Bolsonaro

Vera Magalhães: O risco de dispersão

Aprovação a plataforma de Bolsonaro é chance única para a reforma da Previdência

Na semana passada, mediei o painel sobre desafios políticos do governo Jair Bolsonarono fórum promovido pelo Estado e pelo Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas. Na mesa, cientistas políticos e economistas demonstraram otimismo quanto à possibilidade de Jair Bolsonaro aprovar a reforma da Previdência tão adiada, mas divergiram quanto ao timing e a estratégia de ataque da tarefa.

Com algumas nuances de análise, o cientista político Ricardo Ribeiro, da MCM Consultores, e o economista Samuel Pessoa, da FGV, opinaram que é possível mesclar a agenda econômica, da qual a reforma é o carro chefe, com aquela mais cara ao coração bolsonarista, que inclui projetos na área de segurança pública e outros voltados a questões de costumes, com viés conservador. O cientista político Fernando Abrucio, também da FGV, foi taxativo: se o futuro governo dispersar energias mandando ao Congresso várias prioridades, muitas das quais conflitantes e em sua maioria rejeitadas por algum setor da sociedade, a chance de aprovar a reforma ainda no primeiro semestre se reduz muito. Concordo plenamente com ele.

O Congresso é um organismo com humores próprios, difíceis de compreender para que se possa obter maiorias seguras e mais ou menos duradouras. Qualquer métrica que se use isoladamente para aferir a governabilidade é falha: alinhamento dos partidos, influência das chamadas bancadas temáticas, apelo no chamado baixo clero ou peso regional das pautas são variáveis intercambiáveis e que mudam ao sabor da circunstância.

Para a reforma da Previdência será necessário um manejo fino de todas essas forças que se aglutinam lá dentro, uma comunicação muito precisa com a sociedade e com os parlamentares para deixar claro, de uma vez por todas, que se trata de corrigir distorções e eliminar privilégios, e não de cassar direitos adquiridos (que não são tocados pela proposta) e assegurar alguma racionalidade fiscal para um Estado que, se continuar assim, não terá capacidade de investir nem de assegurar o simples pagamento dos próprios benefícios. Um desafio tão complexo exige foco, uniformidade no discurso da parte de todas as alas do governo, a começar do próprio presidente, e que não haja distrações pelo caminho.

E é neste momento que entram em cena alguns complicadores em potencial na maneira como o futuro governo vai sendo composto. Há pelo menos três pilares muito fortes no desenho da gestão Bolsonaro: o econômico, capitaneado por Paulo Guedes, o de segurança/combate à corrupção, nas mãos de Sérgio Moro, e o militar, simbolizado pelo general Augusto Heleno, mas com tentáculos em várias áreas, da coordenação política à infraestrutura.

A articulação política, diante de colunas assim tão robustas, parece meio tíbia. Mais do que isso: seu comando está disperso e não há clareza a respeito de quem terá a palavra final para dialogar com um Congresso tão complexo e em grande medida desconhecido, dada a renovação recorde que sofreu. Jair Bolsonaro tem um grande trunfo para começar o governo. Pesquisa CNI/Ibope mostra que 75% da população concorda com as medidas até aqui esboçadas. Isso demonstra que ele venceu a resistência inicial de um grande contingente que não votou nele e que começa com um voto de confiança muito robusto. Usá-lo vai requerer sabedoria.

Enviar de uma vez para o Congresso prioridades múltiplas e em alguma medida conflitante significará, a meu ver, começar gastando essa confiança de forma pouco inteligente. Se a reforma é a condição sine qua non para o sucesso do governo, o mais eficaz é tirá-la da frente logo para, aí sim, ter sossego para discutir a agenda mais cara ao bolsonarismo de raiz.


Eliane Cantanhêde: Os aplausos vão para...

Além da Economia e da Justiça, Bolsonaro acerta na Agricultura e na Infraestrutura

Apesar do foco na Economia, com Paulo Guedes, e na Justiça, com Sérgio Moro, a formação de pelo menos duas outras áreas merecem aplauso no futuro governo Jair Bolsonaro: a Agricultura e a Infraestrutura. Além de serem grandes geradoras de empregos, o que é urgente, ambas são fundamentais para o desenvolvimento, a recuperação da nossa combalida economia.

Na Agricultura, a agrônoma Tereza Cristina é dessas que não faz estardalhaço, não se mete em confusão, trabalha muito e ganhou respeito e interlocução na Confederação Nacional da Agricultura (CNA) e na Frente Parlamentar do Agronegócio. Não chegou ao Ministério da Agricultura por outra coisa senão mérito.

Na Infraestrutura, Tarcísio Gomes de Freitas, capitão reformado do Exército, como Bolsonaro, tem três troféus: passou num concurso para a única vaga de consultor legislativo da Câmara, foi o primeiro de turma no Instituto Militar de Engenharia (IME) e tem a maior média de notas de engenharia civil na história da instituição.

Tereza Cristina anuncia três prioridades. Primeiro, reformular e ampliar o seguro para os produtores rurais e, com isso, poder ampliar o crédito, hoje limitado e restrito ao Banco do Brasil. E está obstinada com a ideia, como Bolsonaro, de flexibilizar regras, desburocratizar, acelerar concessões de alvarás.

Nos agrotóxicos, é pragmática: a questão não é usar ou não, é calibrar o uso com segurança e eficácia. “Ninguém planta nada sem defensivos agrícolas, isso não existe. O que precisamos é racionalizar o uso e preservar as garantias.” Esse debate é uma guerra, mas ela prefere diplomacia, está costurando apoios, explicando, convencendo.

Outra questão-chave para o agronegócio, um dos mais poderosos do mundo e essencial para manter o Brasil flutuando na recessão de 2014, 2015 e 2016, é a infraestrutura. Sem estradas, pontes, ferrovias e portos, não tem como escoar a produção. No mínimo, com segurança e competitividade. E aí entra o ministro Tarcísio Freitas.

Ele já assume com o PPI a pleno vapor no governo Temer, com R$ 239 bilhões à mão. Assim, Bolsonaro fará dois golaços já na largada, com a concessão, em março, de mais doze aeroportos, inclusive Congonhas (SP) e Santos Dumont (RJ), e a licitação da concessão da Ferrovia Norte-Sul. A expectativa é a conexão ferroviária de Mato Grosso à Norte-Sul, unindo os portos de Itaqui, ao norte, e de Santos, ao sul. “Sem um real do orçamento”, diz ele, um privatista convicto.

Suas prioridades: 1) transferência de ativos à iniciativa privada (privatização, concessão...); 2) tirar os esqueletos do armário, como passivos de concessões que falharam, caso de Viracopos (SP); 3) decidir o que fazer com as obras públicas paradas (uma das tragédias brasileiras) e garantir eficácia nas futuras. Suas palavras de ordem: planejamento, racionalidade, previsibilidade e credibilidade, tudo o que os brasileiros precisam e os investidores internacionais exigem. O momento é favorável ao Brasil, com México adernando à esquerda, Argentina em crise, ambiente político duvidoso em alguns e falta de escala nos demais. Onde investir? No Brasil, claro.

Assim caminha o futuro governo, com grandes nomes e expectativas na economia de Guedes, no combate à corrupção com Moro, mais segurança na agricultura e audácia na infraestrutura. Agora, é cuidar para que a política não atrapalhe. Na reforma da Previdência, é aprovar ou aprovar.

Além disso, Bolsonaro precisa ter consciência de que seus filhos estão excessivamente sob os holofotes e isso nunca dá certo. Com um funcionário atrás do outro assombrando a família no submundo da Alerj e pairando sobre o próprio pai em Brasília, ninguém vai falar de agricultura e infraestrutura, só de fantasmas.


