Bolsonaro

César Felício: O futuro já começou

Bolsonaro e seus ministros inflaram expectativas

Antonio Gramsci está mais atual do que nunca, a julgar pelo que se ouviu em alguns pontos da Esplanada dos Ministérios na jornada de quarta-feira. Se antes estabelecer uma hegemonia cultural não era um objetivo claro de um grupo político no poder, agora é. Nos governos Lula e Dilma havia muita gente com uma visão leninista da condução da política e de aparelhamento do Estado, mas a unidade estratégica se perdeu em meio a disputas internas e ao surgimento de outras referências para a construção do poder.

Qualquer um que tenha acompanhando o tal do "lulopetismo", para usar a expressão pejorativa dos vitoriosos de hoje, sabe que não foi a ideologia que guiou os governantes de então. A narrativa feita pela família Odebrecht, Antonio Palocci, Paulo Roberto Costa e tantos outros autores que explicam o Brasil é bastante eloquente neste sentido.

A entrada em cena de Ricardo Vélez, Ernesto Araújo e outros mostra a disposição do setor mais duro do bolsonarismo de praticar um exorcismo que, por óbvio, confirma a existência do demônio ao combater a sua presença. Parido das urnas por uma reação social à corrupção, os bolsonaristas chegam com o purismo característico das rupturas, do poder tomado de assalto sem uma construção paulatina que tenha envolvido composições e concessões. Há muitos anos não se percebia tamanho viés ideológico em uma administração, que tanto fala em desideologizar o Estado. A troca de cadeiras vermelhas por azuis no Palácio da Alvorada é mais um indício neste sentido.

Em seu discurso de posse, o novo ministro da Educação deixou claro que se vive uma guerra contra uma ideologia materialista que oprime a sociedade, tendo como combustível a "tresloucada onda globalista" e o "irresponsável pragmatismo sofístico".

Vélez coloca a sua chegada ao Ministério da Educação como uma frente nesta batalha, cruenta a seu ver. Segundo o ministro, um dos lances desta guerra foi o atentado de Juiz de Fora, ocasião em que Bolsonaro foi esfaqueado, em 6 de setembro. Na visão de Vélez, houve um complô, urdido pelos mais ameaçados pela onda moralizante. "As maquinações tenebrosas da rua Halfeld ratificaram a certeza de que derrubaram um homem, mas levantaram uma nação", disse.

Vélez se propõe a somar forças a uma onda restauradora dos pilares que acredita ameaçados: Família, Igreja, Escola, Estado e Pátria. O novo ministro não detalhou um único plano, sequer o tão falado Escola sem Partido, mas foi muito além disso: declarou-se pertencente a um movimento maior, a uma revolução restauradora.

Em seu discurso, Ernesto Araújo foi ainda mais ambicioso. Colocou o momento histórico atual como um ponto de inflexão na vida de cada um. Bolsonaro no poder significa cruzar de volta o rio do esquecimento e resgatar o conhecimento de quem verdadeiramente somos. Estávamos todos presos fora de nós mesmos. Bolsonaro liberta o Brasil por meio da verdade, que se vive como uma experiência íntima. "Precisamos libertar a nossa memória histórica", disse Araújo, para quem o Itamaraty é o guardião dessa memória. "Isto aqui não é uma repartição pública, é um santuário", afirmou.

Araújo destacou a importância do mito. Citou o exemplo de Dom Sebastião para ressaltar a importância de arriscar a própria vida para a defesa de um valor imaterial. "Não nos lembramos das pessoas que ficaram em casa", disse. "O mito ensina a não ter medo e é curioso que, no momento, o mito é o apelido carinhoso que o povo brasileiro deu ao presidente", disse.

Na visão desta ala do bolsonarismo, o que aconteceu esta semana não foi apenas uma alternância normal de poder, própria de uma democracia resiliente que já concluiu a sua terceira década de funcionamento, como disse o ministro da Economia, Paulo Guedes. O que se viveu foi um acontecimento transcendente para o país e potencialmente para cada um de seus habitantes. Bolsonaro e boa parte de seus ministros, portanto, não administram expectativas. Inflam-nas ao grau máximo.

