Bolsonaro

Hélio Schwartsman: Ditadura não, pô!

Poder estatal precisa ater-se ao princípio da impessoalidade da administração

Depois da Venezuela e de Cuba, o futuro chanceler do Brasil, Ernesto Araújo, desconvidou a Nicarágua para a posse de Jair Bolsonaro. Fê-lo em nome da liberdade. “A posse do PR [presidente] Bolsonaro marcará o início de um governo com postura firme e clara na defesa da liberdade”, declarou Araújo.

No que configura um grande avanço em relação a manifestações pregressas, Bolsonaro parece concordar com seu chanceler. Por ocasião do desconvite a Nicolás Maduro, ele disse: “Ditadura, pô, não podemos admitir. O povo lá não tem liberdade”.

Eu não poderia concordar mais. Por também prezar a liberdade, jamais convidaria os ditadores desses países para minha festa de aniversário. Existem, contudo, diferenças entre uma pessoa e um Estado.

Enquanto eu, você e qualquer cidadão que não esteja desempenhando funções públicas podemos manifestar preferências, exercitar caprichos e praticar todo tipo de discriminação não vedada por lei, inclusive o amor, o poder estatal precisa ater-se ao princípio da impessoalidade da administração.

Isso significa que, se o Brasil quisesse excluir da posse ditadores, precisaria fazê-lo de forma sistemática, aplicando o mesmo princípio a todas as nações e não apenas àquelas com que a pessoa física de Jair Bolsonaro tem uma rusga pessoal.

Numa análise perfunctória, teriam de ser desconvidados não só Venezuela, Cuba e Nicarágua, mas também China, Rússia, Turquia, Arábia Saudita, Egito, Paquistão, Costa do Marfim, Nigéria e Togo, para citar apenas algumas das autocracias mais escancaradas.

Isso não implica que valores não devam fazer parte das relações do Brasil com outras nações. Mas, de novo, é preciso que os princípios sejam aplicados de forma impessoal, não ao sabor das idiossincrasias de quem esteja no governo.

Quanto antes Bolsonaro entender que será o presidente do Brasil e não mais o ídolo de um grupo de WhatsApp, melhor.


Bruno Boghossian: Para Bolsonaros, explicação vazia de Queiroz é pior do que silêncio

Sem explicar depósitos de funcionários, ex-assessor dá pistas do que quer esconder

Para um amigo da família, Fabrício Queiroz já causou problemas demais para os Bolsonaros.

A entrevista em que o PM se recusou a explicar a movimentação de sua conta bancária é pior do que o silêncio que guardou por quase três semanas. Suas evasivas dão pistas do que ele quer esconder.

O ex-assessor de Flávio pretendia afastar o antigo chefe das suspeitas levantadas pelo relatório do Coaf que registrou transações de R$ 1,2 milhão em um único ano. “Eu sou o problema, não eles”, disse ao SBT.

Queiroz não fez muito mais do que isso. O PM decidiu manter segredo sobre os depósitos que recebeu dos servidores do gabinete de Flávio nos mesmos dias em que rodava a folha de pagamento da Assembleia Legislativa do Rio. Disse que só falaria do assunto ao Ministério Público —embora tenha se esquivado de quatro intimações para depor.

Agora, o ex-assessor teria dois caminhos claros para encerrar o caso. O primeiro seria explicar os repasses que recebeu dos colegas: se eram parcelas de carros vendidos, pode listar os negócios e pedir que os funcionários confirmem a compra com os documentos dos veículos.

A outra opção é mais complicada. Caso Queiroz realmente tenha operado uma coleta de caixinha entre os assessores do deputado, a saída seria admitir a cobrança do mensalinho e responder se o parlamentar sabia ou não sabia do esquema.

O amigo dos Bolsonaros está longe dos pontos de partida dessas trilhas. Queiroz se vangloriou de suas atividades (“eu faço dinheiro”), mas não explicou por que, então, teve que pedir R$ 40 mil a Jair. Ele disse que deu dez cheques à mulher do presidente eleito para devolver o empréstimo.

Ao falar dos graves problemas de saúde que o impediram de prestar depoimento, contou ter sido atendido por um famoso doutor Vladimir, mas não soube dizer o sobrenome do médico. Tampouco quis revelar em que hospital ficou internado. Não era memória fraca: Queiroz conseguiu lembrar que a oficial de Justiça que o intimou se chamava Rita.


Fernando Gabeira: Uma pequena dose de Jânio

Era mais confortável canalizar as atenções para o biquíni que para as finanças nacionais

O futuro ministro da Cidadania, Osmar Terra, falou em proibir o álcool em algumas circunstâncias e provocou polêmica. Creio que as pessoas entenderam que Terra queria proibir o álcool de forma geral.

A experiência no Brasil, no entanto, já mostrou que em certos momentos é possível controlar o consumo com êxito na redução da violência. Para isso é necessário um mapa preciso dos incidentes violentos, indicando hora e lugares onde acontecem.

Não concordo com a visão geral de Osmar Terra sobre política de drogas. Mas também não concordava com a visão proibicionista do velho e saudoso Elias Murad. Uniam-me a Murad, assim como a Osmar Terra, não só a amizade cotidiana, mas uma certa humildade diante desse complexo problema, para o qual ninguém pode dizer que tenha todas as únicas respostas certas.

Basta ver, no momento, a devastação humana que o consumo de opiáceos está provocando nos Estados Unidos. É um desafio para o governo Trump, mas suas raízes o antecedem.

Mas a democracia nos faz experimentar. No Brasil, com a vitória conservadora, é razoável que a política de Terra seja desenvolvida. No Canadá, por exemplo, o governo rumou noutro sentido, legalizando a maconha. Dizem os jornais que a Marlboro entrou no negócio e suas ações subiram mais que as da Bombardier, a correspondente canadense da Embraer.

Não sou ingênuo a ponto de apresentar uma única variável, o sucesso econômico, como critério para analisar uma política dessa envergadura. Apenas registro: a democracia abre o caminho para diferentes experimentos.

Esse pequeno debate em torno do anúncio de Osmar Terra me fez refletir sobre o passado, mais especificamente o período Jânio Quadros. Sem querer comparar governos, registro apenas que naquela época havia também uma combinação entre temas conservadores nos costumes e medidas amargas na economia.

Nos costumes, os temas são muito mais voláteis do que a constância insuperável do preceito econômico que nos proíbe de gastar mais do que produzimos, ao longo de muito tempo. Nenhum governo federal se importaria hoje em proibir brigas de galo, como Jânio fez. Mesmo temas mais amplos, como as vaquejadas e os rodeios, deslocam-se para o Congresso e o STF.

O que diria, então, da proibição do biquíni? Isso provocaria um movimento maior que a revolta das vacinas nos tempos de Osvaldo Cruz. Talvez nem isso, apenas uma explosão nacional bem-humorada.

