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Bruno Boghossian: O que Bolsonaro pode aprender com seu primo húngaro

O que Bolsonaro pode aprender com seu primo húngaro

Embora a retórica ideológica tenha ocupado boa parte do tempo de Jair Bolsonaro no período de transição, suas prioridades precisarão mudar a partir de 1º de janeiro. O presidente eleito receberá a faixa com a popularidade em alta, mas seu sucesso dependerá de mudanças nos ponteiros da economia.

Acontecimentos recentes na Hungria podem servir de advertência. Em seu terceiro mandato seguido, Viktor Orbán ampliou seu poder ao corroer as instituições democráticas do país. O premiê capturou o Judiciário, manipulou o sistema eleitoral e ampliou o controle dos meios de comunicação, provocando reação de organismos internacionais.

Sua popularidade, entretanto, continuou praticamente intacta. Na última eleição, em abril, seu partido renovou no Parlamento a supermaioria de dois terços necessária para fazer mudanças na Constituição.

O primeiro revés significativo só ocorreu na semana passada, com a aprovação de uma lei que flexibiliza direitos trabalhistas. Pelo texto, patrões poderão exigir que funcionários trabalhem o equivalente a um dia a mais por semana, podendo pagar as horas extras só três anos depois.

As medidas autoritárias não trincaram a imagem do governo dentro do país, mas 15 mil pessoas decidiram protestar no centro de Budapeste quando pressentiram uma dor no bolso com a nova legislação.

Com um discurso nacionalista anti-imigração, Orbán surfou a onda conservadora, mas até marolas de insatisfação econômica costumam testar o poder de líderes populares.

É cedo para dizer se as manifestações na Hungria têm o mesmo DNA das jornadas de 2013 no Brasil e dos atos dos coletes amarelos na França. Nestes dois casos, medidas com impacto no custo de vida da população desencadearam megaprotestos.

Orbán e Bolsonaro conversaram por telefone em novembro. O brasileiro disse prever uma grande parceria com o premiê húngaro e elogiou suas posições sobre imigração. Seria bom que o presidente eleito acompanhasse o noticiário de Budapeste.


Elena Landau: #FicaTemer

O essencial é o presidente e a equipe econômica falarem a mesma língua

Com o leilão da empresa de Alagoas (Ceal) no dia 28 enfim se completa o ciclo de privatização das distribuidoras da Eletrobrás. Independentemente do seu resultado, a política de desinvestimento da empresa já é um sucesso: cinco empresas mal administradas e cronicamente deficitárias passam a ser geridas sem influência política.

O governo Temer começou com 156 empresas estatais, tendo 43 delas sido criadas durante os governos PT e com elas mais de 100 mil novos empregos foram contratados. Ao final do governo Dilma, o total de empregados chegou ao recorde de 550 mil. As muitas dezenas de empresas acumulavam prejuízos que ultrapassavam R$ 25 bilhões. Com a mudança da administração e um choque de governança, ajudado pela nova Lei das Estatais, o panorama é outro; elas terminarão este ano com lucro acima dos R$ 50 bilhões e 50 mil funcionários a menos.

E mais: 21 estatais estão fora das mãos do governo. Resultado do bom trabalho dos técnicos da SEST. E esse não é um caso isolado. No Ministério da Fazenda reformas microeconômicas, como cadastro positivo e o fim da TJLP, ajudaram a diminuir o custo e a desigualdade no acesso ao crédito. A TLP provocou um rápido e eficiente processo de crowding in, contradizendo o antigo discurso desenvolvimentista. Até mesmo no financiamento à infraestrutura, o mercado de capitais privado superou o desembolso do BNDES. O PSI (Programa de Sustentação do Investimento) do BNDES que oferecia linhas de créditos fortemente subsidiados, iniciado em 2009 e acelerado por Dilma, também foi suspenso. Em boa hora, já que o apoio a esse programa pelo Tesouro custou cerca de R$ 500 bilhões. Uma política que, além de inútil, posto que não gerou nem aumento na produtividade nem na taxa de investimentos, foi injusta ao por alocar dinheiro dos contribuintes para quem menos precisava. Aliás, os empréstimos do Tesouro aos bancos públicos subiram de 0,5% do PIB em 2007 para 9,5% em 2015.

Para se ter uma ideia do que significam essas centenas de bilhões desperdiçados, vale lembrar que o primeiro projeto de reforma da Previdência do Temer pouparia em 10 anos R$ 800 bilhões e o atual R$ 400 bilhões, além de contribuir para reduzir a desigualdade no acesso aos recursos públicos.

Outra boa notícia foi a antecipação do pagamento do empréstimo do BNDES ao Tesouro, ajudando na reorganização das contas públicas. Aliás, hoje graças ao esforço do Secretaria do Tesouro os dados públicos estão acessíveis. A transparência do orçamento e sua execução aumentou. Impossível terminar essa lista de avanços sem mencionar a condução da política monetária pelo Banco Central que levou à redução dos juros.

Tudo isso permitiu que a recessão herdada de Dilma desse lugar a um – modesto – crescimento e controle da inflação. Uma virada importante em poucos anos, apesar da instabilidade política gerada pelas denúncias contra Temer e das crises marcadas por greve dos caminhoneiros, desvalorização cambial, incerteza eleitoral e paralisação das reformas após a divulgação dos áudios JBS.

O trabalho conjunto dos Ministérios da Fazenda e Planejamento e do Banco Central resgatou o Brasil do pouco caso com que os recursos dos contribuintes foram tratados nos governos passados. Recentemente, o ex-ministro Guido Mantega e seu secretário do Tesouro, Arno Augustin, viraram réus por sua responsabilidade, ao lado Dilma, nas pedaladas fiscais que destruíram as contas públicas e a economia brasileira.

Qual o segredo desse sucesso quase invisível do governo mais impopular de nossa história? Simples: Um time de burocratas de primeira grandeza, que contou com apoio do presidente Temer para bancar as reformas que recomendava. Não fosse o timing da divulgação dos áudios da JBS, até a reforma da Previdência teria sido aprovada.

No mês em que o AI-5 completa 50 anos, essa equipe mostrou que não é preciso ato institucional autoritário para consertar a economia. Bom diagnóstico, conhecimento dos instrumentos de política econômica, experiência na execução, transparência e trabalho de equipe são suficientes. O Plano Real já havia nos mostrado isso.

Mas ainda há muito o que fazer. A herança dos que saem e a experiência dos que ficam na equipe com certeza vai ajudar o governo que inicia. O essencial é presidente e equipe econômica falarem a mesma língua. Isso vale para a reforma da Previdência, a principal tarefa do futuro governo. Não há substitutos a ela nem há atalhos possíveis.

Feliz Natal.


“Governo Bolsonaro têm tendência de cometer desastres na área internacional”, diz Rubens Ricupero

Em entrevista exclusiva à Política Democrática online de dezembro, diplomata e ex-ministro do Meio Ambiente e da Fazenda aponta risco de marginalização do Itamaraty

Por Cleomar Almeida

Em entrevista exclusiva à edição de dezembro da revista Política Democrática online, o diplomata Rubens Ricupero, ex-ministro do Meio Ambiente e da Fazenda, disse que o governo Bolsonaro é “desastroso em política externa”. “Aliás, uma característica dessa equipe de governo é que eles têm uma tendência de cometer desastres na área internacional”, afirmou.

O diplomata afirmou, ainda, que, “no caso do Itamaraty, a presença de um ideólogo, um doutrinador, vai abrir espaço para canais paralelos à semelhança do que foram os governos do PT com o Marco Aurélio Garcia e com a assessoria que havia na presidência”. De acordo com Ricupero, já é possível ver que “o verdadeiro chanceler é Eduardo Bolsonaro”, filho do presidente e deputado federal pelo PSL-SP. “Foi ele quem parece ter tido maior peso, tanto na escolha do chanceler, como em teses como a da mudança da embaixada de Tel Aviv para Jerusalém”, afirmou o ex-ministro na entrevista.

» Acesse aqui a edição de dezembro da revista Política Democrática online

De acordo com Ricupero, tudo indica assim que será uma política externa de marginalização violenta do Itamaraty. “Uma característica curiosa disso é que o futuro chanceler investiu contra os próprios colegas. Não tem precedentes na história da diplomacia brasileira alguém que está se preparando para ser o chefe do Itamaraty, o líder do Itamaraty, comece a manifestar sua desconfiança e seu desapreço pelos próprios colegas aos quais considera todos como contaminados por ideologia globalista, pelo PT, por coisas desse tipo”, criticou o diplomata.

O entrevistado especial avaliou como preocupante a decisão anunciada pelo futuro governo de não sediar a Reunião do Clima em 2019. “O Brasil não é nem potência nuclear, nem militar, nem econômica, mas é potência ambiental, porque tem a maior floresta equatorial do mundo, a maior reserva de água doce, uma das maiores reservas de diversidade biológica, enorme potencial em fontes limpas e renováveis, solar e eólica, além de de experiência de quarenta anos com a biomassa do etanol da cana de açúcar, acentuou ele, na entrevista à equipe da revista.

O Brasil, na avaliação do diplomata, é incontornável na área ambiental e poderia fazer bela figura naquela reunião. “Tanto mais porque, sendo um país sem poder como as grandes nações, depende das regras internacionais, depende de um sistema baseado em normas e leis, adotadas em processo democrático, na seara da comunidade de nações, para fazer avançar seus interesses no concerto de nações”, ressaltou Ricupero.

Em outro trecho da entrevista, o diplomata afirmou que a busca do conflito e da tensão é inerente ao tipo de proposta que levou Bolsonaro ao poder e à própria personalidade dele. “Acho que ele tende a criar conflito, e até o busca conscientemente. Um exemplo disso é o fim prematuro do Programa Mais Médicos. Ele obviamente quis criar um problema com Cuba, porque antes mesmo de se pronunciar sobre o Programa Mais Médicos, já tinha mencionado algumas semanas atrás que se perguntava se deveria ou não ter embaixada em Cuba”, ponderou, para continuar: “É nessa área onde ele vai se concentrar, como Trump costuma fazer, o tipo de conflito e tensão que mantém a adesão dos mais convencidos. Não duvido que se chegue à ruptura”.

