler ocupou”.
Ex-tucano e ex-emedebista, Almino faz um apelo para que o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso assuma uma atitude de estadista.
Almino afirma ainda que a concentração de poder nas mãos do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva matou o debate interno no PT.
Em 1961, o sr advertiu que a renúncia do então presidente, Jânio Quadros, fazia parte de um golpe de Estado. Para o sr., há hoje risco de um golpe, como afirmam integrantes da esquerda?
Não chutei [à época]. É provado. Tem um livro, chama “História do Povo Brasileiro” [aponta a estante], escrito, muito tempo depois, por ele [Jânio] e por Afonso Arinos, em que ele confessa a renúncia como algo articulado para o golpe. Na tribuna, fiz por pura intuição.
A mensagem que ele manda ao país para justificar a atitude era uma contradição: o Exército está com ele, o povo está com ele, o empresariado está com ele… Tudo estava com ele. E o país era ingovernável?
Hoje, existe um cenário propício?
Vejo um quadro rigorosamente diferente. Tivemos naquele período a Guerra Fria. Tudo que não levava apoio ao EUA era presuntivamente prova de que apoiávamos a URSS. Essa visão influiu na opção militar. Mas houve causas de natureza social, inflação galopante, crise social aguda, desemprego, dívida externa.
De nossa parte, uma reforma agrária contestada por interesses contrariados. No Congresso, a maioria era favorável a manter a Constituição como estava, de modo que impedia uma reforma. São causas laterais que criaram um conflito da inviabilidade do governo Jango.
E hoje?
Hoje você tem um governo de uma liderança que, para setores da sociedade, é inaceitável e questionável. Mas daí dizer que dele resulta uma articulação golpista, acho que é uma visão exagerada.
Bolsonaro chega ao governo sem que tenha um programa minimamente apresentável. Ele foi eleito por essa maioria fascinante do ponto de vista numérico como um grande protesto nacional contra tudo. Não especificamente a favor dele.
É contra o desamparo, o desemprego, a corrupção, contra os partidos políticos que se deterioraram e foram se transformando em grupelhos. Ele tem o privilégio de ter uma maioria fascinante. Quem, antes dele, teve algo semelhante? Getúlio Vargas, no mandato de 1950. Fora isso, quem? Nem o Lula.
Em 2002, Lula teve mais votos.
Mas não com essa dimensão.
O sr. acha que o povo deu um cheque em branco?
Essa é a inquietação. Você tem um país ainda sem programa, a revolta é real e numa expectativa de que ele responda. E Bolsonaro tem pela frente muitas perguntas.
O seu foi o 14º nome da lista de cassados no dia 9 de abril de 1964, pelo golpe deflagrado sob pretexto de salvar o Brasil do comunismo. Aos 89 anos, o sr. ainda se considera um perigoso comunista?
Não vejo correlação entre o passado e hoje. Não vejo a presença comunista no país sendo objeto de um debate. Menos ainda de um risco qualquer.
O sr. mesmo já disse que em 1964 não havia esse risco.
Não havia o risco comunista de verdade. Mas houve uma programação acusatória, com a grande imprensa inclusive, e influiu muito na decisão dos militares. Se pegar todos os manifestos dos principais líderes militares no dia do golpe, os quatro generais, todos dizem que estão salvando o país do comunismo.
Mas esse discurso voltou. Quem faz oposição ao Bolsonaro é chamado de comunista, vermelho. Essa ameaça estava no discurso de campanha do presidente eleito.
Quem são os comunistas hoje nessa acusação implícita ou explícita? Seria o PT? O PT não tem nada de comunista. Lula nunca foi comunista. Haddad é nada comunista. Não vejo nenhuma organização comunista que justifique esse tipo de argumentação.
O sr. atribui o golpe ao contexto da Guerra Fria. Hoje quais são os interesses geopolíticos em jogo nessa guinada de poder no Brasil? O mundo está caminhando para a direita?
O mundo está tendo uma projeção à direita crescente. O quanto isso se articulará em organizações à maneira do nazismo e do fascismo me parece, neste instante, muito distante.
Mas há algo que pode associar-se. Termina a Primeira Guerra Mundial. Você tinha a Alemanha arrasada, humilhada. Nesse imenso vazio, surge uma liderança que gradualmente incorpora esse protesto. Foi criando o Hitler. Esse potencial me inquieta. Não estou dizendo que ele está configurado. Mas há algo de semelhante.