Folha de S. Paulo: Bolsonaro é resposta tosca, mas não ameaça a democracia, diz Mangabeira Unger

Guru de Ciro Gomes diz que PT preferiu ser derrotado a perder a atual hegemonia na esquerda

Por Carolina Linhares, da Folha de S. Paulo

Para o filósofo Roberto Mangabeira Unger, a eleição de Jair Bolsonaro (PSL) é uma resposta tosca a uma aspiração legítima do Brasil profundo de botar para quebrar.

O professor da Universidade Harvard (EUA) critica a hegemonia do PT, de Lula. "Como eles vão liderar? Eles se esborracham porque não compreenderam o que o país queria."

Guru de Ciro Gomes (PDT), ele assume erros na campanha.

 Qual o significado da eleição de 2018? 
Foi um plebiscito sobre a volta do PT. A maioria decisiva dos brasileiros estava disposta a pagar quase qualquer preço para evitar o retorno do PT. O PT e o Lula deveriam ter tido a grandeza de reconhecer que a maioria dos brasileiros não aceitaria a volta do PT. Não havia qualquer chance de vitória do candidato do PT, mesmo que Lula pudesse ter sido candidato. O natural é que o PT desde o início tivesse apoiado Ciro.

E por que Ciro não venceu? 
Ciro e nós, seus aliados, cometemos um erro. Havia dois caminhos. Um era acertar-se com Lula e com o PT. Aceitar ser vice de Lula para depois virar cabeça de chapa. Havia objeções a isso, devido à diferença entre os projetos par o país e à falta de confiança nos acertos do PT, que tem uma longa história de dar rasteiras. Esse caminho tinha uma consistência tática.
O outro caminho era romper desde o início com o PT. Deixar clara a diferença de projeto e oferecer-se ao eleitorado como uma alternativa mais confiável do que Bolsonaro. O erro foi ficar no meio termo. Muitos até o final continuaram a achar que o Ciro era um homem de Lula. Isso é que foi fatal.

Ao não declarar apoio a Haddad no segundo turno, Ciro buscou esse afastamento? 
Tarde demais para superar os males gerados por essa ambiguidade. Ciro passou muito tempo explicando-se para as classes ilustradas e endinheiradas, que na maioria jamais votariam nele, em vez de buscar o povão.

Qual dos caminhos que o sr. mencionou para Ciro era melhor? 
Os dois tinham consistência. Se ele escolhesse o acerto com o PT, não havia nenhum risco de que, no poder, ele se conduziria como instrumento do lulismo. Eu advoguei essa alternativa.

O sr. não disse que tem que correr fora da raia do lulismo? 
Você está fazendo confusão. Uma coisa é o caminho tático. Nós não escolhemos as circunstâncias. Se fosse o primeiro caminho, haveria o problema da confusão da população, porque ficaria manifesto que o Ciro tem um outro projeto.

Mas ele seria eleito? 
Com grande chances, com o apoio de Lula, mas sendo não-Lula e sendo quem é, inconfundível com poste, teria grandes chances. O [caminho] preferível teria sido começar de lá de trás essa pedagogia da diferença.

O sr. disse que é preciso correr fora da raia do lulismo... 
Eu não disse isso, Fernando Haddad atribuiu essa frase a mim, porque ele confundiu duas coisas: a questão tática com a questão de fundo. Sinceramente eu acho que ele, meu amigo, até hoje não compreende a diferença substantiva dos projetos.

Como o sr. explica a ascensão de Bolsonaro?
PSDB e PT juntos, duas cabeças da mesma serpente, conduziram o Brasil por uma lógica da cooptação. Cada parte do país foi comprada, a corrupção foi apenas um dos vários corolários desse sistema. Intuitivamente o Brasil buscava passar da lógica da cooptação para a lógica do empoderamento. E por trás dessa rejeição ao PT havia o repúdio à lógica da cooptação.
O modelo que chamamos de nacional consumismo democratizou a economia do lado da demanda e do consumo, não do lado da produção. O agente social mais importante do Brasil, os emergentes, é órfão de projeto político. Não é apenas a pequena burguesia empreendedora mestiça, morena, que vem de baixo. É também uma multidão de trabalhadores pobres que vê nos emergentes a vanguarda. Essa é a cara do Brasil profundo.

A esquerda abandonou essa população? 
Chamar de esquerda o PT é muito esquisito. Porque esse nacional consumismo não tinha qualquer projeto de mudança estrutural. A parte social é o açúcar com que se pretendia dourar a pílula do modelo econômico. Esse Brasil profundo quer desesperadamente mais do que açúcar. Quer instrumento e oportunidade. Quer botar pra quebrar, criar, construir, inovar, ser gente. ​Bolsonaro é o beneficiário acidental desse desejo frustrado. Acidental não é para desmerecer o esforço que ele fez durante anos de construir um discurso e canais para esse Brasil desconhecido, que é o agente decisivo hoje.

Bolsonaro teve essa estratégia ou foi sem querer? 
Intuitivamente sim [teve estratégia]. Oferece soluções simplistas, mas que no imaginário apelavam para uma ideia de libertação e merecimento. Era a forma simplista e até distorcida e mentirosa de uma aspiração legítima.

Por que o PT não apoiou Ciro? 
Tudo indica que preferiam perder o poder à direita a perder a hegemonia na esquerda. Por soberba, sobrevalorizando a sua influência sobre a população e subvalorizando a descoberta pelo povo brasileiro da insuficiência do projeto petista. Um povo farto da lógica da cooptação nacional consumismo e buscando o empoderamento. Isso era o mais difícil de eles aceitarem porque seria uma crítica fundamental a eles mesmos.

O sr. concorda com essa estratégia de oposição sem o PT? 
Existe a tarefa pedagógica de esclarecer a divergência de fundo. PT não é esquerda. Precisamos de inovação estrutural. Andar demais com o PT é um perigo sob o ponto de vista dessa tarefa.
E eles continuam a ter aspirações hegemonistas, então é difícil andar com eles. Acham natural eles liderarem. Como vão liderar? Eles se esborracham porque não compreenderam o que o país queria.
Não é razão para não conversar com eles. Por exemplo, eu hoje à noite [dia 5] vou jantar com Haddad. Não vou dizer que eles são diabólicos, mas os puritanos nos EUA têm um provérbio: “quando jantar com o diabo, use uma colher muito comprida”.

Do ponto de vista eleitoral, é possível que a esquerda chegue ao poder rejeitando Lula e o lulismo?
Precisará de eleitores que votaram em Lula, não precisará necessariamente do PT e do Lula. Gostaria que Lula tivesse grandeza de compreender tudo isso.

Bolsonaro fará um bom governo? 
Me parece promissor, e falo como opositor, a ideia de impor o capitalismo aos capitalistas. Nem de longe é condição suficiente para o modelo de desenvolvimento que precisamos, mas é condição preliminar. A radicalização da concorrência, quebra dos cartéis, a destruição dos favores dados aos graúdos pelos bancos públicos.
E de oferecer aos emergentes um projeto político que responde às aspirações deles. Considero que a resposta é tosca e que irá frustrar parte da população. Mas é melhor do que nada. O que era intolerável no nosso país é que o agente social mais importante estivesse alienado da política e não se sentisse representado.

