Bolsonaro

Cristovam Buarque: Populistas versus humanistas

Para enfrentar a crise ambiental, não bastam a cidadania e a democracia, inventadas para administrar cidades. Será preciso criar um sentimento de “planetania”, que vá além da cidadania, e uma prática de “humanocracia”, que vá além da democracia

Dificilmente um prefeito convence seus eleitores a elevar hoje o preço da gasolina, para evitar que o nível do mar suba no final do século. Ainda que tivessem solidariedade com as próximas gerações, os eleitores sabem que o problema climático é planetário, não é provocado apenas pelos carros de sua cidade.

Com seus interesses locais e visão de curto prazo, o eleitor de um país não representa a humanidade, de hoje e do futuro. Promessas de emprego, renda e consumo no presente representam melhor a vontade dos eleitores do que a ideia de salvar a Terra no futuro. Por isso, quando os governantes elaboram pactos internacionais, eles têm dificuldades em ratificar e cumprir essas decisões por seus eleitores, na hora em que os sacrifícios ficam conhecidos.

O mesmo ocorre com outros problemas do mundo global, como a imigração. O fechamento de fronteiras atrai mais apoio do que a proposta de aceitar imigrantes. Os eleitores não gostam de sacrifícios para proteger o meio ambiente, nem medidas de abertura de fronteiras para receber imigrantes que vão ocupar suas ruas, seus empregos, suas escolas. Para o eleitor, “nós” representa a família, a cidade ou o país, não a humanidade e o planeta.

Daí a dificuldade em obter simpatia popular para acordos como de Paris, sobre meio ambiente, e o de Marrakech, sobre migração, assinados por presidentes nacionais que serão substituídos por novos presidentes, quase sempre com ideias contrárias, quando os eleitores elegem populistas nacionalistas. A democracia, nacional e imediatista, não tem visão de longo prazo, nem é solidária internacionalmente: não é humanista.

Mesmo autores que falam dos riscos da democracia analisam a fragilidade do regime democrático na ótica dos problemas internos dos países, e não pelo fato de que a democracia não oferece solução para os problemas contemporâneos, globais e de longo prazo. Para estes autores, os problemas da democracia decorrem da maneira como líderes e partidos agem em suas disputas internas; não porque o Planeta e a Humanidade se transformaram em temas políticos, não mais apenas filosóficos, ainda que os eleitores não captam o novo sentimento e a nova lógica. A democracia ficou atrasada em relação aos avanços tecnológicos e sociais em escala global. Os limites nacionais das regras democráticas não permitem cuidar, de maneira plena, dos limites da ecologia, nem da expansão da migração.

Por isso, o debate político não está mais entre as velhas “direita” e “esquerda”, mas entre utópicos humanistas e populistas pragmáticos. E estes tendem a ganhar, até quando a pedagogia da catástrofe transformar o eleitor provinciano em um humanista. Mas quando isto acontecer, já pode ser tarde.

Para enfrentar a crise ambiental, não bastam a cidadania e a democracia, inventadas para administrar cidades. Para cuidar desse Novo Mundo será preciso criar um sentimento de “planetania”, que vá além da cidadania, e uma prática de “humanocracia”, que vá além da democracia. Mas o futuro visível não nos permite prever um eleitor globalizado em uma democracia planetária. A “humanocracia” vai exigir respeitar o voto do eleitor local e imediatista, mas sob um escudo humanista, contando com valores éticos universais que pairem acima das decisões eleitorais nacionais e imediatistas: o equilíbrio ecológico, a sobrevivência das espécies, a sustentabilidade do processo produtivo e de consumo, a solidariedade humana, independentemente da nacionalidade.

 


Bruno Boghossian: Queiroz vai vestir a faixa presidencial

Com posse de Bolsonaro, caso deixa de ser uma simples maracutaia de assessor

Fabrício Queiroz vai vestir a faixa presidencial. O ex-motorista de Flávio Bolsonaro deve passar o 1º de janeiro escondido, mas as suspeitas provocadas pela movimentação milionária em sua conta vão subir a rampa e se instalar no Planalto.

A cada dia em que as pontas do caso permanecem soltas, o episódio fica mais distante do estágio em que os bolsonaristas gostariam de parar, tratando a dinheirama como uma simples maracutaia de um assessor de deputado estadual.

Queiroz deu dupla razão aos mais intrigados. Deu bolo nos promotores e não explicou por que mexeu em R$ 1,2 milhão, por que sacou R$ 320 mil, por que recebia depósitos na data de pagamento dos servidores do gabinete e por que assinou um cheque de R$ 24 mil para Michelle Bolsonaro, a futura primeira-dama.

Talvez por excesso de confiança, o presidente eleito e sua equipe tenham pensado que as perguntas não se transformariam em crise. Poderia ser o caso se Queiroz tivesse aparecido para dar uma desculpa esfarrapada qualquer. Agora, as dúvidas passarão a virada do ano em Brasília.

Flávio disse uma dezena de vezes que não é investigado e que não tem relação com o caso. Os promotores discordaram e pediram que ele vá ao Ministério Público no dia 10 de janeiro para falar do assunto.

O filho do presidente eleito se enrolou quando disse que Queiroz tinha dado uma “explicação plausível” sobre o dinheiro. Na véspera, quando o relatório do Coaf foi divulgado, o ex-motorista afirmara que não sabia “nada sobre o assunto”. Flávio poderá contar tudo aos promotores.

Quando Jair estiver no gabinete presidencial, o caso mudará de patamar e terá dois caminhos pela frente: pode se tornar um constrangimento para o governo ou será abafado pelas engrenagens do poder.

O episódio tinha só 48 horas de vida pública quando o general Hamilton Mourão sugeriu que o governo desse explicações à sociedade sempre que necessário. “Senão fica parecendo que está escondendo algo”, completou o vice de Jair. Pois é.


Elio Gaspari: O ‘Posto Ipiranga’ de Bolsonaro piscou

Faltando menos de um mês para a abertura da quitanda de Jair Bolsonaro, o futuro ministro da Economia, Paulo Guedes, ainda não equilibrou o estoque de berinjelas e a caixa para o troco. No dia 2 de janeiro terminará o mundo das promessas eleitorais e dos sonhos da formação da equipe. Quem lembra, sabe que Bolsonaro prometeu enxugar o número de ministérios, e Guedes falava em “dez ou doze”. Foram 34, são 29 e serão 22.