Assistindo à montagem do governo, o sr. diria que ele aponta para um equilíbrio social?
Não votei nele. Dei nota dizendo que votaria no Haddad. Mas ele está tendo, até com razões de eu aplaudir, atitudes que ganham apoios impensáveis. Exemplo: a convocação do Sergio Moro para o ministério. Joga crédito para o ponto de partida do governo. Não há governos que não tenham em seus ministérios balanças e contrabalanças.
Na volta do exílio, o sr. participou de governos do MDB e do PSDB. Nas eleições, esses dois partidos foram derrotados pela onda conservadora de Bolsonaro. O que aconteceu que o chamado centro se desmanchou?
Ambos os partidos descumpriram os papéis mínimos para os quais nasceram. O PSDB ficou tão marginalizado diante dos problemas a serem enfrentados que teve a derrota que teve. Culpa pessoal do Alckmin? Quem quiser analisar dirá o sim, dirá o não. Geraldo sim, Geraldo não. Mas teve o arrebentamento interno partidário.
O PSDB estava fraturado de ponta a ponta do país em plena eleição. E, se eu tomo a presença do PSDB como partido da oposição ao longo dos governos Dilma e Lula, quando a corrupção se transformou em um tema —não estou dizendo que houve ou não houve, mas se transformou em um tema de presença política diária—, o papel do PSDB foi de uma omissão total. Ele não cumpriu o papel de anticorrupção.
E o MDB?
Tudo o que estou dizendo vale enormemente para o próprio governo. Se você levar em conta o número de figuras ligadas ao governo sucessivamente acusadas perante o STF... Alguns estão presos. Outros com processo caminhando. Onde o MDB cumpriu essa papel anticorrupção? Pelo contrário. Afundou-se nisso.
O sr. acha que se o PSDB tivesse expulsado o Aécio e demais acusados poderia se credenciar para o papel de anticorrupção?
Pelo menos, tinha o dever de cumprir esse papel. Com uma história pessoal de um jovenzinho que chegou à presidência da Câmara, ligado a essa figura marcante que foi Tancredo Neves, senador da República que quase chegou à Presidência, Aécio tinha o dever de cumprir esse papel de vanguarda. Não cumpriu. Tudo que falo do PSDB canaliza-se em figuras omissas. Lamento dizer que Aécio Neves não cumpriu o papel que o cargo dele o obrigava.
Mas se ele mesmo foi denunciado.
Só agrava o que está dizendo.
O sr. acha que o PSDB deveria ter expulsado Aécio? Que Alckmin deveria ter coordenado o trabalho de investigação interna?
Mas o Alckmin entrou na presidência do PSDB anteontem. Ele ficou literalmente só. Não estou defendendo o Alckmin. Constatando. Alckmin foi candidato à Presidência sem partido. FHC, líder nacional, disse uma palavra sobre isso? Nenhuma. O Aécio nem tinha condições de dizer no grau de estar sob quase que em uma condenação grave. Meu amigo José Serra, por problemas de saúde ou não, silenciado.
Serra também foi acusado.
Lamentavelmente também ele. Você pega o Tasso Jereissati… As lideranças do PSDB deixaram Alckmin literalmente só.
E, nessa reta final, o único que se manifestou contra o Bolsonaro, diante de risco de retrocesso, foi o próprio Tasso. O sr. acha que o PSDB se omitiu?
Estou dizendo que as omissões não são de agora. Vêm vindo gravemente. E não dá para excluir isso do grau de desatenção popular que houve.
Alckmin perdeu para Bolsonaro no interior de São Paulo, depois de ter sido três vezes e meia governador do estado. É pobre como explicação analisar essa derrota pelo mero “errou, não foi enfático, não é bom orador”. Para mim a explicação é esse vazio da corresponsabilidade, sobretudo do PSDB e MDB. Porque o PT ficou no banco dos réus. E também não cumpriu o papel do anti que deveria ter cumprido de maneira enfática.
O sr. já disse que em 1964 os dois lados tinham um projeto de país e que hoje não existe nenhum. Qual seria o projeto nacional para o país?