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Ascânio Seleme: Uma chance à direita

Muitos ficaram preocupados, outros assustados, alguns horrorizados com a eleição de Jair Bolsonaro. Quase todos tinham bons argumentos para explicar seu sentimento de pânico. Afinal, o presidente eleito já havia muitas vezes manifestado seu desprezo pelas instituições da democracia. Da própria democracia ele fez pouco caso. Seu modo de ver a vida cotidiana também deixou muitos brasileiros de cabelo em pé. O deputado que disputava a Presidência mostrou que temas do comportamento já consolidados na sociedade poderiam sofrer retrocessos.

Os que o elegeram conheceram muito bem sua agenda ao longo da campanha. Seu discurso de direita, conservador nos costumes e liberal na economia, foi amplamente divulgado pela mídia e expressado pelo próprio Bolsonaro e seu grupo. Não havia dúvida alguma sobre quem se estava elegendo. Mesmo assim, ou por isso mesmo, o futuro presidente foi chancelado pela maioria dos eleitores. Não há, portanto, como lhe negar o direito de governar de acordo com o programa pelo qual foi eleito. É legítimo. E aos brasileiros que discordam dele resta fazer crítica e oposição.

Discordar e criticar não significa desprezar. Bolsonaro não deve ser desprezado. Seus modos não agradam? Tem que se acostumar a eles. Seu discurso parece pequeno? Melhor aprender a conviver com ele (lembre-se da Dilma). Sua agenda incomoda? Incomoda a muitos mas não à maioria. Os que se opõem ao presidente eleito devem combatê-lo, mas de maneira legal, institucional e democrática. Pode reconfortar a estes o fato ao qual já me referi aqui antes, um presidente sozinho nada pode.

Para aprovar qualquer pauta, como a da redução da reserva indígena Raposa-Serra do Sol (da qual recuou ao perceber a dificuldade em aprová-la), e outras tão polêmicas quanto esta, terá de negociar com o Legislativo e com o Judiciário. Em última instância, terá de discutir também com a sociedade, que já provou que tem meios e sabe se exprimir e se fazer ouvir. O Brasil também será ouvido através do Congresso e dos tribunais. E o brasileiro poderá sempre recorrer aos seus maiores aliados, as instituições da nossa já sólida democracia, que não permitem aventuras.

De qualquer forma, nas últimas três décadas, de Itamar Franco para cá, o Brasil vem sendo governado por matizes diferentes de centro ou centro-esquerda. Pela primeira vez desde então, o país voltará a experimentar um governo de direita. Sendo essa a vontade da maioria dos eleitores, não há outro jeito a não ser dar uma chance para ver o que pode resultar desta experiência. No campo econômico se conhece bem o caminho, já percorrido antes por outros países. Menos gastos, possivelmente menos impostos, privatizações, uma reforma previdenciária inevitável. Mas também menos direitos trabalhistas, menos concessões a empresas, uma busca incansável do equilíbrio fiscal.

Nas demais agendas, muitas delas de combustão espontânea, o governo também terá de se movimentar muito, negociar mais ainda, para tocá-las adiante. Em todas as pautas, tantos as econômicas quanto as de costumes, Bolsonaro sairá na frente porque vem legitimado pelo voto. E os que se opuserem a elas, e que não são poucos, terão que defender suas ideias nos campos apropriados, os plenários do Legislativo e do Judiciário. Têm também as ruas. Mas, mesmo nas ruas, não custa nada se opor civilizadamente a Bolsonaro.

Do lado do novo governo, já se ouviu inúmeras vezes que o jogo será jogado no campo democrático. Bolsonaro disse isso mais de uma vez depois de eleito. O general Heleno, o mais importante e respeitado oficial general do Brasil, repetiu a mensagem na semana passada numa entrevista a Pedro Bial. Para o vice, general Mourão, este discurso já virou um mantra. Não que precisasse, mas considerando o que já foi dito no passado pelo próprio Bolsonaro, reassegurar a democracia não atrapalha.

Para erros e malfeitos, existem o Ministério Público, a Polícia Federal, e diversas outras instâncias de fiscalização e controle. Bolsonaro será escrutinado como foram todos os presidentes antes dele. Na verdade, já está sob escrutínio no caso do Fabrício Queiroz, o assessor de seu filho Flávio que depositou dinheiro na conta da sua mulher, e o da sua assessora/personal trainer. Da parte de quem informa, o brasileiro pode esperar vigilância. Cabe a jornalistas acompanhar, investigar e analisar todo e cada passo do governo e de seus membros. O Brasil tem uma imprensa combativa, justa e honesta, que critica duramente, mas que também sabe reconhecer acertos.


William Waack: STF reforça um vazio

A ‘surpresa’ temida pelos militares acabou acontecendo depois das eleições

A bagunça criada pelo STF é perigosa, não só pelo que possa significar para os destinos políticos deste ou daquele (no caso, Lula), mas, sim, pela destrutiva força que dali emana de insegurança jurídica. Faz tempo que o STF deixou de ser um colegiado para se transformar num ajuntamento de 11 indivíduos, cada um com suas ideias próprias do que seja a aplicação do texto constitucional. E, sem liderança, papel que seu decano não quer ou não foi capaz de assumir.

Transformado, às vezes, numa espécie de assembleia constituinte, dadas as interpretações capazes de inverter o sentido de preceitos constitucionais, o Supremo é o espelho exato do que se chamava antigamente de judicialização da política (já que o sistema político não resolve, as decisões acabam caindo no colo de juízes, que não são competentes para isso nem foram eleitos). O que existe hoje é a perigosa politização da Justiça, entendida como tomada de decisões que tem como cálculo atuar na política ou reagir ao que integrantes do Supremo possam considerar que seja “clamor popular”.

Com algum atraso – felizmente, depois das eleições – cumpriu-se um dos cenários mais temidos pelos integrantes das Forças Armadas, que pularam para o lado de Jair Bolsonaro. Com uma “canetada”, acaba sendo produzida uma surpresa de imprevisíveis consequências políticas. A de Marco Aurélio só não se tornou pior, pois o processo político já levou à diplomação de um novo presidente. Mesmo assim, a “surpresa” da decisão monocrática é que fará com que alguns desses altos oficiais, sintam agora cheios de razão: era necessário, na visão deles, frear de alguma maneira a bagunça política que, junto do esgarçamento do tecido social, ameaçava criar condições dificilmente controláveis.

Episódio ainda pouco contado em detalhes foi o temor do escorregão rumo à bagunça política que levou o ainda nem empossado atual presidente do Supremo, Dias Toffoli, a combinar com o alto-comando do Exército uma garantia contra “surpresas” (leia-se canetada monocrática). Foi a nomeação do então chefe do Estado-Maior (e agora nomeado ministro da Defesa), general Fernando Azevedo, como assessor especial do chefe do Poder Judiciário, o próprio Toffoli. Pode-se dar a isso a designação de “tutela”, mas seria um exagero. O que aconteceu, no fundo, foi a compreensão, por parte de uma série de agentes políticos, de que era necessário articular algum tipo de garantia contra “surpresas” jurídicas de consequências políticas incalculáveis.

Foi exatamente essa garantia que Toffoli deu aos militares – mas a garantia não se estendia a seus colegas de ajuntamento de integrantes do STF. As causas jurídicas mais distantes da insegurança que emana do STF não cabem neste curto espaço. Um breve resumo, as localiza exatamente na politização da Justiça – o STF, por exemplo, protelou uma decisão final sobre o artigo da Constituição que trata da prisão após condenação em segunda instância, pois alguns de seus integrantes achavam que se formaria uma maioria “beneficiando” Lula.

Como instituição, o STF sofre hoje do pior dos males, que é o descrédito – seja por decisões que inevitavelmente serão consideradas como “políticas” (e, de fato, muitas são) e, portanto, destinadas a favorecer uns e prejudicar outros. Seja por ser identificado não mais como “garantidor” dos preceitos constitucionais, mas, sobretudo, de vantagens auferidas por integrantes do Judiciário. Qualquer que seja o destino de Lula, o papel desempenhado pelo STF reforça um vazio institucional.


Eliane Brum: A esquerda que não sabe quem é

Como deixar de apenas reagir, submetendo-se ao ritmo imposto pela extrema direita no poder, e passar a se mover com consistência, estratégia e propósito?

Quero propor uma conversa. Ou talvez duas. A esquerda foi demonizada pela turma do Bolsonaro, do MBL (Movimento Brasil Livre), do Olavo de Carvalho e outras. Para uma parte da população, virou tudo o que não presta, seja lá o que for. Às vezes esquerda e comunismo e marxismo viram uma coisa só no discurso repetitivo e feito para a repetição. E essa coisa que viram pode ser qualquer coisa que alguém diz que é ruim. A reação daqueles que se identificam com a esquerda é acusar os que estimulam esse desentendimento, aqui no sentido de não entender mesmo do que tratam os conceitos, de manipuladores e de desonestos. E com frequência é isso mesmo que são. Mas se fosse só isso seria mais fácil.

O problema é que está muito difícil saber o que a esquerda é. E o que a esquerda propõe que seja claramente diferente da direita. O PT se corrompeu no poder. É um fato. Pode se discutir bastante se o PT é um partido de esquerda. Eu, pessoalmente, acho que foi de esquerda só até a Carta ao Povo Brasileiro, durante a campanha de 2002. Outros encontram marcos anteriores de rompimento com um ideário de esquerda.

Negar que o PT se corrompeu no poder é quase tão delirante quanto negar o aquecimento global provocado por ação humana

Para o senso comum, porém, o PT é um partido de esquerda. Não só é como foi a principal experiência de um partido de esquerda no poder da história da democracia brasileira. Logo, não se corromper no poder, fazer diferente da velha política conservadora, já não é uma diferença da esquerda para a população. Negar que o PT se corrompeu no poder é quase tão delirante — ou mau caráter — quanto negar o aquecimento global provocado por ação humana.

Garantir o emprego e os direitos trabalhistas poderia ser uma outra diferença visível, mas o desemprego voltou a crescer e os direitos do trabalhador começaram a ser cortados já no governo de Dilma Rousseff, a última experiência que a população teve de um governo de esquerda. A reforma agrária poderia ser outra diferença, mas ela não avançou de forma significativa no governo de esquerda. O MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), que hoje está sendo criminalizado pelo governo de extrema direita, se domesticou quando o PT estava no poder. O mesmo aconteceu com grande parte dos movimentos sociais, que viraram governo em vez de continuar sendo movimentos sociais, o que teria sido importante para garantir a vocação de esquerda do partido no poder. Esta, aliás, é uma história que precisa ser melhor contada.

