Bolsonaro

Sérgio Augusto: A volta do ‘Pasquim’

Catarse coletiva de norte ao sul do País, fenômeno igual nunca se viu na imprensa brasileira

Pouco antes das eleições, o presidente eleito revelou que um dos objetivos de seu governo seria fazer o Brasil semelhante ao de 50 anos atrás. Fiz as contas, deu 1969.

Vivíamos em 1969 sob uma ditadura militar, que o ex-capitão e seu vice general negam com a mesma convicção dos que contestam o Holocausto, o aquecimento global, a esfericidade da Terra e a inexistência de Papai Noel.

Muita mais gente do que se imagina sente nostalgia por um tempo que não viveu. Tenho amigos que, a exemplo do protagonista daquela comédia de Woody Allen, lamentam não terem vivido na Paris dos anos 1920, quando os pais de alguns deles ou ainda eram bebês ou nem haviam nascido. Tal não é o caso do presidente eleito, que já era vivo em 1969. Mas tinha apenas 14 anos quando tudo aquilo aconteceu, sem ele se dar conta.

Desde dezembro do ano anterior enfrentávamos o tacão do AI-5 (epa! 50 anos redondos na próxima quinta-feira) e já testemunháramos a invasão do Teatro Ruth Escobar, na capital paulista, pelo Comando de Caça aos Comunistas, que depredou o cenário e espancou o elenco do musical Roda Viva, de Chico Buarque (pois é, já naquela época Chico incomodava os boçais).

Em vez de punir exemplarmente os celerados do CCC, o que fez a ditadura? Proibiu o espetáculo, “degradante e subversivo”, na tacanha avaliação do censor Mário F. Russomano.

Antes de saltar para 1969, outra deplorável lembrança: domingo passado também fez 50 anos que o Teatro Opinião, no Rio, sofreu um atentado à bomba, executado pelos mesmos espiroquetas do CCC. Se 1968 terminou nesse clima, como esperar um refresco no ano seguinte?

No último dia de agosto de 1969, uma junta militar provisória foi empossada no lugar do general Costa e Silva, que sucumbira a um derrame. Por que não empossaram o vice-presidente Pedro Aleixo? Justamente porque vivíamos numa ditadura e ele era um civil, um vice apenas pro forma, decorativo. Quatro dias depois, houve o sequestro do embaixador norte-americano, e uma nova Lei de Segurança Nacional foi promulgada antes de setembro chegar ao fim. Até que nos enfiaram goela abaixo outro general – o pior de todos: Emílio Garrastazu Médici.

Por tudo isso, a hipótese de voltar 50 anos atrás me soa, na mais complacente das estimativas, sinistríssima, um disparate de quem ignora história ou hibernou mentalmente naquele período. Ou sofreu uma lavagem cerebral oceânica (de Oceânia, a distopia de 1984).
Se forçado a voltar àqueles idos, talvez me sentisse meio obrigado a ajudar a recriar o irreverente semanário Pasquim – ou O Pasquim, como chegou às bancas, em 26 de junho de 1969, mantendo o artigo definido até trocar o desenho do logo no número 289 – e isso daria um trabalho dos diabos.

Primeiro, porque de seus fundadores apenas três ainda vivem, sendo que nenhum dos dois plenamente funcionais (Jaguar e Claudius) toparia encarar o desafio de ressuscitar, na atual conjuntura, o mais afamado baluarte impresso contra a ditadura militar. Segundo, porque estamos no século 21, o País mudou, o mundo mudou, nós mudamos ou fomos a isso constrangidos pelo politicamente correto; e porque talvez não faça mais sentido imprimir jornais e distribuí-los analogicamentes.

Mas se o presidente eleito insistir em voltar ao passado em vez de pensar o presente e o futuro, alguém, motivado pela Terceira Lei de Newton, poderá sentir a necessidade de lançar um sucedâneo eletrônico do Pasquim.

Não seria eu, contudo, a pessoa mais indicada para a tarefa, embora seja um dos poucos brancaleones sobreviventes. À exceção de Jaguar, Ziraldo e Claudius, os verdadeiros esteios do jornal (Millôr, Ivan Lessa, Paulo Francis, Henfil) e seu idealizador (Tarso de Castro) não habitam mais este mundo.

Dos citados, apenas três merecem ser considerados fundadores do jornal. Vez por outra, incluem Ziraldo, Henfil, Francis e até Ivan Lessa entre os criadores do Pasquim. Ledo engano. Tarso, Jaguar, Sérgio Cabral, Carlos Prósperi (designer), Claudius e Luiz Carlos Maciel – este foi o grupo que bolou e pôs nas ruas o jornaleco. Ziraldo apenas colaborou no primeiro número, com um de seus já conhecidos Zeróis. Henfil estreou no segundo número, Francis no sexto e Ivan no vigésimo sétimo.

Quando em suas páginas debutei, O Pasquim já estava no número 9. Sucesso instantâneo, começara com uma tiragem de 20.000 exemplares semanais, logo esgotados, chegaria aos 80.000 no número 16, alcançando espetaculares 200.000, dois meses depois. Catarse coletiva de norte ao sul do País, fenômeno igual nunca se viu na imprensa brasileira.

Revivê-lo, numa redação ou como leitor, seria a maior compensação que poderíamos ter à regressão prometida pelo presidente eleito. Que, receio, seria completa. Ou seja, com o mesmo repertório repressor de 50 anos atrás: censura prévia, apreensões em bancas, atentados à bomba (sorte nossa que a programada para explodir a sede do jornal, na madrugada de 12 de março de 1970, pifou) e prisões sem base legal (como a que trancafiou 70% dos seus integrantes na Vila Militar, durante dois meses).

A despeito das negações já feitas e vindouras, isso foi o que eu vi, ouvi e vivi. E ainda que desmintam também a existência do Pasquim – que, aliás, durou mais que a ditadura – não haverá como corroborar esse wishful thinking quando, daqui a poucos meses, a coleção completa do histórico hedbomadário estiver todinha digitalizada e disponível na internet, com um dispositivo de busca completo, por edição, assunto, autores e até palavras.

Moral da história: não precisamos voltar a 1969 para termos de volta o passado – no caso, o melhor do passado, e ao alcance do dedo.


Demétrio Magnoli: A hora dos alunos

Como petistas, bolsonaristas tacham adversários de 'inimigos do povo'

As savanas, como o nosso cerrado, são ambientes sujeitos à combustão espontânea —mas a maior parte das queimadas "naturais" nascem de um foco de fogo humano, que pode ser um fósforo aceso ou a bituca de um cigarro.

Na política, quase nada é espontâneo. A ofensa lançada pelo advogado Cristiano de Acioli ao ministro do STF Ricardo Lewandowski no espaço restrito de uma aeronave não foi um gesto impulsivo de indignação, mas um ato inscrito numa estratégia política.

No episódio, de fortuito existiu apenas o encontro com o ministro num voo de carreira.

Não fosse aquele dia, seria outro. Não fosse Acioli, seria outro. A frase ofensiva circula há tempo, como mantra, nos blogues e redes sociais bolsonaristas. No dia seguinte ao episódio, ressurgiu como projeção de luz na fachada do edifício do STF, por obra do MBL.

Acioli agiu como militante, ativando previamente seu celular para registrar a cena, a fim de difundi-la nos territórios da "guerrilha da informação".

Para livrar-se de acusações legais, o militante bolsonarista alega que seu alvo era a corte suprema, não a pessoa de Lewandowski. Mas —com o perdão de Derrida— o texto nada significa sem o contexto.

A "vergonha de ser brasileiro" de Acioli relaciona-se aos votos e opiniões de Lewandowski, de Gilmar Mendes e de Toffoli, não aos de outros integrantes do STF. O problema dele —um advogado!— é a existência do habeas corpus e, de modo geral, do devido processo legal.

O governo Bolsonaro é, sob certo sentido, o fruto maduro da "era do lulismo". Da militância petista, os bolsonaristas aprenderam a demonizar a opinião divergente e a exibir seus adversários como "inimigos do povo".

A prolongada pedagogia do PT os ensinou a constranger publicamente os "desviantes", para depois difamá-los no conforto anônimo das redes sociais. O lulismo tinha seus blogueiros de estimação; o bolsonarismo já os tem. Nas artes da "guerrilha da informação", os alunos já ultrapassaram seus mestres.

O PT inspirou-se na tradição do castrismo para promover "atos de repúdio". O bolsonarismo reativa a prática, talvez sem conhecer sua origem.

Acioli, muito esperto, não gravou tudo. Depois da provocação registrada, ele conclamou os passageiros a vaiarem Lewandowski. O "indignado" Acioli é um farsante —tanto quanto os "indignados" petistas que injuriaram a blogueira cubana Yoani Sánchez em 2013 ou os que vandalizaram a mesa de debate na qual eu estava, numa festa literária na Bahia, no mesmo 2013.

Na Cuba castrista, o "ato de repúdio" contra dissidentes é uma rotina semioficial, patrocinada pelos Comitês de Defesa da Revolução, ou seja, pelo partido único.

Por aqui, é um evento político que precisa ocultar sua natureza. Sem o amparo formal do Estado, a militância envolvida invoca o princípio da liberdade de expressão. Foi sob esse pretexto que uma matilha de delegados ao congresso do PT afogou em insultos a jornalista Miriam Leitão, casualmente também durante um voo de carreira. Acioli, o bolsonarista, é um petista tardio.