Na segunda-feira o doutor disse que “o Brasil virou o paraíso dos burocratas”. Àquela altura ele pretendia indicar Marcelo de Siqueira, diretor do BNDES, para o comando da Procuradoria da Fazenda. Funcionários da repartição ameaçaram deixar centenas de cargos em comissão caso não fosse escolhido um servidor da carreira.

Na quarta, Guedes mudou de ideia e indicou um procurador com 18 anos na carreira e currículo robusto na administração federal. Noutro lance, o doutor informou que criará um conselho para discutir o projeto de reforma da Previdência. Entre os futuros conselheiros estariam os economistas Paulo Tafner e Armínio Fraga. Mesmo assim, ganha um fim de semana em Caracas quem souber qualquer coisa que foi resolvida num conselho.

Quando não tinham o que fazer, Lula, Dilma e Michel Temer reuniam o Conselho de Desenvolvimento, conhecido como “Conselhão” e formado por ministros, empresários e celebridades.

Spektor procura e acha
Um dia depois da divulgação pelo Departamento de Estado do governo americano de 1.085 páginas de documentos diplomáticos, o professor Matias Spektor já estava debruçado sobre o volume. Nele estão centenas de papéis relacionados com a América do Sul entre 1977 e 1980. Mostram as pressões americanas em defesa dos direitos humanos na Argentina, Chile, Uruguai, Brasil e Paraguai. Alguns documentos expõem parte do que os Estados Unidos sabiam sobre a Operação Condor. Os textos relacionados com o Brasil são 28. Entre eles estão as notas das conversas dos Geisel e Jimmy Carter com sua mulher, Rosalynn.

Um memorando de março de 1979 mostra que no coração da Casa Branca havia um combativo defensor das liberdades públicas. Era o jovem professor Robert Pastor, amigo de Carter, instalado na assessoria de segurança nacional. Em 1979, quando estourou uma das grandes greves do ABC paulista e o governo interveio no Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo, presidido por Lula, o embaixador americano Robert Sayre justificou publicamente a ação e Pastor foi-lhe na jugular:

“Relatos da imprensa sugerem que o senhor conversou com o presidente Figueiredo sobre essa greve, apoiando a decisão. Se a embaixada for perguntada, deve deixar publicamente claro que o assunto não foi discutido com o senhor e que nós não apoiamos tais ações.

Nosso cônsul-geral em São Paulo deve acompanhar esses acontecimentos, usando as oportunidades apropriadas para mostrar o apoio dos Estados Unidos aos direitos trabalhistas”. Pastor era demonizado pelos olheiros da ditadura em Washington e morreu em 2014, aos 66 anos. Não se sabe se a sugestão foi mandada a Sayre.

(O volume 24 da coleção “Foreign Relations of the United States —1977-1980” está na rede.)

CARNAVAL
Um sueco veio ao Brasil para as festas de fim de ano e leu as notícias do dia:

1) Num início da tarde o ministro Marco Aurélio de Mello mandou soltar os presos condenados na segunda instância. No início da noite o presidente do Supremo mandou que eles continuassem presos.

2) O deputado Rodrigo Maia, no exercício da Presidência da República, autorizou o esburacamento da Lei de Responsabilidade Fiscal.

3) O ministro Ricardo Lewandowski determinou que a União pague o aumento dos servidores já em 2019.

O sueco telefonou para seu agente de viagens reclamando porque ele o trouxe ao Brasil no Carnaval.

LULA PRESO
Quando o ministro Dias Toffoli marcou para 10 de abril a discussão do encarceramento dos réus condenados na segunda instância, sinalizou uma má notícia para Lula. Antes de 10 de abril Lula poderá ter sua condenação confirmada pelo Superior Tribunal de Justiça . Neste caso, mesmo que a segunda instância caia, ele continuará em Curitiba. A menos que peça para cumprir a pena em regime domiciliar.

FALTA A SAFRA
Com algum barulho, Gilberto Kassab, futuro chefe da Casa Civil do governador paulista João Doria, viu-se acusado de ter embolsado R$ 30 milhões de propinas da JBS. No mesmo lance, o grão tucano Aécio Neves foi acusado de ter recebido quatro capilés da mesma fonte, um deles em caixas de sabão em pó.

Tudo bem. Essas acusações estão desde 2017 nos 118 anexos da colaboração da JBS. Deles, só 46 tiveram desdobramentos. A turma das investigações deveria seguir o padrão dos fabricantes de vinho, rotulando cada denúncia com o ano da safra. Assim, o público saberia a idade da acusação.

BANCOS E MAGANOS
Primeiro alguns bancos estrangeiros pediram a clientes do andar de cima brasileiro que fechassem suas contas. Depois, pediram a empresas que suspendessem suas operações com a Venezuela. Agora, quando um cliente tem notável militância na política e no mundo dos negócios, sugerem que fechem os escritórios eleitorais. Casas tradicionais voltam a operar com a lei segundo a qual não se deve operar com gente dos três Ps, “press, politicians e priests” (imprensa, políticos e padres).

INFRAESTRUTURA
A escolha do consultor legislativo Tarcísio Freitas para o Ministério da Infraestrutura sugere a possibilidade de fechamento da fábrica de jabutis das empreiteiras que funciona no Congresso. Freitas é o primeiro consultor legislativo a chegar a um ministério e conhece a máquina do Parlamento. Depois de Bolsonaro, ele é o segundo capitão do governo. Serviu na tropa depois de cursar o Instituto Militar de Engenharia, onde diplomou-se com inédito louvor.

Mesmo antes de assumir, Freitas desmanchou uma bombinha que estava prestes a ser aprovada.

POUPATEMPO
Um curioso tem uma sugestão para os sábios da equipe de Jair Bolsonaro. Ele deveria mandar uma força-tarefa de Brasília ao serviço de Poupatempo do governo de São Paulo. Trata-se de uma repartição pública onde conseguem-se, entre outros documentos, carteiras de motorista, identidade e trabalho. O posto mais movimentado fica no coração da cidade. Dezenas de funcionários atendem os contribuintes com solicitude e resolvem qualquer problema. É um serviço público que funciona. A força-tarefa não precisa falar com os chefes. Basta entrevistar o pessoal da infantaria, que fica nos balcões. Se for o caso, poderiam levar equipes do Poupatempo a Brasília, para ensinar como se pode trabalhar.