Como e quando a população será frustrada? 
Quero acreditar que o momento Bolsonaro seja um primeiro momento em que rejeitamos a cooptação e tentamos constituir, numa forma tosca e insuficiente, a lógica do empoderamento.
O provável é que Bolsonaro consiga alguns feitos, mas que pare no meio do caminho. [Ele] Julga que o conserto das regras tributárias e da Previdência melhoraria o ambiente geral dos negócios. É uma preliminar indispensável, mas não resolve o problema.
A democratização do consumo se pode fazer só com dinheiro, mas democratizar a produção exige inovação institucional política e econômica. É uma nova vanguarda, da economia do conhecimento. Não há nenhum país grande no mundo que por sua natureza tenha mais pendor para esse experimentalismo radical do que o Brasil.Há
um empreendedorismo vibrante no Brasil, mas em grande parte, primitivo. Teríamos que começar a qualificá-lo. Temos que burilar nossa vitalidade, não difamá-la como barbárie e regressão.

Bolsonaro não é o experimentalismo radical? 
Não. Não é a ideia de que existe a forma simplista de acabar com a bagunça. A ordem na sala de aula, a força contra crime, é o presidente não comprar os partidos. Não é acabar com a bagunça, é transformá-la numa anarquia criadora. Não vamos impor ao país uma camisa de força.
A severidade moralizante, a fórmula pronta, o revólver, a ordem patriarcal. Tudo isso é uma fantasia arcaica, de que há um atalho, uma maneira simples de encontrar esse futuro que queremos. O Brasil vai descobrir que esse atalho não funciona, mesmo assim eu julgo que essa primeira onda será útil ao país e talvez, retrospectivamente, venhamos a pensar que ela foi necessária.

Bolsonaro é uma ameaça à democracia? 
Não vejo qualquer indício concreto de ameaça direta à democracia. Em Harvard, meus colegas me abraçam em solidariedade porque passa por lá que Mussolini assumiu o poder. Não é nada disso. O risco que nos ronda não é a ditadura fascista, é a perpetuação da mediocridade. O risco à democracia pode haver depois, por sucessivas frustrações dessas aspirações dos emergentes, de empoderamento.

Como vê Sergio Moro no Ministério da Justiça? 
Outro aspecto positivo de Bolsonaro é a desorganização dos acertos entre oligarquia do poder e oligarquia do dinheiro. Moro pode ser útil nisso. Muito bom para o país. Desde que não caiamos sob o governo dos juízes, que não têm eficácia ou legitimidade para governar. Eles são úteis ao país para abrir o espaço cívico e impedir que ele seja corrompido, mas não para ocupá-lo.

O que acha da política externa de Bolsonaro?
Há duas vozes dominantes na política exterior brasileira. A primeira é a da política exterior como sucursal da UNE. É retórica, nunca foi real. Por exemplo, nos assuntos da Defesa, o Brasil é um protetorado dos EUA e o PT nunca levantou um dedo para mudar isso. A outra voz é a política exterior como sucursal da Fiesp. É um bazar para vender os nossos produtos.
O que eu temo é que a política exterior do governo Bolsonaro venha a ser a continuação da mesma coisa, a justaposição dos dois erros. É o simbólico com sinal trocado, em vez de anti-imperialismo é antiglobalismo. Um tão ruim quanto o outro. Justaposto ao pequeno mercantilismo. É um bazar permanente.

E a relação com os EUA?
De um lado, dizemos “vamos ser como eles”. Eles buscam grandeza, nós vamos buscar grandeza. E qual a fórmula da grandeza? É nos subordinar a eles. Isso é algo que não passa, justificado por essa retórica confusa do antiglobalismo.
É a ambiguidade do discurso do Bolsonaro. Não está só trocando o sinal, passando de uma política ideológica para outra e não concebendo a política exterior como política de estado. Estão usando a política exterior como se fosse o reino do simbólico. Os astrólogos escolherem chanceleres. Isso só aconteceu na Babilônia há três mil anos.

 


Ruy Fabiano: O desafio dos direitos humanos

“Os direitos humanos são basicamente para os humanos direitos”

O tema dos direitos humanos, complexo a partir de sua conceituação, permeia há anos o debate público. A rigor, há séculos, desde que a Revolução Francesa os consignou – e os descumpriu.

Foi um dos carros-chefes da eleição de Jair Bolsonaro, que questiona os termos em que a esquerda o formula, e há de acompanhar, em ambiente controverso, o curso de sua gestão, que tem a segurança pública como um de seus eixos.

Há dias, numa entrevista a um canal de televisão, o general Augusto Heleno, futuro ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, foi instado, mais uma vez, a falar sobre ele.

E reiterou seu ponto de vista de que “os direitos humanos são basicamente para os humanos direitos”. O dito se contrapõe à tendência, ainda dominante, de ver na polícia instituição violadora desses direitos, quando, a rigor, tem como missão garanti-los.

A frase do general, que está longe de ser mero jogo de palavras, pressupõe critério e hierarquia na aplicação desses direitos, a cuja plenitude só pode aspirar quem os respeita. Não é o caso dos bandidos, cujo ofício consiste exatamente em violá-los.

Qualquer direito pressupõe uma instância que os garanta – em regra, o Estado, via polícia. O direito humano fundamental é, por óbvio, o de garantir a vida, já que sem ele nenhum outro subsistirá: o da integridade física, o de ir e vir, o de propriedade etc. Quem os viola submete-se (ou pelo menos deveria) aos rigores da lei.

Mas, se, como quer parte dos militantes da causa, esses direitos são indistintamente para todos os humanos, deve-se, antes de mais nada, revogar o Código Penal, que, mediante determinadas práticas, suprime alguns deles, a começar pelo de ir e vir, podendo chegar ao da própria vida, em caso de legítima defesa.

A visão idealizada do bandido, como vítima da sociedade, e uma espécie de revolucionário em estado bruto, levou o Estado brasileiro, sobretudo no período PT, a nele focar prioritariamente sua ação humanitária. A vítima torna-se persona secundária, alguém no lugar errado, na hora errada. Um azarado, sem qualquer glamour.

Criou-se, entre outros direitos, o bolsa-bandido, que garante, aos delinquentes inscritos na Previdência, repasses de pensão à família, além de benesses como o “saidão” (que libera presos em datas festivas para visitas à família); progressão penal (que, por bom comportamento, reduz o tempo de prisão); e, até (caso do Rio de Janeiro), vale-transporte para que familiares dos presos os visitem.

O Estado garante ainda assistência psicológica à família e ao preso. E, como coroamento, há a audiência de custódia, criada pelo ministro Ricardo Lewandowski, quando na presidência do STF.

Ela obriga o policial a levar o preso em flagrante, 24 horas após a prisão, perante um juiz para que avalie o tratamento que recebeu. O réu passa a ser a autoridade coatora, que pode sofrer processo e ser até demitido, e não o infrator, que será liberado caso o juiz, por razões de ordem subjetiva, não considere o ato grave.

O STF professa a tese do desencarceramento para pequenos delitos (sem defini-los), ecoando princípio programático do PT.

Nesses termos, o banditismo prosperou e o Brasil ostenta o título de um dos mais violentos países do mundo, com mais de 60 mil homicídios anuais (contabilizados aí apenas os que morrem no local do crime), que ultrapassa os índices de países em guerra.

Há quem argumente que a leniência do Estado em relação ao crime decorre do desastre humanitário que é o sistema penitenciário, verdadeira sucursal do inferno. Em vez de humanizá-lo, o Estado opta por evitar o aumento de seus habitantes – não combatendo o crime, mas, inversamente, estimulando-o pela impunidade.

Eis um dos maiores – senão o maior – dos desafios do futuro governo Bolsonaro.