O interessante em Jânio não era a coexistência dessas duas pautas, que, em outro nível, existem também no governo Bolsonaro. O interessante era como Jânio as combinava.

Sempre que era forçado a tomar medidas econômicas impopulares, Jânio lançava uma dessas proibições que eletrizam a opinião pública. Era muito mais confortável canalizar as atenções para o biquíni do que para as combalidas finanças nacionais.

Não creio que Bolsonaro siga o mesmo caminho. Nada neste período preparatório sugere o cinismo e a sofisticação de Jânio. Além do mais, parece-me que Bolsonaro realmente acredita nos temas de comportamento que defende e vai brigar por eles com o entusiasmo de quem se batizou no Rio Jordão.

Mais que semelhanças, vejo no governo Bolsonaro o fim de algo que surgiu no governo Jânio: a chamada política externa independente, que estabeleceu relações diplomáticas com países socialistas, Cuba incluída. Ainda sem julgar o mérito dessas políticas, tudo indica que o peso ideológico na gestão Ernesto Araújo vai revolucionar as bases do trabalho de Afonso Arinos. Portanto, as comparações entre os governos Jânio e Bolsonaro não podem ignorar essa descontinuidade.

Por falar em Afonso Arinos, recebi nas vésperas do Natal o monumental livro de memórias, intitulado A Alma do Tempo. Um verdadeiro ato de heroísmo do editor José Mario Pereira, da TopBooks. O livro tem 1.790 páginas. Ainda não cheguei à metade do caminho. Cuidarei dele em outros textos.

Os últimos anos foram muito focados na experiência do PT, no máximo, no governo tucano, que lhe antecedeu. Com a ajuda de Arinos e, certamente, de Joaquim Nabuco, ambos atores e intérpretes da saga política familiar, é possível olhar um pouco mais para trás, puxar fios mais longos da meada histórica.

A primeira tarefa, e nisso creio que as memórias de Arinos ajudam, será examinar a experiência de Jânio. Não cheguei no livro plenamente a ela. Mas já no início há referências à instabilidade de Jânio.

Collor foi também uma experiência conservadora. Mas parecia voltado para a economia, para um consumo cosmopolita, uma clássica defesa do meio ambiente.

Bolsonaro pertence aos tempos modernos, em que, segundo Umberto Eco, se desenha um populismo qualitativo de TV ou internet, no qual a resposta emocional de um grupo selecionado de cidadãos pode ser apresentada e aceita como a “voz do povo”. A diferença é que ele chegou ao poder não pela resposta emocional de um grupo selecionado, mas pela vontade da maioria do povo brasileiro. Em outras palavras, até aqui, tudo bem.

Até onde minha vista alcança, os primeiros sobressaltos estão ao norte. Maduro assume dia 10 e a Colômbia propõe que os outros países não reconheçam seu novo governo. Por sua vez, o próprio Maduro andou apreendendo um navio da Guiana, reavivando aquele velha querela em torno de Essequibo, problema que vem desde o século 19 e envolve uma região rica em minérios e um mar potencialmente com muito petróleo. E ainda por cima disse que o general Mourão tem cara de louco. Mourão serviu na Venezuela, conhece a gênese do bolivarianismo.

Vai ser preciso cabeça fria naquela fronteira, concentrar no trabalho humanitário. Provocações podem surgir. Maduro está precisando de inimigos para garantir a coesão interna.

O Brasil só precisa de paz para se reconstruir.


Míriam Leitão: Realismo chegará no primeiro corte

Em fevereiro o próximo governo já será obrigado a bloquear R$ 12 bilhões esperados da privatização da Eletrobras, operação hoje paralisada

Ao fim de fevereiro, quando fizer o primeiro relatório de avaliação bimestral do cumprimento de metas fiscais, o governo terá que bloquear R$ 12 bilhões de receita e despesa. É o dinheiro previsto no Orçamento que viria da privatização da Eletrobras. A venda está paralisada, e sobre ela não há consenso dentro da administração Bolsonaro. O presidente eleito já se manifestou contra, certa vez, mas integrantes da equipe econômica se comportam como se a venda das ações da holding elétrica fosse favas contadas.

Este é apenas um dos vários momentos em que a realidade vai mostrar sua face para os que estão chegando ao poder. Depois dessa transição cheia de ruídos e com uma comunicação confusa, para dizer o mínimo, espera-se que os integrantes do governo Bolsonaro consigam aterrissar. Há alguns que permanecem em órbita, ou vociferando contra problemas inexistentes ou achando que tudo vai acontecer num passe de mágica após a posse.

O governo Bolsonaro poderá contar com várias boas heranças. O realismo orçamentário é uma delas. Esse é o primeiro Orçamento aprovado quase integralmente igual à proposta enviada pelo Executivo. Os congressistas costumavam puxar o crescimento do PIB para inflar a receita e assim abrir espaço para criar novas despesas. Isso obrigava o governo a contingenciar os gastos, logo no início de cada ano. A receita líquida do Orçamento é de R$ 1.299,7 bilhões e a despesa primária é de R$ 1.438,7 bilhões, os mesmos valores da proposta inicial.

Desta vez terá que bloquear o valor referente à venda da Eletrobras que estava prevista desde o projeto da LDO. Houve atrasos no processo de venda pelos mais variados motivos, mas também há visões antagônicas sobre os limites da privatização dentro da nova administração. O próprio presidente eleito disse que não a privatizaria e argumentou que quem vende a galinha do fundo do quintal fica sem os ovos quando precisa. Na equipe econômica prepara-se um plano de privatização, sem qualquer garantia de que isso terá a aprovação do presidente.

Ainda que todos se ponham de acordo sobre o caso da Eletrobras, e mesmo se forem ultrapassados todos os obstáculos judiciais, nada vai avançar muito até o fim de fevereiro. Portanto, o governo não poderá contar com essa receita e os técnicos aconselharão à nova equipe econômica a bloquear R$ 12 bilhões do Orçamento, o que vai apertar diversas áreas. Há também o custo da decisão do ministro Ricardo Lewandowski que impõe o aumento dos salários dos servidores federais.

Na economia, é preciso que o futuro governo encontre a realidade rapidamente, deixando o discurso de palanque e o voluntarismo da transição para trás. O tempo internacional está virando. Nos últimos dias houve quedas fortes das bolsas internacionais pelas muitas dúvidas em relação aos Estados Unidos.

As bolsas tiveram um pregão mais calmo, ontem, após o susto do dia 25. Tóquio abriu no Natal e seu principal índice afundou 5,01%. Na quarta-feira, subiu apenas 0,89%. Outras bolsas corrigiram seus preços no dia 26. China e Coreia do Sul tiveram quedas. Os índices americanos Nasdaq e o Dow Jones, por sua vez, subiam no fim do dia. O petróleo, após despencar nas últimas semanas, avançou e puxou as empresas do setor. O Ibovespa reduziu as perdas com a alta da Petrobras no final do pregão.