A fala de Paulo Guedes sugere um contraste. Mas é só na aparência. Guedes não fala para os eleitores de Bolsonaro 'lato sensu', ele fala para um público que constrói suas expectativas de outra maneira e que guarda um certo desprezo do ultraconservadorismo na questão dos costumes.

O superministro da Economia começou a sua peroração repartindo responsabilidades com os três Poderes e com a própria imprensa. Não atacou os marxistas. Atacou os piratas privados, burocratas corruptos e criaturas do pântano político.

Ele partiu de uma premissa que é um artigo de fé: a de que a maior engrenagem descoberta pela humanidade para garantir a inclusão social é a economia de mercado. Estabeleceu a sua prioridade imediata, o controle de gastos, e afirmou que para concretizá-la acelerará reformas estruturantes e as privatizações. Isto posto, acenou com um ciclo de crescimento sustentável de dez anos e tratou de animar a sua plateia: "Podemos contar com um futuro brilhante" e "o Brasil deixará de ser o paraíso dos rentistas e o inferno dos empreendedores" foram algumas de suas afirmações.

Guedes mencionou um plano A, o da reforma da Previdência, e um plano B, o da desindexação e desvinculação absoluta, o que no limite libera o governo até mesmo de pagar os aposentados de hoje, sem ter que correr o risco de um impeachment. Guedes não mencionou a existência de algum plano C, caso simplesmente não se estabeleça um cenário de cooperação com o Poder Legislativo. O ministro, aparentemente, desconsidera o cenário de não obter simplesmente nada. A alta do Ibovespa para um nível acima de 90 mil pontos anteontem mostra que o mercado comprou o otimismo de Guedes. Está contratada a ideia de que, se der errado, pode dar certo.

Estamos no pico da euforia, no zênite da efervescência, em que tudo parece possível, em que a solução de problemas de décadas ou de séculos parecem ao alcance da mão. Não sabemos de que cor é o medo.


Maria Cristina Fernandes: Os valores da farda que volta ao poder

Os oficiais do Exército brasileiro creditam à televisão, aos bancos, ao Congresso Nacional e às multinacionais, nesta ordem, o maior grau de influência política no país. Indagados que instituições deveriam exercê-la, os oficiais se incluem. Colocam as Forças Armadas em quarto lugar entre as aquelas que deveriam ter mais peso político, depois do Congresso, da academia e do Judiciário.

Confrontados com a afirmação do ex-ministro da Guerra do Estado Novo e ex-candidato à Presidência da República, general Pedro Aurélio de Góis Monteiro, de que a política deveria ser mantida fora dos quartéis, a maioria dos oficiais do Exército manifestou discordância. A maior aderência à afirmação de que "cabe ao Exército agir, mesmo que politicamente, quando a pátria estiver em perigo" se dá entre jovens tenentes (63,5%). A adesão à tese agrega menos da metade (48,7%) dos coronéis e generais.

Os dados estão em "A Construção da Identidade do Oficial do Exército Brasileiro", publicado no ano passado pela editora da PUC-RJ. O autor, o major Denis de Miranda, é professor da Academia Militar das Agulhas Negras, escola de formação de oficiais e única porta para o generalato na Força. Por lá passaram o presidente Jair Bolsonaro (turma de 1977) e todos os generais do primeiro escalão, o vice Hamilton Mourão (1975), o ministro do Gabinete de Segurança Institucional, Heleno Ribeiro (1969), o titular da Secretaria de Governo, Carlos Alberto dos Santos Cruz (1974) e o da Defesa, Fernando de Azevedo e Silva (1976).

O livro é resultado do mestrado em sociologia das instituições militares, da PUC-Rio, incentivado por convênio entre os Ministérios da Defesa e da Educação. Para escrevê-lo, Miranda enviou 2.015 formulários para oficiais formados na Aman. Recebeu de volta 643, o que deu à pesquisa uma margem de confiança de 98%. Entre aqueles que responderam, estão 90 generais e coronéis, 249 tenentes-coronéis e majores, 216 capitães e 88 tenentes.