Também nos governos do PT foram fortalecidos os laços com a bancada ruralista, que foi ganhando cada vez mais influência no cotidiano do poder, e se iniciou um claro projeto de desmantelamento da Funai (Fundação Nacional do Índio). Não é permitido esquecer nenhuma palavra de Gleisi Hoffmann atacando a Funai, quando era ministra da Casa Civil de Dilma Rousseff, assim como não é permitido esquecer nenhuma palavra da ruralista Kátia Abreu, ministra da Agricultura de Dilma, sobre as terras indígenas.

Não custa lembrar que, segundo a Constituição de 1988, as terras indígenas são públicas, de domínio da União, mas de usufruto exclusivo dos indígenas. Toda a articulação para enfraquecer a Funai, até hoje, entre outras várias ações, tem por objetivo mudar a Constituição e abrir as terras indígenas para exploração e lucros privados.

Lula chegou a dizer, em 2006, que os ambientalistas, os indígenas, os quilombolas e o Ministério Público eram entraves para o crescimento do país. Dilma foi a presidente que menos demarcou terras indígenas. A lei antiterrorista, que pode ser piorada e usada para criminalizar ativistas e movimentos sociais no governo de Bolsonaro, foi sancionada por ela. Nenhuma dessas ações e omissões podem ser relacionadas com um ideário de esquerda, pelo menos de uma esquerda que mereça esse nome.

Os governos de Lula e de Dilma reeditaram na Amazônia uma versão das grandes obras da ditadura militar, com hidrelétricas como Jirau e Santo Antônio, estas ainda no tempo de Marina Silva como ministra do Meio Ambiente, no rio Madeira; Teles Pires, no rio Teles Pires; e Belo Monte, no rio Xingu. E só não houve (ainda) as grandes hidrelétricas no rio Tapajós por conta da resistência do povo indígena Munduruku e dos ribeirinhos de Montanha-Mangabal. O complexo hidrelétrico no Tapajós foi temporariamente suspenso também pelo enfraquecimento do governo no processo do impeachment, pela desestabilização das empreiteiras pela Operação Lava Jato e pela desaceleração das exportações de matérias-primas para a China.

Nos governos do PT, comunidades urbanas pobres foram expulsas de suas casas para as obras superfaturadas da Copa e da Olimpíada, assim como povos da floresta foram arrancados de suas ilhas e beiradões para a construção de hidrelétricas. Foi também nos governos do PT que a Força Nacional foi usada para reprimir greve de trabalhadores na construção de Belo Monte e também reprimir protestos da população atingida contra a hidrelétrica.

No enfrentamento da questão das drogas, o governo Lula agravou ainda mais os problemas. A chamada Lei de Drogas, sancionada em 2006, é apontada como uma das causas do aumento do encarceramento de jovens e negros, assim como de mulheres, por pequenas quantidades de substâncias proibidas. Além de acentuar o horror do sistema prisional brasileiro, ainda fortaleceu a desastrosa política de “guerra às drogas”, comprovadamente falida. O Brasil perdeu uma oportunidade histórica de alinhar-se com as políticas públicas mais eficientes já testadas em outros países do mundo.

No final do governo de Dilma Rousseff, até mesmo os melhores projetos construídos nos governos do PT, os claramente de esquerda, como na área da saúde mental, começaram a ser desmanteladas para tentar salvar a presidenta ameaçada de impeachment. Espero que ninguém tenha esquecido que as salas da Coordenação de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas do Ministério da Saúde foram ocupadas por pacientes e trabalhadores da rede pública em protesto contra a nomeação de um diretor de manicômio para a área. A luta antimanicomial é claramente uma bandeira ligada à esquerda.

Se a esquerda quiser se mover, é preciso enfrentar as contradições do PT no poder

A lista pode continuar. Mas acredito que já está de bom tamanho para expor aquilo que acho importante afirmar se quisermos compreender esse momento tão delicado. De forma nenhuma eu entendo que o governo do PT foi igual aos anteriores, muito menos que seja parecido com o governo de extrema direita que já começou.

O avanço nas cotas raciais, a ampliação do acesso ao ensino superior, a expansão do Bolsa Família, o aumento real do salário mínimo, a consequente redução da miséria e da pobreza mudaram o país. Já escrevi bastante sobre isso e me posicionei com bastante clareza nestas eleições. Mas não é permitido desviar das contradições. É necessário caminhar com elas e enfrentar as complexidades se a esquerda quiser se mover — e não apenas reagir e reagir. E reagir de novo.

O que afirmo é que a última — e em certa medida única — experiência de esquerda que marca a memória da população foi construída pelos governos do PT. E que as diferenças não são suficientes para que a população possa compreender um projeto de esquerda. Como o cérebro humano em geral recorda e torna totalizante o que vem por último, a diferença de um governo de esquerda para qualquer outro fica ainda mais nebulosa. É possível que, no futuro, quando for um passado mais distante, os anos de Lula ganhem os tons da nostalgia.

Mas não agora. Logo na sequência, os anos de melhoria de vida determinadas por políticas públicas vão sendo apagados pelas dificuldades imediatas num país formado em sua maioria por sobreviventes com medo de perder o que ainda têm. A vitória de Fernando Haddad (PT) sobre Bolsonaro no Nordeste mostra justamente que, nos estados mais pobres do país, a maioria entendia muito claramente qual era a diferença. Mas essa diferença, marcada por políticas públicas como o Bolsa Família, não teve o mesmo impacto nas demais regiões de um país gigante, desigual e culturalmente diverso.

Uma das chaves para compreender por que Lula ocupava um primeiro lugar folgado nas pesquisas pré-eleitorais para a presidência, em 2018, antes de sua candidatura ser impedida pelo judiciário, também aponta para algo importante. O Brasil cheio de potência da primeira década do século está intimamente ligado à figura de Lula, que terminou o segundo mandato com quase 90% de aprovação — e não está ligado ao PT e à esquerda, ou está muito menos ligado ao PT e à esquerda. Também nisso não se fez diferente da extrema direita populista.

O tratamento de eleitores como adultos infantilizados – e não como cidadãos emancipados – é uma conta alta que o PT e toda a esquerda estão pagando agora

A relação de Lula com os eleitores, em especial a partir do segundo mandato, foi populista e paternalista. Os eleitores não eram tratados como cidadãos autônomos, que conferiam ao governante um mandato de poder temporário, que seria rigorosamente fiscalizado por eles, mas sim filhos a quem um pai afetuoso concedia agrados. Foi também como “mãe do PAC” ou “mãe dos pobres” que Dilma foi apresentada na primeira eleição, embora não tenha funcionado graças ao desconforto louvável que ela sentia com o figurino.

O tratamento de eleitores como adultos infantilizados — e não como cidadãos emancipados — é uma conta alta que o PT e toda a esquerda estão pagando agora. O PT tem grande responsabilidade em converter direitos em concessões ou favores no imaginário popular, o que marca o pior da política.

Não me parece, portanto, que a demonização da esquerda seja apenas conferida pela manipulação articulada pela extrema direita e também resultado da ignorância de grande parte da população sobre conceitos básicos. Em parte, sim. Mas há algo concreto, factual e legítimo, embora nem sempre claro, na reação de parte da população contra a esquerda. Se você não consegue ver a diferença entre os projetos e a sua vida está ruim, o culpado é quem estava no governo. E o PT esteve no governo por mais de 13 anos. Se você não consegue ver diferença, esquerda é o nome de tudo o que você odeia.

É óbvio que esse sentimento é manipulado pelos grupos que disputam o poder, mas isso não significa que não exista lastro, experiência e racionalidade nessa interpretação. Todos têm direito a querer uma vida melhor e todos sabem qual é a vida que estão vivendo.

A eleição de Bolsonaro mostrou que a esquerda não convenceu a maioria dos eleitores de que pode mudar sua vida para melhor. Então muita gente preferiu tentar algo extremo, porque o desamparo é grande. E como a vida no Brasil está ruim mesmo, é catártico poder culpar alguém por todas as merdas que acontecem no seu dia, assim como pela imensa sensação de fracasso e de insegurança. A esquerda — ou o comunismo ou o marxismo — virou esse nome para tudo o que não presta, já que não dá para saber o que ela é e o que propõe de fato.

Quando se exige uma autocrítica do PT é exatamente porque sem ela não é só o PT que não avança, mas todo o campo da esquerda que foi identificado com o PT, com ou sem razão. Como o PT usa inúmeras justificativas para não fazer autocrítica, o que me parece não só desrespeito aos eleitores, mas também um tremendo equívoco político, nada avança. Se você não pode falar sobre o que errou, e que todo mundo viu que errou, como alguém vai acreditar em seus acertos?

Como o PT é a experiência de esquerda que a população viveu, a autocrítica é fundamental para que a esquerda possa construir um outro projeto para o país

A credibilidade se dá também pela coragem de assumir os erros cometidos e de ter respeito suficiente pelo voto de quem o elegeu para debater seus equívocos publicamente. Quando insisto na autocrítica do PT não estou preocupada com o futuro do partido, mas sim com a necessidade de a esquerda ser capaz de criar um projeto que mostre a sua diferença. Como o PT é a experiência de esquerda que a população viveu, a autocrítica é fundamental para que a esquerda possa construir um outro projeto. Autocrítica não como expiação cristã, mas como dever democrático, compromisso público com o público.

No início de dezembro, durante uma palestra na Universidade de Londres, a ativista Bianca Jagger afirmou que o movimento que confronta a ditadura de Daniel Ortega, na Nicarágua, não é de esquerda ou de direita. Os manifestantes, muitos deles estudantes, “walk for life”. Esta é possivelmente a interpretação acurada da ativista sobre movimentos que se caracterizam por não serem marcados por uma coesão ideológica. Mas é também uma resposta à estratégia dos apoiadores do regime de opressão.

Daniel Ortega e Rosario Murillo, sua mulher e vice-presidente, assim como seus partidários e parte da esquerda mundial tentam vender à opinião pública internacional a ideia de que Ortega estaria sendo atacado por um complô de direita. O problema da teoria conspiratória é que Ortega não tem mais qualquer resquício de identificação com um projeto de esquerda há vários anos. Mas essa parcela da esquerda, corroída e ultrapassada, finge não saber disso e insiste em contornar os fatos porque eles mancham seus heróis e suas revoluções.

As ditaduras de Daniel Ortega e Rosario Murillo, na Nicarágua, e de Nicolás Maduro, na Venezuela, colaboram bastante para que as diferenças entre esquerda e direita sejam apagadas. Há muitos anos Ortega traiu a revolução sandinista e qualquer ideário de esquerda e está fortemente conectado ao que há de pior na direita. Da mesma forma, Maduro não pode ser considerado um democrata de esquerda por várias razões, uma delas a de matar e prender opositores de um regime que há muito deixou de ser uma democracia.

