Bolsonaro

Sergio Fausto: Que caminho tomará o próximo governo?

Se no ajuste fiscal o risco é o gradualismo, na segurança pública a ameaça é o açodamento

Se o Brasil quiser ter chance de um lugar ao sol para si e sua gente num ambiente nacional e internacional de desafios cada vez mais complexos e governança cada vez mais difícil, terá de avançar nos próximos quatro anos no enfrentamento de três questões cruciais.

Primeira, um conjunto de reformas que ajuste não apenas as contas públicas, mas também o modo de atuação e organização do Estado, para que o setor público seja financeiramente sustentável e capaz de oferecer serviços de melhor qualidade com maior eficiência. Segunda, a redução dos níveis alarmantes de violência vividos pelo País (mais de 500 mil mortos entre 2006 e 2016, segundo o Atlas da Violência, edição 2018), período em que o número de homicídios se elevou em quase 15%, na esteira do controle crescente do crime organizado sobre territórios, atividades econômicas e populações. Terceira, o restabelecimento de um mínimo de confiança nas instituições da democracia representativa, em particular os partidos e o Legislativo. A propósito, o protagonismo político assumido pelas Forças Armadas pode ser positivo nas circunstâncias atuais, mas não o é no médio e longo prazos, nem para o País nem para elas próprias.

As questões acima estão interligadas. Se a União e os governos estaduais, estes em situação ainda mais dramática, naufragarem sob o peso de despesas com pessoal ativo e inativo e dívidas impagáveis, a batalha contra a violência e o crime organizado estará perdida e a presença do narcotráfico se alastrará, contaminando de modo fatal as próprias instituições do Estado. Nesse ambiente, é difícil imaginar qualquer recuperação da credibilidade das instituições da democracia representativa, pois será crescente o risco à integridade física de quem se dispuser a participar de peito aberto e mãos limpas da vida política. A saudável renovação dos quadros políticos do País depende, entre outros fatores, de que o poder de intimidação e corrupção do crime organizado se reduza ao longo dos próximos anos. Não podemos trocar a “velha política” por coisa pior ainda.

Se não enveredar pela guerra ideológica e pela desconstrução dos muitos avanços que fizemos nos últimos 30 anos em matéria de direitos civis, políticos e sociais, será possível ao Brasil progredir no enfrentamento dessas três questões cruciais no próximo período de quatro anos.

Isso depende do predomínio de uma direita racional no governo e de uma oposição que seja firme na defesa dos avanços dos últimos 30 anos, ao mesmo tempo que comprometida com a correção de problemas acumulados ou não resolvidos ao longo desse período. A sobreposição de baixo crescimento, crise fiscal e deterioração das condições de segurança representa uma ameaça existencial ao Estado, à sociabilidade civilizada e à democracia.

A reforma da Previdência é dramaticamente urgente. Não sabemos se será aprovada uma reforma que mude a perspectiva de evolução das contas públicas, torne crível a manutenção do teto de despesas e, assim, dê sustentação ao ajuste fiscal estrutural, que depende ainda de medidas complementares. Sabemos, porém, que os benefícios de aprovar uma boa reforma da Previdência são enormes.

Se tomar o rumo certo na bifurcação em que se encontra, o País estará em via de completar a normalização macroeconômica iniciada há mais de 20 anos com o Plano Real, da qual nos desviamos a partir de meados da década passada e que hoje temos condições de retomar graças ao esforço da equipe econômica do governo Temer. Com a inflação e o juro básico nos seus níveis mais baixos em muitas décadas, o regime de metas de inflação e câmbio flutuante plenamente recuperado, uma boa reforma da Previdência é passo decisivo para consolidar condições macroeconômicas (no âmbito doméstico, o único que está ao nosso alcance) em favor do crescimento sustentável.

Dado esse passo, maiores avanços também poderão ocorrer na agenda microeconômica. As privatizações e concessões se veriam livres das pressões para cobrir necessidades de financiamento corrente e poderiam voltar-se para os objetivos de longo prazo de aumentar a eficiência e a produtividade da economia. Além disso, reduzida a incerteza sobre a evolução da despesa pública, o caminho estaria pavimentado para a(s) reforma(s) mais ambiciosa(s) do sistema tributário.

Se no ajuste fiscal o risco é o gradualismo, na segurança pública a ameaça é o açodamento. Debelar a ameaça existencial que o crime organizado hoje coloca ao Estado Democrático tomará anos, exigirá coordenação entre Forças Armadas, Polícia Federal e polícias estaduais, entre os três Poderes, entre o Estado e a sociedade civil, entre o Brasil e outros países. Países que articularam uma estratégia de longo prazo, sem confundir combate ao crime organizado com repressão indiscriminada ao consumo de drogas, como a Colômbia, colheram resultados depois de vários anos. Países que partiram para a militarização impensada da segurança pública, como o México, produziram um banho de sangue sem recuo do crime organizado.

Avanços significativos na reforma fiscal e no combate ao crime organizado exigirão do novo governo superar dois déficits iniciais importantes: capacidade de articulação política e interlocução com a sociedade. Em ambos os casos, os métodos empregados com sucesso na campanha eleitoral de Bolsonaro não são os melhores para que seu governo obtenha êxito. Estigmatizar os partidos e os políticos, por mais enfraquecidos que estejam, não levará a bons resultados no Congresso. Persistir na guerra ideológica contra os “vermelhos” e a imprensa tornará inviável o mínimo consenso necessário para o combate eficaz ao crime organizado e à redução da violência na sociedade brasileira. Ameaçar com “facadas” sistemas há muito consolidados não contribuirá para aprimorá-los

A poucos dias de sua posse, ainda não é claro o caminho que seguirá o novo governo.

*Sérgio Fausto é superintendente executivo da Fundação FHC, colaborador do Latin American Program do Baker Institute of Public Policy da Rice University, Sergio Fausto é membro do Gacint-USP


Daniel Aarão Reis: Ninguém solta a mão de ninguém

A melhor atitude é se preparar para a luta. Haverá que lidar com as políticas do novo governo, defender-se delas, lutar contra elas

Diante de um perigo iminente, várias alternativas podem ser imaginadas. A primeira, a mais fácil, é a fuga. O problema é que nem sempre a fuga é possível. A segunda é ignorar o risco, fingir que não existe. Não costuma funcionar. O perigo tem uma existência objetiva, não desaparecerá se for ignorado.

As democracias estão em perigo em todo o mundo. Não suscitam a confiança que já foram capazes de despertar. Nem incentivam a participação consciente, como deveriam fazê-lo.

Não é um fenômeno apenas brasileiro. É perceptível entre nossos vizinhos e mesmo nos Estados Unidos e na Europa, berços históricos do regime democrático. Ressurgem os fantasmas dos instáveis e sombrios anos 1930, quando os corporativismos estatais, o nazifascismo e o socialismo autoritário pareciam imbatíveis.

O mundo mudou muito, sem dúvida. Contudo, a revolução informática e o processo de globalização reintroduziram em larga escala a instabilidade, subvertendo numa velocidade inaudita situações sólidas, culturas consideradas estabelecidas para sempre. Vão para o ralo não apenas bens materiais, mas concepções de vida, modos de se relacionar, afetos, sentimentos. O processo acentuou-se depois da crise iniciada em 2008: os responsáveis pela especulação desenfreada que a provocou ficaram impunes. Como usual, pagaram os trabalhadores e assalariados. O resultado é a cólera das gentes, inquietação e medo, sobretudo entre os que não encontram um lugar ao sol e, não o encontrando, não mais se encontram consigo mesmos, como se estivessem deslizando para fora da sociedade, rumo a lugar nenhum.

Este é o caldo de cultura para a emergência dos “salvadores da pátria”, líderes messiânicos, que se apresentam como capazes de mudar “tudo o que está aí”. Suas propostas têm a força da clareza e da simplicidade, canalizando angústias e ódios.