No prelo, na mesma editora, está novo levantamento, ainda mais amplo, encabeçado pelo coordenador do núcleo de sociologia das instituições militares, Eduardo de Vasconcellos Raposo. Os primeiros tabulamentos sugerem uma convergência entre os valores militares e aqueles que se fizeram vitoriosos no eleitorado nacional.

A pesquisa de Miranda mostra que a geração de oficiais pós-redemocratização quis se notabilizar pelas operações militares propriamente ditas, mas foi tragada por atividades como o combate à seca e as operações de garantia da lei e da ordem. Mais da metade dos entrevistados reconhece que as ações subsidiárias lhes trazem mais reconhecimento da sociedade.

Esse perfil explica por que generais do Alto Comando do Exército têm demonstrado preocupação com a politização dos quartéis. A judicialização da política, como se viu, levou à politização do Judiciário. Não parecem infundados os temores de que a militarização da política leve à politização dos militares.

A corporação que se vê mais reconhecida em atividades civis e advoga o dever de agir politicamente quando a 'pátria' estiver em perigo revela sua maior insatisfação com os seus rendimentos. Este batalhão de insatisfeitos terá uma proeminência política inédita nos últimos 30 anos num governo supostamente comprometido com o ajuste fiscal.

A tabela de soldos das Forças Armadas é parte da explicação para o primeiro tiro do general Mourão no anunciado conflito com o Judiciário - "Eles não conhecem o Brasil" (Valor, 28/12/2018). O soldo de um tenente (R$ 7,5 mil) equivale a um terço do salário de entrada de carreiras do Judiciário e do Executivo.

A insatisfação salarial mitiga o espírito de corpo dos oficiais. Entre tenentes, grupo que tem menos de dez anos na carreira, mais da metade mudaria de carreira se pudesse preservar a estabilidade. No grupo de coronéis e generais, que já têm mais de 30 anos de Exército e estão às portas da aposentadoria, a intenção de virar a vida pelo avesso atinge apenas um em cada dez.

"Se não fosse militar, qual outra carreira seguiria?" A resposta demonstra o desacerto entre o espírito das Forças Armadas e o coração liberal do ministro Paulo Guedes. Ao ingressar na carreira, o oficial tem, a seu dispor, todo o plano de carreira das décadas seguintes, com as promoções e aperfeiçoamentos que precisará fazer para atingi-las. É essa mentalidade, e não o apetite da livre-iniciativa, que prevalece. Sem a farda, mais da metade rumaria para fazer um concurso público. Entre os mais jovens essa opção abocanha 72,7% de adesão.

Esse espírito de corpo se dilui no momento em que o Exército é mais endógeno do que nunca. A pesquisa de Miranda mostra que 45% dos oficiais são filhos de militares. Na década de 1960 a fatia de cadetes da Aman cujos pais estavam na carreira pouco ultrapassava um terço. Um outro estudioso das Forças Armadas e professor da Universidade Federal de São Carlos, Piero Leirner, atribui a essa endogenia o caldo de receptividade da base das Forças Armadas à candidatura de Jair Bolsonaro.
A primeira vez em que se deu conta disso foi em 2012, quando ministrou curso na Fundação Getúlio Vargas, no Rio, para uma turma majoritariamente de militares. Um major reclamou da Comissão da Verdade. Mais tarde, em viagem de pesquisa a São Gabriel da Cachoeira (AM), região que vivia sob uma onipresente liderança do general Heleno Ribeiro, o clima era o mesmo.

O relatório da Comissão colocaria sob o mesmo carimbo os brigadeiros Eduardo Gomes, patrono da Aeronáutica, e João Paulo Burnier, cuja ficha corrida vai da tentativa de golpe contra Juscelino Kubitschek à trama que planejava explodir o gasômetro do Rio em 1968 para incriminar os dissidentes da ditadura.