No Brasil, é livre a crítica ao STF, como a qualquer de seus juízes. Acioli tem o direito de escrever que a corte é uma vergonha ou que os votos de Lewandowski o envergonham. Ninguém lhe negará a prerrogativa de falar isso tudo em espaços apropriados de debate.

Mas, como os demais, a liberdade de expressão é um direito relativo, que convive com outros. Acioli sequestra a palavra liberdade quando a utiliza para fantasiar a ofensa, o constrangimento público e a violação da privacidade.

O bolsonarismo nutre-se da intolerância raivosa, tanto quanto antes nutriu-se o lulismo. A agressão a Lewandowski parece singular, até admissível, pois se trata de uma autoridade.

As aparências enganam: hoje é ele; ontem fomos eu, Yoani e Miriam Leitão; amanhã é você. Os alunos imitam seus mestres —e os superam.

*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.


Eliane Cantanhêde: Os enjeitados

Para que servem Direitos Humanos, Meio Ambiente, mulheres e Funai?

Não foi por acaso que a Funai virou batata quente e os ministérios de Meio Ambiente e de Direitos Humanos ficaram no fim da fila da composição do futuro governo. Simplesmente, esses são temas desconhecidos pelo presidente eleito, Jair Bolsonaro, e por todo seu grupo de poder. Eles rejeitam tudo o que foi feito nas três áreas, mas não sabem exatamente o que por no lugar.

Em suas declarações, Bolsonaro reclama que índio não pode ser tratado como “animal de zoológico”, tem de ser assimilado, ter direitos iguais aos de todos os cidadãos e poder explorar e plantar ou arrendar as suas terras. E reclamou que a Funai atrasa e dificulta os alvarás para empreendimentos e obras no País.

Se o chefe pensa assim, nenhum chefiado queria assumir a Funai, as reservas, os índios, os alvarás. Sérgio Moro (Justiça) já está “muito sobrecarregado”, segundo o próprio Bolsonaro. Tereza Cristina (Agricultura) ponderou que não seria adequado cuidar de dois polos tão conflitantes (agricultura e índios vivem de terras, ou melhor, disputam terras). A sensação era de que o abacaxi acabaria no Planalto. Caiu em Direitos Humanos.

Quanto ao Meio Ambiente, ficou realmente difícil arranjar alguém para desmontar tudo o que foi feito nessa área. Que ambientalista assumiria jogar para o alto a candidatura do Brasil para sediar a COP 25? Ou discutiria a retirada do Acordo de Paris, para o qual o País se empenhou tanto? Logo, o futuro ministro teria de ser do agronegócio, evangélico, da bancada da bala ou delegado.

Na opinião do presidente eleito, meio ambiente existe para duas coisas: atravancar o progresso, impondo obstáculos à construção de estradas, pontes e viadutos, e enriquecer essas ONGs esquerdistas que não servem para nada a não ser tomar dinheiro público. Por isso, sua primeira tentativa foi submeter a área à Agricultura. Como não deu certo, mantém-se o ministério. Mas que ministério?

Já as manifestações do seu futuro ministro de Relações Exteriores, Ernesto Araújo, denotam uma aversão mais grave e profunda. O “ambientalismo” seria instrumento do comunismo internacional para subjugar os países e dominar o mundo. Logo, o ministro do Meio Ambiente teria de ser alguém radicalmente contra o meio ambiente? Fica a dúvida.

Quanto aos Direitos Humanos, a questão é ainda mais complexa, porque em todos os governos pós-redemocratização o foco esteve na reabertura dos arquivos da ditadura militar e na denúncia aos desaparecimentos, mortes e torturas. Obviamente, não será mais assim, não só porque Bolsonaro é militar reformado como se cercou de generais e fez manifestações de apoio à tortura e ao coronel Brilhante Ustra.

Então, manter ou não um ministério para Direitos Humanos? A discussão afunilou para o Ministério de Família, Mulheres e Direitos Humanos, com a Funai de apêndice, mas a coisa encrencou quando o pastor e senador Magno Malta, que perdeu a eleição, foi preterido para o cargo e a agora poderosa bancada evangélica resolveu se meter. O senador não podia, mas a pastora Damares Alves, assessora dele, pôde. Por tabela.

Montagem de ministério – como, de resto, de qualquer equipe – é sempre difícil, mexe com interesses, ambições, vaidades, amizades, inimizades. Logo, é compreensível que Bolsonaro tenha varado novembro sem conseguir fechar todos os 22 nomes e passado a ouvir muito antes de decidir.

Mas, mais do que nomes, aguardam-se informações sobre as intenções do novo governo para meio ambiente, índios, direitos humanos, família, mulheres. Vamos combinar, entra governo, sai governo, e todos esses temas têm a ver diretamente com as pessoas, o Brasil de hoje e o do futuro. Aliás, não só o Brasil, mas o mundo.


Bernardo Mello Franco: "É o momento de a igreja governar", disse nova ministra de Bolsonaro

A pastora Damares Alves considera que ‘as instituições piraram’ e que ‘chegou o momento’ de as igrejas evangélicas governarem o Brasil. Ela será ministra no governo Bolsonaro

A futura ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, pastora Damares Alves, considera que “as instituições piraram” e que “chegou o momento” de as igrejas evangélicas governarem o Brasil.

A nova integrante do governo Jair Bolsonaro expôs suas ideias a fiéis da Igreja Batista da Lagoinha, em Belo Horizonte. A fala foi gravada em maio de 2016 e já teve mais de 160 mil exibições no YouTube.

“As instituições piraram nesta nação. Mas há uma instituição que não pirou. E esta nação só pode contar com esta instituição agora: é a igreja de Jesus”, disse.

“Chegou a nossa hora”, prosseguiu. “É o momento de a igreja ocupar a nação. É o momento de a igreja governar. Se a gente não ocupar este espaço, Deus vai cobrar.”

Damares criticou o Supremo Tribunal Federal por discutir temas como a descriminalização do porte de drogas para consumo próprio. “Onze homens que não foram nem eleitos pelo povo brasileiro vão decidir se a gente libera ou não o consumo de drogas”, disse.

Ela se referiu ao debate entre os ministros da Corte como uma “palhaçada”. “Será que podemos confiar no Judiciário? Não sei mais”, afirmou.

A futura ministra descreveu o Congresso, onde trabalha ao lado do senador Magno Malta (PR-ES), como outra “instituição pirada”. Disse que as disputas na Câmara e no Senado não seriam ideológicas, entre direita e esquerda .“A luta lá é espiritual ”, teorizou.

Na sequência, ela disse que a escola deixou de ser o local apropriado para educar as crianças. “Só há um lugar seguro em que o seu filho está protegido nesta nação. É o templo, é a igreja, é ao lado do seu sacerdote”, defendeu.

A exemplo do presidente eleito, Damares revelou a intenção de banir livros didáticos que não se encaixem em sua visão de mundo. Ela disse que “as Bíblias vão ter que voltar para as escolas do Brasil ”. “O T nas escolas não é mais de tatu, é de tridente do diabo. Queiram ou não queiram os satanistas, esta é uma nação cristã”, afirmou.

No púlpito, a futura ministra indicou que seus planos ultrapassam fronteiras. “A melhor forma de a gente conquistar os muçulmanos para Jesus é mostrar que o cristianismo deu certo nesta nação”, disse.


Eliane Brum: Os “malucos” sapateiam no palco

Aqueles que não eram levados a sério hoje têm poder atômico e também o de destruir a Amazônia

Nas últimas décadas existiu um consenso de que, diante dos absurdos que eram ditos nas redes e em outros espaços, a melhor estratégia era não responder. Contestar pessoas claramente mal intencionadas e intelectualmente desonestas, em sua busca furiosa por fama, seria legitimá-las como interlocutor, dando crédito ao que diziam. E, assim, servir de escada para que ganhassem mais visibilidade. A frase popular que expressa essa ideia é: “Não bata palmas para maluco dançar”. A eleição de Donald Trump, de outros populistas de extrema-direita e agora de Jair Bolsonaro revelou que este foi um equívoco que vai custar muito caro.

Os “malucos” não só dançaram, como sapatearam. Em seguida, passaram a afirmar seus pensamentos como “verdades” – e verdades únicas. O próximo passo foi conquistar o poder. Hoje os “malucos” não só ocupam os palcos mais centrais como têm o poder atômico de explodir o mundo, como Trump, ou acabar com a Amazônia, como Bolsonaro.

Se a eleição de Trump já havia exposto essa realidade, a de Bolsonaro é ainda mais emblemática. No caso de Trump, ao menos se poderia contrapor que o presidente americano é um bem sucedido homem de negócios, algo bastante valorizado no país do “faça-se a si mesmo”, frase usada para encobrir desigualdades decisivas para o destino de cada um. No caso de Bolsonaro, apesar de ele se apresentar e ser apresentado como “capitão reformado”, o presidente eleito passou os últimos 28 anos como um político profissional com pouca ou nenhuma importância para as grandes decisões do Congresso, ganhando espaço no noticiário apenas como personagem burlesco. Conseguiu se eleger sem sequer participar de debates no segundo turno – ou exatamente por isso –, porque dominava os palcos que importavam para ganhar a eleição.