Essa esquerda apodrecida, que morre abraçada com ditadores e não consegue admitir que se corrompeu, precisa ser superada

Parte da esquerda mundial, dos partidos que se dizem de esquerda e dos intelectuais que se dizem de esquerda, porém, simplesmente ignora os fatos ou torce as evidências para defender o indefensável. Como afirmar então que a população é que é ignorante e não consegue compreender a diferença entre esquerda e direita? Se a esquerda não se dá o respeito, a esquerda não merece respeito. Essa esquerda apodrecida, que morre abraçada com ditadores e não consegue admitir que se corrompeu, precisa ser superada. Essa esquerda que já não é está atrapalhando a esquerda que quer ser.

Há muita gente, de diferentes matizes ideológicos, defendendo que “essa coisa de esquerda e direita acabou”. Não é minha posição. Pelo contrário. Acho mais urgente do que nunca a criação de um projeto de esquerda para o Brasil, uma visão de esquerda para um dos países mais culturalmente diversos do mundo. Um projeto criado junto com os vários povos brasileiros, porque uma das diferenças da esquerda é criar junto, como num dia longínquo o PT fez com o orçamento participativo de cidades como Porto Alegre.

Em artigo no The Intercept, a cientista social e antropóloga Rosana Pinheiro-Machado escreveu sobre o que tem chamado de “revoltas ambíguas”. Aquelas que não se definiriam por estar alinhadas com a esquerda ou com a direita, como aconteceu nas manifestações de 2013, com a greve dos caminhoneiros, em 2018, no Brasil, e acontece agora com os “coletes amarelos”, na França. Tentar enquadrá-las como de esquerda ou de direita é um equívoco:

“Fruto da crise econômica de 2007 e 2008, as revoltas ambíguas são um fenômeno que veio para ficar. Elas são uma resposta imediata do acirramento de austeridade do neoliberalismo do século 21, marcado pela crescente captura dos estados e das democracias pelas grandes corporações. Se o neoliberalismo flexibiliza as relações de trabalho e, consequentemente, as formas de fazer política sindical, atuando como uma máquina de moer coletividades, des-democratizar, desagregar e individualizar, os protestos do precariado tendem a ser desorganizados, uma vez que a esfera de politização deixa de ser o trabalho, mas ocorre de forma descentralizada nas redes sociais. Os protestos ocorrem mais como riots (motins) para chamar atenção. Eles nascem, muitas vezes, de forma espontânea e contagiosa, sem grande planejamento centralizado e estratégico, expressando um grande sentimento de revolta contra algo concreto vivenciado em um cotidiano marcado por dificuldades. São um grito de ‘basta”.

Ao voltar a entrevistar os jovens que participaram dos “rolezinhos”, em 2016, Rosana e a antropóloga Lúcia Scalco constataram que parte deles virou “bolsominion”, nome pejorativo dado aos seguidores de Bolsonaro. Outra parte aderiu a lutas mais identificadas com a esquerda, como contra o machismo, contra o racismo e contra a homofobia. Mas os rolezinhos não eram um movimento de a esquerda ou de direita quando aconteceram, como ficou claro, embora tivessem uma expressão política. “Direita e esquerda são os polos para onde as rebeliões ambíguas podem pender. São, portanto, uma disputa, um fim. (...) Isso significa que a ambiguidade não é um lugar no qual conseguimos nos manter por muito tempo”, escreveu Rosana.

Parte dos pensadores de esquerda decidiu parar de pensar com medo de enfrentar as contradições da experiência concreta de poder

Se a ambiguidade é uma marca das revoltas recentes no Brasil e no mundo, me parece que o desafio não está em superar os conceitos de esquerda ou de direita, mas sim de atualizar os conceitos de esquerda e de direita, exatamente para que as pessoas consigam estabelecer as diferenças. Não são os conceitos que estão ultrapassados, mas muitos dos pensadores de esquerda é que decidiram parar de pensar, com medo de enfrentar as contradições, e se blocaram em significados de um mundo que já não é. O pensador só é vivo enquanto continuar pensando e se pensando. O que estanca, paralisa, é dogma.

Há um enorme risco quando tudo se confunde, como hoje. Se os limites entre esquerda e direita são borrados, como fazer escolhas consistentes? Como criar um projeto se você não consegue dizer claramente nem mesmo aquilo que não é?

No caso dos “coletes amarelos”, na França, há um ponto que também vale a pena prestar atenção, como assinalaram alguns analistas. Como se sabe, o presidente francês, Emmanuel Macron, colocou um “imposto ecológico” sobre os combustíveis, causando revolta naqueles que dependem deles para trabalhar. A taxação de combustíveis fósseis é uma das medidas importantes para enfrentar as mudanças climáticas provocadas por ação humana, que podem destruir o planeta e nossa vida nele, assim como a das outras espécies, se não forem tomadas medidas urgentes.

O aumento dos combustíveis seria um dos vários passos em direção ao compromisso da França de reduzir as emissões de carbono em 40% até 2030 e proibir a venda de veículos a gasolina e a diesel até 2040. Aumentar o preço do carbono tem sido apontado por alguns economistas como uma ferramenta essencial para manter o aquecimento global abaixo do nível perigoso de 1,5 graus Celsius.

O problema foi a escolha feita por Macron: o ônus não estava sendo compartilhado de forma justa. A maioria dos manifestantes estava nas ruas porque gasta uma parte desproporcional de seus ganhos em combustível e transporte. Em contrapartida, o imposto seria usado principalmente para reduzir o déficit orçamentário da França, pagando credores ricos. Na prática, o “imposto ecológico” de Macron agravaria a desigualdade.

Embora alinhada com a necessidade de tomar medidas urgentes diante do aquecimento global, a escolha de Macron não foi orientada por princípios de esquerda, mas sim por princípios de direita. Visto como um político de centro, quando foi eleito, o presidente francês é da nova safra de políticos que se elegeu repetindo não ser “nem de direita nem de esquerda”. No Brasil, a principal expoente dessa linha nem cá nem lá é Marina Silva.

A esquerda brasileira é incapaz de dar à mudança climática o lugar central que ela tem na realidade

Cito o caso francês não só porque está se desenrolando nestes dias, mas porque uma grande parcela do que se chama esquerda, principalmente no Brasil, é incapaz de colocar a mudança climática como uma questão central que deve ser enfrentada a partir de princípios de esquerda. A mudança climática foi causada por ação humana, mas não de todos os humanos. Alguns humanos, os mais ricos, assim como os países mais ricos, Estados Unidos na liderança, são os grandes responsáveis pela destruição em curso do planeta. Mas as consequências atingirão primeiro os mais pobres e muito mais os mais pobres. É o que já está acontecendo.

Não há nenhuma grande questão atual que não seja atravessada e determinada pela crise do clima. Um outro exemplo deste momento: a caravana de milhares de pessoas de Honduras, El Salvador e Guatemala que marchou rumo à fronteira do México com os Estados Unidos pode apontar a primeira migração em massa da América Latina provocada por mudança climática. Eles falam de fome e de violência, mas porque isso é o que aparece como causa imediata. Ao serem entrevistados por jornalistas que sabem perguntar, porém, uma parcela significativa conta que o clima começou a mudar e as colheitas diminuíram, causando um série de consequências que os levou a essa marcha desesperada.

Qual é a resposta da esquerda brasileira para a mudança climática? Qual é o projeto para enfrentar e se adaptar ao que virá, para além dos discursos habituais? Não há. Fora iniciativas pontuais, parte dos partidos e políticos de esquerda sequer compreende o que está em jogo.

Quando Ernesto Araújo, o chanceler de Bolsonaro, afirma que a mudança climática é uma “ideologia de esquerda”, ele não está apenas sendo irresponsável e falando uma tremenda bobagem. Ele está também superestimando a esquerda. E especialmente o PT. Alguns, inclusive, devem ter acordado naquele instante para o aquecimento global e corrido para a Wikipédia.

Lula e Dilma Rousseff, os dois últimos presidentes do PT, nunca chegaram sequer perto de compreender que a mudança climática era assunto deles. Ao contrário. Deixavam claro que adoravam ver as ruas cheias de carros individuais, movidos a combustíveis fósseis, construir hidrelétricas na Amazônia e ver a floresta convertida em soja e boi. Os dois estavam cimentados no século 20, às vezes no 19. Como afirmou o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, em entrevista a esta coluna, a esquerda que estava no poder era uma “esquerda velha”, que não alcançou sequer 1968, referindo-se às mudanças profundas provocadas pelos movimentos de maio daquele ano, na França.

Há vários pensadores no mundo elaborando respostas de esquerda para o desafio da mudança climática provocada por ação humana. Ou enfrentando a necessidade de refletir sobre o que pode ser uma resposta de esquerda para um fenômeno que é, ao mesmo tempo, causado pela desigualdade e causador de desigualdades.

Uma resposta de esquerda, por exemplo, seria taxar os grandes produtores de combustíveis fósseis ou taxar todos aqueles que causam danos ao que é comum a todos, ao que é patrimônio coletivo, inclusive de outras espécies. Se há bastante sendo pensado no mundo, essa reflexão não parece estar acontecendo no Brasil, para além de nichos especializados. Acredito não cometer injustiça ao dizer que a maior parte dos intelectuais brasileiros não tem ideia das implicações e efeitos da mudança climática, o que compromete qualquer análise do momento atual.

Se a esquerda não tem resposta consistente nem mesmo para o maior desafio da trajetória humana, para que serve a esquerda?

Em várias partes do mundo, os jovens estão chamando os atuais líderes e também seus pais de “uns merdas” que estão ferrando o planeta que viverão. São adolescentes como a sueca Greta Thunberg, de 15 anos, que em setembro deixou de ir à escola para se plantar em frente ao parlamento para protestar contra a falta de medidas para combater o aquecimento global, ou os estudantes australianos que foram às ruas no final de novembro inspirados por ela.

Esses adolescentes vão virar adultos num mundo em que a esquerda não mostrou a sua diferença. Mesmo que tenham sido beneficiados por políticas públicas de esquerda no passado, eles não saberão. Se a esquerda não tem resposta consistente nem mesmo para o maior desafio da trajetória humana, para que serve a esquerda?