Que surja um partido que cumpra um papel efetivamente democrático. Os partidos se esvaziaram. Não há debate interno. Nem no PT.
No meu último mandato de deputado federal, o PT tinha uma bancada brilhante. Para qualquer tema, antes de decisão, tinha uma reunião. Isso murchou. “Quem é candidato? Lula quer.
Quem é? Não quer”. Isso se tornou tão autocrático que matou muito a vitalidade do partido. Essa é minha visão de fora.
No PSDB foi assim. No MDB não precisa nem falar. Há algo antidemocrático profundo. Um amordaçamento na sociedade.
O Brasil não tem um projeto?
Se tem, não tive a honra de saber. Em abril, completo 90 anos. Quero comemorar meus 90 anos sabendo qual é o projeto. Juro a você que vou para a rua.
Que projeto faria o sr. ir às ruas?
A preliminar é recriar a mensagem da articulação democrática no país. Ou há partido que democraticamente funcione ou não tem saída.
O sr. acha que a concentração de poder nas mãos de Lula foi nociva?
Foi. Fiz a comparação do que foi a bancada do PT no último mandato que exerci, onde havia uma presença real de debate. O Lula cumpriu um papel de liderança exponencial, mas afogou a possibilidade de participação generalizada. As figuras foram sumindo.
Nos atos contra a prisão dele houve uma mobilização maior, inclusive de jovens. O sr. acha que isso poderia revigorar o partido ou o PT está condenado ao esfacelamento?
Esse drama não é de um, mas de todos os partidos. Ou esses partidos ressurgem ou não sei. Volto agora à sua primeira pergunta, se no quadro atual há riscos [à democracia] ou não. Quando você não tem uma comunidade organizada, tem. Tem lá uma figura importante da velha Grécia que dizia que não há lugar vazio. O vazio se ocupa. É tão verdadeiro isso.
O Bolsonaro ocupou.
Não quero fazer essa comparação para não ficar fazendo fantasias adoidadas: o Hitler ocupou. Havia o vazio na Alemanha. E o vazio se ocupa. Há uma liderança [no Brasil]? Eu diria que, potencialmente, há. Há intelectuais de valor, figuras com conhecimento de história, que percebem tudo que estamos dizendo aqui. Ou não percebem?
O sr. acha que o Bolsonaro pode ser esse líder? O sr. diz que existe um vazio programático e organizativo no país. O sr. acha que alguém pode ocupar esse vazio?
Não sei o que é o Bolsonaro. Quero que o Brasil saia do atoleiro. Mas ele até agora não revelou isso. Para mim, o primeiro gesto dele foi a escolha do Moro, de muita significação. Se ele puder aqui, ali e ali, cria em torno dele este núcleo para um governo que pense. Até agora, não mostrou isso.
Quem poderia ocupar essa liderança?
Tem uma figura que teve uma história. Foi o Fernando, FHC. Foi duas vezes presidente da República, ministro das Relações Exteriores e ministro da Fazenda, em algo que foi significativo, que foi o Plano Real. Ele vai perdoar-me pela relação humana.
Seria um homem que tem condições pessoais para poder dizer “convido, proponho nós três para…”. As precondições ele tem. Por que não assume? Digo, de público, assuma, Fernando. Você tem uma história, tem condições, tem renome, tem um nome limpo. Assuma. Não diga as coisas em meio-termo. Não diga em reticências. O país está precisando de alguém que assuma um papel relevante e congregue em nome disso.
O sr. acha que Moro pode vir a ocupar um papel de liderança? Dizem que ele tem um projeto político.
Não sei se ele tem temperamento político. Porque não basta saber. É preciso ter um quê, um certo charme. Para uma liderança política, ele não revela ter.
Especula-se o nome de Moro para a sucessão, João Doria está se articulando para 2022 e Ciro Gomes já está articulando uma frente cirista. O sr. consegue vislumbrar um cenário para 2022?
Não vai faltar nunca candidato a candidato. Precisamos de um estadista neste país.
O sr. citou FHC.
Não estou dizendo que ele é. Fiz um apelo para que ele seja. Ele vai se zangar comigo. Mas não disse que ele é.
O sr. acha que, se ele tivesse atuado como um estadista durante essa eleição, o resultado seria outro?