Bernardo Mello Franco: Um país em tempos bicudos

Em novo livro, Oscar Vilhena Vieira diz que o Brasil vive uma fase de ‘mal-estar constitucional’. Ele defende que o STF seja mais ‘colegiado, imparcial e discreto’

O Brasil chega ao fim de 2018 em tempos bicudos. A polarização politica se aprofundou, e a sociedade ficou mais dividida e intolerante. O país passou a viver uma situação de “mal-estar constitucional”, com ameaças à democracia e ao equilíbrio entre os poderes. O diagnóstico é do professor Oscar Vilhena Vieira, diretor da FGV Direito em São Paulo.

Em “A Batalha dos Poderes” (Companhia das Letras), ele situa o início da crise nas manifestações de 2013, que “colocaram em xeque a estabilidade de um sistema político que parecia consolidado”. De lá para cá, passaram-se cinco anos de turbulências. É difícil acreditar que estejam perto do fim.

O livro sustenta que a eleição de 2014 mudou para pior os padrões da disputa política. A petista Dilma Rousseff admitiu que poderia “fazer o diabo” para vencer, e produziu uma crise fiscal que acabou em recessão. O tucano Aécio Neves não aceitou a derrota, e contestou o resultado para “encher o saco”.

Depois viriam o impeachment de Dilma, que o autor define como “controvertido”, e a posse de Michel Temer, que se salvou de duas denúncias de corrupção e agora enfrenta a terceira.

Vieira afirma que o avanço da Lava-Jato acirrou a disputa entre a classe política e o estamento jurídico. A operação rompeu uma tradição de impunidade dos poderosos, mas abriu espaço a acusações de abuso e parcialidade. O Supremo Tribunal Federal não conseguiu escapar dos mesmos desgastes.

O professor escreve que a Constituição de 1988 deu superpoderes à Corte, abrindo caminho ao que ele chama de “supremocracia”. Na sua visão, o tribunal manteve uma atitude “omissa e reticente” na Era Collor, foi “deferente ao governo e ao Congresso” sob Itamar e FH e se deslocou para o centro da arena política nos anos do PT.

Hoje é chamado para dar a palavra final sobre quase tudo. “Desconheço outro tribunal supremo do mundo que faça plantão judiciário para solucionar quizílias que os parlamentares não são capazes de resolver”, critica.

Para Vieira, a atuação do STF na proteção de direitos fundamentais é “bastante positiva”, mas o tribunal erra ao se meter demais em disputas políticas. Ele critica as decisões que derrubaram a cláusula de barreira e impuseram a perda de mandato por infidelidade partidária, estimulando a criação de novas siglas: “Sob a pretensão de corrigir falhas no sistema político, o STF contribuiu para torná-lo mais ininteligível”.

O professor defende que as decisões monocráticas deveriam ser “reduzidas ao máximo”, e pede uma atuação “mais colegiada, imparcial e com certa discrição”. “A autoridade do STF não pode ser exercida de forma fragmentada por cada um de seus ministros”, escreve. O noticiário dos últimos dias mostra que ele tem razão.

O livro foi concluído antes da eleição, mas o autor registrou sua preocupação com o favoritismo de Jair Bolsonaro, “líder de extrema direita com posições explicitamente contrárias à Constituição”. Em outro trecho, ele deixou um alerta: “O fato de a Constituição ter sobrevivido a esse período de forte turbulência não significa que sairá ilesa do novo ciclo da política brasileira”.

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A coluna volta no dia 1º. Feliz Natal e um 2019 menos bicudo para todos.


Eliane Cantanhêde: Sem reinventar a roda

Nunes Ferreira: política externa até pode mudar, mas ‘não vai acabar o mundo’

“O Brasil é um transatlântico navegando em mares internacionais turbulentos e precisa ser conduzido com prudência, numa rota que a gente conhece e a diplomacia brasileira sempre seguiu, com a Constituição, as leis, o bom senso e a altivez.”

Assim, o atual chanceler, Aloysio Nunes Ferreira, resume o que se espera da política externa do governo Jair Bolsonaro nesses tempos de Donald Trump nos EUA, Vladimir Putin na Rússia, Brexit no Reino Unido, mas o Brasil forte e em boas condições de atrair investimentos.

Segundo ele, que termina seu mandato no Senado e não disputou a eleição, “a mudança no Brasil é muito forte, muito importante, até mais do que as alternâncias anteriores, porque é até uma mudança cultural”. Logo, diz, “é natural que haja ajustes na política externa, como em qualquer área, porque a política é um ato do tempo”.

Ele, porém, ressalva que “o Itamaraty é uma escola, a nossa diplomacia é altamente qualificada e isso, certamente, será levado em conta pelo novo chanceler Ernesto Araújo”. Trata-se de uma clara defesa dos diplomatas e uma resposta à acusação do núcleo duro bolsonarista de que o Itamaraty está “infestado de petistas” ligados a Celso Amorim, chanceler de Lula.

Para Nunes Ferreira, política e ideologia nem sempre se confundem, os diplomatas têm carreira de Estado e, como os militares, trabalham com todos os governos, de esquerda, direita ou centro. O Barão do Rio Branco, ex-chanceler e ícone da política externa brasileira, era ideologicamente monarquista, mas atuou politicamente para consolidar a República.

Citou ainda os grandes diplomatas da época do general Ernesto Geisel e do chanceler Azeredo da Silveira, que eram ironizados como “os barbudinhos do Itamaraty”, mas “fizeram uma excepcional inflexão na política externa, com base no pragmatismo responsável que perdura até hoje”.

Diplomatas estão por trás das reportagens condescendentes com Lula e Dilma e críticas a Bolsonaro? “Isso é uma grande bobagem”, responde. “O PT é o único partido que construiu e cultiva conexões externas com partidos, jornais, organizações e universidades.” Por isso, não pelo Itamaraty ou por diplomatas, prevaleceu no exterior uma visão equivocada do impeachment de Dilma e da prisão de Lula.

O único líder que tentou furar esse bloqueio foi Fernando Henrique Cardoso, já como ex-presidente, mas sem sucesso. Além dele, o DEM, ainda quando PFL, começou a construir conexões com partidos liberais, especialmente da Europa, mas essa tentativa também não se consolidou.