Bolsonaro, que é chamado de “mito”, é um mitômano

Embora Bolsonaro só assuma oficialmente em janeiro, claramente o governo de Michel Temer acabou em 28 de outubro, quando o deputado se elegeu presidente. Hoje os brasileiros percebem que aquilo que parecia ser um universo paralelo, que só em situações excepcionais cruzava com o real, se tornou o que podemos chamar de realidade. O homem que já governa o Brasil, chamado de “mito” por seus seguidores, é um “mitômano”.

O que sabemos até agora é que Bolsonaro venera três figuras masculinas: Carlos Alberto Brilhante Ustra, militar e torturador da ditadura (1964-85); Olavo de Carvalho, que se apresenta como filósofo e se popularizou na internet depois de ser colunista da grande imprensa, e Donald Trump. Ustra desponta como a referência ética de Bolsonaro, Carvalho como seu guru intelectual e Trump é seu farol como líder. Por enquanto, temos uma trindade. E, neste ponto, Bolsonaro poderia interromper para afirmar que Deus acima de todos, já que Deus passou a ser um ativo na economia política que tem regido o Brasil atual.

A trindade de Bolsonaro é composta por um torturador, um guru e... Trump

Carlos Alberto Brilhante Ustra já foi amplamente descrito. Ele é reconhecido como torturador pela justiça brasileira e, conforme testemunhos, seria responsável por pelo menos 50 assassinatos. Como torturador, foi capaz de espancar grávidas e de levar crianças para ver o corpo destruído dos pais. Olavo de Carvalho já se manifestou contra campanhas de vacinação, isso num país que assiste a doenças consideradas erradicadas voltarem a ameaçar por baixa cobertura vacinal. Mora nos Estados Unidos desde 2005 e dá cursos de filosofia em vídeos transmitidos pela internet. Em recente entrevista à jornalista Júlia Zaremba, na Folha de S. Paulo, Carvalho assim se manifestou, ao ser perguntado sobre educação sexual nas escolas:

"Quanto mais educação sexual, mais putaria nas escolas. No fim, está ensinando criancinha a dar a bunda, chupar pica, espremer peitinho da outra em público. Acham que educação sexual está fazendo bem, mas só está fazendo mal. O Estado não tem que se meter em educação sexual de ninguém".

A credibilidade não é mais construída por uma reputação baseada em conhecimentos expostos ao debate, mas pela percepção emocional de “autenticidade”

A linguagem que o mentor intelectual do novo presidente do Brasil leva para a imprensa formal é a que rege a internet. Não há qualquer base para o que afirma, não há um único caso confirmado de que alguma criança foi ensinada na escola a “dar a bunda, chupar pica, espremer peitinho da outra em público”. Isso até hoje não existe como fato. Mas não importa. As afirmações não precisam estar enraizadas em fatos, basta serem ditas. A verdade foi convertida em autoverdade. E a credibilidade não é construída por uma reputação de conhecimentos postos à prova e expostos ao debate, mas pela percepção emocional de “autenticidade” daquele que a consome.

É “verdade” porque Olavo de Carvalho diz que é verdade o que claramente inventou. E é verdade porque, individualmente, cada seguidor de Olavo de Carvalho decidiu que é verdade. E, desde 29 de outubro, dia seguinte ao segundo turno eleitoral, é verdade também porque Olavo de Carvalho é a referência intelectual do presidente da (ainda) oitava economia do mundo.

A partir de suas autoverdades, Olavo de Carvalho indicou dois ministros do novo governo: o das Relações Exteriores, o diplomata Ernesto Araújo, e o da Educação, o colombiano radicado no Brasil Ricardo Vélez Rodríguez. Na mesma entrevista, Carvalho conta o processo pelo qual conseguiu emplacar dois ministros para governar o Brasil:

"Coloquei no Facebook, creio que coloquei também na área de mensagens do Eduardo Bolsonaro (em rede social). Foi tudo. Eu sei que o Bolsonaro lê as minhas coisas e a gente está vendo que leva bastante a sério. Eu fico muito lisonjeado com isso. (...) Sugeri esses dois simplesmente porque me ocorreu na hora".

A conturbada escolha do ministro da Educação explicitou a forma como o novo governo já começou a operar. O primeiro indicado, Mozart Neves Ramos, diretor do Instituto Ayrton Senna, foi derrubado pelos evangélicos porque seria “esquerdista”. Em seguida, foi cogitado o procurador Guilherme Schelb, próximo do líder evangélico Silas Malafaia e defensor do “Escola Sem Partido”, projeto que busca censurar conteúdos e professores. Ao sair do encontro com Bolsonaro, Schelb fez a seguinte afirmação à imprensa:

"Eu não posso dar tarefa de casa, como tem sido feito, para criança de 8, 9 anos aprender discussão de gênero, o que é sexo grupal, como dois homens transam? O que é boquete? Isso é uma discussão de gênero, é uma violação da dignidade da criança".

Como a autoverdade dispensa os fatos, Schelb não foi incomodado pelo inconveniente de provar o que diz. Como por exemplo: em quais escolas do país e em quantas escolas do país crianças de 8 e 9 anos estão aprendendo sobre o que é boquete e sobre como dois homens transam? Onde está a tarefa de casa em que uma criança de 8, 9 anos precisa descrever um boquete e como dois homens transam?

A sociedade é levada a acreditar que as salas de aula são uma suruba permanente enquanto o real problema é empurrado para as sombras

Seria preciso perguntar onde isso está acontecendo e em que proporção isso está acontecendo no país. E o procurador precisaria responder. Com provas verificadas. Mas não há necessidade de provar. Basta dizer. Qualquer coisa. E assim vai crescendo no país o número de pessoas que acreditam que o cotidiano das salas de aula brasileiras é uma suruba permanente, quando os reais problemas, o baixo salário dos professores e a comprovada baixa qualidade do ensino ministrado no Brasil, são convenientemente empurrados para as sombras.

Dito de outro modo: o problema inventado se torna mais real do que o problema que de fato existe e que condena milhões de brasileiros às consequências de uma educação falha, limitando seu acesso ao mundo e suas possibilidades de uma vida plena.

Por fim, Bolsonaro acolheu a indicação de seu guru, Olavo de Carvalho: entre as várias crenças de Vélez Rodríguez, o futuro ministro da Educação, está a de defender que 31 de março de 1964, data do golpe que deu origem a uma ditadura de 21 anos, “é um dia para ser lembrado e comemorado”. Também critica a Comissão da Verdade, que apurou as torturas, sequestros e assassinatos cometidos por agentes de Estado durante o regime de exceção: “A malfadada ‘Comissão da Verdade’ que, a meu ver, consistiu mais numa encenação para ‘omissão da verdade’, foi a iniciativa mais absurda que os petralhas tentaram impor”. Nos próximos meses, a sociedade brasileira descobrirá como será ter a área da educação comandada por alguém que frauda os fatos históricos.

O futuro chanceler acusa a esquerda de ser “antinatalista”, mas omite que seu chefe defendeu a esterilização de mulheres para combater a pobreza e o crime

Vélez Rodríguez foi o segundo nome emplacado por Olavo de Carvalho. O primeiro foi Ernesto Araújo. As crenças do futuro chanceler já se tornaram piada internacional. Em seu blog chamado “Metapolítica 17” (número de Bolsonaro na cédula eleitoral), criado para apoiar seu futuro chefe, Araújo afirma que mudança climática é uma “ideologia de esquerda”. Também acusa o PT e a esquerda de “criminalizar o desejo do homem pela mulher, os filmes da Disney, a carne vermelha” e “o ar-condicionado”. Chegou a escrever que o PT “quer impedir que crianças nasçam” porque, para a esquerda, “todo o bebê é um risco para o planeta porque aumentará as emissões de carbono”.

Ao empilhar falsidades, Araújo omitiu uma verdade comprovada e documentada sobre seu candidato e agora chefe: nas últimas duas décadas, Bolsonaro defendeu a esterilização de mulheres e um rígido controle de natalidade como meios para combater a pobreza e a criminalidade. Mas quem se importa com fatos quando seus seguidores acreditam em qualquer mentira que ele disser que é verdade?

O problema é que nenhuma das afirmações escritas do futuro chanceler é piada. Ao contrário. É muito sério. Primeiro, porque Bolsonaro e parte de seu entorno manipulam essas mesmas mentiras. Segundo, porque os seguidores do presidente acreditam que são verdades. Terceiro, porque elas já começam a produzir consequências. O Brasil desistiu de sediar a próxima Conferência do Clima, a COP 25, em 2019, uma distinção que o governo brasileiro pediu e, dois meses atrás, Michel Temer (MDB) comemorou. Bolsonaro afirmou ter participado desta decisão e feito uma recomendação ao seu futuro ministro, Ernesto Araújo, para evitar a realização do mais importante evento mundial do clima no Brasil.

Está em curso a sexta extinção em massa na trajetória do planeta, a primeira causada pelos humanos

A liderança no debate da crise climática é a única que o Brasil teria as melhores condições para disputar, por ter no seu território a maior porção da maior floresta tropical do planeta, estratégica para o controle do aquecimento global. O país é também o mais biodiverso do mundo. Entre 1970 e 2014, a humanidade já destruiu 60% de todos os mamíferos, pássaros, peixes e répteis. Desde que os humanos apareceram na Terra, já desapareceram metade das plantas. O continente sul-americano é um dos que mais rapidamente está perdendo biodiversidade. Está em curso a sexta extinção em massa, a primeira causada pelos humanos.