Qualquer projeto de esquerda para o Brasil precisa ter uma resposta de esquerda para o enfrentamento da mudança climática e do desmatamento da Amazônia e do Cerrado. Sem isso não há qualquer possibilidade de começar qualquer conversa que possa interessar quem vive no século 21 e que sabe que suas crianças viverão num planeta pior, o que já é uma certeza, ou num planeta terrível, o que acontecerá caso as medidas necessárias não sejam tomadas nos próximos 12 anos. Sem isso não há qualquer possibilidade de começar qualquer conversa que possa interessar quem vive no país que tem a maior porção da maior floresta tropical do planeta no seu território e no país mais biodiverso do mundo.

Ao contrário de muitas pessoas engajadas no enfrentamento da mudança climática e nas medidas de adaptação à nova realidade do planeta, eu acredito que esse enfrentamento precisa ser travado a partir de princípios de esquerda. Não estamos todos no mesmo barco. Não estamos mesmo. Muitos só têm barquinhos de papel.

*Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes - o Avesso da LendaA Vida Que Ninguém vêO Olho da RuaA Menina QuebradaMeus Desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum/ Facebook: @brumelianebrum


Ricardo Noblat: À sombra de Queiroz

O desaparecido vai falar

Quem irá depor, hoje, ao Ministério Público do Rio, é Fabrício Queiroz, ex-funcionário da Assembleia Legislativa do Estado, desaparecido há mais de 10 dias desde que a ele se atribuiu a movimentação suspeita de uma dinheirama para muito além do que sua renda permitiria.

Mas quem estará em cheque será o objeto oculto do que ele tenha a dizer – o deputado Flávio Bolsonaro, recém-eleito senador e filho de quem é. Queiroz foi assessor de Flávio, e de sua conta bancária saiu um cheque de R$ 24 mil que foi parar na conta de Michele, mulher de Jair.

A depender do depoimento de Queiroz, a reputação dos Bolsonaro estará salva, ou então sofrerá um duro abalo. De indesmentível, o fato de que Queiroz, a mulher e duas filhas prestaram durante anos inestimáveis serviços a Flávio e ao seu pai, sendo recompensados com empregos.

Os encantos do capitão
Bolsonaro diz o que eles querem ouvir

Deputados recebidos em bloco para audiências com o presidente eleito Jair Bolsonaro têm saído encantados com a maneira afável com que são recebidos, e com o que ele lhes diz. Insatisfeitos saem os líderes de partidos que antes falavam sozinhos em nome de todos.

Bolsonaro tem dito que as emendas dos parlamentares ao Orçamento da União serão liberadas com presteza para o devido pagamento. E que o governo não as usará para chantagear ninguém. Trata-se de dinheiro destinado a pequenas obras nas bases eleitorais de cada um deles.

Bolsonaro tem dito também que compreenderá as dificuldades de cada parlamentar para votar de acordo com o governo em assuntos considerados por eles sensíveis ou polêmicos. É o caso da reforma da Previdência, por exemplo. Mas garante que não haverá retaliação por isso.

Assegura Bolsonaro que seu gabinete sempre estará aberto para receber o parlamentar que o procure em busca de ajuda, de orientação ou para uma simples troca de ideias. E se diz disposto a atender pedidos desde que eles não firam “os princípios republicanos”.


Bernardo Mello Franco: Vai sobrar para o Queiroz?

Depois de 13 dias de sumiço, o motorista de R$ 1,2 milhão terá que se explicar ao Ministério Público. Se depender dos antigos chefes, a conta vai sobrar para ele

Fabrício Queiroz vai sair da toca. Pelo menos é o que espera o Ministério Público, que pretende ouvi-lo hoje no Rio. Ainda não se sabe como o motorista vai explicar sua movimentação bancária, mas uma coisa é certa: se depender dos antigos chefes, a conta vai sobrar para ele.

Ontem o primeiro-filho voltou a ser questionado sobre as transações suspeitas de Queiroz. Ele deu de ombros e tentou atirar a responsabilidade no colo do funcionário. “Quem tem que dar explicação é o meu ex-assessor, não sou eu. A movimentação atípica é na conta dele”, disse Flávio Bolsonaro.

O senador eleito se irritou com os repórteres que faziam perguntas sobre o assunto. “Deixa eu trabalhar, deixa eu trabalhar. Não tem nada de errado no meu gabinete”, afirmou. O presidente eleito preferiu fugir dos microfones. Ele chegou a ser anunciado na diplomação do herdeiro, mas não apareceu.

É compreensível que Flávio não veja “nada de errado” no próprio gabinete. A questão é saber se os promotores concordam com ele. Até aqui, sabe-se que um motorista com renda de R$ 21 mil movimentou mais de R$ 1,2 milhão em um ano. Ele recebeu repasses de outros oito assessores do deputado, em datas que coincidem com os dias de pagamento na Alerj.

De acordo com o Coaf, Queiroz sacou R$ 324 mil em espécie. Ainda não se sabe onde a dinheirama foi parar, mas ele deixou uma pista ao assinar um cheque de R$ 24 mil para a futura primeira-dama.

Desde que o caso veio à tona, há 13 dias, o motorista desapareceu. Não foi visto no antigo local de trabalho nem nacas a simples em que mora coma mulher. O deputado já admitiu que se encontrou com o ex-funcionário, mas não revelou seu paradeiro. Ao que tudo indica, também não vê “nada de errado” no sumiço.

Depois de faltar à diplomação do filho, o presidente eleito voltou a reclamar da imprensa. “Eu acho que esse jornalismo não é produtivo”, opinou, em transmissão no Facebook. A primeira-família parece sonhar com um país em que repórteres não fazem perguntas incômodas. Nessa terra abençoada, motoristas, caseiros e ex-mulheres também devem viver em eterno silêncio.


Vera Magalhães: Com a palavra, Fabrício Queiroz

Ao que tudo indica, o Brasil verá Fabrício Queiroz nesta quarta-feira. O ex-assessor parlamentar de Flávio Bolsonaro, tão próximo da família que era visto constantemente em festas, pescarias e campanhas com integrantes do clã e tinha vários familiares empregados nos gabinetes de Jair Bolsonaro & filhos, de repente sumiu e ninguém mais ouviu falar dele.

Flávio, o ex-chefe, chegou a dizer que falou, sim, com Queiroz, há cerca de dez dias, quando veio a público um relatório do Coaf que mostra movimentação de mais de um milhão de reais em sua conta entre 2016 e 2017. Achou que a explicação do ex-assessor era “bastante razoável” para essa e outras atipicidades de sua movimentação bancária, mas não disse qual justificativa era essa. Depois não se soube mais de contatos entre ambos, ainda que Flávio esteja com o nome diariamente nas páginas de jornais graças ao caso.

Pois Queiroz deve depor nesta quarta-feira ao Ministério Público do Rio. Além do montante que passou pela sua conta, terá de explicar por que outros servidores do gabinete do agora senador eleito na Assembleia do Rio depositavam sistematicamente dinheiro para ele, em datas próximas ao pagamento dos salários na Casa.

Também poderá esclarecer por que esses depósitos e transferências coincidiam quase sempre com saques de dinheiro vivo em quantias semelhantes.

Por fim, poderá referendar a afirmação feita pelo presidente eleito de que contraiu R$ 40 mil em empréstimos com ele, mesmo tendo uma movimentação de dinheiro tão expressiva em conta, e se os R$ 24 mil que repassou à futura primeira-dama, Michelle, eram pagamento desses empréstimos feitos sem recibo em declaração no Imposto de Renda.

As explicações do ex-servidor são essenciais para que não continue pairando essa cortina de silêncio numa família que, para todo o resto, é expedita em se manifestar nas redes sociais, na tão propalada comunicação direta com o povo.

Ontem mesmo, Jair Bolsonaro fez mais uma de suas transmissões ao vivo. Tratou de vários temas confortáveis e populares para seu público cativo: médicos cubanos, a escola militar batizada com o nome de seu pai, o desconvite aos ditadores de Cuba e Venezuela para a posse. Surfou tranquilamente e manteve aquecida a torcida. Mas não tratou de Fabrício Queiroz, seu amigo desde os anos 1980. Eduardo Bolsonaro também tratara de se esquivar do assunto mais cedo, ao dizer que o problema é de seu irmão, não dele.

Como ninguém quer tratar do tema, que fale o próprio personagem. Com a palavra, Fabrício Queiroz.

CÂMARA
João Campos investirá em associar Maia ao PT

A campanha do deputado João Campos (PRB-GO) à presidência da Câmara aposta em associar a candidatura de Rodrigo Maia (DEM-RJ) aos partidos de oposição, notadamente ao PT, como forma de tentar atrair o apoio ainda incerto do PSL e da base bolsonarista. Nas conversas com esses deputados e com a imprensa, aliados de Campos dizem que Maia, por enquanto, esconde o PT para não melindrar o futuro governo, mas a aliança já estaria selada. Campos parte do diagnóstico óbvio: a polarização extrema entre bolsonaristas e petistas, que ficou evidente na campanha e segue a todo vapor na transição, como se viu ontem na diplomação em São Paulo, pode funcionar como fator de desgaste de Maia junto a setores da próxima bancada governista mais ideologizados. Outro trunfo com o qual ele espera contar é o fato de ser delegado da Polícia Federal. Fará uma pregação da pauta anticorrupção do futuro ministro Sérgio Moro como forma de se contrapor, de novo, a Maia e ao Centrão.


El País: “Se alguém da bancada do PSL cair na velha política, serei o primeiro a denunciar”, diz Orléans e Bragança

Eleito deputado na onda Bolsonaro, Luiz Philippe de Orléans e Bragança propõe uma democracia parlamentarista e diz que disputa da base do PSL ainda não acabou

Por Afonso Benites, do El País

Eleito para seu primeiro mandato de deputado federal, o cientista político e empreendedor Luiz Philippe de Orléans e Bragança (Rio de Janeiro, 1969), carrega o DNA da família real brasileira. É chamado de príncipe, mas esse seria apenas um título simbólico, caso o Brasil ainda fosse um país monárquico. Na prática, ele não está na linha de sucessão. É daqueles membros da família real que recebem críticas por não lutar veementemente pelo retorno do império brasileiro, apesar de o desejar. Defende o parlamentarismo.