O chanceler releva a mania de Bolsonaro e Araújo de seguirem Trump em tudo e prega bom senso. “Nós já nos livramos de um antiamericanismo ginasiano de certas esquerdas”, diz, destacando que a guinada na política externa começou com Michel Temer, que mudou o tom e a ação em relação à Venezuela e avançou em convergências, acordos e cooperação com os EUA, como na Base de Alcântara.

Para Nunes Ferreira, o futuro governo pode mudar muita coisa, mas tenderá a recuar em outras frentes, porque não é razoável sair do Acordo de Paris e do Pacto Global de Imigração, virar as costas para a ONU, a OMC e o Mercosul e confrontar o mundo árabe com a embaixada em Jerusalém, tudo ao mesmo tempo.

De toda forma, ele tem uma certeza: “O mundo não vai acabar. O Brasil vai continuar sendo a grande segurança alimentar, o grande exportador de minérios, um País amigável. E vai continuar na América Latina, não vai mudar nem de hemisfério nem de continente”.

Traduzindo: Bolsonaro pode quase tudo, Araújo pode muito, mas ninguém vai virar o País de pernas para o ar, nem reinventar a roda.

Bom Natal!


Vera Magalhães: Muita espuma ideológica

Sobra retórica e faltam prioridades concretas às vésperas da posse

Desconvite a ditadores de Cuba e Venezuela para a posse, bravatas sobre a revisão das demarcações de terras indígenas, bate-boca com Nicolás Maduro, tititi nos bastidores do Itamaraty, gritaria em torno da tal Escola sem Partido, brigas de hooligans em cerimônias de diplomação em vários Estados.

Algumas das querelas que ocuparam futuros ministros, o próximo presidente da República, diplomatas e os novos (sic) congressistas nas últimas semanas parecem refletir a disputa entre alas de direita e de esquerda em algum grêmio estudantil, e não discussões de um grupo que se prepara para subir a rampa do Palácio do Planalto daqui a menos de dez dias.

Enquanto as alas mais ideologizadas do futuro governo promovem uma versão tosca de reality show com direito a lives nas redes sociais, os dois pilares até aqui sólidos da próxima administração montam times igualmente consistentes para as ambiciosas tarefas que terão pela frente. Mas fica a dúvida: terão Paulo Guedes e Sérgio Moro respaldo do restante do governo e, principalmente, de Jair Bolsonaro, para encaminhar sua pauta com foco, articulação política, prioridade e estratégia diante de tanta espuma que seus colegas e os aliados no Legislativo já deram mostra de que são capazes de produzir?

O segundo escalão do Ministério da Economia é primoroso. Eu, que já questionei a falta de experiência anterior de Paulo Guedes no setor público e sua falta de traquejo verbal para a negociação política, neste caso não tenho reparos: trata-se de uma das equipes mais bem compostas da área econômica nos últimos tempos, aproveitando nomes experimentados e montando uma estrutura que parece altamente capaz de enfrentar, ao mesmo tempo, o ajuste fiscal necessário e o desejado e tão adiado destravamento do crescimento.

Mas os temas econômicos estão tendo menos atenção de Bolsonaro e seu entorno da articulação política, nas manifestações públicas que fazem, que o besteirol ideológico.

Tome-se a tal cúpula conservadora realizada em Foz do Iguaçu há algumas semanas. Ali se gastou mais saliva discutindo ideologia de gênero, o fantasma da volta do comunismo e outras quimeras do que a necessidade de um ajuste liberal de fato na economia. Mesmo no painel dedicado ao tema, um economista da equipe de transição lacrou ao ensinar como berrar na cara de um esquerdista, e não ao aproveitar o evento para deixar claro à plateia conservadora que ou se faz a reforma da Previdência ou já era.

No Itamaraty, o clima de caça às bruxas às antigas gerações e a pregação de um trumpismo cristão se sobrepõem à montagem de uma estratégia moderna, inteligente e sem maniqueísmo que permita ao Brasil se posicionar num mundo que não deixará de ser multipolar e cuja complexidade geopolítica vai muito, mas muito além do que as tuitadas recheadas de mistificação do futuro chanceler sugerem.

Bolsonaro foi eleito prometendo banir o viés ideológico de esquerda da máquina federal, depois de 13 anos de domínio petista. Eis um bom propósito: o aparelhamento, visível desde os primórdios de Lula, com a ascensão novo-rica de uma casta sindical às delícias do poder, foi a gênese da roubalheira que se viu ao longo dos anos.

Mas substituir a ideologização de esquerda por outra igualmente atrasada, jeca e talvez até interessada em aparelhar tudo que houver pela frente não é, decididamente, o caminho para um País que o mesmo PT quase levou à falência.

Que os lacradores deixem Guedes e Moro trabalhar e que Bolsonaro perceba que é no sucesso desses dois, e não nos likes da turba direitista hidrófoba, que mora suas chances de sucesso a partir de 1.º de janeiro.

A campanha já acabou faz tempo.


Luiz Carlos Azedo: Quem é quem no governo

‘A muvuca será protagonizada pelos núcleos político e ideológico, que são os principais eixos da articulação com o Congresso e a sociedade’

Concluída a formação de sua equipe de governo, a chave para que o presidente eleito Jair Bolsonaro consiga implementar as medidas mais importantes do seu programa, a começar pelo ajuste fiscal e a reforma da Previdência, é a sua relação com o Congresso. Até agora, sustentou a promessa de não ceder ao toma lá, dá cá, loteando a Esplanada dos Ministérios entre os partidos que o apoiam, mas não conseguiu ainda viabilizar candidaturas robustas para o comando do Senado e da Câmara. A conversa de que não vai interferir na disputa é lorota: se tiver força, viabilizará aliados de confiança no comando do Congresso.

Bolsonaro montou um governo com cinco eixos: o militar, o econômico, o político, o ideológico e o técnico. Por enquanto, quem dá as cartas na administração são a troica de generais Augusto Heleno (GSI), na foto acima, Carlos dos Santos Cruz (Secretaria de Governo) e Fernando de Azevedo e Silva (Defesa); na equipe econômica formada pelo ministro da Fazenda, Paulo Guedes, destacam-se o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, o presidente do BNDES, Joaquim Levy, e o presidente da Petrobras, Roberto Castelo Branco, todos muito bem blindados na política. No núcleo técnico, o superministro da Justiça, Sérgio Moro; o ministro de Minas e Energia, Bento Costa e Lima, e o ministro da Infraestrutura, Tarcísio Gomes de Freitas, os dois últimos, militares.