Os partidos tradicionais, mesmo os reformistas, parecem incapazes de detê-los. Tornaram-se máquinas eleitorais aristocratizadas, privilegiadas, dependentes de financiamentos privados. Perdidas suas bases estáveis e históricas, pulverizaram-se, mais interessados na autorreprodução do que nas propostas de mudanças desejadas pelas maiorias. A cada eleição, aumenta a distância entre representantes e representados. Distendem-se os laços entre a cidadania e o regime representativo. Uma vai deixando de ver no outro sua expressão política organizada. A abstenção, o voto nulo e o voto em branco atestam a tendência.

No Brasil não tem sido diferente. E se tornou difícil encarar as questões em jogo.

Marcos Nobre, em recente artigo, analisou duas atitudes diante da vitória de Jair Bolsonaro. Os “amansadores” pensam que a “fera” será domesticada. Outros acreditam que as instituições serão capazes de “enquadrá-lo”. Um processo de “lulização” estaria em curso. Se Lula virou suco, por que o mesmo não poderia acontecer com Bolsonaro?

A hipótese não é nem um pouco provável, considerando-se o dinamismo adquirido pelas forças conservadoras e a disposição do “salvador da pátria” eleito.

A melhor atitude é se preparar para a luta. Haverá que lidar com as políticas do novo governo, defender-se delas, lutar contra elas. A necessária e urgente renovação da democracia não dependerá das instituições existentes — frágeis — nem dos partidos políticos, que rodam em esferas próprias, magnetizados pelas disputas eleitorais.

A defesa dos valores democráticos, nos próximos anos, estará nas mãos dos cidadãos, que deverão contar consigo mesmos para defender a própria noção de cidadania, essencial a qualquer vida democrática. Sem sinistrose e sem bravatas. Com serenidade e firmeza. A melhor tradução da política não é a conciliação sem princípios. Ao contrário: é a explicitação, regrada, dos conflitos.

A imagem que as lutas vindouras evoca é a das pessoas em passeatas nas ruas, mãos nas mãos, braços nos braços, cruzados e apertados, com medo nas tripas e coragem na alma. Ousadas, determinadas, solidárias.

E nestas lutas ninguém soltará a mão de ninguém.


O Estado de S. Paulo: PT sinaliza com a volta do radicalismo na gestão Bolsonaro

Os petistas imaginam que o governo de Bolsonaro não vai dar certo, e a estratégia é apostar na autodestruição do adversário

Marcelo de Moraes, O Estado de S.Paulo

A decisão de boicotar a posse de Jair Bolsonaro exibe muito mais do que apenas um comportamento de mau perdedor dos petistas. O movimento do PT, feito de forma estudada, deixa claro que o partido fará sempre oposição radical ao futuro governo. Independentemente da proposta que estiver sob a mesa de votação, os petistas sinalizam que a ordem foi dada: se Bolsonaro apoiar um projeto – qualquer projeto – o PT estará do lado oposto. E isso indica que a aprovação de votações difíceis, como a reforma da Previdência, enfrentará feroz oposição quando forem discutidas.

Se estivessem apenas incomodados com a festa do adversário, bastava aos petistas não aparecer em Brasília. Quem notaria ou ligaria para essa ausência numa festa celebrada por rivais? Mas o PT fez questão de divulgar um comunicado oficial avisando que faria o boicote. Ou seja: era importante marcar esta posição. A ideia é rivalizar e polarizar com Bolsonaro. Se o futuro governo não decolar, o PT estará bem posicionado para tentar voltar ao Planalto. Se Bolsonaro for bem, segue o jogo com o PT buscando maior protagonismo no campo da oposição.

O PT tem seus motivos para agir assim. O partido só teve bom desempenho eleitoral no Nordeste, onde elegeu quatro governadores: Rui Costa (BA), Fátima Bezerra (RN), Wellington Dias (PI) e Camilo Santana (CE). Nos maiores centros, fracassou. Pior: viu crescer o desempenho de outras forças de esquerda, como o PSOL, o PSB e, especialmente, o PDT, liderado por Ciro Gomes. Com Lula preso e fora do Planalto, o PT decidiu partir para uma reinvenção. E esse processo passa necessariamente pela ocupação de espaço de principal força de oposição.

Como os petistas imaginam que o governo de Bolsonaro não vai dar certo, a estratégia é apostar na autodestruição política do adversário e ocupar o espaço de principal alternativa de esquerda. Por isso, até uma simples malcriação antipática, como a do boicote à posse, passa a ser uma decisão estratégica. O PT mira na sua reconstrução interna e externa e parte para a adoção de um radicalismo dentro do Congresso contra Bolsonaro. Só assim, terá alguma chance de estruturar novamente uma campanha presidencial competitiva para buscar a retomada do poder perdido.


Merval Pereira: Democratas de fancaria

A recusa do PT a comparecer à posse está acoplada a um movimento político anterior à disputa do segundo turno

O PT mais uma vez dá uma demonstração clara de que é democrático só quando a maioria está a seu favor. Ao anunciar que boicotará a posse do presidente eleito Jair Bolsonaro, repete comportamento antidemocrático que já virou rotina na sua atuação parlamentar.

Recusou participar do governo de união nacional de Itamar Franco, depois de ter liderado a derrubada de Collor; não homologou a Constituição de 1988; não apoiou o Plano Real, chamando-o de estelionato eleitoral; não apoiou a Lei de Responsabilidade Fiscal, e por aí vai, numa posição egoísta que só aceita alianças politicas quando as controla, à base de escambos e corrupção.

A recusa em comparecer à posse está acoplada a um movimento politico anterior à disputa do segundo turno da eleição presidencial. Já àquela altura o partido entrou com uma ação do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) pedindo a impugnação da chapa de Bolsonaro, por abuso de poder econômico.

Mesma atitude que o PSDB tomou contra a eleição de Dilma Rousseff, que o PT tratou como sendo um golpe antidemocrático. Desta vez, fez pior. Tentou impedir que seu adversário disputasse o segundo turno. O processo ainda está em andamento, e o terceiro turno foi aberto mesmo antes de o segundo se realizar, o que é espantoso mesmo para padrões petistas.

A historia da Constituição de 1988 é interessante. Os petistas dizem que a acusação de que não assinaram a nova Carta é mentirosa, e tecnicamente têm razão. Mas a negativa é um truque banal, assinaram porque eram obrigados regimentalmente, já que participaram de sua confecção. Mas quando tiveram a opção de não participar da cerimônia de homologação, assim o fizeram, para demonstrar repúdio ao que classificavam de uma Constituição feita pela direita.

Logo a Constituição-cidadã, vista pela Centrão como inviabilizadora do governo brasileiro, como definiu o então presidente José Sarney. Muitas promessas, poucas obrigações, uma Constituição populista de cunho esquerdista, como criticavam à época os do Centrão.

Agora, mais uma vez, se escoram em uma muleta linguística para justificar o boicote antidemocrático. Dizem que acatam o resultado das eleições, embora alcançado por meios ilegais, e não comparecem à posse para demonstrar que a resistência já começou.

Ora, a democracia pressupõe o revezamento de poder, e não aceitá-lo corresponde a colocar em questão essa possibilidade, transformá-la não em uma opção legítima da maioria do eleitorado, mas consequência de abusos ilegais que a desacreditam.

Além do mais, se o processo no TSE está em andamento, há demonstração clara de que consideram que a eleição de Bolsonaro foi fraudada, e buscam na Justiça Eleitoral a reparação do dano. Alegar que o boicote é contra o pensamento retrógrado de Bolsonaro, suas declarações misóginas e preconceituosas, é tentar uma justificativa que mascare a decisão antidemocrática.