Pergunta. O seu nome chegou a ser cotado para ser vice de Jair Bolsonaro. Por que as conversas não prosperaram?
Resposta. Foi pouco tempo de interação com o Jair e houve muita urgência de se tomar essa decisão. É um cargo de extrema confiança. Fiquei muito grato e surpreso por ele ter me considerado. Eu não me considerava nem próximo do radar e me colocaram ali. Foi uma validação muito respeitosa do ponto de vista dele. Ele tinha uma necessidade de escolher quem de fato ele conhece porque o cargo é de alta confiança. O vice tem de ser alguém que nunca vá trair ele e esteja alinhado na perspectiva ideológica. O general [Hamilton] Mourão já tinha esse alinhamento anterior. O Mourão sempre foi o candidato que ele tinha como uma das principais opções. Quando ele avaliou o meu nome, talvez ele estivesse buscando uma segunda opção que neutralizasse esse aspecto que a imprensa poderia construir contra ele de unir apenas militares, de que os militares estariam de volta ao poder. Não acho que eu alteraria o resultado, o Bolsonaro iria ganhar de qualquer maneira e o Mourão é uma ótima escolha. É uma pessoa equilibrada, culta, superpreparada. Ele escolheu quem ele confiava mais.

P. Qual foi o peso de Jair Bolsonaro em sua campanha? Acredita que ele foi fundamental para sua eleição?
R. Fiz minha campanha totalmente independente da vinculação de meu nome com o dele. É óbvio que todos que vinham para as minhas palestras, como o processo eleitoral foi um mês depois da quase nomeação como vice, boa parte estava ali porque entendia que eu estava favorável ao Jair Bolsonaro. O jeito que eu conduzi a campanha eu não era contra, naturalmente eu me colocava a favor. Eu conduzi através das ideias. Fiz uma militância ideológica, com relação à mudança de sistema. Aqueles que votaram em mim estão mais vinculados à mudança no sistema do que vinculados a mim próprio ou Jair Bolsonaro. Não considero meu eleitor o eleitor típico do Jair Bolsonaro. Eu abranjo uma gama mais diversa, alguns eleitores que não votariam no Jair, votariam em mim, em função de conhecer minhas ideias. Mas não diria que são todos. A maioria é de apoiadores do Bolsonaro, sim. Mas, como prioridade eles estão confiando nas ideias que estou carregando comigo.

P. A volta de militares ocupando postos-chaves da política brasileira causa temor em parcela da população. Você acha que Bolsonaro tem compromisso com a democracia? Descarta a possibilidade de qualquer intervenção militar?
R. É uma narrativa totalmente falsa. Criada por todos esses partidos da esquerda, junto com o Supremo Tribunal Federal e alguns juízes que sempre foram contrários ao conservadorismo e que taxam de antidemocrático qualquer coisa que venha do Jair. Na minha experiência com o Jair, que foi pouca, mas intensa, mostra o contrário. A minha seleção para ser vice ele colocou a voto quem deveria ser o vice dele. Teve uma seleção prévia entre mim, Janaína Paschoal e Marcos Pontes. Qual outro presidente colocou a voto seu vice?

P. A voto, como? Pelas redes sociais? Quem eram os eleitores?
R. Era a própria base do Jair. Ele fez pelas redes sociais e também em um evento em que ele perguntou quem o público queria que fosse o vice. Foi por aclamação. Pelas redes sociais eu tinha perto de 70% dos seguidores dele e, na aclamação também. Apesar de ser difícil se medir aplausos. Enfim, esse aspecto de democracia que tentam colocar contra o Jair é totalmente falso. Nesse ponto, precisamos ter uma discussão mais profunda, porque essa questão de democracia que o PT e a esquerda pregam é, no melhor dos casos, uma democracia de massa.

P. O que seria essa democracia de massa?
R. São mobilizações de hordas que não são cognitivas. Não são pessoas que estão ali, dotadas de querer de fato eleger um representante. Muito pelo contrário. São mobilizações de desespero em que os problemas são distantes. São problemas nacionais monumentais e que somente um líder forte, igualmente magnânimo e grandioso poderia resolver. Essa democracia que o PT criou, que é uma democracia de massa, é totalmente o problema do Brasil. Temos de ter uma democracia local, próxima, distrital. Que os problemas sejam resolvidos localmente. E que a população se sinta forte o bastante para resolver por conta própria, não precisa de representante. A democracia do PT é pró-grandes líderes. Nesse aspecto, também sou contra essa democracia. Se por acaso ainda se chamarem de democratas, que de democratas não tem nada. O plano do Fernando Haddad era de censura da mídia, controle do Judiciário, interferência em toda a economia. Como se chama aquilo de democrático? Não tem nenhuma nuance de democracia ali.

P. Como está avaliando essa questão do Coaf envolvendo um ex-funcionário do senador eleito Flávio Bolsonaro? Acha que faltaram explicações?
R. Tudo tem de ser averiguado. Estamos vindo com força e legitimidade mudar as coisas. Então, a gente tem de dar o exemplo. Se tem coisa errada, tem de ser investigado e levado a cabo até o final. Seja de quem for.

P. E a disputa pelo protagonismo da bancada do PSL? Brigas no WhatsApp, discussões por espaço. Isso foi superado?
R. Ainda não está superado porque temos de eleger quem será líder do partido. O processo tem de ser respeitado, mas ele ainda precisa ocorrer. Esse foi o debate. O Eduardo Bolsonaro não quer esse protagonismo, e então ele abre um flanco que é uma pena que existe. E vamos definir uma liderança que seja representativa, que seja um bom interlocutor.

P. Vai entrar nessa disputa? Deve concorrer a líder do partido ou se coloca para líder do Governo?
R. Não coloco meu nome na disputa. Não me cabe disputar nada neste primeiro momento. Eu tenho de aprender o que é esse negócio de ser político. Na prática eu não conheço nada. Zero de prática. Teoria eu tenho alguma coisa.

P. Por que entrou na política?
R. Não foi por nada positivo. Não foi nenhuma motivação por conquista de glória nem nada do gênero. Foi revolta com o sistema atual. Indignação, mesmo. E frustração com o ativismo que surgia contrário ao sistema.

P. O que significa isso?
R. Significa que lá em 2014, as manifestações estavam muito rasas, estavam focadas em personalidades, em questão de corrupção, era contra a Dilma Rousseff. Tudo muito vago. E eu já estava vendo um problema sistêmico do negócio. Via que não era só a Dilma, o problema. Ela fez o que o sistema permitiu que ela fizesse. Assim como o Lula, o Temer, o FHC e o Collor. Você tem um sistema que é realmente o problema. A gente tem um presidencialismo com poucos freios e contrapesos. Há muita concentração de poder, e pouca transparência. Vamos colocar em perspectiva. O Brasil é o melhor sistema presidencialista dos países organizados como o próprio Brasil.

P. Quais seriam esses países?
R. Os países da América Latina, da África e de boa parte da Ásia. Temos instituições, separação de poderes, Judiciário independente, uma série de coisas. Agora, tudo é grau de intensidade. É tão sofisticado como o modelo europeu? Não. É tão descentralizado como modelo presidencialista norte-americano? Não. Nós não temos a prática de buscar outros canais ao poder, senão o de eleição de legislativos e de poderes executivos.

P. Aí está a concentração de poder?
R. Sim. Acabamos concentrando o poder no Executivo, com um presidencialismo extremamente poderoso. E há uma concentração de poder em Brasília. O que seriam os dois grandes problemas aqui.

P. Qual o modelo ideal, em sua opinião?
R. O parlamentarismo. Os modelos parlamentaristas europeus são mais estáveis, com muito mais freios e contrapesos. Em que a sociedade não fique à mercê de um poder Executivo em tamanho grau que o Brasil fica. É intensa uma eleição presidencial. Não é intensa uma eleição para primeiro ministro. Você faz uma troca de primeiro ministro tranquilamente. E o sistema é tão desfavorável a quem quer fazer dinheiro do próprio sistema.

Luiz Philippe diante de um quadro do imperador Dom Pedro I.ampliar foto
Luiz Philippe diante de um quadro do imperador Dom Pedro I. MARCELO JUSTO

P. Está dizendo que o parlamentarismo reduz a corrupção?
R. Sim. O sistema parlamentarista europeu é péssimo para quer ser corrupto. Um sistema presidencialista como o nosso, não. Você vê o tamanho do Orçamento que o Jair Bolsonaro vai concentrar. É mais de 2,3 trilhões de reais. Em nível estadual também é grande a concentração. São volumes monumentais. Em um sistema em que o Executivo é dono do Orçamento e pode cooptar o Legislativo – em todos os níveis, do municipal ao federal— temos corrupção. Há compra de favores do Legislativo. Aí, você tem um agravante, as políticas estatizadoras. Criou-se várias estatais com o argumento de que tudo é estratégico. Correio, banco, alimento, mineral. Tudo é nacionalizado, tudo vai para a mão do Estado. Cria-se milhares de cargos a serem preenchidos a cada Governo. Aí você tem deputados da velha política correndo para os novos ministérios querendo dar seu cartãozinho, querendo nomear pessoas na máquina estatal em seus Estados. Isso é um absurdo. Isso continua.

P. Você testemunhou essa corrida por cargos no Governo Bolsonaro?
R. Testemunhei, mas não vou citar nomes. Dos 52 deputados do PSL, 48 são deputados novos. Eu me incluo entre eles. Você tem alguns que já são tarimbados. Tenho levantado essas questões para os novos, principalmente. A maioria é ativista político e quer mudar o Brasil. Tem poucos que já são de segundo ou terceiro mandato, que tem carreira política, e que já sabem trabalhar o sistema. Se eu não tivesse levantado esse assunto, eles estariam aparelhando o Brasil inteiro sozinhos sem os outros deputados saberem. Aí, os novos dizem: “Pô, como é que eu também vou nomear”.

P. Você citou essa questão dos cargos para os seus colegas em alguma das reuniões que tiveram recentemente. É isso?
R. Sim. Citei para eles. E agora eu usaria um termo em inglês que é muito bom para este momento: the cat is out of the bag (o gato está fora do saco). Tá todo mundo vendo o que está fora do saco. E estamos todos atentos. Eu estou muito feliz com a bancada do PSL. Estou me surpreendendo, eu achava que ia me decepcionar, mas me enganei. Você tem uma dinâmica de ativistas que entraram para o partido e que estão fiéis em sua missão como ativistas. E, se os ativistas caírem para a velha política, eu serei o primeiro a denunciar. Eles estão sendo bem rigorosos e salvando várias reuniões. Também tem os militares que, de fato, estão comprometidos com essa mudança. Classistas que ainda têm dentro do grupo do PSL terão de se readequar.