A muvuca no governo será protagonizada pelos núcleos político e ideológico, que são os principais eixos da articulação com a política e a sociedade, e dos problemas com o Congresso. No núcleo político, o ministro da Casa Civil, que coordena a transição, ainda não conseguiu formar uma base suficientemente robusta e coesa para aprovar o ajuste fiscal e a reforma da Previdência. Os ministros do Desenvolvimento Social, Osmar Terra (PMDB-RS); da Agricultura, Tereza Cristina (DEM-MT); e da Saúde, Luiz Mandeta (DEM-MS); têm amplo apoio político no Congresso à frente das respectivas pastas, mas são porta-vozes de interesses segmentados e/ou corporativistas. Além disso, não darão muito pitaco na relação com o Congresso, a cargo de Lorenzoni e do general Santos Cruz.

O grande balacobaco é a pauta ideológica do governo, na qual as estrelas serão os ministros das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, e o ministro da Educação, Ricardo Velez Rodrigues. O ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, condenado por improbidade administrativa, já foi abatido na pista. Ambos são pautados pelo filósofo Olavo de Carvalho e pelos filhos de Jair Bolsonaro, principalmente o deputado federal eleito por São Paulo com a maior votação do país, Eduardo Bolsonaro. Flávio Bolsonaro, senador eleito pelo Rio de Janeiro, teve que baixar a bola por causa do escândalo protagonizado por seu ex-assessor Fabrício Queiroz, que mantinha uma caixinha fabulosa no seu gabinete parlamentar na Assembleia Legislativa fluminense. Vivíssimo, Queiroz tomou chá de sumiço, já faltou a dois depoimentos e ninguém sabe por onde anda.

Combustão
Do ponto de vista eleitoral, a pauta ideológica do governo Bolsonaro mira o PT como inimigo principal. É extremamente conservadora do ponto de vista dos costumes, mas continua sendo uma pauta identitária, com sinal trocado. A pauta do país são a violência, o desemprego e a saúde pública, a infraestrutura e o ajuste fiscal, principalmente, temas sobre os quais o governo precisará dar respostas objetivas. Nesse aspecto, a relação com o Congresso é fundamental. A pauta ideológica tem combustão espontânea no parlamento, mas o mesmo não acontece com as demais tarefas do governo. As raposas políticas que sobreviveram ao tsunami eleitoral de outubro passado sabem disso, entre as quais, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), que sonha com a reeleição, e o ex-presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), que está costeando o alambrado para voltar ao comando do Congresso.

Um capítulo à parte no jogo político são os três filhos de Bolsonaro, Eduardo, Flávio e Carlos, que cuida da comunicação, que terão protagonismo político imprevisível. Até agora, não desceram do palanque eleitoral e volta e meia criam constrangimentos para o pai, mas nem por isso perderam a condição de interlocutores diretos do presidente da República. A bancada do PSL também vai dar trabalho, porque chega com muita gana de dar as cartas no Congresso, o que naturalmente não é fácil para quem ainda está arrumando a mudança.

Bolsonaro montou um governo em bases inéditas, sem compartilhar o poder com os partidos. Está à sombra das Forças Armadas, em razão da forte presença militar no Palácio do Planalto. Não está claro se gerenciará o governo pela demanda da sociedade, o que depende muito do desempenho dos ministros das atividades-fim, ou se adotará uma estrutura vertical, na qual os ministros da área meio, sobretudo os militares, funcionarão como correias de transmissão. Uma coisa, porém, é certa: continuará se relacionando diretamente com seus eleitores pelas redes sociais, e se digladiará com a imprensa sempre que for criticado.

http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-quem-e-quem-no-governo/


Política Democrática: Bolsonaro necessita de ‘núcleo duro’ para governar, diz Marco Aurélio Nogueira

Professor da Unesp afirma, em artigo publicado na revista Política Democrática online de dezembro, que o objetivo do núcleo é suprir o presidente eleito de recursos técnicos, políticos e intelectuais

Por Cleomar Almeida

Em artigo publicado na edição deste mês de dezembro pela revista Política Democrática online, o professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp) Marco Aurélio Nogueira afirma que , para ter sucesso, Bolsonaro “necessita de uma equipe para governar”. “Algo que não se resume a um ministério e se aproxima muito mais da conhecida ideia de um ‘núcleo duro’”, afirma o analista político.

» Acesse aqui a edição de dezembro da revista Política Democrática online

Nogueira, que também é colunista do jornal O Estado de S. Paulo, explica que o chamado núcleo duro tem como finalidade suprir Bolsonaro dos “recursos técnicos, políticos e intelectuais”. O objetivo disso, de acordo com o professor da Unesp, é que a máquina governamental gire com alguma suavidade, produza resultados e supere as dificuldades que se manifestarão na tomada de decisões. “Ao lado desse ‘núcleo’ e em princípio subordinado a ele, distribuir-se-á o ministério propriamente dito”, ressalta.

Militares da reserva, conforme observa Nogueira, “compõem a vértebra da equipe principal.” “Obedece-se a uma regra prudencial tradicional: o ‘comandante’ chama para auxiliá-lo aqueles em quem confia e com quem compartilha valores e experiências comuns”, afirma ele no artigo, para acrescentar: “Os demais ministros ficariam como uma espécie de ‘segundo time’ destinado a tocar a rotina da administração, angariar apoio político-parlamentar e ativar as faces do governo que ‘dialogam’ com os eleitores que escolheram o programa Bolsonaro”.

No segundo time, como pondera o analista político, estão os ministros mais propriamente ideológicos (Educação e Relações Exteriores), que, conforme escreve no artigo, foram encarregados da agitação e propaganda do novo governo, ajudando-o a travar a guerra cultural com que se comprometeu. “Ao grupo militar mais coeso estão sendo agregados os ministros da Economia e da Justiça, a família Bolsonaro e um vetor propriamente político encarnado no deputado Onyx Lorenzoni”, acentua.