Ruy Fabiano é jornalista


Míriam Leitão: Tensão no mundo complica cenário

Guerra comercial, Brexit, desaceleração na China e crise fiscal na Itália são pontos de incerteza para a economia mundial em 2019

A aposta de que o real se valorizaria com a eleição de Bolsonaro não se concretizou. Desde as eleições, o dólar subiu 7%, com um salto de R$ 3,63 para R$ 3,90. Abriu o ano em R$ 3,26. O futuro governo tem sido contraditório sobre a Previdência. Se não houver a reforma em curto prazo, haverá alta do dólar e dos juros. Mas essa elevação que houve agora tem explicações que vêm de fora: o ano de 2019 deve ser um ponto de inflexão, com menos crescimento do PIB mundial, menos comércio entre os países e vários focos de incerteza.

Esse é o pano de fundo no qual o governo Bolsonaro definirá sua política econômica, quando o mundo já tem pontos de estresse. Três eventos têm causado preocupação entre investidores. A guerra comercial entre Estados Unidos e China, o Brexit, ou a saída da Inglaterra da União Europeia, e o risco de um calote do governo italiano, a terceira maior economia da zona do euro e megaendividada. Há sustos frequentes, sucedidos por momentos de otimismo. Esta semana, a premier britânica, Theresa May, conseguiu um voto de confiança do Parlamento, mas não tem ainda um plano claro para a saída do bloco.

A pedido da Câmara dos Comuns, o Bank of England produziu um estudo sobre os efeitos do Brexit e a mensagem é clara: a economia inglesa vai perder competitividade, haverá aumento de inflação, desvalorização da libra e retração do PIB. A intensidade do impacto vai depender de como o processo será conduzido e em que velocidade. No pior cenário, o PIB inglês, em 2023, pode estar 10% abaixo de ponto em que estaria se não tivesse votado o Brexit em 2016. O desemprego pode saltar rapidamente de 4% para 7,5%, e a inflação, de 2% para 6,5%.

“A saída da União Europeia já está tendo consequências para a economia. A produtividade desacelerou, a libra perdeu valor, e o aumento da inflação corroeu ganhos reais de salários”, afirmou o banco central inglês.

Por isso, a ameaça de uma saída não negociada coloca os mercados financeiros em modo de alerta, com aumento da aversão ao risco. O Brasil é afetado porque, quando tudo o mais é incerto, os investidores buscam refúgio em economias com menos problemas. A Europa também é fonte de outras causas de preocupação. A Itália, há poucos meses, encaminhou ao Parlamento um orçamento com previsão de déficit de 2,4% do PIB para o ano que vem. Esta semana, melhorou o número para 2%. A ameaça de crise fiscal na zona do euro voltou a assustar, porque os italianos tem dívidas que correspondem a 130% do seu PIB e sua economia é 10 vezes maior do que a da Grécia. O país é a terceira maior economia do bloco, atrás apenas de Alemanha e França, e o Banco Central Europeu teria muito mais dificuldades para conter uma crise com o epicentro na Itália.

Há ainda um outro motivo de atenção global, explica David Beker, chefe de economia e estratégia do Bank of America no Brasil. A China está desacelerando e há receios de que o PIB cresça menos do que 6% no ano que vem. Ontem mesmo, dados da indústria e do comércio vieram abaixo do esperado.

— Olhando para 2019, chamaria atenção para a China, que deve desacelerar de 6,6% para 6,1%. É uma redução mais robusta da taxa, com incerteza grande para as commodities. Vai ser um ano volátil, com guerra comercial, Brexit, e governo Trump em gridlock, ou seja, perdendo a Câmara para os democratas e tendo mais dificuldade de implementar a sua agenda — explicou Beker.

Apesar da trégua recente entre EUA e China, o comércio internacional deve desacelerar em 2019 e isso vai afetar o PIB mundial. O diretor-executivo da International Chamber of Commerce, Gabriel Petrus, lembra que haverá eleições na Alemanha e que o presidente francês, Emmanuel Macron, está perdendo popularidade com os protestos dos coletes amarelos:

— Já temos Trump com uma agenda anticomércio mundial. Há o Brexit. Agora temos Macron mais fraco e eleições na Alemanha sem a participação de Merkel. O receio é que se fortaleçam líderes nessas duas economias que preguem contra o comércio mundial.

Aqui no Brasil, um grande banqueiro, ouvido esta semana, disse que está otimista em relação à capacidade de o economista Paulo Guedes aprovar reformas, principalmente a da Previdência. Mas se em três meses o cenário for de não aprovação, o dólar e os juros podem disparar. O novo ministro sabe que tem pouco tempo, prepara-se para dar sinais claros logo após a posse. Se não conseguir, o cenário global tornará o custo muito maior.


Merval Pereira: A batalha previsível

Na fundamental reforma da Previdência haverá disputa sobre diversos aspectos, pois todos os temas são polêmicos

É previsível que o futuro governo Bolsonaro tenha dificuldades políticas e jurídicas para a aprovação das reformas estruturais de que o país necessita, na maioria impopulares pelo menos para setores da sociedade. O sucesso da manifesta vontade do presidente eleito de tratar diretamente desses temas espinhosos com o cidadão, através dos novos meios de comunicação em rede, dependerá da capacidade de convencimento de que privilégios estarão sendo cortados, e não “direitos adquiridos” subtraídos.

Com recente pesquisa confirmando que o futuro governo tem aprovação inicial mais avantajada que a votação obtida por Bolsonaro no segundo turno, é provável que tenha tempo para trabalhar, com a oposição sem espaço para grandes mobilizações.

Os problemas do clã Bolsonaro com as verbas de representação de seus mandatos legislativos ainda não deram gás suficiente para uma oposição mais aguerrida, mas já tivemos recentes exemplos dos problemas que a equipe econômica subordinada a Paulo Guedes encontrará pela frente para aprovar as reformas, inclusive o necessário programa de privatizações para reduzir parte da nossa dívida interna.

Bom exemplo foi a tentativa de barrar a associação da Embraer com a Boeing, que encontrou um juiz para conceder liminar, logo depois revogada, impedindo o negócio.

Também na fundamental reforma da Previdência haverá disputa sobre diversos aspectos, pois todos os temas são polêmicos.

A reorganização dos servidores públicos, com planos de carreira que privilegiem o mérito sobre a antiguidade, será outro ponto a ser disputado no Congresso e também no Judiciário, especialmente se tocar em mudanças de mentalidade, como a proposta de acabar com a estabilidade do funcionário público, que muitos consideram cláusula pétrea da Constituição, mas que, segundo alguns juristas, pode ser alterada até mesmo por projeto de lei.

Também o futuro ministro da Justiça, Sérgio Moro, encontrará problemas tanto no Congresso quanto no Judiciário. Moro, por exemplo, quer que condenados por corrupção ou peculato cumpram prisão em regime fechado, não importando o tamanho da pena. Mas já existe resistência de alguns ministros do STF. Também há temores no Congresso com a ida para a Justiça do controle de transações financeiras (Coaf), que identificou a movimentação bancaria “atípica” do motorista de Flavio Bolsonaro e de diversos outros deputados.

Para prospectar problemas e soluções para essa previsível batalha, pedi ao professor da UERJ e constitucionalista Gustavo Binemboin uma análise do que pode vir pela frente. Para ele, “os que defendem no Supremo Tribunal Federal maior ativismo judicial invocam o sistema de freios e contrapesos (“checks and balances”) para sustentar a postura mais intrusiva do Judiciário na definição de políticas públicas e na imposição de uma agenda a partir da leitura criativa do texto constitucional”.

De outro lado, pondera Binemboin, “os defensores de maior autocontenção invocam a repartição de funções estatais para justificar que ao Judiciário caiba apenas a preservação das regras do jogo democrático e a defesa de direitos fundamentais, deixando as escolhas políticas a cargos dos agentes eleitos para o Parlamento e para a Chefia do Executivo”.