P. Como seria essa readequação? Serão chamados para uma conversa?
R. Essa é uma dinâmica que perpassa por todos os partidos. Você tem partidos que são dominados pelo classismo. O PSL é um dos mais limpo em termos dessa dinâmica, mas ainda têm alguns com essa visão. E tem um que é zero de classismo, que é partido NOVO, mas tenho algumas reticências a esse partido. Em termos ideológicos e de coerência de postura política. Analisando nossa bancada, temos uma base interessante, muito boa, de novos deputados que vão realmente querer fazer mudança e vão ter vergonha na cara, de apontar alguma incoerência do partido de algum quesito.

P. Inclusive na nomeação de pessoal para cargos no Governo?
R. Te dou um exemplo com relação à nomeação. Alguns colegas já levantaram a pergunta sobre quem estava aparelhando um ou outro ministério. Na Infraestrutura já notaram que geralmente era o pessoal do PR. Aí uns disseram: “Vamos botar o nosso pessoal lá”. A priori, eu sou pró-limpeza. Somos contra a nomeação de pessoas sem o preparo técnico para ocupar tal posição. Agora, o problema é a gente estar nomeando para esses cargos. Porque neste momento somos nós, em um segundo momento pode ser qualquer outro partido. E o brasileiro fica à mercê desse jogo.

P. Pelo que estou entendendo, em sua opinião, o Bolsonaro deve fugir desse loteamento. Mesmo ele cedendo ministérios para alguns políticos filiados a partidos como MDB, NOVO e DEM. É isso?
R. Absolutamente. E ele está fazendo isso. Ele está nomeando para os ministérios rigorosamente seguindo critérios técnicos. É claro que tem abertura para um ou outro deputado. Mas são pessoas preparadas que acabam escolhendo um ou outro técnico preparado. Agora, a dinâmica de nomear só pelo partido, só pela indicação de algum parlamentar, não é boa para o Brasil. A cada mudança de Governo você ter esse tipo de coisa acontecendo é muito perigoso. É isso o que tínhamos com o PT. A grande luta com o PT foi essa. São 4.000 cargos.

P. Não, deputado. São mais de 23.000 cargos comissionados.
R. Pois é. Bem maior. Fora a máquina estadual. Enfim, tem de acabar com estatais. É isso o que cria o maior problema para o Brasil. O Brasil é aparelhável sistematicamente. Ninguém olha o óbvio. No fundo estamos nomeando para a burocracia. A sua burocracia é aparelhável a cada quatro anos. Ela muda em função da mudança de Governo. E ela está mais leal a questões ideológicas, partidárias do que a questões técnicas. Você não tem estabilidade jurídica. Na estrutura atual tudo depende dos partidos.

P. E essa dependência dos partidos é sustentável?
R. Veja, o Jair Bolsonaro entrou com 57 milhões de votos. O que representa quase 60% do eleitorado, e não temos nenhum partido que representa esses 60% do eleitorado no Congresso Nacional. O PSL chega a 15%. Aí, temos um Executivo que concentra um posicionamento político majoritário, mas não reflete na parte legislativa. Aqueles que elegeram Jair Bolsonaro também votaram em deputados do MDB, do PSDB, e em outros partidos que poderiam compor uma grande base de apoio, que daria mais segurança legislativa para o Governo. Essa base, na teoria, não existe. E é exatamente nesse ponto que o parlamentarismo é melhor, você não consegue formar um Executivo se você não tiver uma maioria legislativa. Eu não preciso falar que o Lula é bandido ou a Dilma é uma idiota, porque tem trilhões de pessoas dizendo isso, mas eu preciso apontar é como funciona o sistema que permite essas pessoas de fazerem o que elas fizeram. E elas não o fizeram só porque eram más intencionadas. Uma pessoa de mal intento, em um sistema transparente, com freios e contrapesos, ela tem sua capacidade de fazer o mal limitada.

P. Em seu mandato vai tentar trazer o parlamentarismo de volta?
R. Absolutamente. Estarei sempre discutindo essas questões.

P. Em alguns eventos notei que há militantes que te procuram para tirar fotos com a bandeira do período imperial. A volta da monarquia é algo que está em sua agenda?
R. Esse é um movimento social que cresceu muito e espontaneamente. A família [real] não está fazendo nada, não estabeleceu data, não tem mobilização. Acontece à medida em que as pessoas sabem a história e contextualizando e desmistificando mitos de mais de cem anos. São pessoas que notam que nenhum sistema é perfeito, mas começam a questionar o que tínhamos no período do império e perdemos agora. Isso tudo vem à tona espontaneamente. Mas eu não tenho nenhuma proposta na mesa para a volta da monarquia. Eu quero estabilizar os nossos sistemas político e econômico. Eu conseguindo fazer isso, minha missão está dada.

P. Como seria essa mudança que você almeja?
R. O que causa instabilidade de nosso sistema é você ter muita intervenção de Estado na economia, muito dirigismo e regulamentação e não ter a livre iniciativa no comando. Você tem o Estado no comando disso tudo. Portanto, é desestabilizador a longo prazo. A curto prazo pode até ver um benefício aqui e acolá. Nada mais é que uma distorção de uma realidade que não é insustentável. É o que causa quebras. O Estado intervém, cria-se uma bonança falsa e dez anos depois tem uma quebra geral do país. E isso causa também efeitos políticos. Nos anos 1970 foram de bonança no Brasil, liderado pelos militares, crescimento absurdo, dois dígitos por ano, o milagre econômico. E nos anos 80 foram os da falência do Brasil. Tivemos de pagar tudo aquilo que foi feito nos anos 70. O mesmo se gerou com Lula e Dilma. Altos investimentos e uma alta propensão a fazer grandes obras. E agora, vemos a quebra desse modelo que não é sustentável. Esse modelo não gera riqueza e você tem de girar riqueza para criar uma classe média mais forte e maior, tirar gente da pobreza. Temos de fato de nos tornarmos um país favorável à livre iniciativa e desfavorável às intervenções de Estado, planos nacionais e todas essas baboseiras que vivemos nos últimos 100 anos.

P. E no campo político?
R. Do ponto de vista político, você precisa fragmentar o poder. O problema é a concentração demasiada, o controle muito fácil de dinheiro com prefeitos, governadores e presidente controlando orçamentos monumentais e poucos mecanismos de freio dos diversos poderes. Como você tem pouca representatividade legislativa, você tem de esperar que ele cometa um crime grave para que sofra o impeachment. Ou esperar para exercer um voto contrário em um ciclo eleitoral futuro. Isso é muito pouco. Temos de criar mecanismos de democracia como um recall de mandato para começar frear essa dinâmica política que também é destrutiva. O governador ou presidente eleitos hoje têm o poder de criar mais poderes, cria bancos, estatais, autarquias. Se eles querem criar mais poder para eles mesmos, tem de ter um referendo. Tem de ter uma maneira de frear ou plebiscitar essas medidas. Isso neutraliza a ascensão de poderes nominativos que não são validados democraticamente pelo voto ou por interferência direta nossa. A descentralização política é fundamental nesse processo. Trazer o eleito mais próximo do eleitor, através do voto distrital, do recall de mandato e referendar as medidas de criação de mais Estado.

P. Não te interessa o retorno da monarquia?
R. Eu adoraria que tivéssemos um sistema monárquico. Eu não estou na linha sucessória, não seria eu o rei. Esse movimento tem caminhado naturalmente com a população, que tem acesso à informação independente. Eu até sou criticado pelos monarquistas: “pô, você não está fazendo nada pela monarquia”! Não estou, mesmo. Tem de ser algo natural. Tem vários cabos eleitorais. As pessoas capturam a realidade e tomam suas próprias opiniões. Cada monarquista que se apresenta é o nascimento de um novo brasileiro. O que para nós é uma realidade muito positiva. Essas pessoas concluírem que, em um momento, vivemos em um país sério.

P. Você costuma dizer que um dos primeiros golpes brasileiros foi o fim da monarquia, em 1889. É isso, mesmo?
R. Isso está bem aceito entre a academia, seja o historiador de esquerda ou de direita. É um fato consumado. Foi um golpe militar. Não tem nenhum observador independente que não conclua isso. Obviamente que, tem uns que foram favoráveis a esse golpe e pormenorizam o fato que houve um golpe. Dizem que o Pedro II era velho, o modelo era antigo, que monarquia era um retrocesso. Eles não falam que foi golpe.

P. Boa parte da bancada eleita pelo PSL contra o casamento de homossexuais e aborto. Nesses temas como você se posiciona?
R. Não sei por que se posicionar. Não vejo nenhuma lei sendo colocada contrária ao casamento homossexual. Não vejo nenhum político conservador sugerindo uma lei para alterar a atual regra do aborto. Você faria um grande favor aos seus colegas em definir melhor o que significa esse “se posicionar”. Não há nenhuma urgência de nada, nenhum candidato conservador está propondo nada diferente. Não somos nós que queremos alguma coisa. São os progressistas que querem algo muito além do razoável. Eles é que querem dar o direito universal ao aborto, eles que querem promover todo o tipo de casamento como algo legítimo e legal. Isso está errado. A lei atual já incorpora os homossexuais e já incorpora exceções à possibilidade de aborto. Então, para que mudar isso?

P. E por que não mudar?
R. Os progressistas querem destruir mais. Querem promover o casamento homossexual para criancinhas nas escolas. É isso o que a gente é contra. Essa questão tem de ser pontuada de maneira mais inteligente. Os conservadores estão dando risadas sobre esse debate e que fulano é contra o aborto. Somos a favor e manter a lei como está. O que ocorre sistematicamente na imprensa é que se faz um frame da pergunta de maneira errada. É claro que eu não sou a favor do aborto. Agora, eu sou contra o progressismo que quer transformar o aborto como algo fundamental e um direito universal de toda mulher. Eles estão se mobilizando do outro lado lá e querem mexer na lei. Ela está certa já.

 

O MONARQUISTA DO CONGRESSO

Luiz Philippe posa para foto com admiradores em Foz do Iguaçu.
Luiz Philippe posa para foto com admiradores em Foz do Iguaçu. A.B.

Nos últimos três anos Bragança, formado em administração pela FGV e com mestrado em Stanford, nos EUA, dedicou-se a militar politicamente por intermédio do movimento liberal Acorda Brasil. Esteve entre os defensores do impeachment de Dilma Rousseff (PT) e percorreu boa parte do país participando de debates sobre as crises política, econômica e institucional. O assunto lhe rendeu um livro: “Por que o Brasil é um país atrasado?” (Ed. Novo Conceito). Os temas que desenvolveu nessa obra se transformaram em longa explanações feitas em uma espécie de palanque.