Coordenador do Núcleo de Estudos e Análises Internacionais (Neai), vinculado ao Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais (IPPRI) da Unesp, Nogueira destaca que “falta ao novo governo precisamente aquilo que ele se dedicou a demonizar durante a campanha eleitoral: a política, com ‘p’ minúsculo e maiúsculo”. “Se, na corrida pelos votos, mostrava-se funcional a diatribe contra os políticos e seus ‘maus hábitos’ fisiológicos, agora, quando se inicia o trabalho governamental propriamente dito, a linguagem precisa ser requalificada”.

De acordo com o professor da Unesp, não se trata mais de capturar votos da população, “mas de articular os poderes e dar prumo a um governo com perfil mal definido, coisas que, de resto, dependem de muita política”. “O governo em formação tem dado atenção especial às frentes e bancadas suprapartidárias mais que aos partidos, consequência da visão de que as organizações partidárias fomentam ‘corrupção’ e pressões indevidas. Não leva em consideração que o sistema de representação tem nos partidos seu agente principal. Se persistir, tal prática será uma permanente fonte de tensão entre governo, parlamentares e opinião pública”, analisa Nogueira

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Míriam Leitão: Anúncios vazios minam confiança

Faltam dias para o novo governo assumir e seria bom que começasse a ir além das ideias voluntaristas que marcaram essa conversa inicial

O anúncio de que o governo Bolsonaro pensa em desonerar a folha de salários tem a mesma marca de improviso de todos os outros ditos da nova administração. É excelente a ideia, só não é original nem trivial. Para fazer isso será preciso saber de onde tirar pelo menos os R$ 200 bilhões que vão para a Previdência. Alguém precisa contar para as autoridades entrantes que governar é diferente de ter teses na academia, no mercado financeiro ou em palestras.

Para ir além da ideia é preciso explicar como fazer. Se não houver o caminho dos projetos até a sua realização é apenas balão de ensaio. Até agora, a lista de intenções anunciadas e abandonadas pelo governo Bolsonaro é enorme. A transição está se completando e a grande marca da preparação do novo governo é o anúncio precipitado de medidas que depois são desmentidas, para darem lugar a outras que também acabam indo para o rol das propostas arquivadas.

Para desonerar a folha é preciso saber o que pôr no lugar, porque passa de meio trilhão de reais o que se arrecada hoje. O que o futuro secretário da Receita, Marcos Cintra, propõe é a criação de um imposto sobre transações financeiras. Essa proposta é a recordista das idas e vindas. Foi dita, desdita, desmentida, negada, abjurada, e sempre reaparece. Cintra é conhecido por sua militância de décadas em defesa do imposto único. Uma ideia que tem nele um defensor único. Nunca impressionou os colegas de qualquer corrente na economia porque não fica em pé. Até ele traiu suas próprias crenças e chegou a defender que houvesse duas e não uma CPMF.

Todo mundo concorda que existem impostos e taxas demais sobre o emprego. Como reduzi-los é que são elas. O governo Dilma deu desonerações a setores. Vimos o resultado. Rombo, distorções, aumento do déficit da Previdência. Foi preciso fazer o caminho da reoneração, ainda incompleto. Portanto, o centro da questão é o “como”. Se a equipe econômica não tiver pensado no caminho prático da realização das ideias, elas são palavras vazias que servem apenas para minar a credibilidade de quem fala. Faltam dias para a nova administração assumir e seria bom que começasse a ir além das teses voluntaristas que marcaram essa conversa inicial.

Já se falou em reduzir os gastos tributários, o que significa eliminar as isenções, incentivos fiscais, programas especiais. Até agora não se apontou um único gasto tributário que vá ser extinto ou reduzido. O presidente Jair Bolsonaro prometeu ao agronegócio a anistia das dívidas passadas do setor com o Funrural. O governo Temer havia proposto um refinanciamento dessa dívida e deu muita confusão. O Congresso aumentou os descontos, foi negociada nova versão, mas tem havido pouca adesão porque os devedores estão de olho no perdão completo dessas dívidas prometido por Bolsonaro. Isso significa um gasto de R$ 17 bilhões e contradiz o que o economista Paulo Guedes disse durante a campanha sobre as bondades fiscais para setores.

A própria “faca no Sistema S” foi lançada aos comensais da Firjan sem qualquer explicação. Aqui comentei ontem sobre a importância da revisão do Sistema. Mas o relevante no caso é dizer que, se há alguma proposta, que seja apresentada com alguma concretude. Governar é mais do que lançar ideias, soltar balões e encantar plateias.

Cintra disse que a desoneração da folha será agora “definitiva e universal”. Isso é para ser diferente da que foi feita no governo petista e que foi seletiva e deixou um custo de R$ 108 bilhões de 2012 a 2019. A proposta é que o benefício não seja concedido discricionariamente a alguns, mas estendido a todos. Deu para entender, só não deu para saber como isso será feito.

Quem dirige a economia de um país complexo como o Brasil tem que expor os números e simulações que levaram à convicção de que uma proposta é viável, antes de anunciá-la. Se não o fizer, é apenas especulação. Além de serem medidas descalçadas de números, elas costumam frequentemente se chocar com o que é dito em outra ala do governo.

Faltam poucos dias para o início da nova administração. Que os senhores da equipe econômica — integralmente masculina, a propósito — pensem, calculem, analisem e estudem alternativas antes de apresentá-las. Se não fizerem isso, perderão credibilidade.


João Domingos: A economia acima de tudo

Uma equipe de articuladores políticos precisa saber dialogar e nunca ser prepotente

Mesmo que Jair Bolsonaro tenha feito uma campanha sem abordar com profundidade os problemas econômicos do País, hoje não restam dúvidas de que a maior expectativa de todo mundo em relação a seu governo mora na economia. Por isso mesmo, indaga-se tanto a respeito do que o governo vai fazer em primeiro lugar, se a reforma da Previdência ou a reforma tributária, ou as duas. Ou nenhuma. Ao mesmo tempo, buscam-se informações sobre o projeto de privatização, se incluirá a Petrobrás ou parte dela, se chegará aos bancos oficiais ou não, se haverá aumento de impostos, desoneração da folha de pagamentos, e assim por diante. Em resumo, a pauta econômica superou outros temas de campanha. E o presidente eleito, de repente, já não é só aquele que encarnou a figura do anti-PT. Seu governo está aí para dar um jeito no País. E dar um jeito no País começa por fazer a economia andar e voltar a gerar empregos.