O relatório também teria abespinhado a geração da caserna que subiu a rampa com Bolsonaro por ter colocado no mesmo balaio Cyro e Leo Etchengoyen, respectivamente tio e pai do ex-ministro do Gabinete de Segurança Institucional do governo Michel Temer, Sérgio Etchengoyen. O primeiro foi apontado pelo coronel Paulo Malhães como um dos responsáveis pelo centro de tortura de Petrópolis, que ficaria conhecido como Casa da Morte, mas o irmão foi chefe do Estado-Maior sem registro de envolvimento com tortura.

Ao relatório some-se a reação da ex-presidente Dilma Rousseff ao manifesto do Clube Militar contra o documento. A determinação para que a entidade, de caráter privado, se retratasse, foi seguida por outro manifesto, ainda mais duro. Foi depois desses fatos que Bolsonaro compareceu, pela primeira vez como convidado, à uma cerimônia de formatura da Aman, em 2014. Dava início ali a uma campanha marcada pela presença em cerimônias militares de toda ordem, às quais não compareceria sem a anuência dos comandantes.

O capitão, que ao longo de seus seis mandatos anteriores como deputado federal não ultrapassara as plateias de mulheres e viúvas de militares, cativaria, ao longo do sétimo, as bases das Forças Armadas e seu comando.

Na pesquisa do major Miranda, o tema aparece na caixinha 'revanchismo político' como um dos maiores problemas das Forças Armadas, ainda que atrás das limitações materiais dos 'soldos baixos' e 'orçamento inadequado'. Serviu de amálgama a uma corporação, que desgastada pela ditadura, se construiu em torno de valores que buscavam diferenciá-la das instituições civis.

Se o revanchismo, a corrupção da esquerda à direita e a crise pavimentaram o apoio militar, não bastarão como norte para o governo. Na bússola do presidente não faltam ímãs que o empurram em direções opostas, a começar pela abertura ao investimento externo e à aliança incondicional com Donald Trump.

Ao longo das três décadas em que os militares estiveram longe do poder, o anticomunismo perdeu lugar para a defesa da soberania contra a internacionalização das organizações não governamentais.

O discurso que embala a revisão da reserva Raposa Serra do Sol vem daí. Leirner identifica na ascensão da Batalha dos Guararapes, do século XVII, em que as três raças se uniram para derrotar os batavos, a construção simbólica de um exército em busca de inimigos externos.

Parece um discurso desbotado, particularmente na era de um militar bandeirante, como Bolsonaro, mas ainda encontra ressonância. A presença das multinacionais identificada na pesquisa de Miranda como um dos interesses que exercem influência demasiada no país, é uma evidência clara das pressões para que o governo Bolsonaro se encaixe nos moldes do ultradireitismo nacionalista que tem em Trump e em Viktor Orbán, o primeiro-ministro da Hungria que prestigiou sua posse, como os principais representantes.

O nacionalismo, no entanto, está longe de unificar os militares do governo, a começar por Hamilton Mourão, de quem se registram, ao contrário dos demais generais do governo, posições mais alinhadas com o pró-americanismo pregado pelo novo Itamaraty do chanceler Ernesto Araújo.

Um posto avançado desta batalha já se estabeleceu na Petrobras. O novo presidente, Roberto Castello Branco, foi ungido por Paulo Guedes para comandá-la porque comunga de suas convicções liberais.

O ministro da Economia já deixou claro que pretende se valer da cessão onerosa para recompor o caixa do governo, ainda que sua regulamentação esteja pendurada no Congresso. Duas semanas antes da posse, no entanto, o almirante Bento Leite de Albuquerque Junior, nomeado ministro de Minas e Energia, pediu à empresa que providenciasse acomodações para que lá se instalasse com nove assessores. A presença de um cozinheiro na comitiva é um sinal mais do que eloquente da batalha que está por vir.


El País: “Brasil tem direitos em excesso. A ideia é aprofundar a reforma trabalhista”, diz Bolsonaro

Proposta de campanha inclui carteira de trabalho “verde e amarela” que, segundo especialistas, vai precarizar ainda mais o trabalho

Em sua primeira entrevista concedida como presidente, Jair Bolsonaro reafirmou sua visão de que é preciso aprofundar a reforma trabalhista aprovada pelo Governo Temer: “O Brasil é o país dos direitos em excesso, mas faltam empregos. Olha os Estados Unidos, eles quase não têm direitos. A ideia é aprofundar a reforma trabalhista”, afirmou a jornalistas do canal SBT.