Acho que no Brasil, nos últimos anos, o ativismo judicial atingiu nível elevado, e, diante das questões graves que terá que enfrentar, o melhor seria que o conselho do presidente do STF, ministro Dias Tofolli, fosse seguido: o Judiciário deixar de ser protagonista, a bem da segurança jurídica e do respeito às escolhas políticas legítimas feitas por agentes públicos eleitos.

Na análise de Gustavo Binemboin, de modo geral os tribunais constitucionais adotam postura de deferência em relação a políticas públicas nas áreas econômica, fiscal, orçamentária e de relações internacionais, consideradas próprias do campo da política majoritária.

Já em relação à defesa de direitos individuais e à preservação das regras democráticas, comenta, as cortes constitucionais se permitem maior ativismo, sobretudo no que se refere à proteção de minorias subrepresentadas politicamente.

É possível antever algumas questões que certamente serão submetidas ao Supremo Tribunal Federal (STF) levadas à Corte por partidos da oposição, pela Procuradoria-Geral da República ou entidades de classe de âmbito nacional. ( Amanhã, as principais disputas)


Julianna Sofia: De joelhos

Congresso regozija-se com pautas-bombas, e Bolsonaro herdará conta de R$ 259 bilhões

Depois de sancionar o reajuste salarial de 16,38% para os ministros do Supremo Tribunal Federal, o presidente Michel Temer terá chance de provar que não capitulou —de todo— aos gracejos fiscais do Congressose vetar a prorrogação de incentivos fiscais para empresas do Norte e Nordeste e a ampliação do benefício para as do Centro-Oeste, conforme projeto aprovado pelo Legislativo. A medida poderá custar R$ 17,5 bilhões em cinco anos.

Deputados e senadores regozijaram-se nos últimos anos com o que se familiarizou chamar de pauta-bomba. Em governos impopulares e fracos, como os de Dilma Rousseff (PT) e Michel Temer (MDB), o poderio parlamentar impôs-se, colocando de joelhos os mandatários que ousaram se insurgir contra a farra.

Faz pouco, em outubro, o Congresso derrubou veto do emedebista ao projeto de lei que autorizava reajuste de 53% para o piso remuneratório dos agentes comunitários de saúde. Pândega que sorverá quase R$ 5 bilhões do Tesouro Nacional até 2021.

O Palácio do Planalto deverá receber do ministro Eduardo Guardia (Fazenda) recomendação para barrar as vantagens tributárias regionais ora aprovadas. Bastou a indicação do ministro no sentido de impedir a benesse para o comando legislativo ouriçar-se.

“Se houver o pedido de veto, eu vou fazer uma sessão extraordinária antes do final do ano. Não votarei o Orçamento na semana que vem, vou fazer uma sessão extraordinária para solicitar aos parlamentares que derrubem esse veto, porque ele não é pauta-bomba”, disse o (ainda) presidente do Senado, Eunício Oliveira —autor da proposta. O presidente Rodrigo Maia (Câmara) xingou Guardia de desleal e autoritário.

Em 2018, Temer assistiu a uma patuscada fiscal no Congresso, e a fatura que cairá sobre o colo de Jair Bolsonaro somará R$ 259 bilhões ao longo dos quatro anos de mandato. Outras dezenas de bilhões em benefícios só não serão aprovadas ainda neste ano porque falta tempo hábil aos legisladores.


Adriana Fernandes: Fogo amigo

Apesar do discurso reformista, presidente e auxiliares põem obstáculos à Previdência

Faltando menos de um mês para o fim da transição, é nítida a dificuldade que o futuro ministro da Economia, Paulo Guedes, enfrenta para colocar as reformas na agenda política do governo Jair Bolsonaro e dos seus aliados no Congresso Nacional.

Os obstáculos têm sido colocados até mesmo pelo próprio presidente eleito e seus auxiliares mais próximos, apesar do discurso público reformista. É o velho fogo amigo alimentado por falas desencontradas em torno da reforma desde o primeiro dia da transição, logo após a vitória nas eleições. Tudo ainda de forma muito discreta.

Guedes reconhece que precisa de apoio amplo à reforma e, nesse caminho, reforçou tecnicamente a sua equipe para a elaboração de uma nova proposta a ser encaminhada em março do ano que vem ao Congresso. Previdência, Previdência, Previdência é o seu discurso a todos que conseguem uma hora na sua atribulada agenda.

Não foi à toa que o novo ministro repensou a estrutura do seu superministério e criou mais uma secretaria para abrigar o deputado tucano Rogério Marinho (RN) para cuidar da proposta de mudanças nas regras de aposentadoria. A ideia inicial era que a Previdência ficasse no guarda-chuva da Secretaria Especial de Arrecadação sob o comando do economista Marcos Cintra.

Mas, diante das barreiras políticas e aconselhado por amigos, ele mudou de ideia para fortalecer a parte negociadora da proposta.

Marinho fará dobradinha técnica com Leonardo Rolim, experiente consultor técnico da Câmara dos Deputados, especialista em Previdência e profundo conhecedor do modus operandi das negociações parlamentares. Depois de anunciado seu nome, Marinho veio a público logo para marcar posição e dizer que a expectativa é de que reforma será aprovada no primeiro semestre.

Com a escolha de um político para sua equipe técnica, fica claro que o ministro não quer ficar nas mãos dos futuros articuladores políticos palacianos, que têm titubeado em torno da necessidade de dar prioridade máxima à aprovação da reforma.

Relator da polêmica reforma trabalhista, Marinho não foi reeleito e leva para o time de Guedes um papel importante de negociador, tarefa que o futuro ministro e seus principais aliados ainda não conseguiram azeitar em meio à pressão dos partidos para ocupar cargos nos ministérios, bancos públicos e nas empresas estatais.

Como o toma lá, dá cá não acaba com uma simples canetada, a pressão política da hora vem do Partido Progressista (PP). De fora da rodada inicial das conversas dos partidos com Bolsonaro, o PP ajudou na articulação das pautas bombas e segurou a votação do Orçamento de 2019. A apreciação do projeto ainda corre risco de ficar para o próximo Congresso em meio à queda de braço pelas disputadas emendas parlamentares. Um jogo em que os interesses do velho e do novo Congresso se misturam, e é possível encontrar aliados de Bolsonaro nos dois lados: entre deixar ou não o Orçamento para a nova legislatura que começa em fevereiro.

Funcionalismo
Se não bastassem as resistências à agenda reformista, o boicote dos procuradores da Fazenda Nacional à indicação do diretor do BNDES, Marcelo de Siqueira, para comandar o órgão é um sinal forte de que o futuro do ministro não terá vida fácil na relação com as carreiras de servidores mais influentes da Esplanada dos Ministérios.

Ao trazer a área de pessoal do atual Ministério do Planejamento para o novo superministério da Economia, Guedes vira alvo preferencial de pressão das lideranças do funcionalismo público federal. Serão 267 sindicatos que representam 309 carreiras de servidores do Executivo batendo na porta de Guedes.

Os procuradores ameaçam entregar os cargos de chefia e cobram a indicação de um nome da carreira para o comando da PGFN, órgão de assessoramento jurídico e cobrança das dívidas que a União tem a receber.

Com a equipe de transição promovendo mudanças na configuração dos ministérios, fazendo fusões e extinguindo pastas ministeriais, as carreiras estão agitadas. Um verdadeiro formigueiro se formou. Auditores fiscais do trabalho querem se acomodar na Receita Federal. Em contrapartida, como reação aos auditores, agora os servidores federais da Superintendência de Seguros Privados querem se abrigar no Banco Central. Sem contar a insatisfação de categorias ligadas à segurança com o futuro ministro da Justiça, Sérgio Moro, que esta se cercando só de delegados na sua pasta. A confusão está instalada e só começando.