Esses ativos escaparam da queda do dia 25, mas o prognóstico é preocupante. O presidente americano continua sendo fonte de muitas incertezas na economia mundial. O ato mais recente foi dizer que o “único problema” da economia dos EUA é o banco central de lá, que indicou duas altas nos juros para 2019. O presidente ensaia uma impensável guerra aberta contra o Fed, uma instituição ícone de bancos centrais independentes. O diagnóstico de Trump, mais uma vez, está errado. As crises comerciais que ele alimenta e o aumento de gastos promovido pela sua gestão estão cobrando a conta. O importante para nós é que os efeitos disso atingirão os países emergentes.

Todo governo que começa recebe um voto de confiança, mas ele não dura para sempre. É preciso que esse capital político seja bem usado nos projetos mais importantes. Se a conjuntura internacional ficar mais volátil, esse tempo será encurtado.


Merval Pereira: Gente como a gente

Atos de Bolsonaro o mostram como o espelho de Lula, e alimentam essa rivalidade de forma proposital

O governo que assume dentro de seis dias inspira esperança nunca antes neste país registrada em pesquisas, como constata o Datafolha. O otimismo do brasileiro coma economia está em níveis recordes. Segundo o instituto, cresceu de 23% para 65% o índice dos que acham que a situação econômica do Brasil vai melhorar nos próximos meses.

Este é também o primeiro governo de direita que assume o país desde 1994, quando nossa versão de social-democracia europeia chegou ao poder com Fernando Henrique Cardoso.

Foram 22 anos de governos de esquerda, responsáveis, para o superministro da economia Paulo Guedes, pelo nosso crescimento econômico medíocre. Anteriormente, houve a experiência malsucedida de Fernando Collor, um populista de direita assim como Bolsonaro, que derrotou a esquerda, assim como Bolsonaro.

O voluntarismo de ambos é característica que, antes como agora, define a maneira de governar e pode levara um isolamento político perigosos e quiser ser sustentado pelo amplo apoio popular que hoje detém.

Jânio Quadros renunciou achando que o povo o levaria de volta ao poder. Lula, com 80% de aprovação quando saiu do governo, pensava que o povo não o deixaria ser preso. Está na cadeia há quase um ano. Collor chamou o povo para defendê-lo nas ruas com as cores verde e amarelo, e foi derrotado por uma avalanche de pessoas de luto pelo país.

Governava através de mensagens em camisetas feitas especialmente para a ocasião. Exibia frases de impacto, como “Drogas, Independência ou Morte”, “Não fale em crise. Trabalhe ”, e amais famosa :“O tempo é o senhor da razão ”, para dizer-se inocente. Conseguiu não ser condenado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) por falta de provas, muito antes do que os críticos chamam de “a teoria jurídica de Curitiba” entrar em vigor, mas está às voltas novamente com processos de corrupção.

Não havia os novos meios de comunicação que hoje empoderam os representados, o que, porém, pode voltar-se como bumerangue contra o populista da ocasião.

Mas não apenas os direitistas se utilizam da imagem de gente comum, que teve em Jânio Quadros uma referência: homem culto e refinado, que gostava de comer bem e de bons vinhos, tirava do bolso um sanduíche de mortadela que mastigava em atos públicos, o terno sempre infestado de caspa.

Atos de Bolsonaro o mostram como o espelho de Lula, e alimentam essa rivalidade propositadamente. Apolítica externa Sul-Sul, implantada pelos governos petistas para compensara dificuldade de instalar seu projeto socialista internamente, será substituída agora por outra, ligada umbilicalmente aos Estados Unidos, numa mistura explosiva de Bolsonaro e Trump que ninguém sabe no que vai dar.

Voltamos aos tempos da ditadura militar, quando o político Juracy Magalhães, então embaixador brasileiro, disse a célebre frase: “O que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil”. Acabou chanceler do General Castelo Branco.

A camiseta usada pela futura primeira-dama Michelle, com uma frase referente ao ex-presidente Lula, é mais um ponto de semelhança de ação populista, assim como as fotos casuais que Bolsonaro dispara pela internet em seu dia adia.

Bolsonaro se orgulha de ser militar, de usar roupas militares. Lula usava modelos militares com o brasão da República quando era necessário, e se vestia, à l a Doria, como uniforme laranjada Petrobras para comemorara autos suficiência que nunca veio.

Bolsonaro dia desses colocou um quepe da Marinha e comparou-se com Lula, se diferenciando ideologicamente: “Se o outro usava chapéu da CUT, eu boto esse ”. A foto icônica do então presidente Lula carregando uma caixa de isopor na cabeça numa reserva da Marinha na Bahia é do mesmo teor da de Bolsonaro pendurando roupa no varal na reserva de Marambaia.

A diferença é que a própria equipe do presidente eleito divulga suas fotos na internet, e naquela ocasião Lulas e deixava fotografar pelos jornalistas. Coma evolução das novas mídias, Lula passou ater um fotógrafo pessoal para divulgar suas andanças pelo país. Mas também sofreu com os smartphones, tendo sido fotografado fantasiado de caipira e nada sóbrio em uma festa de São João no Palácio da Alvorada.


Vinicius Torres Freire: O Brasil e o resfriado americano

Em caso de crise maior nos EUA, Brasil não tem o que fazer a não ser mais do mesmo

Dólar caro e, por vezes, tumultos grandes na economia americana causam um ligeiro aumento do interesse brasileiro por assuntos internacionais. Ligeiro feito uma brisa e apenas entre certa e mui diminuta elite.

Como a taxa de câmbio anda relativamente estável, ainda é raro ouvir conversa sobre o risco e os possíveis efeitos de uma crise americana.

No entanto, seja como for nos Estados Unidos, a discussão no Brasil em tese não teria como mudar.

Dado o tamanho da nossa desgraça econômica, não temos como reagir ou fazer algo diferente do programa que será inevitável pela próxima meia dúzia de anos, faça chuva ou sol lá fora. Isto é, evitar a explosão da dívida pública e uma inflação descontrolada.

A dúvida é como administrar a divisão de custos do ajuste e lidar politicamente com as insatisfações, maiores caso o caldo da economia internacional entorne.

Não é lá muito difícil que o Brasil cresça 2,5% no ano que vem (neste ano, o crescimento não deve passar de 1,4%).

As condições são aquelas que todo mundo está enfadado de ouvir:

1. Reforma da Previdência, alguma outra contenção de despesa que cresça de modo vegetativo e uma arrumadinha em impostos;

2. Economia dos EUA desacelera sem colapso;

3. Donald Trump não intensifica sua guerra com a China e não provoca outras;

4. O crescimento chinês não baixa de seu novo patamar de 6%.

Crescer 2,5% é nada no Brasil. Ainda ficaríamos longe de recuperar o nível de produção e/ou renda perdida na recessão. Nesse ritmo, o desemprego cairia dos cerca de 12% de agora para 11% apenas em 2020 (sim, daqui a dois anos). Ainda assim, seria um alívio, depois de um par de anos de recessão seguidos de um biênio de quase estagnação, refresco em especial para a metade mais remediada da população.