O discurso explícito sobre a necessidade de mudanças nas regras trabalhistas é uma relativa novidade no cenário político, já que propostas de mudanças mais profundas na CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), originalmente de 1943, costumava provocar reações negativas.

Com o bolsonarismo, no entanto, a questão não é tabu e foi explorada na campanha. Uma pista para uma maior aceitação do tema apareceu em uma pesquisa Datafolha de setembro: num país com 13,2 milhões de desempregados, metade dos eleitores afirmaram preferir ser autônomo, com salários mais altos e pagando menos impostos, ainda que sem benefícios trabalhistas, contra 43% que preferiram ter a carteira de trabalho registrada, com todos os direitos previstos na lei.

Em dezembro, o então presidente eleito havia sido incisivo ao dizer que a legislação trabalhista teria "que se aproximar da informalidade" para que empregos pudessem ser gerados. Em outras ocasiões, Bolsonaro já havia falado sobre o "tormento" de ser patrão no país, algo que repetiu em teor semelhante nesta quinta: "Eu não quero, eu podia ter uma micro empresa com cinco funcionários. Não tenho por quê? Eu sei das consequências depois se o meu negócio der errado, se eu mandar alguém embora, entre outras coisas. Devemos mudar isso daí". Por fim, o presidente faz ataques contumazes atacou o Ministério Público do Trabalho, cujas atribuições incluem fiscalizar trabalho em condições análogas à escravidão, trabalho infantil e outras irregularidades, e a própria existência da Justiça do Trabalho. "O Ministério Público do Trabalho. Pelo amor de Deus, se tiver clima a gente resolve esse problema. Não dá mais para continuar – quem produz sendo vítimas de ações de uma minoria, mas de uma minoria atuante", afirmou o capitão.

Carteira "verde e amarela"
Esta proposta aumenta a desigualdade e impede que o motor do consumo possa ser um ente dinamizador da economia

Ainda não está completamente claro como o Governo Bolsonaro pretende mexer na questão e se ela será tão prioritária como a reforma da Previdência. Durante a campanha, a proposta de criar uma carteira de trabalho alternativa, "verde e amarela", foi apresentada como um dos grandes trunfos do plano de Governo para resolver o problema do desemprego. Além da capa inovadora, nas cores da bandeira nacional ao invés da tradicional azul-escuro, o documento contemplaria novas regras para um regime de trabalho “flexibilizado” – e, pela legislação vigente, contrário à Constituição Federal e à CLT. Paulo Guedes, o poderoso ministro da Econômica do Governo Bolsonaro, já adiantou que estes contratos que sua pasta pretende criar "não têm encargos trabalhistas e a legislação é como em qualquer lugar do mundo: se for perturbado no trabalho, você vai à Justiça e resolve". No discurso de posse, nesta quarta, Guedes disse que estes contratos vão “libertar” o trabalhador da “legislação fascista” da CLT.

No plano de Governo apresentado na campanha, a proposta de mudança nos regimes de trabalho não é esmiuçada - apesar da magnitude da medida, são dedicadas a ela cinco linhas no programa. Mas, de acordo com Guedes, caberá ao jovem optar por qual regime de trabalho ele quer: "Porta da esquerda tem sindicato, legislação trabalhista para proteger e encargos. Porta da direita tem contas individuais e não mistura assistência com Previdência". Em entrevista à Globo News em outubro, Guedes deu alguns detalhes de sua proposta, e afirmou que o FGTS como “mecanismo de acumulação” será extinto neste regime. Estas alterações vão de encontro ao artigo 7º da Constituição Federal, que trata dos direitos trabalhistas, logo sua implementação dependeria de forte base no Congresso para aprovar, por exemplo, uma Proposta de Emenda à Constituição.