João Domingos: A velha política

Cadê a resposta ao relatório do Coaf? Enquanto ela não vier, haverá especulações

Os 75% que disseram acreditar que Jair Bolsonaro e sua equipe estão no caminho certo, segundo pesquisa CNI/Ibope divulgada anteontem, o fizeram por acreditar que as coisas vão mudar na economia e na política. Na economia é possível hoje dizer que muita coisa vai mesmo ser diferente. Haverá uma reforma da Previdência, estatais que já foram consideradas estratégicas, como a Infraero, serão vendidas ou extintas. Outras que não serviram para nada, como a EPL, criada para pôr nos trilhos antes da Copa da Fifa de 2014 um trem de alta velocidade entre o Rio de Janeiro e Campinas, passando por São Paulo, estão na lista das que vão acabar. (O Congresso, o ministro Sérgio Moro, a Procuradoria-Geral da República, alguém deveria ter a iniciativa de uma proposta que punisse governos que criassem empresas como a EPL).

Pois bem. Parece que a economia vai mesmo mudar. E a política? Sobre essa há dúvidas. Os 75% que disseram acreditar que Bolsonaro e sua equipe estão no caminho certo deram suas respostas antes do noticiário sobre relatório do Coaf que identificou movimentação bancária atípica de mais de R$ 1,2 milhão por parte de Fabrício Queiroz, ex-assessor do deputado fluminense e senador eleito Flávio Bolsonaro (PSL-RJ). O mesmo Coaf, hoje no Ministério da Fazenda, mas com mudança para a Justiça, revelou que o ex-assessor fez um depósito de R$ 24 mil para Michelle, esposa de Jair Bolsonaro. Rapidamente Bolsonaro disse que havia emprestado R$ 40 mil para Queiroz e que os R$ 24 mil que foram parar na conta de Michelle eram parte do pagamento da dívida. Uma explicação convincente, não há dúvidas. O próprio presidente eleito disse que se houver problemas com a Receita Federal, por não ter declarado o empréstimo, ele resolve tudo pelas instâncias administrativas. E, não se pode negar, nem todo mundo declara empréstimos informais. Se a Receita for correr atrás de quem está nessa situação, seja credor, seja devedor, vai encontrar uma multidão.

Posteriormente o Coaf fez outra revelação. Caía dinheiro na conta de Queiroz em datas coincidentes com o pagamento do salário na Assembleia Legislativa do Rio. O que remete para os chamados mensalinhos, uma prática disseminada Brasil afora e já identificada também no Congresso: servidores devolvem parte do dinheiro recebido para garantir o emprego. Ora, é uma extorsão com base no medo que a pessoa tem de ficar desempregada. Não se pode dizer, de forma nenhuma, que Flávio Bolsonaro tem alguma coisa a ver com isso. Ele mesmo já disse que é o maior interessado em que tudo seja esclarecido. Sabe-se também que movimentação atípica não significa irregularidade. Mas cadê Fabrício Queiroz para dizer o que é que aconteceu? Enquanto ele não explicar tudo, haverá incômodo, como disse o vice, general Hamilton Mourão, e haverá especulações.

Se houve mensalinho, como sugere o relatório do Coaf, volta-se à pergunta: será que a política muda? Porque não existe nada com cara de velha política maior do que um mensalinho.

Também é da velha política o drible que o PR está tentando dar na lei das estatais para nomear o deputado Milton Monti (PR-SP), que não se reelegeu, para uma diretoria da Caixa no governo de Bolsonaro. A lei proíbe a indicação de políticos para a diretoria e conselhos de empresas. A legislação diz ainda que aqueles que trabalharam para campanhas políticas três anos antes não podem ser indicados.

Prometer aumento de salário para deputados pensando em ganhar o voto deles para a presidência da Câmara também é da velha política. É isso que está fazendo o deputado Fábio Ramalho (MDB-MG).


Marcos Sorrilha Pinheiro: Liberalismo identitário e as ciladas da diferença

Uma das grandes bandeiras de Jair Bolsonaro nas eleições presidenciais foi o combate daquilo que se convencionou chamar de "políticas identitárias", com enfoque na questão de gênero, tanto com ataques aos grupos feministas e Lgbt+, quanto à educação sexual nas escolas.

É inegável que na última década, não apenas no Brasil, os movimentos identitários ganharam espaço na luta ao combate à desigualdade e ao preconceito de classe, etnia ou gênero. Em geral são grupos progressistas ligados aos direitos de minorias e que defendem a diversidade como um valor a ser respeitado. Em suma: advogam pelo direito a ser diferente dos “padrões estipulados pela sociedade” sem que se sofra sanções legais ou sociais por isso.

Durante esse tempo, algumas pautas extrapolaram as barreiras dos grupos identificados com a causa e ganharam amplo destaque na mídia e na opinião pública, com proeminência àquelas defendidas pelo Black Live Matters e ao #MeToo, ambos em território estadunidense.

De fato, várias conquistas se deram por conta da pressão exercida por esse ativismo, desencadeando um amplo debate em torno da relação entre o racismo e a violência policial ou sobre o abuso sexual e machismo dentro do mundo do entretenimento naquele país. Como consequência de toda essa manifestação, campanhas publicitárias, programas televisivos, filmes, séries, desenvolvimento de produtos, entre outros, passaram a ter uma preocupação em promover maior inclusão desses segmentos à sua estrutura.

Para além do mundo privado, este assunto também refletiu nas políticas governamentais com a elaboração de ações inclusivas de minorias ao corpo do Estado e na ressignificação do próprio imaginário público sobre o seu passado e sua história. Aqui no Brasil, a inclusão do feriado da Consciência Negra no calendário nacional (ainda que de acordo com a decisão dos municípios) e a ampliação dos programas de cotas raciais apontam para vitórias nesse caminho.

Evidentemente que tais lutas não começaram na última década e remontam a uma origem muito mais antiga, para além de meados do século XIX, mas que ganhou uma importância midiática mais contundente a partir da década de 1960, com especial destaque para a campanha dos Direitos Civis no EUA.

Porém, assim como naquela época, o que se viu foi uma forte reação a esses movimentos, primeiramente junto aos grupos conservadores da sociedade, mas que, a partir de 2016, começou a ecoar em setores mais amplos da comunidade civil ao ponto de se converter em plataforma de campanha do candidato eleito à presidência no Brasil.

De maneira apressada, pode-se buscar entender tal fenômeno por meio do crescimento de uma onda conservadora (termo do qual discordo) que se converteu em um verdadeiro tsunami eleitoral em vários países ao redor do mundo. No entanto, parece que a resposta não encontra morada apenas nessa direção.

Para Mark Lilla, historiador e cientista político norte-americano, o grande problema reside na incapacidade dos movimentos identitários em produzir uma pauta que seja articulável com a sociedade de maneira geral, mobilizando-a. Segundo ele, as reivindicações não apenas ficaram restritas aos grupos que as apresentam, mas apenas aqueles que pertencem aos mesmos podem se manifestar sobre elas. Por conta disso, defendem apenas os interesses de seus nichos, perdendo a dimensão do bem público, tornando-se incapazes de agir politicamente. Conforme afirmou: “Hoje, os jovens só se interessam pelo que os afeta pessoalmente e não enxergam a necessidade de se engajar numa luta comum com outras pessoas. São despolitizados no sentido de não saber como ganhar o poder político”.