Sem choques externos, com um programa ponderado e bem sequenciado de reformas, com maiorias no Congresso e sem conflitos sociopolíticos derivados de bizarrices ignaras e extremistas, o país pode crescer até mais.

Caso sobrevenha algum problema maior, será obviamente mais difícil chegar aos 2,5%.

Um tumulto no mercado financeiro americano ou um ataque comercial pesado de Trump contra a China pode dar um peteleco forte no dólar, derrubar preços de commodities e causar desânimos e receios vários nas empresas, além de dar uma piorada nas expectativas de inflação.

O que fazer, então? Não haveria o que fazer, a não ser mais do mesmo em um país meio quebrado: o tal ajuste para conter a explosão da dívida etc. Exceto na opinião de parte da esquerda, o país não tem instrumentos para compensar a nova paulada (aliás, se tivesse, poderia recorrer desde já a algum estímulo).

O governo não tem como gastar mais sem que os juros deem um salto.

No caso terrível de crise financeira mundial com disparada séria do dólar e subsequente risco de alta da inflação e de juros por aqui, haveria um estrago sinistro no tamanho da nossa dívida imensa. É bom nem pensar nisso.

Reformas impopulares podem ficar menos intragáveis com alguma recuperação do crescimento econômico. Mas não parece razoável acreditar que se aceite sem mais protestos um outro ano de recessão/estagnação. Seria um ambiente propício para ideias de vez destrambelhadas, políticas em particular.

Alternativas econômicas razoáveis só vamos ter no próximo mandato, se der tudo certo.

Em suma, em parte dependemos da sensatez de Donald Trump e de Jair Bolsonaro.


Janio de Freitas: A Folha de Bolsonaro

Está claro que o presidente eleito ignora o indispensável sobre solução técnica

Jair Bolsonaro não se conforma em ver na Folha textos que não lhe convêm. Tamanha é a sua consideração pelo jornal que reage com insultos, trata mal gente da casa, adverte que prejudicará a empresa, quando dos seus desagrados. Vê-se que é uma distinção exclusiva, e dessas que não se tem como agradecer nem corresponder. Mas é ainda mais rica a sua reação à importante e bem realizada reportagem de Thais Bilenky, baseada na observação de que, "pela primeira vez na história da República", um presidente se empossará "sem nenhum representante" do Nordeste e do Norte "no primeiro escalão" do novo governo.

Primeiro, o Bolsonaro convencional: "A Folha de S.Paulo continua a fazer um jornalismo sujo e baixo nível". E assim segue, esperando convencer de que fez "escolhas técnicas". O que, mesmo se verdadeiro, não impediria a escolha de técnicos capazes e representativos das regiões que compõem cerca de metade do país.

Desta vez apareceu o segundo Bolsonaro, já sacando uma pretensa resposta técnica do seu governo: "Ainda em janeiro" o governo vai "construir instalação piloto para retirar água salobra do poço, dessalinizar, armazenar e distribuir" no Nordeste. Tudo a jato, porque será no mesmo janeiro a ida do ministro da Ciência e Tecnologia a Israel, ainda para procurar parcerias e a tecnologia necessária.

Está claro que Bolsonaro ignora o indispensável sobre a sua solução técnica. O interesse pela dessalinização vem de longe também no Brasil. A tecnologia não é problema. Suas modalidades são conhecidas aqui, já foram testadas, técnicos para aplicá-las não faltariam. Caso alguma dessas modalidades se mostrasse suportável financeiramente. Nem são as instalações, que custam uma só vez. O custo operacional é muito alto e permanente, em descompasso com as condições socioeconômicas da região.

Outras soluções para as dificuldades prementes dos nordestinos são consideradas preferíveis. Prova disso, e sem excluir a continuidade dos estudos de dessalinização, é o feito da ministra Thereza Campello no governo Dilma, já citado aqui mais de uma vez: em torno de um milhão —sim, um milhão— de cisternas familiares instaladas, eficiência rara em qualquer setor brasileiro em qualquer tempo. E, de pasmar, sem nem sequer um arremedo de escândalo.

Israel vale-se da dessalinização, sim. Mas conta com um suporte financeiro sem igual no mundo. Tem a contribuição segura, regular e fartamente generosa de judeus em numerosos países, além da colaboração múltipla dos Estados Unidos, por sua aliança. O Brasil, sem enganações convenientes aos da riqueza especulativa e não produtiva, está destroçado, desacreditado e sem dinheiro até para alimentar os sinais de vida.

Bolsonaro diz, por escrito, que os repórteres da Folha "vão quebrar a cara!" Se ele não quebrar a sua e o Brasil, com seus propósitos desatinados, não faz mal.


Le Monde Diplomatique: Brasil, novo laboratório da extrema direita

O modelo neoliberal colocado em prática no Chile após o golpe militar de 1973 nos dá um panorama do que pode ocorrer no Brasil em um futuro governo de Jair Bolsonaro. E isso não é casual

Por Joana Salém e Rejane Hoelever

Ainda impactados pelos resultados eleitorais no Brasil, muitos se perguntam como a avalanche de votos na candidatura de Jair Bolsonaro e do general Hamilton Mourão (PSL) ocorreu e o que exatamente pode acontecer em um governo de extrema direita no país. Ainda estamos longe de ter as respostas, mas as conexões entre seu principal guru econômico, o empresário Paulo Guedes, e a ditadura de Augusto Pinochet no Chile (1973-1990) nos trazem pistas valiosas sobre o modelo subjacente à sua plataforma.

Paulo Roberto Nunes Guedes, de 69 anos, era até há pouco quase desconhecido do público. Embora fosse colunista da revista Época e do Globoe fundador do Instituto Millenium, sua trajetória perfilada pela repórter Malu Gaspar mostrou que Guedes se manteve por décadas isolado do mainstream: rechaçou todos os planos econômicos e ministros da Fazenda que ocuparam a Esplanada nos últimos 35 anos, de José Sarney a Dilma Rousseff.1 Lendo alguns de seus artigos, fica claro o porquê. O economista demonstra aversão ao pacto social expresso na Constituição de 1988, que se interpõe como um obstáculo ao seu projeto político. Para ele, o Brasil sofre de uma “maldição dirigista”, que obstrui o “irreversível processo evolucionário […] rumo à Grande Sociedade Aberta” [sic].2

No Dia dos Trabalhadores de 2017, Guedes escreveu: “a direita hegemônica governou por duas décadas, e a esquerda hegemônica por três, ambas com um modelo econômico dirigista, desastroso”.3 Em sua mente, os trinta anos de democracia brasileira, com Collor, Itamar, FHC, Lula e Dilma, fazem parte da mesma “hegemonia de esquerda”. Diante de tal tábula rasa, não é difícil depreender suas preferências políticas. Se o sistema de direitos sociais garantidos na Constituição de 1988 chegou até o presente, pelo menos no papel, Guedes faz parte do grupo que pretende exterminá-lo, surfando na onda autoritária de Bolsonaro. Isso significa radicalizar a destruição do pacto democrático. Mas como?