Desde antes de ser eleito Bolsonaro já vinha sinalizando que um tempo com menos direitos poderia estar no horizonte do trabalhador brasileiro como uma espécie de remédio amargo para a criação de empregos. "O que o empresariado tem dito pra mim, e eu concordo, é o seguinte: o trabalhador vai ter que viver esse dia: menos direitos e [com mais] emprego, ou todos os direitos e desemprego”, afirmou o presidenciável. A alteração exigiria mudanças na legislação que não foram feitas na reforma trabalhista, aprovada no Senado em julho de 2017 e sancionada pelo presidente Michel Temer.

Causa e efeito
A proposta bolsonarista não foi vista com bons olhos por economistas em um cenário de crise e falta de investimentos. “Essa medida parte do pressuposto equivocado de que a contratação se dá por conta do custo de mão de obra. As empresas não contratam porque é barato ou caro, mas sim porque a economia está demandando”, explica Antônio Correa de Lacerda, economista da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. “A solução é fazer a economia crescer, e não achar que um ajuste fiscal por si só provoca um aumento da confiança. É preciso investimento do Estado e financiamento à atividade econômica, isso gera emprego de qualidade”.

Ruy Braga, especialista em sociologia do trabalho da Universidade de São Paulo, também concorda que no momento atual uma flexibilização dos contratos não surtiria o efeito desejado. “Você tem hoje no país uma taxa alta de desemprego por uma combinação de crise econômica com supercapacidade das empresas. O que cria emprego não é rebaixamento dos contratos, é investimento público e privado”, afirma. “Por que um empresário vai ampliar sua planta se não está nem usando toda a capacidade? Esta proposta aumenta a desigualdade e impede que o motor do consumo possa ser um ente dinamizador da economia. Uma proposta como essa não resolve o problema do investimento e piora a situação ao não oferecer ampliação do emprego”.

Além de não resolver o problema, a adoção de dois regimes de trabalho diversos poderá provocar insegurança jurídica. “Para ele propor a criação de um documento desse teria que haver uma nova rodada de revisão na lei trabalhista, Bolsonaro teria que aprovar uma nova reforma que abra essa possibilidade de dois vínculos diferentes”, afirma Alexandre Chaia, economista do Insper. Além disso, caberia ao capitão provar que esta alteração é constitucional. “Isso pode gerar contestações no Supremo Tribunal Federal, não é uma ideia simples de se concretizar”. Chaia acredita que a existência de dois regimes provocará processos por “assédio moral” e outros problemas trabalhistas.

Além disso, o professor também não acredita que no contexto atual a carteira verde e amarela geraria empregos. “No momento em que vivemos, mesmo tendo uma carteira de trabalho sem encargos não necessariamente haveria um aumento das contratações, tendo em vista o cenário de mercado nervoso e expectativas econômicas que não são boas”, explica. “Em outro momento econômico e expandindo o regime para todos poderia fazer sentido. Hoje não acho que alteraria o quadro do trabalho no país, o que resolve é construção civil, consumo, comércio...”.

A reportagem enviou uma série de questionamentos ao ainda gabinete de transição do Governo para elucidar pontos nebulosos envolvendo a carteira de trabalho "verde e amarela", mas não obteve resposta.


Eliane Brum: O homem mediano assume o poder

O que significa transformar o ordinário em “mito” e dar a ele o Governo do país?

O homem mediano assume o poder
A esquerda que não sabe quem é
O homem mediano assume o poder
Os “malucos” sapateiam no palco
O homem mediano assume o poder
O ataque dos machos brancos

Desde 1 de janeiro de 2019, o Brasil tem como presidente um personagem que jamais havia ocupado o poder pelo voto. Jair Bolsonaro é o homem que nem pertence às elites nem fez nada de excepcional. Esse homem mediano representa uma ampla camada de brasileiros. É necessário aceitar o desafio de entender o que ele faz ali. E com que segmentos da sociedade brasileira se aliou para desenhar um Governo que une forças distintas que vão disputar a hegemonia. Embora existam várias propostas e símbolos do passado na eleição do novo presidente, a configuração encarnada por Bolsonaro é inédita. Neste sentido, ele é uma novidade. Mesmo que seja uma difícil de engolir para a maioria dos brasileiros que não votou nele, escolhendo o candidato oposto ou votando branco, nulo ou simplesmente não comparecendo às urnas. Bolsonaro encarna também o primeiro presidente de extrema direita da democracia brasileira. O “coiso” está no poder. O que significa?