Até a eleição de Bolsonaro, o Brasil tinha um papel de protagonista no debate do clima e da biodiversidade, no cenário mundial. Estes são os dois maiores desafios da atualidade, porque afetam todas as outras áreas, inclusive e muito fortemente o agronegócio. Hoje, em Katowice, na Polônia, é realizada a COP 24. Graças às declarações de Bolsonaro e Araújo, o Brasil é má notícia. Como foi má notícia no final de novembro, durante a Conferência Mundial da Biodiversidade.

Ao aceitar o convite para ser o futuro chanceler, Araújo abriu uma conta no Twitter. Como seu chefe, ele quer falar diretamente com os seguidores. Recentemente, escreveu um texto defendendo que sua indicação representaria um “mandato popular” no Itamaraty. Suas crenças supostamente representariam a vontade do povo no cenário externo. Araújo tenta seguir o mesmo caminho de seu padrinho, Olavo de Carvalho. Falando diretamente com os seguidores e desqualificando qualquer mediador, como a imprensa, a academia e mesmo seus pares, Araújo não precisa provar o que diz nem ter suas afirmações confrontadas com os fatos. Fala sozinho. Mas, para isso ser legítimo, como membro de um governo populista, precisa convencer o povo que fala pelo povo. Ou que o povo fala pela sua boca.

A certa altura, escreve: “E o povo brasileiro? Vocês não se preocupam com o que o povo brasileiro vai pensar de vocês? Sabem quem é o povo brasileiro? Já viram? Já viram a moça que espera o ônibus às 4 horas da manhã para ir trabalhar, com medo de ser assaltada ou estuprada? A mulher que leva a filha doente numa cadeira de rodas precária, empurrando-a de hospital em hospital sem conseguir atendimento? O rapaz triste que vende panos no sinal debaixo do sol o dia inteiro para mal conseguir comer? A mulher que pede dinheiro para comprar remédio, mas na verdade é para comprar crack e esquecer-se um pouco da vida? O outro rapaz atravessando a rua de muletas, com uma mochila toda rasgada às costas, na qual pregou o adesivo do Bolsonaro, talvez sua esperança de dar dignidade e sentido à sua luta diária? O pai de família com uma ferida na perna que não cicatriza nunca porque ele precisa trabalhar três turnos para poder alimentar os filhos? Aí está o povo brasileiro, não está no New York Times”.

Não é porque o chanceler de Bolsonaro não acredita em aquecimento global que o planeta vai deixar de aquecer e afetar a vida de milhões de pessoas

Como Araújo pretende falar diretamente com “o povo”, mas numa via de mão única, em que ele fala e o povo engole, ele prefere não explicar ao povo que são os mais pobres que sofrerão o maior impacto das mudanças climáticas. As pessoas em regiões de baixa renda têm sete vezes mais chances de morrer quando expostas a riscos naturais do que populações equivalentes em regiões de alta renda. Os mais pobres também têm seis vezes mais chances de serem feridos ou de precisarem se deslocar, abandonando suas terras e casas. O Brasil tem perdido mais de 6,4 bilhões de reais por ano com eventos extremos, como tempestades e inundações, provocados por mudanças climáticas.

A crise do clima tanto reflete a desigualdade abissal do Brasil quanto a amplia. São estas mesmas pessoas que Araújo diz conhecer – e seus críticos não – as que vão sofrer mais por ter um chanceler como ele. Não é porque Araújo não acredita em aquecimento global que o planeta vai deixar de aquecer e afetar a vida de milhões também no Brasil.

Ao final do texto, o chanceler se trai. Parte do povo, aquela que discorda dele, não entende nada. O chanceler com “mandato popular” diz ao “povo” que ele precisa deixar as decisões para quem sabe e para quem estudou: “Se você repudia a ‘ideologia do PT’, mas não sabe o que ela é, desculpe, mas você não está capacitado para combatê-la e retirá-la do Itamaraty ou de onde quer que seja. Ao contrário, você está ajudando a perpetuá-la sob novas formas. Se a prioridade é extrair a ideologia de dentro do Itamaraty, não lhe parece conveniente ter um chanceler capaz de compreender a ideologia que existe dentro do Itamaraty? Alguém que estuda essa coisa nos livros, há muitos anos, e não simplesmente ouviu alguma referência num segmento do Globo Repórter?”.

Como tudo pode ser muito pior, o Brasil não tem apenas um chanceler desastroso, mas dois. Na semana passada, o presidente eleito despachou um de seus filhos, o deputado Eduardo Bolsonaro, para bajular Donald Trump, o terceiro personagem de sua trindade. Como ressaltou Matias Spektor, na Folha: “O filho chegou fazendo compromissos numa agenda cara ao governo americano —Cuba, Jerusalém, China e Venezuela. Nada pediu em troca além da deferência americana a Bolsonaro. Como Trump não respeita quem faz concessões unilaterais, a equipe de Bolsonaro desvalorizou o próprio passe. (...) Trata-se de crença irracional que ignora o gosto de Trump por arrancar concessões de seus principais parceiros a troco de nada. (...) Os americanos irão à forra".

Como a Família Bolsonaro pretende conseguir os melhores acordos para o Brasil usando o boné de quem está do outro lado da mesa de negociações?

Ao cumprir agenda oficial em Washington, o filho do presidente usou um boné onde estava escrito “Trump 2020”. Talvez a maioria possa compreender como é constrangedor um representante do presidente eleito do Brasil usar um boné defendendo a reeleição do atual presidente americano. É como se o próprio Brasil estivesse usando um boné de Trump 2020. Como se espera negociar os interesses do país em boas condições a partir desta posição de subalternidade explícita, como se fosse um fã vestindo a cabeça com o nome do seu ídolo? O pai não fez melhor durante a visita ao Brasil do assessor de Trump, John Bolton. Como se fosse um subalterno, bateu continência. E não foi correspondido.

É isso. Os “malucos” estão dançando no palco e não precisam que ninguém dê palco para eles. Nem precisam das palmas de setores que acreditavam ter o monopólio dos aplausos. Ao dançar, afirmam que os fatos são “fake News” e que a ciência é “fake News”. Como estão em posições de poder, e um deles será o próximo presidente do Brasil, os jornais são obrigados a reproduzir suas falas e sua dança.

As universidades serão governadas por eles. A política científica será decidida por eles. A Escola Sem Partido pode virar lei, estabelecendo a censura com a justificativa de combater um problema que não existe. E tudo indica que o SUS poderá ser desmantelado em nome da privatização da saúde. O destino da Amazônia e de seus povos será determinado por aqueles que querem abrir a floresta para exploração.

Quando muitos creem no mesmo delírio, o que acontece com a realidade?

Ernesto Araújo se tornou uma piada internacional porque suas afirmações são absurdas. Elas não se sustentam quando confrontadas aos fatos. Mas, quando muitos creem no mesmo delírio, o que acontece com a realidade? Esta é uma pergunta crucial neste momento. E um desafio para o qual precisamos construir uma resposta. E rápido.

Quando já não há uma base comum de fatos a partir da qual se pode conversar, não há linguagem possível. Por exemplo: nas últimas décadas, religiosos fundamentalistas defendem que a teoria da evolução, de Charles Darwin, deveria ser ensinada nas escolas junto com o “criacionismo”, crença pela qual tudo foi criado por Deus. Segundo eles, as duas se equivalem. A questão é que essa afirmação equivale a dizer que uma cadeira e uma laranja são o mesmo. Não são.

A evolução é uma teoria científica, o criacionismo é uma crença religiosa. A primeira foi preciso provar pelo método da ciência. Mesmo se você não acreditar nela, os processos que a teoria da evolução descreve continuarão existindo e agindo. A segunda você pode acreditar ou não e jamais poderá ser provada pelo método científico. As duas não se misturam nem se comparam. Misturá-las faria com que deixássemos de compreender uma parte da Ciência que faz esse mundo funcionar – e faria também com que a dimensão mítica dos textos religiosos se perdesse naquilo que têm de mais poético.

O mesmo vale para a mudança climática provocada por ação humana. Não é uma questão de crença ou de fé. Está provado pelos melhores cientistas do mundo. É tão evidente que a maioria já pode perceber mesmo numa investigação empírica, na sua própria experiência cotidiana. Se o futuro chanceler do Brasil acredita que o aquecimento global é uma “ideologia de esquerda”, o planeta não vai deixar de aquecer por conta da sua crença. Só crianças muito pequenas acreditam que algo vai deixar de existir se elas fingirem que não existe.

Como restabelecer a linguagem, de forma que possamos ter uma base mínima comum a partir da qual possamos voltar a conversar?

Mas, ao tratar fatos como crença – ou como “ideologia” –, tanto Araújo como o presidente eleito podem impedir que o Brasil faça o que precisa para reduzir as emissões de CO2, as principais responsáveis pelo aquecimento global, assim como impedir que o Brasil tome medidas de adaptação ao que está por vir. Temos apenas 12 anos para impedir que o planeta aqueça mais de 1,5 graus Celsius. Se passar disso, os efeitos serão catastróficos. É grave que, nestes 12 anos, em pelo menos quatro o Brasil terá no poder pessoas que confundem fatos com crenças. Ou, para seu próprio interesse, afirmam que aquilo que é fato é a “ideologia” dos outros.