De Chicago para o Chile

Guedes doutorou-se em Economia na Universidade de Chicago em 1978, um centro da corrente austro-americana do neoliberalismo, onde figuras como Milton Friedman já eram proeminentes.4 Como lembra o próprio Friedman no livro Liberdade de escolha, eram tempos em que seus “apóstolos” estavam “pregando no deserto”. Forjada em Chicago, a visão econômica extremista de Guedes não encontrou representatividade suficiente no Brasil até agora. Mas o contrário ocorreu no Chile. Primeiro laboratório da “doutrina do choque”, como Naomi Klein5 designou o processo resultante da aliança Friedman-Pinochet, lá os correligionários de Guedes encontraram pares perfeitos para seu plano econômico após 11 de setembro de 1973: o militarismo e o fascismo chilenos prometiam ao mesmo tempo repressão e “inovação”.

Vem da ditadura de Pinochet a inspiração das recentes propostas de Guedes para previdência e educação, alicerçadas na ideia de um “Estado subsidiário”. Antitética em muitos aspectos à Constituição brasileira de 1988, a Constituição chilena de 1980 foi imposta pela ditadura e preservada até hoje. Ao contrário do Estado garantidor de direitos, o Estado subsidiário chileno é desresponsabilizado de promover bem-estar e convertido em fiador da expansão dos mercados, o que ocorre por meio de transferências volumosas de recursos públicos ao setor privado e de um perverso endividamento popular.

Em Chicago, Paulo Guedes doutorou-se com uma tese de 63 páginas datilografadas.6 Seu trabalho, segundo apurou a Folha de S.Paulo, “nunca foi publicado nem teve repercussão no Brasil”,7 o que teria gerado em Guedes um ressentimento com colegas mais destacados. Essa amargura tornou-se pública recentemente, quando ele chamou sua ex-aluna, a economista Elena Landau, de “medíocre”,8 alegando que havia sido reprovada em seu curso de mestrado na PUC-Rio. Elena Landau, nove anos mais jovem que Guedes, foi uma das mais importantes economistas das privatizações de FHC, quando coordenou a venda da Eletrobras nos anos 1990, pela Comissão Nacional de Desestatização. Com o histórico escolar em mãos, Landau desmentiu o antigo desafeto: “Paulo é que era um péssimo professor. Faltava às aulas, não corrigia exercícios”.9

Também desperta suspeitas a forma como o professor Paulo Guedes ingressou na Universidade do Chile, no início dos anos 1980, auge da ditadura, após uma larga onda repressiva que varreu intelectuais críticos. Como mostra Federico Fullgraf,10 as universidades foram vistas pela ditadura chilena como um dos principais “teatros de guerra”, um território a ser retomado do “inimigo marxista”. No lugar dos opositores, foram colocados professores alinhados com o pensamento único que se impôs manu militari no ambiente acadêmico chileno. Desde a década de 1950, Milton Friedman e seus consortes atraíram economistas chilenos para Chicago, buscando reinseri-los em postos acadêmicos nas principais universidades do país. Contudo, foi apenas com Pinochet que a experiência política dos Chicago Boys se consolidou. E Guedes se integrou a esse fluxo.

Junto com ele, o colega e empresário chileno de origem árabe Jorge Constantino Demetrio Selume Zaror, de 67 anos. Ao voltar de Chicago, onde conheceu Guedes, Selume também integrou a cátedra de Economia da Universidade do Chile, mas em poucos anos tornou-se diretor de Orçamento da ditadura Pinochet e dirigiu operações de privatização de empresas estatais, como a Chilectra e a Entel. Simultaneamente, construiu um império financeiro que incluía bancos e propriedades. Entre elas, a fazenda Rupanco, de 47 mil hectares, que havia sido entregue aos trabalhadores pela reforma agrária durante o governo de Salvador Allende, mas em 1979 foi apropriada pelos militares e transferida para a companhia El Cabildo S.A., que mais tarde passou para as mãos do clã de Jorge Selume.11 Segundo Fullgraf, “Selume é uma espécie de porta-voz oficioso do núcleo duro empresarial pinochetista”.12

Foi assim, ocupando o lugar de professores arbitrariamente expulsos de seus cargos pela ditadura, que Guedes abandonou seus empregos parciais na PUC-Rio, no IMPA e na FGV-Rio, recebendo, segundo ele próprio, um “irrecusável” salário de US$ 10 mil. Perguntado sobre seus vínculos com a ditadura chilena, entretanto, tergiversa: fala sobre suas supostas qualidades acadêmicas para ser contratado e menciona um episódio no qual sua sala teria sido inspecionada pela polícia política de Pinochet.13

Aposentadoria privatizada e choque de pobreza

Nos anos em que Guedes viveu no Chile, José Piñera, o mais poderoso Chicago Boy e irmão do atual presidente, Sebastián Piñera, colocava em prática a privatização completa da previdência, decretada pelo ditador Pinochet em 13 de novembro de 1980. Nesse sistema, formado hoje por um oligopólio de seis fundos privados de pensão (AFP), os assalariados são obrigados a entregar 10% do salário para especulação capitalista, sem contribuição patronal. Atualmente, após trinta anos de contribuição, 90% dos chilenos recebem aposentadorias que valem metade do salário mínimo do país, cerca de 154 mil pesos (R$ 821).14 Sintomaticamente, a privatização da previdência excluiu os militares.

Impulsionado por um discurso pró-capitalização que pautou as fracassadas tentativas de reforma da previdência de Michel Temer em 2017, o sistema AFP chileno representa o confisco da aposentadoria de mais de 10 milhões de trabalhadores. Hoje, cinco das seis AFPs existentes administram nada menos que 69,6% do PIB do país e 94,6% das contribuições previdenciárias, tendo acumulado em 2017 lucros de US$ 1,5 milhão por dia, segundo calculou a Fundación Sol.15

O sistema de arrecadação é individualista, não solidário, pois cada trabalhador depende exclusivamente de si mesmo para “incrementar” o valor de sua pensão. Para piorar, os pensionistas ficam suscetíveis à volatilidade do mercado, aprisionados a uma modelagem matemática blindada pelas próprias AFPs. Nos últimos anos, a crise da aposentadoria tem levado a dramáticos números de suicídio de idosos no Chile: quase mil em apenas cinco anos. Desde 2016, a indignação popular contra a previdência privada no Chile ganhou as ruas em gigantescas manifestações, com o movimento #No+AFP.