Comparecessem à cerimonia com cartazes de protesto, marcassem suas posições - o PT e o PSOL, que também aderiu - na luta politica, não na negação da alternância no poder. Instalado o novo governo, a oposição terá todas as condições de tentar até mesmo obstruir as votações que interessem ao governo, se mantiverem a postura de ser contra tudo o que o governo que o derrotou propõe, e não por convicção.

Lembro bem quando o deputado João Paulo Cunha virou presidente da Câmara, no início do primeiro governo Lula, e coordenou a aprovação da continuidade da reforma da Previdência iniciada no governo Fernando Henrique, contra o que o PT sempre lutou. Perguntei qual a razão da mudança, e ele foi curto e direto: “Luta política”.

Quando o presidente do PSDB e candidato derrotado na eleição de 2014, senador Aécio Neves, entrou com uma ação no TSE para impugnar a chapa vencedora por abuso de poder econômico, o PT gritou que era golpe. Ainda mais depois que o próprio Aécio disse que tomou essa atitude “só para encher o saco”.

Sem explicitar, é o que o PT está fazendo agora. Se era golpe antes, é golpe agora também. Em circunstâncias muito piores, pois Fernando Haddad foi derrotado por larga margem de votos, enquanto o PSDB perdeu por diferença ínfima. E a ação do PT foi feita ainda no primeiro turno, o que introduziu na disputa do segundo um elemento desestabilizador.


João Domingos: Boicote sem sentido

A ausência do PT na posse de Jair Bolsonaro vai significar alguma coisa?

O boicote anunciado pelo PT à posse de Jair Bolsonaro na Presidência da República é uma dessas decisões que têm tudo para se voltar contra seu autor. Mesmo reconhecendo o resultado da eleição deste ano, diz o PT que o processo eleitoral foi marcado pela falta de lisura do processo desde o impeachment de Dilma Rousseff. Depois, pela proibição legal da candidatura de Lula e pela “manipulação criminosa das redes sociais para difundir mentiras contra o candidato Fernando Haddad”.

Em relação ao impeachment, o PT pode falar o que quiser. Pode chamar de golpistas os partidos que votaram a favor do processo, ora xingá-los, ora a eles se aliar, mas o afastamento de Dilma se deu dentro da normalidade democrática, com rito estabelecido pelo Supremo Tribunal Federal e com o julgamento presidido por um ministro aliado, Ricardo Lewandowski. Tão aliado, que ajudou o então presidente do Senado, Renan Calheiros (MDB-AL), a fatiar a sentença, dando a Dilma direitos políticos, mesmo tirando-a do poder. Sobre Lula, ele está enquadrado na Lei da Ficha Limpa, pois condenado por órgão colegiado. Quanto às fake news, elas avançaram sobre o eleitor de lado a lado. Não foram uma exclusividade do vencedor.

Nesse sentido, o boicote à posse de Bolsonaro tende a se tornar um gesto vazio. Como foram vazios e marcados pelos erros políticos alguns gestos do PT ao longo da história. Por exemplo: o partido decidiu boicotar o Colégio Eleitoral que, em 1985, elegeu Tancredo Neves presidente da República. Foi essa eleição que permitiu a consolidação da abertura democrática e a saída dos militares do poder, além da convocação de uma Assembleia Constituinte.

Três anos depois, o PT optou por votar contra a Constituição de 1988. Então líder do PT na Constituinte, Lula justificou, num discurso de 22 de setembro de 1988, que seu partido votaria contra o texto porque, “mesmo havendo avanços na Constituinte, a essência do poder, a essência da propriedade privada, a essência do poder dos militares continua intacta nesta Constituinte”. Mas, pelo sim, pelo não, Lula anunciou no mesmo discurso que, por decisão do Diretório Nacional do PT, os constituintes assinariam a Constituição. Hoje, todo mundo é testemunha de que os petistas fazem um grande exercício para esquecer o gesto do passado. (O partido votou também contra o Plano Real e contra a Lei de Responsabilidade Fiscal, reconhecidas iniciativas do bem.)

Num discurso em comemoração aos 20 anos da Constituição de 1988, em 5 de outubro de 2008, Lula disse aos participantes da cerimônia que se arrependia de não ter votado a favor da Carta. E contou como foi a luta para assinar o texto da Constituição: “Uma parte da bancada, radicalizada, achava que não deveria assinar e eu disse: ‘Não tem sentido. A gente participou dois anos aqui, ganhamos salário, ganhamos assistentes para nos ajudar, como é que pode um filho nascer e a gente não registrar? Vamos assinar’.” Na mesma fala, Lula disse que, na Presidência da República, compreendeu, como ninguém, que a Constituição, com todos os defeitos que tem, é um garantidor da democracia. “Esta é a verdade nua e crua.”

A ausência do PT na posse de Jair Bolsonaro vai significar alguma coisa? Nada. Bolsonaro não contou com o voto de petistas para se eleger. Não contará com o voto dos petistas para aprovar seus projetos. Mas usará o PT, mais uma vez, para falar com seu eleitor. Se na eleição ele se disse o anti-PT, e foi vitorioso, a partir da posse poderá dizer que o partido se negou a se fazer presente na cerimônia que coroou a festa da democracia. Só quem vai perder é o PT.


O Globo: Bolsonaro planeja decreto para ampliar posse de arma no Brasil

Pelo Twitter, ele disse que direito de ter arma em casa seria garantido a cidadãos sem antecedentes criminais

RIO — O presidente eleito, Jair Bolsonaro , planeja editar um decreto para facilitar a posse de armas no país. No Twitter, Bolsonaro disse que pretende garantir a posse de armas a quem não possui antecedentes criminais. A equipe de transição já está preparando o decreto, que está praticamente pronto e poderá ser editado a qualquer momento, a depender da decisão de Bolsonaro, segundo um dos responsáveis pela elaboração do texto.

"Por decreto pretendemos garantir a POSSE de arma de fogo para o cidadão sem antecedentes criminais, bem como tornar seu registo definitivo", escreveu o presidente na rede social.

Segundo o auxiliar, a ideia do decreto é "flexibilizar (as regras) no que for possível dentro da lei" para ampliar os casos em que são permitidos a posse de arma. A explicação é que a generalização do posse de armas para quem não tem pendências legais é uma promessa de campanha. Portanto, não haveria surpresas no anúncio do presidente eleito. A medida atenderia a um pedido de parte da população que se sentiria mais segura com a possibilidade de ter uma arma.

- Se é uma promessa de campanha, ele tem que cumprir - disse um dos auxiliares de Bolsonaro.

A posse é diferente do porte de armas. De acordo com a lei, a posse é a autorização de manter a arma apenas no interior da casa ou no local de trabalho do proprietário, desde que seja o responsável legal pelo estabelecimento. O porte, por sua vez, pressupõe que a arma de fogo esteja fora da residência ou local de trabalho, e é proibido, exceto para membros das Forças Armadas, polícias, guardas, agentes penitenciários e empresas de segurança privada, entre outros.

O Estatuto do Desarmamento prevê requisitos para que o civil adquira arma de fogo — como não ter antecedentes criminais, não responder a inquérito policial ou processo criminal, comprovar capacidade técnica e aptidão psicológica. Determina também que é preciso "declarar a efetiva necessidade". O mesmo requisito consta do decreto, baixado em 2004, que regulamenta o estatuto.

Hoje, a Polícia Federal faz uma análise para verificar se o interessado tem de fato necessidade de ter a arma. Os defensores da extinção do Estatuto do Desarmamento sempre reclamaram de uma postura supostamente enviesada da PF de negar os pedidos alegando que a "efetiva necessidade" não estaria comprovada.

A ideia é retirar esse poder de análise da PF, deixando claro que basta o interessado atender aos critérios objetivos de documentação para ter direito à posse de arma.