Nem o tema do combate à corrupção empolga tanto quanto a economia. Bolsonaro nomeou Sérgio Moro para o Ministério da Justiça? Ótimo, é o ministro que o eleitor dele e de outros candidatos pediram. Moro chamou o delegado Y para tal cargo? Também está ótimo. Põe a turma da Lava Jato pra trabalhar. Em reação a críticas do general Hamilton Mourão sobre seu governo Nicolás Maduro fala em pôr os milicianos da Venezuela em estado de guerra contra o Brasil? Nossa, como esse Maduro é chato. Vamos ao que interessa, a economia.

Então, não há como fugir. A expectativa é em relação à economia, ao crescimento do PIB, quando o superávit primário deixará de ser déficit e voltará a ser superávit, etc. Isso aumenta demais a responsabilidade do futuro ministro da Economia, Paulo Guedes. Ele terá de Bolsonaro as condições para tocar sua proposta de economia? Certamente que do presidente ele as receberá. Mas o presidente terá capacidade para criar essas condições, negociando com deputados e senadores a aprovação de medidas, como a reforma da Previdência? Isso será preciso ver.

Por enquanto, levando-se em consideração as bolas nas costas que o futuro governo tomou do Congresso, as falhas gritantes na articulação política, a falta de experiência dos parlamentares do PSL, alguns mais adeptos da porrada do que do diálogo, não dá para cravar que Bolsonaro montará uma equipe de articuladores capaz de vender o peixe do presidente de forma assim tão fácil. Será preciso ralar muito. Primeiro, não escolhendo o lugar errado para ficar nas eleições para as presidências da Câmara e do Senado. É melhor fazer parcerias nessa hora do que ir para o enfrentamento e sofrer uma derrota.

Em segundo lugar, uma articulação política não pode nunca ser prepotente. Se Paulo Guedes é, e se ele, pelo menos no início, carregará todas as expectativas em torno do governo, será preciso dar-lhe uma retaguarda para amenizar suas atitudes. Se ele diz o que pensa, e isso desagrada, alguém precisa ajeitar as coisas. Bolsonaro fez isso quando viu que foi necessário. Logo depois de Guedes dizer que era preciso “dar uma prensa” no Congresso para que a reforma da Previdência fosse aprovada, o capitão afirmou que seu economista não tinha o traquejo para lidar com as coisas do Congresso. No fundo, afirmou o presidente eleito, Guedes não quis dizer bem aquilo. E ficou o dito pelo não dito.

Bolsonaro montou uma equipe de auxiliares composta por técnicos, políticos e militares, todos eles determinados a fazer aquilo que o presidente lhes ordenar. Trata-se, de fato, de uma equipe coesa, uma sombra do presidente. Se quiser ter êxito no Congresso, precisa escolher seus articuladores políticos com o mesmo cuidado. Lembrando-se, porém, de que deles será preciso exigir, como pré-requisito, qualidades de negociadores. O que dos ministros não foi preciso.


Demétrio Magnoli: A folia do Ernesto

O Brasil de Bolsonaro oferece a Maduro um conveniente inimigo externo

Bolsonaro e Ernesto Araújo, o ministro indicado de Relações Exteriores, justificaram os "desconvites" a Díaz-Canel e a Maduro para a posse presidencial sob o argumento de que Cuba e Venezuela não realizam eleições livres.

A lógica empregada exigiria "desconvites" a dezenas de países autoritários com quem o Brasil mantém relações diplomáticas. A política externa bolsonarista começa no registro da pantomima. Nesse caso, a comemoração explícita emana dos grupelhos ideológicos que orbitam em torno do presidente eleito —mas a vitória é do ditador venezuelano.

Maduro mente todos os dias, obsessivamente. Agora, acusa Bolsonaro e o vice, Mourão, de participarem de um "complô preparado na Casa Branca para me assassinar" e "invadir a Venezuela", num plano que se iniciaria com "provocações na fronteira".

Nada evitará que ele minta, mas os "desconvites" conferem uma sombra de verossimilhança às suas palavras. O chavismo terminal precisa do espantalho ameaçador do inimigo externo para conservar um mínimo de coesão interna. A folia ideológica brasileira ajuda a prolongar o epílogo do falido regime venezuelano.

Ernesto Araújo é um homem de firmes convicções. Poucos anos atrás, defendia sem corar as políticas econômica e externa de Dilma Rousseff. Nos últimos meses, em pirueta olímpica, passou a repercutir o discurso místico do olavismo e as senhas doutrinárias da Breitbart News.

O folião do Itamaraty pretende operar como peão de Trump na América do Sul. A lógica dos "desconvites" ultrapassa o limite dos gestos simbólicos, apontando para a ruptura de relações diplomáticas com Cuba e Venezuela. Maduro torce por isso, que implicaria a voluntária retirada brasileira do terreno onde se decidirá o futuro da Venezuela.

O chavismo, que nunca foi homogêneo, cinde-se em correntes diversas que encaram o horizonte do abismo. O componente militar do regime, que controla as chaves da repressão, também está dividido.

A cola que ainda prende os chavistas a Maduro é o medo do futuro —isto é, o temor da retaliação e da vingança. Uma transição política sem sangue, ou com pouco sangue, depende de negociações com as alas do regime dispostas a abandonar o barco que naufraga. Para isso, são necessários mediadores. Ernesto, o folião, suprime as credenciais que fazem do Brasil um mediador eficiente.

Sem uma embaixada em Caracas, o Brasil exclui a si mesmo do jogo político. A embaixada deveria servir para municiar o governo brasileiro com informações confiáveis, estabelecer pontes de diálogo com a oposição e explorar rumos de superação da crise com dissidentes chavistas civis e militares. A denúncia permanente da violência do regime é uma obrigação moral e política.

Mas, além disso, o Brasil precisaria ajudar os atores venezuelanos a encontrar fórmulas capazes de conjurar o medo que impede a ruptura. Fora da transição negociada, só existe a guerra civil.

A sobrevivência agônica de Maduro seria impossível sem o amparo da China e da Rússia. Uma solução pacífica para a Venezuela passa pela ativação de canais diplomáticos regionais e globais. John Bolton, o conselheiro de Segurança Nacional de Trump, investe no caos. Já o interesse dos países sul-americanos, especialmente os que compartilham fronteiras com a Venezuela, repousa na perspectiva de uma transição negociada.