No Brasil, o projeto que aprofundaria a deterioração da previdência pública foi rechaçado pela população em 2017. Mas a resistência popular foi apenas um dos fatores que obstruiu sua aprovação no governo Temer, que se viu emaranhado com as custosas dinâmicas de chantagens de um sistema partidário corrupto. Não é demais lembrar que o próprio Paulo Guedes é investigado na Operação Greenfield da Polícia Federal, sob suspeita de gestão fraudulenta de sete fundos de pensão, que lhe teria rendido R$ 6 bilhões entre 2009 e 2013. Há indícios de lavagem de dinheiro com uso da empresa HSM Educacional S.A., por meio da qual o anunciado futuro ministro recebeu quantias milionárias por “palestras”.16

A cruzada privatista de Paulo Guedes encontra, de um lado, a resistência das ruas e, do outro, uma máquina emperrada da governabilidade, na qual todos querem participar do butim. Por isso, saudosista de Pinochet, a ele convém que seu “choque de capitalismo”17 se imponha com militarismo. E em benefício próprio.

Clãs neopinochetistas e big data

Em Santiago, o Instituto Millenium possui um irmão ideológico com muito mais influência sobre a política do seu país: o Instituto Libertad y Desarrollo (LyD), um aparelho privado, de caráter empresarial, fundado em 1990 no luxuoso bairro de Las Condes. Organizado por empresários e ministros do alto escalão da ditadura Pinochet, entre eles Hernán Buchi, Carlos F. Cáceres, Cristián Larroulet e Luis Larrain Arroyo, o instituto é reconhecido por sua habilidade de realizar portas giratórias, isto é, quando executivos de grandes corporações entram no governo e consolidam, por dentro do Estado, suas posições no mercado.18

Desse aparelho saíram dez quadros de alta relevância no atual governo de Sebastián Piñera, que recentemente declarou: “no [aspecto] econômico Bolsonaro aponta na direção certa”.19 Não é apenas a família Piñera que vê a onda bolsonarista com bons olhos. Seu concorrente de extrema direita nas eleições chilenas de 2017, José Antonio Kast, é quem mais tem investido na aliança. O empresário de origem alemã obteve 523.213 votos, alcançando o quarto lugar na última corrida presidencial. No dia 18 de outubro, Kast veio ao Rio de Janeiro para encontrar-se com Bolsonaro. Em sua conta do Facebook, publicou uma foto sorridente ao lado do capitão: “Hoje nos reunimos com Jair Messias Bolsonaro e lhe desejamos o maior êxito na eleição. Presenteamo-lo com a camisa do Chile, para que sigamos fortalecendo a relação entre ambos países e juntos construirmos uma aliança que derrote definitivamente a esquerda na América Latina”.20

Além da admiração por Pinochet, Kast e Bolsonaro compartilham uma política de clãs.21 O senador Felipe Kast, sobrinho de José Antonio Kast, concorreu às prévias dentro da coligação na qual triunfou Piñera e foi seu ministro do Planejamento no governo anterior. Na campanha das prévias, Felipe Kast contou com a colaboração especial de Jorge Selume, filho homônimo do empresário que estudou com Guedes, um psicólogo de 37 anos, recentemente nomeado secretário das Comunicações do governo de Piñera. No portfólio de Selume, o filho, há um diploma da Universidade Andrés Bello (que pertence à multinacional Laureate, dirigida por seu pai) e anos de trabalho para a Cambridge Analytica. Não menos importante é o fato de que o psicólogo Selume é dono da Artool, a maior empresa chilena de big data.

Se há indícios de que a campanha de Bolsonaro no Brasil pode ter sido agraciada – como foi a de Donald Trump nos Estados Unidos – com o roubo de milhões de dados pessoais de cidadãos nas redes sociais, entre elas o WhatsApp, e a difusão de fake news em escalas totalmente inéditas, a extrema direita chilena detém todas as ferramentas para reproduzir os mesmos métodos.

Portas giratórias da educação privada

O estreito círculo da extrema direita brasileira e chilena se fecha com o empresário Jorge Selume. Como dissemos, ele foi colega de Paulo Guedes em Chicago nos anos 1970. Nos anos 1980, construiu um império econômico graças à maior operação financeira realizada no Chile até então. Junto a Las Diez Mesquitas, um consórcio de empresários árabes, comprou o Banco Osorno e o vendeu ao Santander em 1985 por US$ 495 milhões.22 Na mesma época, ocupava a Diretoria de Orçamento do regime Pinochet.

Hoje fica cada vez mais claro que educação e cultura são fronteiras prioritárias para a expansão dos negócios neopinochetistas. O psicólogo Jorge Selume, por meio da Artool, criou uma poderosa máquina de comunicação e marketing político. Com ela, em 2016 alavancou a eleição de 46 prefeitos do partido Renovación Nacional com uso de técnicas da Cambridge Analytica. Além disso, entre os principais clientes da Artool estão o Banco de Chile e o Banco Santander, que juntos reúnem pelo menos metade da população com conta bancária no país.23

Enquanto isso, Jorge Selume, o pai, há algum tempo investe no ramo da educação e tornou-se um dos mais influentes executivos da multinacional Laureate, sob suspeitas de fraudes no sistema de acreditação da educação privada.24 No Brasil, a Laureate tem priorizado o ensino a distância. Não por coincidência, Guedes defende um “choque de inclusão digital no ensino básico”, Bolsonaro fala em ensino a distância para crianças e o nome de Stavros Xanthopoylos, diretor de Relações Internacionais da Associação Brasileira de Educação a Distância, foi cotado para o Ministério da Educação de um futuro governo de extrema direita. Caso a pasta ainda exista.25

 O que nos aguarda?

Em sua primeira entrevista à imprensa internacional após a publicização de sua conexão com Bolsonaro, em novembro de 2017, Guedes afirmou: “Os últimos trinta anos foram um desastre – corrompemos a democracia e estagnamos a economia […]. Deveríamos ter feito o que os Chicago Boys defendiam”.

Questionado por associar-se a um conhecido defensor da ditadura militar brasileira, em meio a um evento organizado pelo banco Crédit Suisse em São Paulo, Paulo Guedes classificou esse tipo de pergunta como um “patrulhamento” e, ao mencionar suas longas conversas com Bolsonaro, repetiu um de seus bordões favoritos: “Quer saber se a ordem está conversando com o progresso?”.26

Não é muito difícil decifrar a mensagem por trás dessas linhas. A primeira vez que a América Latina viu uma união orgânica entre militares e Chicago Boys em um governo foi em 1973 no Chile, um capítulo da história mundial escrito com baldes de sangue. Aos brasileiros resta saber que situação essa perigosa associação ainda pode engendrar.

 

*Joana Salém faz doutorado em História Econômica na USP; Rejane Hoeleveré professora de Ciências Sociais da FGV Rio e faz doutorado em História na UFF.


Elio Gaspari: Cadê o Fabrício Queiroz?