Não será a primeira vez que regras de controle de arma de fogo são modificadas por decreto presidencial. O presidente Michel Temer fez uma série de mudanças, na base de decretos e portarias, na regulamentação do Estatuto do Desarmamento . Ele ampliou de três para cinco anos o prazo de validade da posse de arma de fogo. Por meio do decreto, a medida não precisa ser discutida pelo Congresso e começa a valer após a publicação no Diário Oficial.

Agora, Bolsonaro promete conceder registro definitivo. A medida não foi detalhada pelo futuro presidente. Mas pode significar que, uma vez obtida a posse de arma, não será mais necessário apresentar periodicamente as comprovações exigidas, como de habilidade técnica, aptidão psicológica e antecedentes criminais.


Demétrio Magnoli: Inventando Fergus Falls

Relotius escreveu, com maestria, o que seu público queria ler

Claas Relotius, 33, caiu do céu ao inferno. O jornalista alemão, jovem estrela da prestigiada revista Der Spiegel, premiado na Europa e nos EUA por reportagens pungentes, foi desmascarado por um colegacomo um sistemático fraudador.

Numa série de artigos demolidores, a publicação expôs meticulosamente suas inúmeras invenções e prometeu investigar os textos sobre os quais ainda pairam dúvidas.

O anjo caído criou personagens, cenários e citações, preenchendo realidades áridas ou banais com o material vibrante da ficção. Mas —e isso a revista não entendeu e não disse— o sucesso do trapaceiro derivou do recurso implacável à caricatura: Relotius escreveu, com maestria, o que seu público queria ler.

A típica fabricação de Relotius emerge numa reportagem sobre Fergus Falls, Minnesota, publicada em março de 2017.

A ideia era investigar uma comunidade do Meio Oeste dos EUA que votou, por ampla maioria, em Donald Trump. O jornalista alugou um apartamento na pequena cidade e saiu em busca da história.

No início, nada encontrou de especial, como atestam suas desoladas mensagens a editores. Mas, no fim, encontrou o caminho habitual —e retornou triunfante com mais um texto perfeito. A Fergus Falls estampada na Der Spiegel é a imagem exata que um europeu (ou americano, ou brasileiro) superficialmente culto, com inclinações de esquerda, faria do “país de Trump”.

A falsificação começa pelas estatísticas. Segundo o repórter, a cidade deu 70,4% dos votos a Trump, depois de escolher candidatos democratas ao longo de quatro décadas.

De fato, Fergus Falls elegeu o republicano Mitt Romney em 2012 e, sem surpresa, deu 62,6% dos votos a Trump. A ficção corre solta. No limite do perímetro urbano, ao lado da placa oficial de boas-vindas, numa segunda placa “com metade da altura”, feita de “madeira espessa cravada no solo congelado”, estariam gravadas as palavras “Mexicanos, fiquem fora”.

A Fergus Falls imaginada por Relotius situa-se em meio a uma floresta escura e, das janelas de um bar na área central, avistam-se as “seis chaminés” da termelétrica a carvão.

Na cidade inventada, o único cinema continuava a exibir “Sniper Americano” dois anos após o lançamento, e o prefeito, que jamais teve uma namorada, sempre porta uma pistola Beretta de 9 mm.

A escola local seria protegida por três portas de vidro blindado e um scanner de armas. Numa tarefa sobre a identidade americana, uma classe desenhou retratos de Obama, duas preferiram John Rockefeller e todas as outras, Trump.

“Eles não fizeram um único retrato de uma mulher”. Nenhuma dessas informações é verídica, mas cada uma delas ajuda a traçar os contornos verossímeis de uma distopia.

Na política, a caricatura nasce da crença essencialista de que as pessoas expressam, pelo voto, convicções ideológicas arraigadas. Os militantes políticos tendem a adotá-la, pois reflete suas próprias motivações e, além disso, propicia descrições dicotômicas, primitivas, sobre batalhas santas do bem contra o mal.

Graças à incansável atividade dos militantes virtuais, as caricaturas ganharam tração excepcional no mundo das redes sociais. Mas, na vida real, a imensa maioria das pessoas faz escolhas puramente situacionais, optando segundo percepções mutáveis dos seus interesses e desejos.

A Fergus Falls sombria de Relotius não existe, assim como inexistem a célebre “classe média fascista, ignorante e violenta” de Marilena Chaui ou a “São Paulo conservadora” invocada ritualmente pelo PT nas horas de derrotas eleitorais.

A massa de eleitores de Trump é constituída por cidadãos normais arrastados pela correnteza de uma longa recessão. O mesmo vale para a massa de eleitores de Bolsonaro, que não devem ser confundidos com seus arautos extremistas. Deseje um feliz Ano Novo para o seu familiar, amigo ou vizinho. Ele não é uma caricatura.

* Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.


Murillo de Aragão: Despertar da cidadania no condomínio Brasil

Nas urnas, a luta contra o privilégio e a favor da subordinação do Estado ao interesse da sociedade

Desde os tempos coloniais, o governo é mais importante que a sociedade. A vida brasileira gira em torno do Estado. E quem se relaciona bem com ele, seja vendendo produtos e serviços ou trabalhando para ele com uma incontável série de benefícios, está feito. Criamos duas castas no Brasil: a dos que se servem do Estado e a dos que são escravizados por ele.

A mão grande dos exploradores dos cofres públicos atingiu todos os ramos da administração pública, criando um Estado gastão, ladrão, ineficiente e preguiçoso. Ao cidadão tem restado ruminar as narrativas politicamente corretas que impunham a lógica de que o Estado sabe o que faz pela sociedade.

A eleição de Jair Bolsonaro (PSL) como presidente do Brasil, cujo mandato se inicia agora, representa uma espécie de despertar da cidadania. Ainda que parte da imprensa, das esquerdas derrotadas, da academia e do mundo politicamente correto diga que não. Pois a nova lógica demole o projeto de poder que transferia a subserviência das oligarquias econômicas para as oligarquias de esquerda.

No entanto, sem entrar no mérito, a escolha em si representou uma libertação em muitos sentidos. Aliás, não é a primeira vez que tal fenômeno acontece, uma certa independência da população em relação ao pensamento das elites. Em 2005, quando o “não” ao desarmamento foi derrotado em referendo, o universo (pretensamente) politicamente correto também foi.

Em 2013, no auge das manifestações em São Paulo, que se espalharam pelo País, declarei no programa GloboNews Painel, a William Waack: “O mundo político está completamente atônito porque, evidentemente, é um fator novo e que tem profundas repercussões políticas. Pode até ser considerado um despertar da cidadania”. Pois ali prosseguia o lento despertar, que continuou este ano com o resultado das eleições para a Presidência, em outubro.

No momento, o despertar da cidadania significa que, em 2018, parte expressiva do eleitorado rejeitou a tutela da grande mídia, do universo “cultural-Rouanet” e da academia pública. E também a tutela do clientelismo escravizador de bolsas variadas. Da bolsa BNDES, com seus 13 salários e até quatro salários de bônus para seus funcionários, à finada TJLP, que beneficiava os campeões nacionais.

A cidadania pode errar em sua escolha. Mas tem o livre-arbítrio para tal. Em especial, quando as elites acadêmicas, midiáticas e culturais buscam incutir um padrão ideológico que deveria ser hegemônico, baseado na crença de que o modelo do Estado forte é o único que pode propor a redenção do povo.

Fica claro que, depois de quase 40 anos orbitando em torno de fórmulas social-democráticas e socialistas tupiniquins, não fomos a lugar nenhum de forma consistente. O roubo e o privilégio aumentaram. Os gastos com salários mais do que dobraram. Bilhões de reais foram surrupiados em corrupção, corporativismo, clientelismo e fisiologismo. Auxílios-moradia, planos odontológicos e pagamento de faculdade para filhos de juízes são a ponta de um iceberg profundo que envolveu crimes e privilégios ilegítimos, mas legalizados por leis anticidadania.