A segunda pergunta crucial neste momento é: como restabelecer a linguagem, de forma que possamos ter uma base mínima comum a partir da qual possamos voltar a conversar? Também precisamos construir uma resposta. E rápido.

A terceira é como devolver o significado às palavras. Por exemplo: uma laranja. De novo. Eu e você precisamos concordar que uma laranja é uma laranja. Se eu disser que uma laranja é uma cadeira, como vamos conversar? Podemos discutir qual qualidade de laranja é melhor, como melhorar a produção de laranjas, de que forma ampliar o acesso de todos ao consumo de laranjas etc etc, mas não podemos discutir se a laranja é uma cadeira ou uma laranja, do contrário não avançaremos em nenhuma das questões importantes sobre a laranja. Tudo o que é relevante, como seu valor nutricional e a evidência de que os mais pobres não têm possibilidade de comprar ou plantar laranjas, ficará bloqueado pelo impasse de o interlocutor insistir que a laranja é cadeira.

Não é uma questão de opinião a laranja ser laranja – e não cadeira. Também não há fatos alternativos. Há fatos. E não há alternativa de a laranja ser uma cadeira. Atualmente, porém, o truque de tratar laranjas como cadeiras para impedir o debate é amplamente utilizado.

Enquanto metade da sociedade brasileira é chamada de “comunista” sem nunca ter sido, os temas que afetam a vida das pessoas são decididos sem participação popular

Se as palavras são esvaziadas de significado comum, não há possibilidade de diálogo. É o que está acontecendo com a palavra “comunismo”, entre muitas outras. Não há uma base mínima de entendimento sobre o que é comunismo. Então, tudo o que os seguidores de Bolsonaro não gostam ou são estimulados a atacar é chamado de “comunismo”, assim como todos aqueles que eles consideram seus inimigos são chamados de “comunistas”.

O significado de comunismo, porém, foi quase totalmente perdido. E assim a conversa está interditada, porque o que é laranja virou cadeira para uma parte da sociedade brasileira. Enquanto metade da sociedade brasileira é chamada de “comunista” sem nunca ter sido ou querer ser, os temas que afetam diretamente a vida das pessoas estão sendo decididos sem debate nem participação popular, como, por exemplo, a reforma da previdência.

Os “malucos” que hoje dançam em todos os palcos não são tão malucos assim. Ou, se são, também parecem bem espertos. É claro que há alguns deles que acreditam que, por exemplo, crise climática é “climatismo” ou uma “ideologia de esquerda”, como diz Araújo. Mas a maioria deles sabe que afirmar isso é quase tão estúpido quanto dizer que a Terra é plana. Então, depois de fazer bastante alarme com isso, eles vão para a próxima etapa do roteiro. Qual é?

Enquanto a turma de Bolsonaro faz a dancinha da invasão estrangeira, a Amazônia vai sendo tomada por seus amigos

Afirmar que, sim, é claro que o aquecimento global é um fato, mas “os países ricos já destruíram todas as suas riquezas naturais e agora usam a crise climática para manipular países como o Brasil”. Basta acompanhar as declarações recentes de Bolsonaro e outros do seu entorno para constatar que a estratégia usada para manter os seguidores alinhados será reavivar a falsa acusação de que os indígenas e as ONGs internacionais querem tomar a Amazônia do Brasil. A mentira da ameaça à soberania nacional nunca deixou de se manter ativa na disputa da Amazônia. Mas, em tempos de WhatsApp, pode atingir muito mais gente disposta a acreditar. Já começou.

Enquanto parte dos brasileiros se distrai com a dança dos “malucos”, os ruralistas vão tentar avançar no seu propósito de abrir as terras indígenas para exploração. Não custa lembrar, mais uma vez, que as terras indígenas são de domínio da União. Os indígenas têm apenas o usufruto exclusivo sobre elas. Quando Bolsonaro compara os indígenas em reservas com “animais num zoológico” e diz que os indígenas “querem ser gente como a gente”, querem poder vender e arrendar as terras, ele não está sendo apenas racista.

Ele também está manipulando. A sua turma quer que as terras públicas sejam convertidas em terras privadas, que possam ser vendidas e arrendadas e exploradas. Enquanto fazem a dancinha da invasão estrangeira, a floresta vai sendo tomada por dentro. O nacionalismo da turma de Bolsonaro bate continência não só para os Estados Unidos, mas também para os grandes latifundiários e para as corporações e mineradoras transnacionais.

No futuro bem próximo assistiremos ao que acontece quando um delírio coletivo, construído a partir de mentiras persistentes apresentadas como verdades únicas, é confrontado com a realidade. Às vezes parece que Bolsonaro acredita que tudo vai acontecer apenas porque ele está dizendo que vai. Ele diz, depois se desdiz, aí diz que inventaram que ele disse o que disse. Em resumo: ele diz qualquer coisa e o seu oposto. Em alguns sentidos, Bolsonaro parece uma criança extasiada com o sucesso que faz no mundo dos adultos, com bonés e figurinhas de seus ídolos. Parte do seu entorno, que não é burra, acredita que pode controlar a criança mimada e voluntariosa – e convencê-la a agir conforme seus interesses. Veremos.

Em algum momento, o seguidor de Bolsonaro vai descobrir que não pode sentar na laranja – nem comer a cadeira

O confronto das promessas com o exercício do poder já começou. Como explicar que serão mais de 20 ministérios e não os 15 prometidos? Ou como explicar as consequências de transferir a embaixada para Jerusalém, desrespeitando parceiros comerciais importantes como os árabes? Como lidar com a China, grande importador dos produtos brasileiros, batendo continência para Trump em meio a uma guerra comercial entre as duas grandes potências? Como lidar com os impactos que tudo isso terá na economia e na vida dos mais pobres? Como justificar que postos de saúde poderão ficar sem médicos porque os cubanos foram embora e os brasileiros não querem ocupar os lugares mais difíceis e com menos estrutura? Como lidar com o possível aumento de gestações na adolescência, assim como de Aids e DSTs por falta de políticas públicas de prevenção e educação sexual nas escolas?

A realidade é irredutível. É quando o seguidor descobre que não pode sentar na laranja – nem comer a cadeira. Bolsonaro e sua turma já começaram a experimentar esse confronto. A compreensão ainda não atingiu seus seguidores. Mas atingirá.

Quem se anima com essa ideia, porém, deveria se envergonhar. Quem sofre primeiro e sofre mais numa sociedade desigual são os mais pobres. Se os “malucos” estão dançando no palco é também porque a maioria da população brasileira foi excluída da conversa mesmo na maior parte do período democrático e mesmo na maior parte dos governos do PT. Ainda que Bolsonaro tenha conseguido unir as pessoas em torno não de um projeto, mas de um afeto, o ódio, seu grande número de seguidores se sentiu parte de algo. Desde 2013 já havia ficado muito claro que havia um anseio da sociedade brasileira por maior participação.

Durante parte de sua permanência no poder, o PT também investiu mais nos afetos do que na construção de um projeto junto com as pessoas. Parou de conversar, não achou que precisasse mais das ruas e foi expulso delas em 2013. Depois da corrupção do PT no poder, e não me refiro apenas à corrupção financeira, a esquerda se mostrou incapaz de criar um projeto capaz de unir as pessoas. Isso não é culpa de Bolsonaro. Não adianta acusar o outro de ter um projeto de destruição. É preciso lidar com as próprias ruínas e apresentar um projeto de reconstrução e reinvenção do Brasil que convença as pessoas porque junto com elas.

Se alguém ainda não compreendeu, é o seguinte: para disputar uma ideia de Brasil será preciso, primeiro, ter uma ideia; segundo, convencer a maioria dos brasileiros que este é o melhor projeto para melhorar suas vidas; terceiro, tentar voltar a dançar no palco para recompor a linguagem, restabelecer a importância dos fatos e devolver substância às palavras. Não vai ser fácil.

A maior vitória de Bolsonaro é quando seu opositor fala como ele

Nestas eleições, o Brasil foi esgarçado até quase rasgar. Em alguns pontos, rasgou. Talvez o maior triunfo de Bolsonaro tenha sido interditar qualquer possibilidade de diálogo. Esse processo não foi iniciado por ele nem ele é o maior responsável. Mas, sem bloquear o diálogo, Bolsonaro possivelmente não ganharia a eleição. Hoje, de um lado e outro, as pessoas só sabem desqualificar – e destruir. Aqueles que denunciam Bolsonaro não compreenderam que, ao adotar o mesmo vocabulário e a mesma sintaxe, apenas em sentido oposto, tornam-se iguais. E dão ao seu opositor a maior vitória que ele pode ter. Neste sentido, o do ódio, Bolsonaro unificou o país. Todos odeiam. Não há complemento nesta gramática. Odiar esgota-se no próprio verbo, mas o substantivo destruído é o corpo dos mais frágeis.

Quem quer resistir à redução do Brasil, em tantos sentidos, precisa primeiro resistir na linguagem. Diferenciar-se, também para poder acolher. O único jeito de voltar a conversar é voltar a conversar. Mesmo que para isso tenhamos que falar sobre laranjas e cadeiras.

*Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum/ Facebook: @brumelianebrum


Matias Spektor: Aliança com 'Lula do Oriente Médio' traz custos para Bolsonaro

Presidente eleito prometeu uma guinada em prol de Israel desde o início da campanha

Jair Bolsonaro está prestes a cometer equívoco do qual pode se arrepender com amargura: colar sua imagem ao "Lula do Oriente Médio".

Pela terceira vez consecutiva, a polícia de Israel denunciou Binyamin Netanyahu por recebimento de propina, fraude e quebra de decoro.

O esquema envolve conglomerados de mídia e indústria de defesa, sua própria esposa, parentes e assessores.

Assim como Lula, Netanyahu se apresenta como vítima de uma conspiração das “elites” incapazes de derrotá-lo pelo voto. Acusa também os investigadores de vazarem informações sensíveis à imprensa.

Como uma parcela do eleitorado acredita cegamente em suas palavras, Netanyahu pode até vencer as próximas eleições, mas seu nome está definitivamente maculado.

Sua perspectiva de poder também. Chefes militares israelenses começaram a criticá-lo, e deputados de sua base iniciaram o desembarque da aliança.

Esse revés cria um problema para Bolsonaro.

O presidente eleito prometeu uma guinada em prol de Israel desde o início da campanha, visitando o país com os filhos e defendendo a transferência da embaixada brasileira para Jerusalém.

No entanto, Bolsonaro e sua equipe passaram a perceber o tamanho da conta a pagar, caso o Brasil abandone a postura de equilíbrio na questão Israel-Palestina, que é marca registrada da política externa pelo menos desde o governo do general Costa e Silva.

O primeiro custo seria diplomático: isolamento. Apenas os EUA e a Guatemala têm embaixadas em Jerusalém. O Paraguai tentou, mas foi forçado a recuar. O Brasil faria seu movimento por romantismo, a troco de nada. É o pesadelo de qualquer especialista em geopolítica.

O segundo custo seria material: há superávit de quase US$ 8 bilhões com o mundo árabe, em produtos de defesa e proteína animal.

Haveria, ainda, um custo político para Bolsonaro, na forma de articulação entre a Câmara de Comércio Árabe-Brasileira e as grandes multinacionais verde-amarelas com presença no Oriente Médio. De quebra, o custo humano: como disse o comandante da Força-Tarefa da ONU no Líbano, a eventual transferência da embaixada pode tornar tropas brasileiras alvo de terrorismo.

Agora, o custo da guinada acaba de ficar ainda mais alto.

Afinal, o que dá lastro ao alinhamento entre Bolsonaro e Netanyahu é a promessa de vultosos negócios nas áreas militar e de segurança cibernética. O governo brasileiro tem muito a ganhar cooperando com Israel em segurança das fronteiras e combate ao crime organizado e ao narcotráfico.

Só que Netanyahu acumula as pastas de Defesa e Relações Exteriores. A devassa da polícia promete respingar para tudo quanto é canto. Inclusive no exterior.

*Matias Spektor é professor de relações internacionais na FGV.


Ascânio Seleme: Trabalho não é caso de polícia

Não é novidade para ninguém que a natureza do trabalho mudou muito, sobretudo nos últimos dez anos. Com as revoluções da automação e da informação, trabalhar da maneira tradicional, dentro de uma linha de produção ou num escritório, tornou-se quase um luxo. A natureza do trabalhador também está mudando, e muito rapidamente. Empresas procuram cada vez mais gente fora do balcão tradicional. Querem profissionais reconhecidos mais pelas suas habilidades humanísticas do que técnicas, com competências subjetivas, mais difíceis de se reconhecer e avaliar.

Na Califórnia, a Zume, uma pizzaria controlada inteiramente por robôs, que fazem a massa, montam e assam a pizza, virou um sucesso de tal ordem que um banco investiu US$ 375 milhões na ideia , e a empresa já vale no mercado US$ 2 bilhões, antes mesmo de se multiplicar. Uma pizzaria dessa não precisa de pizzaiolo, mas de gente que tenha ideias que a ajude a crescer e se transformar. A McKinsey Consultoria fez uma pesquisa em que revela que empresas que diversificam seu quadro de pessoal são mais competitivas e faturam mais.

Um estudo feito pela Desire2Learn, empresa criada para ajudar outras a aprender melhor num mundo tecnológico, mostra que a Inteligência Artificial mudou substancialmente o perfil dos profissionais que grandes empresas procuram. A formação tradicional e mesmo a graduação superior se tornam menos relevantes. As grandes empresas de tecnologia, por exemplo, preferem investir em quadros de perfis diversificados que venham de bootcamps, aqueles cursos imersivos e ultrarrápidos que dão habilidades tecnológicas a pessoas de outras áreas, do que em técnicos graduados que pensam dentro da caixa.

Essa nova forma de ver o trabalho, de acordo com a Desire2Learn, em que são mais valorizadas as pessoas capazes de fazer apenas o que seres humanos fazem, como pensar criativamente, saber tomar decisões, usar a empatia para envolver equipes, ser adaptável a circunstâncias, é vital já a partir de agora. O trabalho mudou, se sofisticou, o mundo mudou. No Brasil não deveria ser diferente. Mas aqui, pelo menos no que diz respeito ao governo que se instala em janeiro, o tema trabalho foi relegado a plano secundário. Esquartejado em vários ministérios, teve uma de suas partes, a que cuida da organização sindical, transformada em problema de polícia.

O novo ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, ao explicar o fatiamento do Trabalho, disse que ele ficará majoritariamente no Ministério da Justiça, sobretudo “aquela secretaria que cuida das cartas sindicais, que foi foco de problema”. O xerife, quer dizer, o futuro ministro da Justiça, Sergio Moro, disse tratar-se de “um setor em que houve muita corrupção no passado; o objetivo dessa transferência é que, sob o guarda-chuva do Ministério da Justiça, possamos eliminar qualquer vestígio de corrupção”. Nenhuma dúvida, trata-se de um problema. Tanto que um ministro do Trabalho foi demitido recentemente por esta razão.

Mas, francamente, se todos as repartições públicas que tiveram algum foco de problema ou corrupção no passado forem transferidas para a Justiça, não fica um, meu irmão. Bolsonaro pode realizar o milagre de operar com o Ministério reduzido ao do Moro. A questão do trabalho não deveria ser esta. O novo governo precisa estar fundamentalmente preocupado em como gerar empregos no Brasil. E mais, como ajudar a gerar empregos modernos num mundo moderno. Claro que mão de obra rápida e barata, para ocupar a multidão brasileira de desempregados, é ainda mais urgente. Mas o mundo avança na velocidade da informação, e o Brasil parece preocupado em olhar apenas o retrovisor.

É evidente que manter o Ministério do Trabalho não significa aumentar a empregabilidade. Do jeito que é tocado, ele só garante o emprego do ministro e dos seus assessores. Mas, não adianta, resta o problema grave do desemprego. Tão grave que é assunto cotidiano mesmo num país rico e desenvolvido como os EUA. O presidente Trump é obsessivo com o tema, o que talvez lhe garanta a reeleição. Num país como o nosso, com 12,4 milhões de desempregados e com outros 15,3 milhões vivendo na extrema pobreza, segundo a Síntese dos Indicadores Sociais do IBGE, trabalho é coisa tão séria que sua gestão deveria estar alocada no gabinete do presidente da República.


Merval Pereira: Bolsonaro enfrenta resistências

Vantagem de 54 milhões de votos não impede que as barganhas sejam sugeridas, mesmo sem haver clima para falar de cargos

O presidente eleito Jair Bolsonaro começou a ter uma vaga ideia do que vem pela frente nas reuniões com os partidos políticos que começou a fazer. Não que não soubesse, pois quem passou 28 anos como parlamentar, a maioria dos quais como deputado federal em Brasília, sabe bem como a banda toca.

Mas talvez esperasse que os 54 milhões de votos que teve na corrida presidencial lhe dariam uma vantagem na negociação com o Congresso. Provavelmente darão, mas não impedem que as barganhas sejam sugeridas, mesmo sem haver clima para falar de cargos, como explicou o deputado Fábio Faria, do PSD, que esteve com Bolsonaro ontem.

Alguns pelo menos tentaram, o que fez com que um comentário dominasse as conversa com assessores mais próximos: “A facilidade com que pedem um porto é impressionante”, disse um deles, não acostumado a essas negociações.

Bolsonaro está tentando quebrar o presidencialismo de coalizão da maneira como o conhecemos nos últimos 24 anos, iniciado nos governos de Fernando Henrique e exacerbado e desvirtuado nos governos petistas e no de Temer.

Foi nos dois governos tucanos que o presidencialismo de coalizão teve papel importante, destacado pelo cientista político Sérgio Abranches, inaugurando uma prática política que não era explícita, mas subentendida.

Quando chamou para sua chapa o PFL, Fernando Henrique causou surpresa, pois naquela ocasião o PSDB era mais percebido como de esquerda do que hoje, e trouxe a direita para dentro do governo. Ele não precisava fazer isso para vencer a eleição, pois tinha o Plano Real, mas precisava do apoio do PFL para governar.

Sérgio Abranches, 20 anos depois de ter cunhado a expressão, lançou recentemente um livro onde analisa o presidencialismo de coalizão e suas consequências na política brasileira. Ele acha que o sistema politico-partidário, da maneira que está montado, incentiva o toma lá dá cá, em detrimento das alianças programáticas.