A isto, Lilla deu o nome de Liberalismo Identitário(1). Tratar-se-ia, portanto, de uma espécie de narcisismo coletivo que não se contenta em buscar a construção de consenso junto à sociedade, mas, ao contrário, tentaria molda-la segundo a sua imagem e semelhança. “Isso jogou as pessoas umas contra as outras”, como disse o historiador e, na dimensão do político, acabou por dissolver os laços de solidariedade em prol de um projeto comum de sociedade.

Assim, por mais incrível que possa parecer, em um plano global, a bandeira da diversidade que tanto espaço deu à esquerda na última década, teria inviabilizado a criação de uma pauta que possuísse capilaridade eleitoral suficiente para mobilizar todos os setores da comunidade política. Além disso, teria imposto barreiras que impedem que alguns assuntos sérios, como a criminalidade, sejam tratados de maneira pragmática sem que esbarre nas aspirações idealistas de cada grupo.

Para Mark Lilla, isso ficaria mais evidente quando se compara o movimento das minorias da década de 1960 com o atual. Conforme aponta: “A primeira dizia ‘somos todos iguais e queremos ser tratados com igualdade’. Já essa segunda política identitária se baseia na afirmação da diferença e na exigência de respeito à singularidade. Ninguém pode falar em nome de ninguém”.

Este diagnóstico proferido pelo professor da Universidade de Columbia é bastante interessante, mas está longe de ser novo. De certa forma, ele corrobora algo que já havia sido dito pelo sociólogo brasileiro Antonio Flávio Pierucci em um artigo intitulado Ciladas da Diferença, em 1990. Um livro homônimo surgiria nove anos depois, dando ainda maiores argumentos à sua tese central, qual seja: a defesa da diferença é um valor inerente à direita.

Segundo Pierucci, a “nova esquerda”, como ele chamava os “movimentos de minorias”, cometia um erro gigantesco ao abandonar a igualdade como seu leitmotiv e abraçar a diferença enquanto um valor. É preciso esclarecer que o saudoso professor da USP não desconsiderava a existência da diversidade e a importância de seu debate, apenas entendia que no discurso político cotidiano (aquele feito no chão de fábrica, no ponto de ônibus ou no almoço dominical) ela apenas reforçava a ideia de que as pessoas eram, de fato, diferentes.

Neste ponto, limitava a capacidade de persuasão da esquerda, pois, tais argumentos poderiam ser facilmente capturados pelo seu adversário político. O discurso da diferença jamais poderia ser levado até o fim, afinal, seu destino era a comprovação de que a busca pela igualdade não passava de uma ficção. Assim, a mensagem final que restaria era a de que, numa sociedade marcada pela desigualdade, nada mais “natural” do que oferecer tratamentos diferentes para pessoas diferentes. Por diferentes, leia-se: mulheres, homossexuais, negros, indígenas, entre outros.

Do ponto de vista de Pierucci, portanto, poderíamos dizer que isto que vemos acontecer agora não é exatamente uma reação conservadora aos discursos identitários, mas o disparo de uma armadilha engatilhada ainda na década de 1990. Ao se apoderar do discurso de seu adversário (a defesa da diferença) a esquerda entrou em um campo minado cujo o resultado foi a implosão das bases de sua essência. Assim, ao lutar com as armas do outro, o simples uso das mesmas operou contra si e jogou em favor do adversário em um “efeito de retorsão”. Conforme vaticinou: “nas relações entre etnias, raças gêneros, nacionalidades, tradições culturais etc. a via da afirmação da diferença, comporta agora, mais do que nunca, o risco de o feitiço virar contra o feiticeiro”.

Ao recorrer à defesa da diferença como um valor, a esquerda tornaria seu discurso confuso e muito pouco palatável para setores mais amplos da sociedade. Enquanto isso, o conservadorismo apostaria em sua fórmula histórica de afirmar que as coisas são realmente aquilo que elas aparentam ser. Sabemos que isso não é bem verdade e que camadas de significados estão distribuídas de maneira bastante complexas entre a realidade e nossa capacidade de apreendê-la. Porém, será que é possível explicar isso sem se cair em contradição? Não seria melhor e mais eficiente defender que as pessoas merecem ser respeitadas em suas particularidades justamente porque são iguais e tem os mesmos direitos que os demais?

A defesa de valores elementares podem resultar em ganhos políticos mais eficientes. Uma demonstração disso pode ser visto no crescimento de outra força política que ganhou espaço nos últimos anos e roubou simpatizantes da esquerda, os liberais. Neste caso, os movimentos libertários apostam em uma fórmula histórica bastante eficiente na defesa da diversidade: a liberdade.

(1) Aqui o termo liberalismo é empregado em seu significado anglo saxão. Uma tradução mais precisa para o Brasil seria Progressismo Identitário.

 

 

*Marcos Sorrilha Pinheiro é autor de Lino Galindo e os Herdeiros do Trono do Sol. Professor de História — Unesp/Franca. Apreciador de um bom lúpulo e fanático pelo ludopédio mundial.


José Eduardo Faria: Debate raso

Que passa ao largo dos problemas gerados pelo fosso entre as leis e as tensões políticas

A transferência para o âmago do Poder Executivo do juiz criminal de primeira instância responsável pelos casos da Lava Jato em Curitiba foi muito além de repor na ordem do dia os temas da judicialização da política e da politização da Justiça. Também deu mais visibilidade ao antagonismo entre magistrados garantistas, que valorizam o habeas corpus como símbolo da liberdade individual, e magistrados consequencialistas, para os quais esse recurso não pode ser desfigurado por seu uso eleitoral, sob o risco de corroer a legitimidade das instituições de Direito.

Os magistrados garantistas alegam que, ao relevar o texto da lei para dar prioridade aos efeitos punitivistas das decisões judiciais, os consequencialistas recorrem a interpretações extensivas, desprezando com isso as garantias individuais. Já os magistrados consequencialistas justificam interpretações abrangentes em nome de métodos realistas para articular investigação, celeridade e eficiência, o que propiciaria uma espécie de legitimação pelo resultado – no caso, a moralização da vida pública.

Essa distinção suscita duas questões. Por um lado, a questão da influência da opinião pública sobre a Justiça. Por outro, a questão da interpretação de uma ordem jurídica composta por 180 mil leis e uma Constituição com grande número de normas programáticas que, por exprimirem valores morais, não são autoaplicáveis. No primeiro caso, até que ponto um juiz, independentemente de seu grau, deve decidir conforme o clamor público, valendo-se de interpretações criativas do Direito? Até que ponto também pode atuar de modo contramajoritário, interpretando regras com o objetivo de proteger minorias? No segundo caso, o problema do controle sobre a produção dos efeitos das decisões judiciais envolve um risco: quando uma Constituição contém muitos princípios, ela tende a tornar inviável o Direito como técnica, ameaçando a identidade do sistema legal.

Essas indagações apontam, assim, dois modos conflitantes de aplicação das leis. O primeiro entende que as normas são a premissa maior, dentro da qual o caso concreto seria premissa menor, possibilitando uma decisão judicial lógica e objetiva. O segundo modo parte da premissa de que as normas são parâmetros para o intérprete – e quando são principiológicas tendem a servir de justificativa posterior para uma escolha feita diante do caso e produzida por vias distintas. A discussão, contudo, vai além da oposição entre aplicação subjetiva e objetiva do Direito. Na verdade, o sentido da norma jamais está objetivamente fixado no texto legal, uma vez que sempre depende do resultado de uma interpretação.