Todo o discurso do bom-mocismo dos últimos tempos serviu para encobrir uma brutal exploração dos cofres públicos em favor de políticos, empresários corruptores e corporações de funcionários públicos. A eleição de Jair Bolsonaro significou que a cidadania não quer o sistema que vigia até agora. Deseja outra relação entre o governo e a sociedade. Enfim, representa um despertar cujas repercussões não são apenas nacionais.

O Brasil da era Lula-Dilma (PT) foi um anteparo para os movimentos de esquerda não democráticos em todo o mundo. As duas gestões mantiveram relações espúrias com países e movimentos, alguns deles terroristas, cujo objetivo era implantar ditaduras sob os mais variados pretextos. Agora, consternados, devem assistir ao desmonte do aparelhamento estatal promovido diante da nossa imensa complacência. Ainda agora, após exaustivos debates, o PT decidiu que não faria nenhuma autocrítica sobre a sucessão de erros, fracassos e escândalos.

A cidadania não quer mais relações com quem não respeita, de verdade, os direitos humanos. A esquerda petista tolera as violências contra os direitos humanos em Cuba, na Venezuela e na Nicarágua, mas trata de desmoralizar e desinstitucionalizar a polícia no Brasil. Tampouco a cidadania quer aposentadorias diferenciadas ou privilégios, tais como os 16 salários pagos aos funcionários do BNDES, auxílios-moradia sem justificação e educação paga para filhos de juízes. Deseja uma segurança pública forte e uma política feita em bases de honestidade.

A cidadania demanda que o governo Bolsonaro abra a caixa de Pandora dos privilégios no Brasil. De forma ampla e transparente. E, passo seguinte, comece a cortá-los. Doa a quem doer. Não será uma batalha fácil. Não há aqui, no meu texto, uma intenção de oposição ao serviço público, que é mais do que necessário para a cidadania. Não podemos, contudo, viver num condomínio em que os moradores trabalham para os funcionários, e não o contrário.

Em junho, em artigo que publiquei na IstoÉ, afirmei que as eleições de 2018 não resolveriam os nossos problemas. Não deverão resolver, sobretudo, porque são questões incrustadas em nossa cultura há séculos. Ao longo do tempo mudou a narrativa, mas não o propósito de tutelar uma cidadania carente de educação. No entanto, a tomada de decisão do eleitorado apontou uma nova direção: a luta contra o privilégio e a favor da subordinação do Estado aos interesses da sociedade. Essa é a mensagem que veio das urnas e que Jair Bolsonaro deve receber como sus principal missão.

*Murillo de Aragão é escritor, cientista político, doutor em sociologia (UNB) e professor da Columbia University (Nova York).


Ricardo Noblat: Bolsonaro em dívida com Temer

Para não começar do zero

Por tê-la usado como principal bandeira de sua campanha à presidência da República, seria de imaginar que o presidente eleito Jair Bolsonaro dispusesse de ideias bem concebidas para enfrentar a violência que matou quase 63 mil brasileiros em 2016, quando o país pela primeira vez na história superou o patamar de 30 homicídios por cada 100 mil habitantes. Ou Bolsonaro ou pelo menos quem ele escalasse para cuidar da segurança pública no seu governo.

Não parece ter sido o caso. Não foi o caso. A princípio, Bolsonaro e o ex-juiz Sérgio Moro, futuro ministro da Justiça e da Segurança Pública, se limitarão a adotar o pacote de segurança pública lançado, ontem, pelo presidente Michel Temer. Foi o que admitiu o general Guilherme Teóphilo de Oliveira, braço direito de Moro: “É. Não podemos pegar agora e querer começar tudo do zero, não. A gente tem que aproveitar isso aí”. Do zero? E nada havia sido pensado?

“Agora é tentar dar continuidade e fazer os aperfeiçoamentos que nós achemos necessários”, explicou o general. O “Plano Nacional de Segurança Pública”, legado por Temer a Bolsonaro e Moro, é o quinto a ser lançado desde 2000 quando Fernando Henrique Cardoso ainda presidia o país. O desafio de Bolsonaro é tirar do papel mais do que o pouco que dele saiu até aqui. O combate à violência e a retomada do crescimento econômico definirão a sorte do próximo governo.

Lição a pais de garotos

Sem privilégios

A caminho do Brasil para assistir à posse do presidente eleito Jair Bolsonaro, o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, traz com ele a mulher, Sara, e também Yair, seu filho de 23 anos, estudante da Universidade Habraica de Jerusalém.

Antes de embarcar, Benjamin divulgou uma nota onde afirma que todas as despesas do filho durante a viagem, inclusive a passagem, serão pagas pela família. As despesas de Sara correrão por conta do tesouro de Israel como manda a lei.

Filho de chefe de Estado, por lá, mas não só em Israel, não pode dar-se ao luxo de viajar a custa do contribuinte. De resto, o clã Netanyahu já enfrenta uma série de problemas para ter que arranjar mais um.

Sara responde a processo por uso indevido de fundos do Estado para pagar por refeições. Benjamim, por ter embolsado cerca de 1,018 milhão de reais em presentes de luxo que recebeu, mas não declarou.


César Felício: Scripta manent

Presidente implantou lógica parlamentarista

Não há precedentes na história democrática brasileira para as vitórias que Michel Temer conseguiu no Congresso durante sua presidência. O presidente que se vai na próxima semana fez aprovar em primeiro turno na Câmara uma mudança constitucional que engessa o gasto público por 20 anos, na véspera de um feriado, em 10 de outubro de 2016, o que não é pouco. Seis meses depois, às portas de nada menos que o Dia do Trabalho, conseguiu da Câmara a chancela para a reforma que demoliu a CLT.

Mas isso não foi tudo. A hecatombe desencadeada por Joesley Batista, que explodiu na tarde de 17 de maio de 2017, apenas desviou o foco presidencial, mas manteve o padrão de eficácia do presidente no Congresso. Temer passou a trabalhar exclusivamente para a autopreservação e salvou-se duas vezes. No dia 2 de agosto, derrubou a primeira denúncia formulada pelo então procurador geral da República, Rodrigo Janot. Em 25 de outubro, foi a vez de a segunda denúncia cair.

Foram quatro vitórias emblemáticas de Temer no plenário da Câmara, algo sugestivo para um presidente nascido do Congresso e abençoado pelo Supremo, entre abril e maio de 2016. Época em que a Câmara aprovou o afastamento de Dilma Rousseff em um domingo, com direito a espocar de rojões de papel picado em plena votação, sob o pulso firme de Eduardo Cunha. O STF só entendeu que o deputado do MDB não podia presidir uma casa do Legislativo poucos dias depois de completado o serviço em relação ao impeachment.

O rio desaguou no mar porque correu no sentido certo. O vice-presidente nomeou um ministério integralmente formado por parlamentares. Implantou uma lógica parlamentarista no país. Não houve mulher ou negro na primeira equipe ministerial formada porque a lógica do governo Temer não era a de pactuação com o eleitorado, mas sim com o Congresso. Sarney, Fernando Henrique e Lula lotearam a administração. Temer a feudalizou.

Sua administração tinha em Henrique Meirelles, ministro da Fazenda, uma âncora, que reverteu as expectativas negativas do mercado em relação ao déficit público galopante, mas seus motores foram múltiplos na área política. Na linha de frente, havia quatro pontas de lança: Geddel Vieira Lima, Moreira Franco, Eliseu Padilha e Romero Jucá.

Em uma semana Jucá estava fora, com a divulgação do célebre diálogo com Sérgio Machado sobre a necessidade de um grande acordo nacional.