Bolsonaro está tentando quebrar a espinha dos partidos políticos, fazendo negociações diretas com as bancadas temáticas. É uma maneira criativa de montar um ministério em torno de ideias, fora de barganhas não republicanas.

Pode-se concordar ou não com as escolhas, ou os projetos prioritários de cada grupo desses, mas mudou o rumo da prosa. As bancadas, no entanto, nem sempre fecham apoio comum em todos os projetos, e ele vai precisar dos partidos, que são os que têm a organização partidária sob controle, e podem influenciar as parcerias com as prefeituras e governos municipais e estaduais.

A eleição de Bolsonaro foi atípica e rompeu com essa hierarquia partidária, mas não há certeza, mesmo porque nunca foi tentado antes, de que vai dar certo. Bolsonaro vai usar sua popularidade e as redes sociais para pressionar deputados e, ao mesmo tempo, os partidos vão querer mostrar que são eles que controlam os votos, e não os deputados individualmente.

É preocupante a disputa de poder dentro da Casa Civil, com o deputado Onyx Lorenzoni tentando manter-se como protagonista diante da sombra do general Santos Cruz, que a princípio o “ajudaria” na negociação com os partidos políticos. O futuro chefe da Casa Civil não chamou o general para as conversas com os partidos políticos.

A escolha de Santos Cruz parece ter o objetivo de desestimular negociações como as do ex-presidente da Câmara Severino Cavalcanti, que pedia a diretoria da Petrobras “que fura poço”. O semblante sempre fechado do general, que não dá indicações sobre se está feliz ou descontente, poderia ser útil para colocar uma barreira nesse tipo de situação. Mas pode também criar atritos com os parlamentares.

Mas, dentro do Exército, as qualidades de negociação do general Santa Cruz são exaltadas. Elas levaram-no, segundo relatos, a servir de consultor da ONU depois de ter atuado nas missões de paz do Haiti e do Congo. Um manual de procedimentos em negociações escrito por ele serviria de orientação para todas as ações da ONU pelo mundo.

A acomodação com seu chefe direto, o deputado Onyx Lorenzoni, e as dificuldades para aprovar as reformas, especialmente a da Previdência, vão mostrar sua capacidade de ação, caso venha mesmo a ser confirmado nessa função.


Vinicius Torres Freire: Governo e partido sem escola

IBGE mostra a desigualdade escolar no país de paranoias taradas com a educação

Quase um terço dos jovens brasileiros de 15 a 17 anos não cursa o ensino médio na idade adequada —estão "atrasados", diz a Síntese de Indicadores Sociais do IBGE, divulgada nesta quarta-feira (5).

É muito. É pior se o adolescente não tem dinheiro. No quinto mais pobre da população, a taxa de atraso passa de 45%. No quinto mais rico, é de menos de 10%. No país em que os futuros governantes dizem sandices de gente típica de partidos sem escola, convém ressaltar essas estatísticas.

No Brasil, a educação pré-escolar é obrigatória para crianças de 4 e 5 anos desde 2009. Quase 92% delas estão matriculadas. No caso apenas daquelas de 4 anos, são cerca de 87%, distante da universalização, mas muito longe de ser um desastre quantitativo, pois a média é de 88% na OCDE.

A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico é um grupo de três dúzias de países de renda alta ou média-alta, comprometidos com normas de governança chamadas de "neoliberais" pela esquerda e de "globalistas" pelos aiatolás do bolsonarismo.

Como seria previsível no caso brasileiro, as crianças pequenas mais pobres vão menos à escola. Estão mais sujeitas às adversidades causadas pela falta de estudos dos pais, por ambientes em que ficam mais sujeitas a violências físicas e psicológicas e por falta de recursos rudimentares, como água limpa, comida saudável e livros ou equivalentes, o que vai prejudicar seu desempenho futuro na escola e na vida.

Nas casas em que pelo menos um morador foi à universidade, 62% das crianças de até cinco anos estão em creche adequada ou escola; no caso das residências em que o nível de ensino não passa do fundamental, a proporção cai para 47%.

No quinto mais rico da população, 67% das crianças pequenas vão à escola. No quinto mais pobre, 46%. É uma fábrica de desigualdade, que prejudicará a justiça social e a economia por décadas.

Entre os tantos estudiosos que afirmam tais coisas está JamesHeckman, economista, Nobel, que passou a vida dando aulas na Universidade de Chicago, onde se doutorou Paulo Guedes, o überministro da Economia de Jair Bolsonaro.

Quem sobrevive a uma primeira infância largada à selvageria brasileira, não é assassinado e consegue terminar o ensino médio em uma escola pública, mesmo sendo mãe adolescente ou obrigado a trabalhar, terá provavelmente estigmas duradouros (ainda pior se for pardo ou preto).

Apenas 36% dos secundaristas de escola pública vão para o ensino superior, ante 79% daqueles que cursaram escola privada.

Gente da nova ordem brasileira esnoba o ensino superior por vários motivos e difunde malandra ou estupidamente a ideia de que "nem todo o mundo precisa ou quer ir" para a universidade. Seria um argumento razoável se não fosse conversa de post de rede social, sem contexto.

Entre as pessoas com idade entre 25 e 34 anos, menos de 20% completaram o ensino superior no Brasil. Nos países da OCDE (que inclui Portugal, Grécia, México, Chile, Turquia, Arábia Saudita etc.), quase 37%.

No Brasil, quem fez faculdade ganha 2,5 vezes o salário médio de quem fez ensino médio; na OCDE, 1,6 vez. Como resume o relatório do IBGE: "Essa diferença... é uma característica comum de sociedades extremamente desiguais e a principal maneira pela qual as pessoas dos estratos mais elevados mantêm seus filhos em posições no topo da hierarquia ocupacional".

Aqui, é uma questão de berço. Ou de falta de creche.


Bruno Boghossian: Bolsonaro evita compromissos para não desperdiçar capital político

Presidente eleito mantém dúvidas sobre aplicação de seu poder no Congresso

Como um poupador cauteloso, Jair Bolsonaro guarda seu capital político debaixo do colchão. A menos de um mês de tomar posse, o presidente eleito evita elencar as prioridades de seu governo no Congresso e emite sinais genéricos em relação à agenda de reformas.

Sem anunciar como e onde vai aplicar a força que recebeu nas urnas, Bolsonaro tenta se desviar de desgastes antecipados. Diante das dúvidas sobre as chances de aprovação de mudanças no regime da Previdência, ele se esquiva. Não responde nem se aproveitará sua popularidade para votar a proposta.

“Você está me vendo como presidente, já? Eu não sou presidente. Eu não tenho a ascendência sobre o Parlamento”, declarou nesta quarta (5).

As incertezas políticas que ainda restam sobre o próximo governo fazem com que Bolsonaro e sua equipe se ocupem de armar e desarmar expectativas continuamente.

Na semana passada, um dos filhos do presidente eleito disse que a reforma das aposentadorias poderia não ser aprovada. Depois, o futuro ministro da Casa Civil afirmou que a votação pode demorar quatro anos. Agora, Bolsonaro fala em seis meses.

Sem um compromisso claro, o novo governo quer evitar a contratação de crises por antecipação. A estratégia faz sentido, já que a frustração de previsões geralmente é interpretada como derrota.

O lado negativo é deixar eleitores, empresários e parlamentares no escuro. O governo pretende jogar seu peso em temas como a redução da maioridade penal e a revisão do desarmamento? Ou usará a força do presidente recém-empossado para aprovar a reforma da Previdência? Sem falar nas medidas de extinção e reorganização de ministérios.

Enquanto não sobe a rampa, Bolsonaro tenta acumular mais capital. Em um investimento de risco, topou se reunir e posar para fotos com líderes partidários, mas pode ter cometido um erro de cálculo. A primeira sigla a declarar apoio ao presidente da antipolítica foi o PR do mensaleiro Valdemar Costa Neto.


Elio Gaspari: A fantasia das 'bancadas temáticas'

O perigo nas negociações é o da construção de um sistema que leve a uma crise

O presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária, deputado Alceu Moreira (MDB-RS), deu um presente a Jair Bolsonaro. Quando o repórter Raphael Di Cunto perguntou-lhe como funcionaria a articulação do governo com as “bancadas temáticas” do Congresso, ele respondeu:

“Quem disser que sabe qual é o resultado que esse novo modelo produzirá, de duas uma: ou é adivinho ou está mentindo”.

Moreira apoia o novo governo, lidera uma frente que reúne mais de 200 parlamentares e sabe que a eficácia das “bancadas temáticas” é uma fantasia. Elas agrupam deputados e senadores que têm pontos de vista semelhantes em questões genéricas, mas separam-se em temas pontuais. O próprio Moreira fez questão de lembrar que sua frente “só discute produção de alimento, não é nem agro”.

A ideia da negociação com as “bancadas temáticas” é útil numa campanha eleitoral e funciona durante a fase de transição. No dia 2 de janeiro, Jair Bolsonaro deverá abrir a quitanda e em fevereiro instala-se a nova legislatura. Só então começará o jogo, com a remessa ao Congresso das diversas emendas constitucionais prometidas pelo candidato. Elas precisam de três quintos dos votos da Câmara e do Senado.