A concretização da norma passa pela interpretação de seu texto e inclui elementos que compõem o âmbito da norma, como doutrinas e teorias, informando e influenciando a decisão de um litígio. Texto e processo histórico estão em interação, o que faz com que a solução dada a ele não resulte do livre-arbítrio do intérprete, mas de uma racionalidade condicionada pela experiência dos tribunais, permitindo aos juízes equilibrar valores, princípios e obrigações. A necessidade desse equilíbrio decorre da dificuldade de conjugar em termos lógico-formais uma ordem concreta, na qual os cidadãos se encontram imersos em várias redes de relações sociais, com as categorias normativas abstratas e atemporais do Direito positivo. No julgamento dos litígios pelos tribunais prevalece não uma aplicação dedutiva das normas, mas uma mescla entre legislação e adjudicação, entre Direito e doutrina – mescla essa para a qual não há receita ideal e que, por vezes, leva juízes acomodados ou temerosos a optar pelo axioma de Felix Frankfurter, da Corte Suprema dos EUA, no sentido de que é melhor ter sucesso sem ousar do que fracassar tentando fazer algo inovador.

À luz dessas considerações se compreende por que o STF por vezes exorbita em matéria de hermenêutica. Isso pode ser atribuído a métodos discutíveis de interpretação. Ou, então, ao desconhecimento de teoria do Direito por alguns ministros e ao ativismo de outros. Como disse a jornalista Rosângela Bittar, se no passado o STF foi integrado por catedráticos, parlamentares experientes e advogados e desembargadores respeitados, que emprestaram sua biografia à Corte, hoje se tem o inverso – pessoas que foram para lá para melhorar a biografia. Também sob essa luz o debate fica mais claro. Por valorizar normas com conceitos determinados e interpretações restritivas, os garantistassubestimam a complexidade social. Prendem-se a uma racionalidade lógico-formal insuficiente para tornar viável uma engenharia jurídica baseada em regras gerais.

Esquecem-se de que as palavras das leis “não são cristais transparentes e imutáveis, mas a pele que encobre um pensamento vivo e que varia de conteúdo conforme a circunstância e o tempo em que é usada”, como dizia Wendell Holmes. Por apego a normas programáticas, assumindo a moralidade pública como bandeira, os consequencialistas esquecem-se de que os princípios jurídicos exigem sistematização, teimando em analisar os litígios como se as partes representassem o bem e o mal. Agindo como guardiões da moral, confundem hermenêutica jurídica com escolhas voluntaristas.

Para escapar desses equívocos a saída é compreender o Direito como algo não acabado no momento de sua positivação. Ele é uma construção com base na experiência, e não na lógica. Retomando Holmes, “as necessidades sentidas em todas as épocas, as teorias morais e políticas prevalecentes, as intuições políticas e os preconceitos com os quais os juízes julgam têm importância maior do que silogismos na determinação das regras”. Garantismo x consequencialismo é, assim, um debate raso, que passa ao largo dos problemas gerados pelo fosso entre as leis e as tensões políticas. Debate esse cujo grau de maniqueísmo e imprecisão técnica crescerá ainda mais com a decisão do juiz consequencialista de Curitiba de mudar de Poder.

* José Eduardo Faria é professor titular da Faculdade de Direito da USP e professor da Fundação Getúlio Vargas


El País: Battisti vira peça central no flerte de Bolsonaro com Governo de direita italiano

Disputa diplomática com a Itália se aproxima do fim com mandado de prisão de italiano. Temer já assinou ordem de extradição, porém ex-ativista está foragido

A decisão de Luiz Fux, ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), de determinar a prisão de Cesare Battisti deixa o ex-militante e escritor italiano a um passo da extradição e aproxima do fim uma disputa diplomática entre Brasil e Itália que se arrasta desde o final do governo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Na Itália, Battisti é peça central nas cada vez mais próximas relações entre o presidente eleito Jair Bolsonaro e o governo do país europeu. Matteo Salvini, ministro do Interior e líder do partido populista de direita Lega Nord, comemorou a decisão de Fux e trocou mensagens pelo Twitter com Bolsonaro. "Darei grande mérito ao presidente Bolsonaro se ele ajudar a Itália a ter justiça, 'dando de presente' para Battisti um futuro nas nossas prisões", escreveu Salvini. A resposta de Bolsonaro a Salvini nas redes não poderia ser mais clara: "Conte conosco!"

O diário italiano La Repubblica narra uma vida repleta de fugas internacionais que há décadas mantêm Cesare Battisti longe das prisões italianas. Nascido em 1954, ele integrou na Itália o grupo Proletariado Armado pelo Comunismo (PAC), que nos anos 70 realizou assaltos a banco e a supermercados no país europeu, justificados como ações de expropriação. Foi nesse contexto que ele foi acusado —e condenado— por ter participado de quatro assassinatos, sendo o autor material de dois deles. Detido na Itália, conseguiu escapar da prisão em 1981 e fugir para a França. Permaneceu na Europa por pouco tempo e depois partiu para o México. Antes de fugir para o Brasil, passou outra temporada na França, que só reconheceu o pedido de extradição feito pela Itália em 2004. Ante o risco de cumprir prisão perpétua em seu país, fugiu novamente, dessa vez para a América do Sul. Ao longo desse período, Cesare Battisti passou a escrever livros e amealhou o apoio de intelectuais de esquerda que se opuseram à sua devolução à Itália.

No Brasil, Battisti protagonizou uma disputa diplomática com a Itália que se arrastou durante anos. Em 2009, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que os assassinatos pelos quais Battisti fora sentenciado em seu país de origem não podiam ser considerados crimes políticos. Dessa forma, a condição de refugiado do italiano foi revogada e o caminho para a extradição parecia livre. No entanto, a Suprema Corte havia determinado naquele mesmo julgamento que a decisão final sobre entregá-lo ou não à Itália caberia ao presidente da República, na época Lula. No último dia do seu mandato, o petista optou pela não extradição, o que gerou fortes protestos das autoridades italianas.

Matteo Salvini

@matteosalvinimi

: “Conta su di noi!”.
Grazie Presidente @jairbolsonaro.
Se serve prendo il primo volo per riportare finalmente in Italia un delinquente condannato all’ergastolo.

Instalado no país e contando com a simpatia de figuras importantes dentro do PT, Battisti teve um filho no Brasil, um dos pontos levantados por sua defesa como impedimento à sua extradição. Seu caso voltou a complicar-se após o impeachment de Dilma Rousseff e a chegada de Michel Temer ao Palácio do Planalto, quando a nova administração passou a emitir sinais de que tinha interesse em dar seguimento à extradição.

Em 2017, o italiano chegou a ser preso tentando atravessar a fronteira do Brasil com a Bolívia em Corumbá, no Mato Grosso do Sul. Segundo as autoridades, ele portava 6.000 dólares e 1.300 euros. Depois de ser solto, ele se defendeu e disse que seu status legal à época lhe permitia sair do Brasil quando quisesse, mas o episódio foi interpretado por autoridades brasileiras com uma tentativa de evasão.

Naquele mesmo ano a Itália pediu ao governo Temer que revisasse o decreto de Lula de 2010 que possibilitou a permanência de Battisti no Brasil. Seus advogados entraram com um pedido de habeas corpus preventivo no Supremo para tentar evitar o seu envio à Itália. O principal argumento dos seus defensores era que a decisão de Lula não poderia ser derrubada mais de cinco anos após a sua publicação. Em um primeiro momento, Fux concedeu uma decisão provisória impedindo a extradição, mas ele cassou a própria decisão no seu despacho desta quinta-feira. "Com efeito, todos os requisitos para a extradição de Cesare Battisti já foram preenchidos, conforme reconhecido pelo plenário deste Supremo Tribunal Federal", escreveu o ministro do STF.