Era um produto derivado da à época chamada "megadelação" da Odebrecht, que vitimaria também Geddel e o então ministro do Turismo, Henrique Eduardo Alves. A segunda onda de denúncias, movida por Joesley, trouxe o bombardeio para o Palácio do Jaburu.

Foi nesta disjuntiva, entre a força extrema no Congresso e a sombra das suspeitas de corrupção, que oscilou Temer em seus dois anos de estadia na Presidência. Muito se escreverá sobre a sobrevivência de Temer no poder depois do 17 de maio. Um dos fatores, sem dúvida, foi o fato de os áudios de Joesley não comprometerem apenas o presidente. O mais discreto dos operadores de Temer, Aécio Neves, também foi atingido.

Na luta para garantir o próprio pescoço, Aécio travou o desembarque do PSDB do governo. Para um Planalto acostumado a ceder um Refis ou uma anistia do Funrural a cada votação fundamental, a aliança com Aécio saiu barato. Qualquer um que tenha ouvido os áudios do senador com o empresário se lembra do exaspero do tucano com a incapacidade do governo federal em barrar o ritmo das investigações. Aécio redobrou a aposta a favor de Temer porque a alternativa era pior.

O tucano temia o que poderia sobrevir de uma queda do presidente em maio de 2017. A falta de um roteiro de saída para o governo Temer causava receio a toda a elite em Brasília, mas só o PSDB vivia uma guerra intramuros. Um processo sucessório em eleição indireta, da qual os tucanos seriam protagonistas, seria fatal para Aécio. Não é possível desvincular a trajetória de Temer da do senador mineiro.

Muito se falou até o começo deste ano de uma candidatura à reeleição de Temer. É difícil pensar que o emedebista e seus acólitos realmente tenham considerado a sério a ideia. Mesmo sem o caso Joesley, Temer nunca teve aprovação a seu governo superior a 14%.

O presidente transitou nas pesquisas de intenção de voto na faixa inferior a 5%, o que condiz com o perfil de sua carreira. Temer diversas vezes se colocou em São Paulo como pré-candidato a algum cargo majoritário - prefeito, governador ou senador - sempre com o mesmo propósito: mudar de patamar na negociação das alianças.

O que de fato parece ter sido a intenção de Temer foi a de influir na escolha do candidato do PSDB à Presidência. O nome preferido de Temer, está claro, era o de João Doria, a partir do momento que este se elegeu prefeito de São Paulo, em 2016. A alternativa Doria à Presidência começou a se apagar em meados de outubro do ano passado. Por volta desta época Temer inflou o balão de ensaio do 'semipresidencialismo', que poderia permitir ao MDB manter-se no poder mesmo fora do jogo de alianças nacionais. A ideia de Temer era obter aval do Supremo para a possibilidade de uma mudança no sistema de governo sem necessidade de plebiscito. A conjura foi abortada assim que ganhou espaço na imprensa.

Também foi sepultado pela mesma época o último ensaio da reforma da Previdência. Convenientemente, a reforma saiu de cena diante de uma situação de fato, a decretação da intervenção federal no Rio de Janeiro. Em fevereiro deste ano não havia propriamente uma sequência de calamidades na área que justificava a medida extrema, ou pelo menos nada que fosse mais sério do que o que se passava no Estado em novembro e muito menos de o que aconteceria em março, com o assassinato da vereadora Marielle Franco.

Há os que acreditam que a reforma poderia ter sido aprovada se Temer não tivesse que desviar seu foco em função do áudio de Joesley. É uma crença que o próprio presidente ajudou a propagar, mas a história contrafactual é complicada. A negociação com o Congresso só teve início no segundo trimestre de 2017. O texto base passou na Comissão Especial no dia 3 de maio, duas semanas antes de Joesley. Em momento algum a contabilidade de votos que o governo fazia indicou atingir os 308 votos necessários para a aprovação na Câmara. É uma incógnita o que aconteceria se o rumo fosse outro. O fato é que Temer desistiu da votação. Como ele consignou a Dilma, as palavras voam e vale o escrito.


Valor: Governo fará 'desmanche' do Estado, diz Mourão

Por Claudia Safatle, Carla Araújo e Andrea Jubé, do Valor Econômico

Prestes a assumir a vice-presidência do país, o general Hamilton Mourão defende que o governo de Jair Bolsonaro envie ao Congresso uma proposta de emenda constitucional para desvincular o Orçamento da União. "A Constituição engessa o país", disse, em entrevista ao Valor. Mourão afirmou que governo não começará "na base de impactos e pacotes", mas que todos os ministros deverão no dia 14 de janeiro, data marcada para acontecer a primeira reunião ministerial, apresentar metas e objetivos para "desregulamentar" e "desburocratizar" suas áreas.

O general defende que o texto da reforma da Previdência enviado pelo governo Michel Temer seja aproveitado e diz que os militares também estão dispostos a dar a sua contribuição com mudanças. O vice-presidente sugeriu ainda que Bolsonaro dê explicações da situação das contas públicas aos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) que, a aprovarem um aumento de 16,38% nos vencimentos, mostram" desconhecer a realidade".

Mourão defende ainda que, com as reformas aprovadas, será possível conversar com os investidores sobre o alongamento do prazo dívida mobiliária interna. O vice-presidente eleito se negou a comentar a situação do ex-motorista de Flavio Bolsonaro, Fabrício Queiroz, que se apresentou como comerciante de carros para justificar a movimentação milionária em sua conta corrente: "Isso é um assunto do Ministério Público do Rio de Janeiro", resumiu. A seguir os principais trechos da entrevista:

Valor: Como estão distribuindo as missões no início do governo? A economia dará respostas nos primeiros dias.

Hamilton Mourão: A economia é o carro-chefe para arrumar essa situação que o país está enfrentando. Nós tivemos uma reunião preliminar na semana passada e foi dada a orientação que no dia 14 de janeiro, que vai ser a primeira reunião ministerial para valer, todos os ministros terão que apresentar o seu planejamento e as suas metas para os primeiros 100 dias, para serem aprovadas pelo presidente. Nessa reunião preliminar, alguns ministros que já dispunham de algum conhecimento anterior apresentaram alguma visão mais objetiva do que eles têm pela frente, outros ainda estão tomando pé da situação.

Valor: O ministério da Economia está entre esses que estão mais avançados?

Mourão: Na economia nós temos uma noção muito clara, isso é uma visão do conjunto, que as reformas são muito importantes. Se a gente não conseguir levar adiante tanto a reforma da previdência como a tributária nós vamos ter muita dificuldade.

Valor: Os senhores irão aproveitar o texto atual da reforma da previdência que já está na Câmara?

Mourão: Eu acho que vai ter que ser aproveitada, até pelo problema de prazo. Se a gente for voltar para a estaca zero não vamos conseguir produzir nada no ano que vem. Poderia ser feito um adendo aqui outro ali dentro da visão que se tem. Mas o que está sendo trabalhado, eu não tenho dado concreto disso, vai ser colocado só nessa reunião de janeiro. Mas temos que usar o que está lá e colocar uma coisa a mais, que isso é permitido pelo regulamento [sic] interno do Congresso, para que a gente consiga no primeiro semestre tentar passar isso aí.

Valor: Antes dessa reunião de 14 de janeiro tem alguma coisa que já pode ser anunciada?

Mourão: Nós não vamos começar na base de impactos e pacotes. Eu acho que gente tem que ser mais objetivo e não fazer coisas espalhafatosas que vão resultar em muito pouco resultado depois.

Valor: Mas tem coisas também que podem dar uma sequência, por exemplo, abertura comercial, não?