Na campanha eleitoral, ao invés de comícios ou passeatas, ele fazia palestras de até três horas –já eleito explicou, por exemplo, que em sua visão o DEM de Rodrigo Maia, ex-PFL e ex-Arena na ditadura, é de "esquerda". Segundo ele, foram essas apresentações que lhe renderam parte considerável de seus 118.457 votos pelo PSL de São Paulo. “Aqueles que votaram em mim estão mais vinculados à mudança no sistema do que vinculados a mim próprio ou a Jair Bolsonaro”, afirmou ele ao EL PAÍS, sem negar o peso que a onda Bolsonaro teve para o seu sucesso. O príncipe chegou a ser cotado para ser vice-presidente de Bolsonaro, mas foi preterido pelo general Hamilton Mourão (PRTB).

Por quase todo evento público em que transita, Bragança é parado por algum “monarquista”, que pede para tirar uma foto. Geralmente portam a bandeira imperial do Brasil (como a de uma das fotos que ilustram essa reportagem). Os pedidos são atendidos e as conversas, ou entrevistas, encerradas com um discreto sorriso.


Monica De Bolle: A Venezuela

Para entender e opinar sobre a Venezuela, é preciso primeiro compreender o arco histórico

A confusão sobre o convite-não-convite de Nicolás Maduro para a posse de Bolsonaro deu o que falar nos últimos dias. Maduro teria sido convidado pelo Itamaraty para a posse, a chancelaria da Venezuela recusou o convite, e em seguida Ernesto Araújo o desconvidou. É claro que a ditadura venezuelana deve ser rechaçada. Contudo, o uso constante do colapso venezuelano como arma ideológica é não apenas um equívoco, mas demonstração de profunda ignorância. São poucos os que realmente sabem alguma coisa sobre a história da Venezuela. Ao que parece, o próprio chanceler brasileiro prefere os espantalhos ideológicos a um entendimento sério de como o país chegou ao atual descalabro. Não é com desconhecimento que se faz boa política externa.

Começo lá atrás, no pós-guerra. Entre 1948 e 1958 a Venezuela era uma ditadura. Removido o ditador presidente Marcos Pérez Jiménez em janeiro de 1958, os três maiores partidos políticos do país – AD, Copei e URD – firmaram um pacto que ficou conhecido como Ponto Fixo (“Punto Fijo”). O pacto tinha como objetivo enraizar e proteger a democracia em um país que havia sido governado por ditadores praticamente desde sua independência, em 1830. O Ponto Fixo deu origem ao sistema bipartidário formado pela AD e pelo Copei que permaneceu em vigor até a ascensão de Hugo Chávez nos anos 1990. Durante as quatro décadas decorridas entre 1958 e 1998, a Venezuela foi essencialmente uma democracia estável, tendo chegado a ser um dos primeiros países latino-americanos a ser classificado como país de renda média alta pelo Banco Mundial.

Entre 1960 e 1977, a renda por habitante crescera mais de 30%, alcançando US$ 16 mil por pessoa. Contudo, entre o fim dos anos 70 e meados dos anos 80, a renda por habitante perdera todo o ganho anterior, passando de US$ 16 mil para pouco menos de US$ 12 mil. Ou seja, o país sofreu um colapso brutal do crescimento em virtude de vários problemas, inclusive da queda dos preços do petróleo. Colapsos dessa magnitude costumam estar associados a guerras e graves conflitos internos, o que não foi o caso da Venezuela. Até hoje estudiosos se debruçam sobre o dilema do crescimento venezuelano durante os anos 80 e 90.

A insatisfação popular com o desempenho da economia e a percepção de que o Ponto Fixo engessara o sistema político, com os dois principais partidos envolvidos em escândalos de corrupção e práticas clientelistas, abriram o caminho para que um militar de baixa patente tentasse um golpe de Estado em 1992 – sim, Hugo Chávez. O golpe falhou, mas em 1993 foi quebrada a hegemonia bipartidária com o enfraquecimento dos dois principais partidos. Após período de intensa turbulência entre 1993 e 1994, Rafael Caldera, um dos arquitetos do Ponto Fixo e da Constituição de 1961, presidente entre 1969 e 1974, foi novamente alçado à presidência.

Caldera foi sucedido por Chávez, vitorioso em 1998, ano em que as eleições foram marcadas pela ausência de partidos e de candidatos tradicionais. Os partidos haviam caído no mais absoluto descrédito. Chávez e os demais presidenciáveis de 1998 se posicionaram como indivíduos com clara posição antissistema, capazes de atender aos anseios do povo venezuelano. Chávez foi eleito em 1998 e horas após a vitória anunciou referendo sobre a reforma constitucional que seria a base de sua “Revolução Bolivariana”. A reforma foi aprovada e a Assembleia Constituinte foi formada com maioria chavista, dando a Chávez o poder de reescrever a Constituição que encerrou de vez o pacto Ponto Fixo. A nova Constituição, que ampliava o mandato presidencial de 5 para 6 anos, entrou em vigor pouco mais de um ano após a vitória de Chávez. Em 2000, anos antes da eleição presidencial prevista pela nova Constituição, Chávez conseguiu antecipar o pleito e se “reeleger” por seis anos. A partir daí estavam montadas as bases que permitiriam seu plano de permanência não democrática no poder.

Portanto, para entender e opinar sobre a Venezuela, é preciso compreender o arco histórico. É fácil demais plantá-la como espantalho para assustar ingênuos e desinformados, sobretudo no contexto brasileiro atual.

Tamanho desconhecimento em nada ajudará a política externa brasileira a dar conta do imenso desafio que a Venezuela de Maduro representa para a região. Dizem que o Brasil não é para principiantes. Menos ainda a Venezuela.

*Monica de Bolle é economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University


Míriam Leitão: Embraer, Boeing e os mitos do negócio

Mesmo depois de privatizada, a Embraer voou com a ajuda do Estado: só no BNDES foram US$ 22 bi para exportação e R$ 8 bi de outros financiamentos

É preciso derrubar os mitos que cercam a operação entre a Embraer e a Boeing. Não é uma parceria, ao contrário do que disseram os presidentes das duas empresas. Os negócios da Embraer vão se dissolver na nova empresa, quando ela for englobada por uma companhia muito maior. Não há outro caminho neste mercado de gigantes, mas é bom usar as definições certas. Mesmo depois de ser privatizada, a fabricante de aviões sempre voou com a ajuda do Estado, só do BNDES foram R$ 8 bilhões de financiamentos e mais US$ 22 bi de crédito à exportação.

Sobreviver produzindo aviões comerciais de médio porte num mercado cada vez mais concentrado em gigantes globais seria muito difícil, por isso a negociação faz todo o sentido. O que não convence são os eufemismos e os clichês de sempre do mundo corporativo.

“Essa aliança fortalecerá ambas as empresas e está alinhada com a nossa estratégia de crescimento sustentável de longo prazo”, disse o presidente da Embraer, Paulo Cesar de Souza e Silva, no comunicado após a informação de que o acordo havia sido feito, do ponto de vista das empresas, faltando apenas a aprovação do governo brasileiro.

Não é uma aliança, nem parceria. A Boeing está comprando a parte mais lucrativa da Embraer, através da criação dessa empresa na qual a brasileira será minoritária. Isso significa que a companhia está se desnacionalizando? Ela já era, na verdade. Seus maiores acionistas são, há muito tempo, dois fundos estrangeiros, um americano e outro inglês. A gigante Boeing passa a deter 80% do capital da empresa formada com os departamentos dos jatos comerciais. É comum as empresas, em casos assim, chamarem de fusão ou de parceria o que é na verdade uma compra.

A parte militar será uma firma à parte e que terá como carro-chefe, aliás avião chefe, o KC-390. Nela, a Embraer terá 51% do capital. Esse segmento representa apenas 20% do faturamento e tem como grande negócio a encomenda da própria Força Aérea Brasileira: 28 cargueiros ao valor de R$ 7,2 bilhões. A perspectiva de crescimento desse mercado de defesa é boa. A Embraer tem produto novo e o grande concorrente, a Lockheed, tem modelos já velhos. Como os militares estavam mais preocupados com esse segmento do mercado, os 51% do capital na mão da Embraer ajudaram a tranquilizar as Forças Armadas.

Havia uma dificuldade grande com o negócio da compra dos caças Gripen e com os sistemas de controle do espaço. A Embraer, apesar de ter sido privatizada em 1994, sempre esteve misturada ao Estado brasileiro. Ela desenvolveu o sistema de controle de espaço, o satélite SGDC, participou do submarino de propulsão nuclear da Marinha e do Sisfron. Um argumento apresentado pelo governo Temer é que nada disso poderia ficar submetido ao Congresso americano. Segundo o governo há “um núcleo duro intransferível” no setor de defesa. Além disso, o negócio com a Suécia inclui transferir tecnologia para o Brasil e para nenhum outro país.

A Embraer é sem dúvida um caso de sucesso. Mas o dinheiro estatal sempre a financiou de forma subsidiada pelo BNDES, antes e depois da privatização. Só nos últimos 15 anos, a empresa recebeu R$ 1,95 bilhão de financiamento tecnológico e mais R$ 6 bi para pré-embarque de exportações. Além disso, suas exportações também receberam US$ 22 bilhões de crédito, quando o recurso financia o comprador estrangeiro dos seus produtos.

Esse tema esteve em debate na campanha entre os que eram adversários e favoráveis à negociação. O maior adversário do negócio com a Boeing foi o candidato do PDT, Ciro Gomes, mas a privatização ocorreu quando Ciro era ministro da Fazenda. A venda propiciou a pulverização do capital de tal forma que hoje os maiores acionistas não são o BNDES ou a Previ, mas o fundo americano Brandes, com 14,4% da empresa, seguido pelo inglês Mondrian, com 9,9%. O BNDESPar tem apenas 5,4%, um pouco mais que outro estrangeiro, o Blackrock, com 5%. Há mais ações negociadas na Bolsa de Nova York do que na Bovespa.

O governo brasileiro ficou com a golden share, por isso ele está sendo consultado sobre a negociação entre as duas companhias. Muito provavelmente o governo vai concordar, tanto o atual quanto o próximo, porque o presidente eleito sempre falou favoravelmente, e os pedidos dos militares foram atendidos.