O Brasil, atuando ao lado de Colômbia, Equador, Peru e Argentina, teria os meios para persuadir chineses e russos a cortar o cabo que mantém o governo de Maduro à tona. Mas Ernesto, o folião, prefere a pantomima —isto é, a irrelevância.

O Brasil de Lula e Dilma serviu ao chavismo, propiciando-lhe apoio diplomático e um verniz de legitimidade democrática. O Brasil de Bolsonaro prossegue o trabalho do lulismo, oferecendo a Maduro a imagem perfeita de um conveniente inimigo externo. O Ernesto tem custos.

*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.


Marco Aurélio Nogueira: Um ano para a oposição mostrar seu valor

Requerem-se iniciativas que sejam claramente democráticas, abertas, laicas, flexíveis

Depois da derrocada política, ideológica e eleitoral da esquerda democrática, do centro e da esquerda petista, os perdedores terminam 2018 amargando os efeitos de sua desarticulação. Procuram juntar os cacos. O vendaval bolsonarista abalou cálculos e personagens da democracia brasileira. Abriu uma espécie de caminho de volta.

Passadas as festas de fim de ano, terá de haver muita reflexão e ação.

PSB, PDT e PCdoB movimentam-se para organizar um arranjo político que funcione como bloco no Congresso e sirva de plataforma para deslocar o centro gravitacional das esquerdas, afastando-as tanto quanto possível do PT. Os petistas, por sua vez, terão de deixar de girar em círculos, abandonando a narrativa do golpe e da perseguição.

Ao mesmo tempo, o PPS e a Rede abriram conversas para examinar a possibilidade de uma articulação que abrigue os desejos de renovação de ambas as correntes políticas, juntamente com movimentos cívicos surgidos nos últimos anos.

Por entre esses dois mundos flutuam políticos e ativistas originários do PSDB, do MDB, gente da esquerda pragmática, petistas realistas, tucanos incomodados com a guinada direitista do partido, pessoas sem vínculos partidários – todos preocupados em encontrar uma porta por onde passe uma agregação que cumpra funções de ordem prática e ideal.

Haverá quem trabalhe para que as três iniciativas acima mencionadas, ou ao menos duas delas, convirjam no médio prazo em direção a um ponto comum. E haverá quem pense que nenhuma delas tornará viável uma oposição propositiva, consistente e vigorosa ao próximo governo federal.

No fundo, estão todos convencidos de que os partidos existentes já não dão conta da situação e precisarão agir de outra maneira, quem sabe, extraindo de seu interior os germes da própria superação, rumo à formação de um novo movimento político.

Estão aí as dificuldades. Alguns falam em fortalecer o que tem sido chamado de “centro radical”, outros cogitam de um “centro” sem adjetivações adicionais, há quem pense em termos de “centro-esquerda” e outros, por fim, acreditam que não se deveria trabalhar com a ideia de “centro”, imprecisa demais, mas de social-democracia.

Os nomes importam. Se se quiser ter um novo posicionamento das forças democráticas brasileiras, a ideia de “centro” é preciosa, mas precisa ser adequadamente processada, qualificada com rigor. Sem isso dificilmente exibirá face rejuvenescida e não conseguirá desvencilhar-se do que já se tentou fazer no passado, sem grande sucesso. Sem isso terá reduzido poder de sedução, enfraquecendo-se perante a opinião pública e a esquerda democrática, que tem peso próprio não desprezível em termos de concepções políticas e valores.

Um “centro radical” é uma proposição engenhosa, no sentido atribuído à expressão pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Mas carece de formatação. Poderia ser mal interpretada como opção por um posicionamento “radicalmente de centro”, isto é, algo que não é nem esquerda nem direita: um muro não muito largo onde só haveria lugar para políticos pouco atentos à questão social e aos direitos humanos, concentrados na reforma da economia e do Estado em sentido fiscalista e gerencial, mais dedicados a futuros embates eleitorais e parlamentares do que ao diálogo com a sociedade.

Não seria um “centrão”, mas sua identidade ficaria ofuscada, inviabilizando-se para dialogar com as multidões e, acima de tudo, com as novas gerações, que não querem mais do mesmo. Não é o que pensa FHC, mas o risco de a ideia se perder nas nuvens é real.

Qualquer “centro” que queira cumprir uma função positiva no Brasil atual terá de infletir para a esquerda. Não em termos ideológicos, mas em termos programáticos, valorativos. Terá de se distanciar da esquerda anacrônica, aprisionada ao século 20, e abraçar uma esquerda que saiba decifrar o século 21 e ativar os valores da democracia, da liberdade, da igualdade, da justiça. Precisa ser mais progressista que reformista, voltar-se mais para o social que para o econômico, atacar com determinação a desigualdade, ser capaz de temperar seu moderantismo com boas doses de generosidade social e combatividade democrática.

Chamá-lo de “centro” não ajuda muito. Antes de tudo, porque carrega um pecado de origem, o da imprecisão.

Não se trata de um problema nominalista. Em política estamos sempre à procura de selos que identifiquem e, ao identificarem, auxiliem a produzir apoios e adesões. A política democrática é uma arte dedicada a unir, mas também a distinguir e diferenciar: somente se unem partes que têm clareza do que são e aceitam a dosagem de seus interesses particulares em nome de um interesse comum.

Para enfrentar o furacão direitista que sacudirá o País nos próximos anos e que, à primeira vista, fará isso conforme as regras do jogo, necessitamos de um polo democrático progressista o suficiente articulado para se abrir à direita liberal e à esquerda democrática, a reformistas moderados e a socialistas, a liberais, verdes e sustentabilistas. Um polo que entre firme no século 21, abandone dogmas e roteiros já experimentados, disponha-se a elaborar uma nova teoria da sociedade nacional e a enfrentar com determinação os graves problemas do País.

Requerem-se iniciativas que sejam claramente democráticas, abertas, laicas, flexíveis, com capacidade de expansão e de negociação, que reverberem no Parlamento e nos ambientes da sociedade civil, compondo o que há de vida ativa no Brasil atual sem concessões desnecessárias à direita, à esquerda e ao centro. Nada disso é obra de curto prazo.

Que 2019 represente, para os democratas, a abertura de uma fase nova, na qual se compreendam as carências acumuladas, os erros cometidos e se prepare o terreno para o amadurecimento de uma oposição política que traga consigo o futuro.