Quando Luiz Inácio Lula da Silva chegou ao Palácio do Planalto pela primeira vez, na eleição de 2002, depois de três derrotas consecutivas, foi um marco histórico. Quem testemunhou o comício da vitória na Avenida Paulista, tendo votado ou não em Lula, compreendeu que naquele momento se riscava o chão do Brasil. Não haveria volta. Pela primeira vez um operário, um líder sindical, um homem que fez com a família a peregrinação clássica do sertão seco do Nordeste para a industrializada São Paulo de concreto, alcançava o poder. Alguém com o “DNA do Brasil”, como diria sua biógrafa, a historiadora Denise Paraná.

O Lula que conquistou o poder pelo voto era excepcional. “Homem do povo”, sem dúvida, mas excepcional. Um líder brilhante, que comandou as greves do ABC Paulista no final da ditadura militar (1964-1985) e se tornou a figura central do novo Partido dos Trabalhadores criado para disputar a democracia que retornava depois de 21 anos de ditadura. Independentemente da opinião que cada um possa ter dele hoje, é preciso aceitar os fatos: quantos homens com a trajetória de Lula se tornaram Lula?

Lula era o melhor entre os seus, o melhor entre aqueles que os brancos do Sul discriminavam com a pecha de “cabeça chata”. Se sua origem e percurso levavam uma enorme novidade ao poder central de um dos países mais desiguais do mundo, a ideia de que aquele que é considerado o melhor deve ser o escolhido para governar atravessa a política e o conceito de democracia. Não se escolhe um qualquer para comandar o país, mas aquele ou aquela em que se enxergam qualidades que o tornam capaz de realizar a esperança da maioria. Neste sentido, não havia novidade. Quando parte das elites se sentiu pressionada a dividir o poder (para manter o poder), e depois da Carta ao Povo Brasileiro assinada por Lula garantindo a continuidade da política econômica, era o excepcional que chegava ao Planalto pelo voto.

O que a chegada de Lula ao poder fez pelo Brasil e como influenciou o imaginário e a mentalidade dos brasileiros é algo que merece todos os esforços de pesquisa e análise para que se alcance a justa dimensão. Mas grande parte já foi assimilada por quem viveu esses tempos. Os efeitos do que Lula representou apenas por chegar lá sequer são percebidos por muitos porque já foram incorporados. Já estão. Como disse uma vez o historiador Nicolau Sevcenko (1952-2014), em outro contexto: “Há coisas que não devemos perguntar o que farão por nós. Elas Já fizeram”.

Marina Silva, derrotada nas últimas três eleições consecutivas, em cada uma delas perdendo uma fatia maior de capital eleitoral, seria outra representante inédita de uma parcela da população que nunca ocupou a cadeira mais importante da República. Diferentemente de Lula, como já escrevi neste espaço, Marina encarna um outro amplo segmento de brasileiros, muito mais invisível, representado pelos povos da floresta. Carrega no corpo alquebrado por contaminações e também por doenças que já não deveriam existir no Brasil uma experiência de vida totalmente diversa de alguém como Lula e outros pobres urbanos. Mas este é o passado de Marina.

Cada brasileiro conhece vários Jair Bolsonaro – ou tem um na família

A mulher negra, que se alfabetizou aos 16 anos e trabalhou como empregada doméstica depois de deixar o seringal na floresta amazônica, empreendeu uma busca pelo conhecimento acadêmico e hoje fala mais como uma intelectual da universidade do que como uma intelectual da floresta. Também deixou a Igreja Católica ligada à Teologia da Libertação para se converter numa evangélica genuína, daquelas que vivem a religião no cotidiano em vez de instrumentalizá-la nas eleições, como tantos pastores neopentecostais. Se Marina tivesse conseguido chegar ao poder, ela representaria toda essa complexa trajetória, mas também encarnaria uma excepcionalidade entre os seus. Quantas mulheres com o percurso de Marina se tornaram Marina?