O PM Fabrício Queiroz continua sumido. Quem conhece o mundo das malfeitorias garante: “É suicídio” . Ele não aparece em casa e não compareceu aos depoimentos combinados com o Ministério Público. Admita-se que esteja com os nervos em pandarecos, pois passou de amigo da Primeira Família para o centro de uma rede de movimentações financeiras pra lá de suspeitas. Seu ex-chefe, o senador eleito Flávio Bolsonaro diz que ouviu seu relato e achou-o “bastante plausível”. Só se poderá confiar nessa plausibilidade depois que o relato se tornar público.

Uma coisa é certa: a história segundo a qual Queiroz deixou a assessoria de Flávio Bolsonaro no dia 15 de outubro para tratar de sua aposentadoria não fica em pé. Ele foi exonerado no dia seguinte ao aparecimento da notícia de suas movimentações bancárias “atípicas”. Além disso, no mesmo dia, foi exonerada sua filha Nathalia, que estava lotada no gabinete de Jair Bolsonaro, em Brasília. Quando os dois tornaram-se “ex-assessores”, faltavam treze dias para o segundo turno.

O silêncio de Queiroz faz com que suas movimentações financeiras “atípicas” continuem apenas como algo suspeito. Um depósito de R$ 24 mil na conta da mulher de Jair Bolsonaro já foi explicado por ele como parte do pagamento de um empréstimo pessoal. O presidente eleito reconheceu que não informou a transação à Receita Federal, mas atire a primeira pedra quem já não fez isso com uma pessoa de suas relações.

Outros murmúrios, saídos de fontes anônimas, falam em venda de objetos eletrônicos a conhecidos. Coisa de R$ 600 mil ao longo de treze meses, caso se olhe só para o que entrava em sua conta. Mesmo assim, o feirão de Queiroz movimentava quantias muito superiores ao seu rendimento como suboficial da PM e assessor de um deputado estadual.

Queiroz não é um PM qualquer. Além da ligação com os Bolsonaro, sua folha é a de um militar premiado. Foi homenageado pela Assembleia Legislativa e ganhou a medalha Pedro Ernesto. Há anos, como soldado, recebeu o abono, hoje extinto, dado aos PMs por atos de bravura em confrontos com bandidos. Era a “gratificação faroeste” . (Quando esse benefício foi instituído, em seus confrontos a PM do Rio matava duas pessoas e feria uma. Dois anos depois, matava quatro para cada ferido.)

Está nas livrarias “O Infiltrado - um repórter dentro da PM que mais mata e mais morre no Brasil” , de Raphael Gomide. Em 2007 ele fez concurso para a PM do Rio, passou pelo treinamento e serviu por 22 dias como soldado. Lá, um ex-comandante da corporação admite que a “gratificação faroeste” foi um estímulo à “cultura da violência”.

O silêncio de Queiroz pode ser eficaz para quem olha para o tempo político. É suicídio porque esse tempo nada tem a ver com o do Ministério Público. Os procuradores não têm pressa, têm perguntas. Se ele movia tanto dinheiro porque transacionava com mercadorias, deverá dizer de quem as comprava e para quem as vendia.

A esperança de que Queiroz passe pelo Ministério Público administrando um silêncio seletivo é suicida. Peixes grandes como Marcelo Odebrecht e Antonio Palocci tiveram a mesma ilusão. Queiroz é um lambari, sua movimentação financeira não compraria um dos relógios com que as empreiteiras mimavam maganos. Contudo, sua trajetória e seu silêncio são ilustrativos do que vem junto com a “cultura da violência”. Ele foi da PM para um gabinete na Assembleia Legislativa do Rio, empregou parentes e têm a confiança da Primeira Família da República, cujo chefe elegeu-se presidente com uma plataforma moralista e justiceira.


Maria Alice Setubal: À espera das políticas sociais, culturais e ambientais

Posição do novo governo tem sido genérica até aqui

O ano de 2018 está chegando ao fim depois de muitas turbulências e conflitos profundos, causados pelos diferentes posicionamentos políticos, que geraram, inclusive, discórdia entre amigos e familiares.

A polarização ocorrida durante a campanha eleitoral pode ter se amainado, mas ainda está longe de se dissipar. O país segue dividido, mas com uma espera em comum: a posse do novo governo, que, até aqui, tem se posicionado de forma genérica, fazendo oposição ao sistema e à corrupção.

Essa postura se concretizou na busca de escolhas ministeriais independentemente de partidos, no desenho de uma ideologia liberal privatizante e iniciativas morais ultraconservadoras, expressas pela defesa da Escola sem Partido e pela oposição à ideologia de gênero e ao que denominam como marxismo cultural, definição que parece englobar tudo aquilo que se considera contrário aos princípios do grupo eleito, algo ainda um pouco nebuloso para o público em geral.

Nos últimos 30 anos, o Brasil avançou muito em todos os indicadores sociais. Políticas inovadoras foram construídas e muitas delas referendadas e premiadas internacionalmente. Certamente, os avanços não foram na velocidade desejada e, apesar de termos universalizado o ensino fundamental, tirado 16 milhões de pessoas da extrema pobreza (de 2003 a 2013), o SUS ser um modelo de saúde para muitos países, para dar apenas alguns exemplos, ainda temos muito a melhorar para alcançarmos uma qualidade nos serviços prestados.

A boa notícia, muito importante a ser destacada, é que temos estudos, pesquisas e evidências que apontam onde acertamos e quais ajustes e inovações devem ser feitos no intuito de poder embasar as novas políticas nessas e nas demais áreas sociais, culturais e ambientais.

A sociedade civil brasileira é constituída por uma pluralidade grande de organizações, com um acervo de pesquisas e experiências rico e variado que pode ser colocado a serviço das políticas públicas.

Como se trata de um país com diferenças regionais e culturais enormes, são necessários programas e políticas alinhados aos seus diferentes contextos, e as instituições locais podem ter um papel fundamental na articulação de pontes entre os níveis macro e micro para contribuir com leituras, construções e ajustes.

O século 21 se estabelece como o tempo de construções colaborativas, e precisamos refazer pontes desfeitas durante os últimos anos, unindo novamente os fios do tecido social das diferentes comunidades.

Diversas pesquisas apontam baixíssimo nível de confiança nas instituições ou em pessoas que não fazem parte da família dos brasileiros.

Construir confiança, portanto, é condição sine qua non para fortalecer a democracia e para alcançarmos um bem comum e um espaço público inclusivo e diverso. Para isso, são necessárias instituições fortes, transparentes, livres e responsáveis, de modo a criar um vínculo de continuidade entre passado, presente e um futuro comum que continuará com as próximas gerações.

Descobrir um modo singular de pertencer à sociedade e ao mundo é uma condição indispensável para dar sentido às nossas ações e para a renovação desse espaço coletivo.

O Brasil espera as novas políticas sociais, culturais e ambientais na certeza de que a sociedade civil tem muito a contribuir para a construção de um país mais justo e sustentável.