Mourão: Abertura comercial vamos ter que fazer um trabalho que tem que estar em fases, porque a nossa indústria não suporta um choque de abertura da noite para o dia. Nós vamos ter que fazer um faseamento. Numa reunião que eu tive com o pessoal da indústria eu usei um termo que era do presidente (Ernesto) Geisel (1974-1979) que dizia que era "lenta, gradual e segura" e acho que a abertura comercial tem que ser dessa forma, porque nós não vamos resistir a um choque.

Valor: E sobre a intromissão do estado na vida do cidadão?

Mourão: Todos receberam orientações sobre desregulação. Todos os ministros receberam orientação e têm que apresentar trabalhos e metas neste sentido, de você soltar um pouco, liberar as pessoas para que possam empreender com mais segurança.

Valor: Antigamente, se dizia que era impossível empreender com os juros altos, hoje os juros não são tão pesados, mas a carga tributária...

Mourão: A nossas carga tributária está aí na faixa de 35% a 37% do PIB. O Estado leva 45% do PIB e não devolve. Se devolvesse, se tivéssemos hospitais de primeira qualidade, escolas maravilhosas, estradas fantásticas, estava todo mundo bem, mas não temos. É só para sustentar uma máquina pesada em termos de pessoal e pesada em termos de estrutura.

"O acúmulo de recursos nas mãos do governo cria espaço para a política do toma-lá-dá-cá, para a corrupção"

Valor: Além da reforma da previdência e tributária, tem a reforma do estado, dá para ser feita?

Mourão: É um troço difícil, por que qual é a margem de manobra que existe? São os cargos em comissão, que dentro do governo federal tem um número cabalístico ai que serão em torno de 23 mil, mas se somar em toda a estrutura da federação chegaria a 120 mil. Incluindo função gratificada, cargo em comissão, estatal, isso aí você tirando os concursados. De todos os entes somados, os três níveis. É um exército.

Valor: Dá pra reduzir para quanto?

Mourão: Não para chegar e dizer: 'vou reduzir em 50%'. Cada um vai ter que avaliar dentro da sua estrutura qual é quantidade que ele pode manter, tem que ser um processo de estrangulamento e nós temos o problema do próprio funcionalismo público que a gente não consegue reduzir, porque isso mexe com as igrejinhas. Lá em São Paulo foi aprovado o novo regime de previdência do funcionalismo e já está colocada greve.

Valor: Como convencer os parlamentares sobre a necessidade da reforma da Previdência?

Mourão: Temos que fazer uma campanha de esclarecimento, tanto no Congresso como da população. O homem comum, o cidadão que não estuda muito, tem ideias preconcebidas do papel do estado na vida futura dele. A gente tem que explicar isso, porque se não ocorrer (a reforma) ninguém vai ter futuro. Mas se ela for aprovada vai trazer mais confiança para o país dos investidores.

Valor: Vocês querem romper com o fisiologismo, o Congresso vai corresponder?

Mourão: Vai ser um governo de persuasão. A gente tem que mostrar pra eles a responsabilidade que eles têm. Não querendo jogar a população contra, mas é tentar ser mais coerente. Tem muito parlamentar ali que não entende. Você tem ali - como em qualquer grupo social - tem 30% que são realmente esclarecidos, tem 40% que é a 'meiuca' que vai pra onde sopra o vento, e mais 30% que não sabe nem onde é a "curva do A".

Valor: Isso é atribuição do presidente?

Mourão: Acho que do presidente, do coordenador político, o general Santos Cruz (Secretaria de Governo). Se o presidente me delegar essa tarefa eu vou lá conversar. Vamos expor didaticamente.

Valor: E os filhos dos presidente, dois deles são parlamentares, qual vai ser o papel deles?

Mourão: Os filhos devidamente orientados pelo presidente podem auxiliar e muito. Compete ao presidente conversar e orientar eles. É a primeira vez que temos na história da República presidente com filhos parlamentares. Eles têm uma interação muito grande, são muitos amigos. Estamos num momento de acomodação. Quando começar a nova legislatura em fevereiro eles estarão com as tarefas bem definidas.

Valor: E a previdência dos militares, ela também será feita?

Mourão: O que tem que ficar muito esclarecido é que o militar não tem uma previdência, eles têm um sistema de proteção pelas peculiaridades da profissão. Mas já estão colocadas as questões que entrariam, como o aumento de permanência do serviço ativo. Hoje precisa de 30 anos de serviço e a ideia é passar para 35 no primeiro momento. E também as pensionistas passariam a descontar, seria uma forma a mais de contribuição. A questão dos militares é infraconstitucional.

Valor: O senhor tem recebido investidores estrangeiros?

Mourão: Alguns. Recebi o Bank of America, JP Morgan. O dado que eu tenho é que existem US$ 9 trilhões no mundo sendo negativados porque não estão sendo investidos em atividade de risco, então temos que absorver alguma coisa disso.

Valor: Há anos se fala em fazer reforma tributária, como ela seria?

Mourão: A reforma tributária tem de estar atrelada à reforma do Estado, e essa reforma é a do pacto federativo. Temos que colocar o recurso o mais cedo possível nas mãos do Estado e do município, e não ficar distribuindo migalhas. Caberá ao Governo Central ficar com menos recursos na mão dele. O governador do Estado e o prefeito são aqueles que têm a melhor noção das carências e necessidades.

Valor: Mas para fazer isso tem que ter uma desvinculação geral.

Mourão: Essa é a outra ideia que nós temos que eu considero extremamente pertinente, e isso daria um papel relevante para o Congresso. O Congresso hoje discute - sem querer desmerecer o papel dos congressistas -, assuntos periféricos. Se eles tivessem todo o Orçamento para realmente dizer o que vai para cada um eles teriam uma responsabilidade maior e o Executivo ficaria com a função de executar o Orçamento. O Executivo tem 8%, 9% para mexer.

Valor: Como isso será feito?

Mourão: Essa desvinculação teria que ser feita por emenda constitucional, porque a Constituição diz que tanto vai pra saúde, outro tanto para a educação. A Constituição foi feita na saída do que foi o período militar, quando várias corporações estavam batalhando um naco. Então se colocou coisa demais na Constituição. A Constituição da forma como está engessa o país.

"O militar não tem uma previdência; eles têm um sistema de proteção pelas peculiaridades da profissão"

Valor: O presidente Jair Bolsonaro vai sancionar ou vetar a prorrogação dos incentivos fiscais para empresas que investirem nas áreas da Sudam, Sudene e Sudeco, diante de possível rombo?

Mourão: Não conversei esse assunto com o presidente. Ali no dia 2 a gente vai ter bastante trabalho. Há os outros prejuízos lançados, como o aumento do Judiciário e dos funcionários públicos.

Valor: O STF está fora da realidade?

Mourão: Há um certo ativismo lá dentro, ora político, as simpatias políticas que alguns dos ministros têm, e às vezes uma coisa pessoal. A gente tem que conversar. Sentar um dia com os 11 ministros e expor para eles a situação do país. Acho que eles não conhecem. Sou favorável a que o presidente vá lá um dia e explique que se os senhores aprovam medidas dessa natureza, vamos cada vez mais nos encalacrar. Levaria o ministro da economia a tiracolo.

Valor: O Brasil está quebrado...

Mourão: Eu sei disso, pagamos R$ 400 bilhões por ano de juros, temos um déficit de R$ 139 bilhões, isso na conta de padeiro. Por isso precisamos aprovar essas reformas, porque com a melhoria do nosso rating nós poderemos até emitir títulos pagando juros menores. Podemos fazer uma repactuação dessa dívida, podemos alongar o prazo, diminuir o pagamento anual dos juros para R$ 350 bilhões; R$ 50 bilhões a mais é muito pra gente investir em coisas que a iniciativa privada talvez não queira.

Valor: Esse é um tema muito delicado: a repactuação não pode ser interpretada como um calote?