Cada parlamentar tem sua legítima agenda de defesa dos interesses de sua base eleitoral. O toma lá dá cá faz parte da vida política, desde que se esclareça o que se toma e o que se dá. Por exemplo: um deputado de uma bancada temática vai ao governo com um pedido para que se autorize o funcionamento de uma faculdade de Medicina na sua região. O pleito pode ser justo e o projeto, impecável. Pode também ser uma girafa. Como ensinava o então ministro Paulo Renato Sousa, “se você entregar o poder de decisão para a abertura de faculdades privadas às freiras carmelitas descalças, na segunda reunião elas virão com bolsas Vuitton”.

O toma lá dá cá com as bancadas que se dizem partidárias chegou a níveis obscenos nas últimas legislaturas, mas não existe governo que possa conviver com o Congresso sem que haja um sistema de trocas com os parlamentares. Bolsonaro conseguiu formar seu Ministério com grande liberdade, e não se pode dizer que este ou aquele ministro esteja ali por delegação de partido. Contudo, formar equipe é atribuição do presidente, mas votar projetos e, sobretudo, emendas constitucionais depende do consentimento do Congresso.

As negociações com a Câmara e o Senado poderiam ser saneadas se a liderança do governo tivesse disposição para denunciar propostas indecentes, começando pelos eternos jabutis que são enfiados nas medidas provisórias. Muitos deles nascem naquilo que hoje se chama de bancadas temáticas.

Bolsonaro armou um governo bifronte, com uma face política e outra militar, representada por generais da reserva. Só a vida real mostrará se tramitarão negociações capazes de exasperar a banda militar, ou vetos capazes de paralisar a banda política.

A fantasia das bancadas temáticas é popular, mas só os adivinhos podem saber como funcionará o sistema. (Os mentirosos, na formulação de Alceu Moreira, sabem que estão mentindo.)

Para dar certo, o futuro governo precisa aprovar as reformas que promete. Talvez não aprove todas, mas isso não seria um pecado. Desgraça, da boa, seria um cenário no qual um governo legítimo e popular promete reformas e, um ano depois da eleição, se queixa de ter sido bloqueado pelo Congresso.

Nos últimos 50 anos, sempre que isso aconteceu, o governo sabia que estava criando a crise.


El País: A segunda metamorfose do MBL para seguir influente no Brasil de Bolsonaro

Grupo lança seu braço estudantil em universidades e escolas para competir com a UNE. Também estuda fórmulas de se transformar numa legenda, diz Pedro D'Eyrot ao EL PAÍS

Jovens de todas as idades poderão encontrar no website do grupo cartilhas, vídeos e outros materiais que serão produzidos especialmente para eles, "a fim de formar um exército de estudantes com pensamento liberal-conservador para que possam disseminar esse conteúdo em sala e fazer oposição a qualquer discurso da esquerda no ambiente estudantil", afirma D'Eyrot. Também poderão encontrar e formar núcleos dentro de suas instituições de ensino. Contudo, a formação de núcleos estará restrita para alunos a partir do quinto ano do ensino fundamental 2 até universitários.

A decisão de lançar a nova vertente do grupo vem num momento de avanço do projeto do Escola sem Partido na Câmara dos Deputados. O projeto, apoiado pelo MBL, é defendido como uma forma de frear a doutrinação dentro da sala de aula, mas críticos o enxergam como uma tentativa de censurar e perseguir a professores. Como o MBL Estudantil vai se posicionar com relação ao projeto e dialogar com os professores? "Um não anula o outro", argumenta D'Eyrot, para quem o projeto que tramita na Câmara "mostrará aos estudantes que eles têm o direito de receber um educação livre de vieses, que seus professores não podem utilizar os espaços acadêmicos para disseminar suas ideologias". Nesse sentido, explica, o MBL Estudantil pretende "promover uma conscientização" dos alunos. Se "os professores insistirem em levar suas ideologias para as salas, terão de debater com os alunos, que estarão capacitados para refutar suas ideias e prontos para impedir que os demais sejam doutrinados em sala de aula", argumenta.

O braço estudantil foi lançado durante o 4º Congresso Nacional do MBL, realizado em São Paulo nos dias 23 e 24 de novembro. Ainda não está claro se vai participar de eleições na União Nacional dos Estudantes (UNE) ou na União Brasileira de Estudantes Secundaristas (UBES), conforme chegou a admitir Renan Santos ao Buzzfeed: "Vamos concorrer para encerrar a UNE, abrir as contas da UNE, mostrar tudo e fechar a entidade. E, se estudantes quiserem organizar uma coisa nova, que criem após assembleia realmente democrática. E nós nem disputaremos. Eles começam algo do zero e nós saímos". D'Eyrot desconversa. Diz que não é a prioridade, mas que "pode acontecer". Em outro momento, diz que a questão ainda está em discussão e que o MBL não acredita "em uma representatividade universal dos estudantes como a UNE se propõe". E acrescenta: "Em especial, não acreditamos que este tipo de entidade deva ser financiada com rios de dinheiro público e que, ao invés de representar os estudantes, se preste exclusivamente a fazer militância de esquerda. Se pudermos acabar com a UNE, ótimo".

Por enquanto, a ideia é que seja um modelo "o mais abrangente possível". A decisão de lançá-lo veio a partir da constatação de que "os estudantes não se sentem representados por ninguém". A referência é a UNE, principal e mais antiga entidade estudantil brasileira, lançada em 1938 para representar os alunos do ensino superior. Vinculada historicamente a partidos de esquerda, foi responsável por lançar alguns de seus principais quadros na política, como o deputado federal Orlando Silva (PCdoB) e os senadores Lindbergh Farias (PT-RJ) e José Serra (PSDB-SP) —este último presidia a organização em 1964, na ocasião do golpe militar, e acabou exilado junto com outros estudantes.

"Alguém sabe dizer alguma conquista [da UNE]? Nenhum estado atingir as metas do IDEB? Queda atrás de queda do Brasil em rankings internacionais?", questiona D'Eyrot, que cita índices relativos ao ensino básico. "Nas redes sociais, milhares de estudantes pedem todos os dias a abertura de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar as contas UNE, não foi necessário muito esforço para ver o desejo dos estudantes de um movimento que faça a voz deles serem verdadeiramente ecoadas".

Na manhã do último dia 23, a fila para participar do primeiro dia do 4º Congresso Nacional do MBL, numa casa noturna da avenida Francisco Matarazzo, estava repleta de jovens aos quais o grupo pretende atrair para suas fileiras. Com ingressos esgotados, o evento proporcionou o chamado MBL Experience. O EL PAÍS não foi autorizado a estar no evento sob a justificativa de que as credenciais de imprensa haviam se esgotado, mas o Buzzfeed descreveu a novidade como uma espécie de curso de formação misturado com entretenimento em que se passou táticas e comunicação e de organização de manifestações, além de diretrizes sobre como esses jovens deveriam se portar para ganhar voz no mundo político. Em determinado momento, conta o Buzzfeed, D'Eyrot reivindicou diante de uma plateia de quase 1.000 pessoas o legado da contracultura e da rebeldia de décadas atrás. "Nós somos os punk rockers, nós somos os subversivos de hoje. Quando falamos da biologia, que existe homem e mulher, e não 50 gêneros, estamos sendo subversivos", defendeu.

"O MBL Experience faz parte de todo o universo MBL, não somente ao MBL Estudantil", explica D'Eyrot ao EL PAÍS. "Porém, como percebemos que o público mais jovem curtiu o estilo, a partir do próximo ano, nossos congressos estaduais levarão o MBL Experience por todo o Brasil (assim como diversos outros eventos que estamos organizando) com atividades para os estudantes", acrescenta.

O MBL também pretende se transformar em um partido, ainda que as fórmulas para se chegar a isso ainda não estejam definidas. Uma opção é fundar um partido do zero, o que exigiria um longo caminho a percorrer para cumprir as exigências da Justiça Eleitoral. O mais viável, segundo adiantou algumas de suas lideranças para a Folha de S. Paulo, seria adotar alguma legenda que não tenha passado na cláusula de desempenho. "Estamos amadurecendo e analisando as propostas e alternativas", explica D'Eyrot. A ideia é antiga, mas parece ter ganhado novo impulso após uma viagem do núcleo duro do grupo a um sítio em Jundiaí, onde, conforme relatou a Folha, ficaram offline para repensar as estratégias e rumos pós-eleições. D'Eyrot disse que o encontro foi produtivo, mas prefere não dar mais detalhes por agora. "Há vantagens e desvantagens em se ter um partido. Estamos amadurecendo e analisando as propostas e alternativas".

Publicamente o MBL promete manter sua independência do governo Bolsonaro, a cuja candidatura só aderiu completamente a partir do segundo turno. Antes disso, o movimento tentou alavancar o então prefeito João Doria, que queria a presidência mas acabou se elegendo para o governo do Estado. Depois, defendeu abertamente a pré-candidatura de Flavio Rocha (PRB), dono da Riachuelo. Não vingou. Com o bolsonarismo vitorioso, diz apoiar a agenda de reformas de futuro ministro da Economia Paulo Guedes, um dos convidados do 4º Congresso Nacional, ao mesmo tempo que alguns de seus membros dizem não concordar integralmente com o presidente eleito.