Se o PSDB tivesse atuado como deveria, não estaríamos neste atoleiro. O PSDB tem uma corresponsabilidade muito grande por esse quadro negativo.
Por que declarou voto em Haddad?
Porque sou defensor absoluto do dever de votar. Entre os dois, eu dizia “há, pelo menos, do lado de Haddad figuras que eu, de alguma forma, conheço, sei e quem sabe pode criar no entorno dele ”. Do outro lado, eu não sabia nada. Não sei nada do Bolsonaro.
E a própria forma que, ao longo da campanha, o Bolsonaro teve expressões de um radicalismo estúpido até, eu me perguntei por que daria crédito. Eu também não achava que estávamos indo para uma solução. Com devido respeito, Haddad não encarnava uma solução. Haddad é um ser humano respeitável. Mas não encarnava a solução.
Vinicius Torres Freire: Bolsonaro e o gasto em saúde e educação
Equipe do presidente pode mudar piso de despesa social e reajuste de aposentadorias
Gente curtida no trabalho de aprovar reformas importantes diz que o Congresso não digere a tramitação de mais do que dois projetos grandes ao mesmo tempo.
Grandes como o quê? Por exemplo, uma reforma da Previdência e um pacote de segurança pública, para dar um exemplo baseado em intenções de Jair Bolsonaro.
A equipe econômica do presidente eleito parece ter ambições maiores, de mexer até em reajuste de aposentadoria e em gasto mínimo com saúde e educação.
No início de 2019, quer levar ao Congresso uma reforma da Previdência mais ou menos à moda daquela de Michel Temer, mas também a refundação previdenciária para o futuro (o regime de capitalização, de poupança individual para a aposentadoria).
Agora, estuda ainda um plano de desindexação das despesas com benefícios previdenciários, saúde e educação.
Trocando em miúdos: em situação excepcional ou de risco de estouro de limite de despesas, do “teto de gastos”, não haveria reajuste do benefício previdenciário nem pela inflação. Além do mais, poderia ser revogada ou suspensa a exigência de gastos mínimos com educação e saúde.
Tudo isso depende também de reforma constitucional, 308 votos na Câmara, duas votações em cada Casa do Legislativo, uma dificuldade imensa, como qualquer leitor de jornal está cansado de saber.
A Constituição determina a manutenção do valor real dos benefícios previdenciários (isto é, reajuste ao menos pela inflação). A emenda constitucional do “teto” acabou com a obrigação de gastar uma certa fatia da receita federal com saúde e educação, mas exige pelo menos o desembolso do equivalente à despesa de 2017 nessas áreas, corrigida pela inflação, mudança aprovada por Temer em 2016.
Não está claro se essas reformas novas entrariam em uma fila de projetos do Ministério da Economia. Poderia ser o caso de tocar a Previdência, em primeiro lugar, seguida talvez da desvinculação de gastos, continuando pela tentativa de reforma tributária e, depois, da mexida em carreiras e salários dos servidores, para tratar apenas dos rolos maiores. É apenas um exemplo.
O pessoal curtido em reformas, gente que trabalhou em equipes econômicas de mais de um governo, fica impressionado com a ambição. Esse seria um programa para anos, um mandato inteiro ou mais, diz um desses veteranos de batalhas parlamentares.
Um outro acredita que mesmo a tramitação da reforma previdenciária de Temer, já mastigada no Congresso, tomaria metade do ano. Uma reforma maior, começando do zero, como a planejada pelo pessoal de Bolsonaro, poderia levar mais de ano.
O fato de o presidente estar fresquinho, tendo sido recém-eleito por maioria folgada, não ajuda? Sim, desde que:
1) aproveite a força política para aprovar um assunto complicado por vez, de preferência começando com a reforma previdenciária que já tramita no Congresso;
2) crie logo uma coordenação política crível;
3) tome cuidado ao se envolver em um confronto sanguinolento pelas presidências da Câmara e do Senado, que pode criar desafetos demais para Bolsonaro.
Esse é apenas o filé das mudanças. Ainda haveria privatizações por fazer, um projeto de abertura comercial que terá oposição amarga de setores industriais, um superministério para organizar e a administração do dia a dia de uma economia em estado crítico.
É uma ambição rara de ver, para comentar a coisa em tom otimista.