Mourão: O PPI vai ficar com o general Santos Cruz na Secretaria de Governo. O que ele precisar, a gente apoia. Eu montei uma equipe multidisciplinar capaz de oferecer soluções caso seja necessário.

Valor: Mas é como um suporte, um conselho?

Mourão: Não é um conselho, é uma equipe capacitada a trabalhar em qualquer assunto temático. Por exemplo: precisamos discutir o Acordo de Paris, tem gente para dar esse subsídio. É o meu dream team: são oito analistas.

Valor: O presidente se encontra com o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu nesta sexta-feira. O governo vai ter uma relação especial com Israel?

Mourão: Não sei ainda. O que eu vejo é que hoje Israel tem uma aproximação muito grande com o presidente, já de algum tempo. Vamos ver até que ponto isso vai acontecer. Até porque temos que olhar, dentro do sistema internacional, pragmaticamente, o que se pode auferir nesse processo. Não podemos ficar só com o ônus, a gente tem que ter bônus também.

Valor: Pode haver alguma retaliação dos países árabes com essa aproximação de Israel?

Mourão: Depende do grau da aproximação, né? Isso aí tem que ser estudado até porque o presidente não tomou nenhuma decisão a respeito, e quando chegar a hora, a gente vai apresentar uma visão pra ele, e ele poderá decidir em melhores condições.

Valor: E essa relação com os Estados Unidos, será de adesão automática?

Mourão: Não, o que existe, e que acho inegável, é que nós temos hoje um governo pró-Trump que tem uma visão pró-valores da democracia americana, que admira esses valores. Mas não é um concorde imediato com qualquer coisa que for produzida por lá. É uma relação de governo, que não pode ultrapassar esses limites.

Valor: Logo no início, o governo vai ter que decidir sobre o subsídio do diesel aos caminhoneiros.

Mourão: Sim, o general Heleno fez uma reunião a esse respeito. Acho que a tendência é manter o subsídio até que se consiga uma solução melhor. Tem a questão da tabela de frete, que o [ministro da Infraestrutura] Tarcísio Freitas está trabalhando em cima também. Nós não temos condição de, de hoje para amanhã, solucionar esse problema.

Valor: Quando haverá uma solução?

Mourão: Na minha visão, onde está a raiz desse problema todo? No sistema tributário. Então, se a gente consegue dar uma acertada na questão da tributação, e os combustíveis, qual o índice maior da tributação? É o ICMS, que é de onde os Estados tiram o dinheiro. Onde eu moro, no Rio de Janeiro, é absurdo. É a gasolina mais cara do Brasil, custa R$ 5, é 35% o ICMS lá sobre o combustível.

Valor: Tudo virou uma indústria pra arrecadar...

Mourão: Mas arrecadar por que? Porque você tem que alimentar o dragão. É isso tudo que tem que ser explicado pra um conjunto de parlamentares e população, porque nós temos que domar o dragão. Domamos o dragão da inflação, mas esse outro dragão do Estado ainda não está domado. Está solto aí. Temos muito para fazer, na realidade, pra desfazer. Um desmanche, se fizer um desmanche. Eu já fiz essa comparação, eu gosto de cavalo, gosto de montar, já disse que Brasil é um cavalo olímpico capaz de saltar 1m80, mas tá todo amarrado, só salta 0,70 cm. O Paulo Guedes falou, tem que tirar as bolas de ferro do pé industriais.

Valor: Como chegamos a esse ponto?

Mourão: Porque aqui existe a associação do patrimonialismo com essa visão de que o Estado é o grande protetor. E depois pronto. E aí você junta o populismo, que tivemos tanto de direita como de esquerda.

Valor: Talvez a principal tarefa seja esse desmanche

Mourão: É, no Exército a gente tem um ditado: chefe bonzinho morre coitadinho. Não pode ser bonzinho, porque depois as próximas gerações serão beneficiadas. Hoje as próximas gerações não têm futuro, do jeito que tá.

Valor: O que o senhor achou das explicações do ex-assessor e motorista de Flavio Bolsonaro, que disse que as movimentações atípicas identificadas pelo Coaf eram resultado de compra e venda de carros?

Mourão: Sem comentários. Hoje isso é um problema do Ministério Público do Rio de Janeiro, não tenho nada a ver com isso.

 


Vinicius Torres Freire: Bolsonaro vai encolher bancos?

PT estatizou crédito; mesmo com Temer, maioria dos empréstimos ainda é estatal

Jamais ficou claro para o cidadão comum que os governos petistas estatizaram a maioria do crédito no Brasil, o que aconteceu no restinho de Lula 2 e sob Dilma Rousseff.

Michel Temer começou a reprivatizar o sistema, mas 51,7% do total do dinheiro emprestado por bancos ainda é crédito de bancos públicos. Dificilmente Jair Bolsonaro conseguirá reverter toda a obra petista, até porque o desmanche não depende apenas dele.

Na prática, é como se Lula e Dilma tivessem criado um banco maior que um Itaú ou um Bradesco (em termos de carteira de crédito). Em novembro de 2008, cerca de 35% do estoque de crédito, do total de dinheiro emprestado, estava nos bancos públicos. No auge, em julho de 2016, a participação dos públicos foi a quase 57%.

Essa estatização começou na virada decisiva da política econômica lulista, depois de crise financeira mundial que explodiu de vez em meados de 2008. O crédito internacional secou, a atividade econômica entrou em colapso, inclusive no Brasil. Houve uma retração violenta no crédito dos bancos privados. O fim do mundo parecia próximo.

Parecia razoável expandir o gasto público e o crédito estatal (embora alguns economistas advogassem que uma alternativa melhor seria o Banco Central baixar rápido a taxa de juros). No entanto, os efeitos agudos da crise logo passaram no Brasil. O estímulo de crédito, não.

Nos anos Lula, o crescimento relativo mais acelerado foi do BNDES. Sob Dilma, dos demais bancos públicos. Depois de uma reanimada de meados de 2010 a 2012, os bancos privados voltaram a jogar na retranca.

Os bancões privados alegavam que não poderiam acompanhar o ritmo estatal: tinham limites de capital e de risco. Os bancos públicos em tese poderiam se aventurar mais (com a retaguarda do governo) e, grosso modo, eram capitalizados à larga com dinheiro público.

Seja qual for o peso desses motivos, o descompasso resultou na estatização. Temer procurou desmontar esse sistema (na verdade um projeto iniciado por Joaquim Levy, ministro da Fazenda no primeiro ano de Dilma 2). O governo pediu de volta dinheiro emprestado ao BNDES e começou a dar cabo do crédito subsidiado do banco.

Depois de mais de três anos em baixa, o estoque de crédito bancário no país voltou a crescer em novembro passado (em termos reais, na comparação anual). Mas o grosso do encolhimento se devia na maior parte ao BNDES (sem o bancão de desenvolvimento, o crédito estaria no azul desde março).

O BNDES oferece em geral empréstimos de longo prazo, muito raros e caros na praça bancária. Fez falta? No balanço geral, parece que não. Empresas levantaram dinheiro no mercado de capitais (debêntures, ações etc.) em volume várias vezes superior ao do decréscimo do crédito do BNDES, mesmo nestes anos conturbados.

O crédito do BNDES vai fazer falta?

1. Uma dúvida: não se sabe o que pode acontecer quando as taxas básicas de juros subirem.

2. Pode ser que não: mesmo menos com menos dinheiro, o banco pode mudar sua forma de atuação, dando impulso a operações maiores, em vez de emprestar tudo diretamente.

3. Pode ser que sim: empresas pequenas ainda têm grande dificuldade de se financiar.

O que vai ser dos demais bancos públicos sob Bolsonaro ainda é mistério. O presidente eleito não quer privatizá-los (aceita vender apenas braços do BB e da CEF). Mas vai diminuir a velocidade do crescimento do crédito estatal, a fim de reprivatizar o sistema?