*Maria Alice Setubal é doutora em psicologia da educação (PUC-SP), presidente do Conselho da Fundação Tide Setubal e do Gife (Grupo de Institutos Fundações Empresariais)


Política Democrática: Tudo pode ser o oposto do que aparenta, diz Martin Cezar Feijó

Em artigo publicado na revista Política Democrática online de dezembro, professor explica reflexos da sociedade do espetáculo

Por Cleomar Almeida

Na sociedade do espetáculo, tudo é possível, tudo se mistura, e tudo pode ser o oposto do que aparenta. A avaliação é de Martin Cezar Feijó, em artigo publicado na revista Política Democrática online de dezembro. Segundo ele, “os mitos passam a ser criados para explicar o surgimento nas sociedades do que chamamos de cultura”, observa ele, que é professor de comunicação comparada na Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP).

» Acesse aqui a edição de dezembro da revista Política Democrática online

Produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), vinculada ao Partido Popular Socialista (PPS), a revista mostra, no artigo de Feijó, “as narrativas míticas antecipam a poesia, que se sofistica, tendo em Homero seu primeiro autor reconhecido como tal na cultura ocidental. Um trovador, um bardo, um aedo”, escreve ele, que também é historiador e doutor em comunicação pela USP (Universidade de São Paulo).

No artigo, Feijó observa que a preservação de Ilíada e Odisséia teria sido através de aedos. “O registro escrito da obra de Homero só ocorreu no período clássico grego (século V a.C.), em pleno nascimento do regime político conhecido como democracia. Nascia a literatura como registro escrito de uma ficção. O que foi chamada de poesia, artefato criado, inventado, musicado”.

E ele continua: “De Homero a Bob Dylan, a literatura se transformou em teatro, ainda na Grécia clássica, em poesia na Idade Média, com Dante Alighieri realizando uma obra fun- damental, a Divina Comédia”, afirma o professsor. “O teatro tem na figura de William Shakespeare seu grande bardo, seu grande trovador, com suas tragédias e comédias decisivas. E um contemporâneo seu: Cervantes, de Dom Quixote de la Mancha”, acrescenta.

Em outro trecho, o historiador observa que o século XX foi prodigioso no desenvolvimento de várias formas de expressão. Ele cita, por exemplo, que a música erudita se tornou atonal, o teatro se tornou épico com Bertolt Brecht e a poesia conheceu o russo Maiakóvski, em quem a anatomia enlouqueceu. “O cinema se tornou sonoro, o mundo se complicou, e uma segunda guerra mundial transformou o mundo em todos os sentidos”, analisa.

De acordo com o professor, após a Segunda Guerra Mundial (1939- 1945), surgem as condições para o desenvolvimento de uma cultura pop, de uma música eletrificada por guitarras e cantos que remetem a uma música primitiva, modal, de batidas e de letras complexas. “Nasce o rock a partir de rit- mo e do blues, em diálogo com o folk, a cultura popular em sua origem, buscan- do popularizar a música através de um suporte fabricado do vinil”, acentua.

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Política Democrática: ‘Bolsonaro foi deputado de inexpressiva atuação em quase 30 anos de mandato’, diz Marina Silva

Em artigo publicado na revista Política Democrática online de dezembro, a ex-senadora avalia como a falência do modelo político brasileiro provocou a eleição do candidato do PSL à Presidência da República

Por Cleomar Alemeida

A falência do modelo político brasileiro, com as principais forças políticas representadas pelo PT e PSDB, levou à eleição de Jair Bolsonaro à Presidência da República, na avaliação da ex-senadora Marina Silva (Rede). Em artigo publicado na revista Política Democrática online de dezembro, ela ressalta que, até se eleger para o maior posto do Executivo brasileiro, Bolsonaro foi um “deputado de inexpressiva atuação em quase 30 anos de mandato.

» Acesse aqui a revista Política Democrática online de dezembro

“Foi justamente a falência do modelo político brasileiro, a meu ver, que possibilitou a eleição de Jair Bolsonaro, deputado do chamado ‘baixo clero’ de inexpressiva atuação em quase 30 anos de mandatos”, destacou Marina Silva, que também é ambientalista. “Essa falência não se deu de um dia para outro. Desde a redemocratização, as principais forças políticas representadas pelo PT e pelo PSDB, dois partidos da social-democracia que foram incapazes de produzir um alinhamento político mínimo que fosse”, afirmou.

No artigo, Marina Silva acentua que PT e PSDB “travaram uma guerra sem tréguas, em que a conquista e a manutenção do poder se sobrepunham aos interesses mais legítimos da sociedade brasileira, e se aliaram com a direita para governarem”. “O Brasil necessitava que se sentassem à mesa para construírem uma plataforma de governo conjunta, ou uma agenda básica de reformas, ou, no mínimo, um acordo para manter regras num jogo saudável da oposição democrática e civilizada. Ao contrário, protagonizaram ao longo de duas décadas uma polarização política destrutiva que acabou favorecendo a emergência de projetos autoritários que ameaçam a democracia”, disse.

Na avaliação da ex-senadora, o PT, que ela chama de “polo vencedor da disputa”, acabou assumindo e representando todo o sistema político. “Fica a ponto de gerar nova polarização: no lugar de PT x PSDB, revelou-se luta de morte PT x Anti-PT. O principal ponto de inflexão na formação de um crescente sentimento antipetista foi a revelação de que o partido, que nasceu para defender os mais pobres e a ética na gestão pública, após 14 anos no poder, era o protagonista dos maiores escândalos de corrupção da história do Brasil, como o Mensalão e o Petrolão, além de diversos outros”, ponderou.

Em outro trecho, Marina Silva observou que “as forças conservadoras que deram sustentação à candidatura de Bolsonaro são numerosas e enraizadas na história e na sociedade brasileira”. “Destacam-se aqui parcelas expressivas dos militares, agronegócio, elite financeira e empresarial e segmentos religiosos. Vale atentar para que diz o professor Eduardo Viola, da UnB, sobre a base religiosa que aderiu fortemente à candidatura de Bolsonaro: para além das questões ligadas a valores e costumes morais, este segmento tem maior aderência a uma visão econômica mais liberal, na qual a lógica do esforço pessoal e do mérito individual é mais bem-aceita que a ênfase na dependência da ação do Estado e da caridade alheia”.

No artigo, a ex-senadora avaliou o uso de rede social pelo presidente eleito. “Ficou internacionalmente conhecido o uso massivo de redes sociais, especialmente do WhatsApp, onde a campanha de Bolsonaro propagava em escala industrial as chamadas fake news contra os demais candidatos. Por sua relevância, essa estratégia, capaz de dar grande vantagem eleitoral, exige uma análise à parte, que, aliás, vem sendo feita em nível internacional, pois está na base da eleição de Trump, no Brexit e outros episódios de relevância mundial”.

 

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