Jair Bolsonaro, filho de um dentista prático do interior paulista, oriundo de uma família que poderia ser definida como de classe média baixa, não é representante apenas de um estrato social. Ele representa mais uma visão de mundo. Não há nada de excepcional nele. Cada um de nós conheceu vários Jair Bolsonaro na vida. Ou tem um Jair Bolsonaro na família.

Na campanha, Bolsonaro não deveria parecer melhor que seus eleitores, mas igual

Durante as várias fases republicanas do Brasil, a candidatura e os candidatos foram acertos das elites que disputavam o poder – ou resultado de uma disputa entre elas. O mais popular presidente do Brasil do século 20, Getúlio Vargas (1882-1954), que em parte de sua trajetória política foi também um ditador, era um estancieiro, filho da elite gaúcha. Ainda que tenha havido alguns presidentes apenas medianos durante a República, eram por regra homens oriundos de algum tipo de elite e alicerçados por ela.

Lula foi exceção. E Bolsonaro é exceção. Mas representam opostos. Não apenas por um ser de centro esquerda e outro de extrema direita. Mas porque Bolsonaro rompe com a ideia da excepcionalidade. Em vez de votar naquele que reconhecem como detentor de qualidades superiores, que o tornariam apto a governar, quase 58 milhões de brasileiros escolheram um homem parecido com seu tio ou primo. Ou consigo mesmos.

Essa disposição dos eleitores foi bastante explorada pela bem sucedida campanha eleitoral de Bolsonaro, que apostou na vida “comum”, falseando o cotidiano prosaico, o improviso e a gambiarra nas comunicações do candidato com seus eleitores pelas redes sociais. Bolsonaro não deveria parecer melhor, mas igual. Não deveria parecer excepcional, mas “comum”.

A mesma estratégia foi mantida depois de eleito, como a mesa bagunçada de café da manhã com que recebeu John Bolton, o conselheiro de Segurança Nacional do presidente americano Donald Trump. Neste sentido, Bolsonaro jamais pode ser considerado o “Trump brasileiro”. Trump, além pertencer a uma parcela muito particular das elites americanas, tem uma trajetória de destaque. Bolsonaro não. Como militar, ele só se notabilizou por quebrar as regras ao dar uma entrevista para a revista Veja reclamando do valor dos soldos. Como parlamentar por quase três décadas, conseguiu aprovar apenas dois projetos de lei. Era mais conhecido como personagem burlesco e criador de caso.

Quando Tiririca foi eleito, por exemplo, sua grande votação foi interpretada como a prova de que era necessária uma reforma política urgente. Mas Tiririca foi um grande palhaço. Num mundo difícil para a profissão desde a decadência dos circos, Tiririca conseguiu encontrar um caminho na TV, fazer seu nome e ganhar a vida. Não é pouco.

“Eu não sou ninguém aqui”, afirmou em 2011

Bolsonaro não. O grande achado foi se eleger deputado e conseguir continuar se elegendo deputado. Em seguida, colocar todos os filhos no caminho dessa profissão altamente rentável e com muitos privilégios. A “família” Bolsonaro tornou-se um clã de políticos profissionais que, nesta eleição, conseguiu um número assombroso de votos. Mas não pela excepcionalidade de seus projetos e ideias.

O novo presidente do Brasil passou quase três décadas como um político daquilo que no Congresso brasileiro se chama “baixo clero”, grupo que faz volume mas não detém influência nem arquiteta as grandes decisões. A alcunha é uma alusão injusta ao clero religioso que faz o trabalho de formiguinha, o mais difícil e persistente, seguidamente perigoso, no mundo das igrejas. O próprio Bolsonaro já comentou que não tinha prestígio. Quando disputou a presidência da Câmara, em 2017, só obteve quatro votos dos mais de 500 possíveis. “Eu não sou ninguém aqui”, afirmou em um discurso no plenário, em 2011.

Os deputados do “baixo clero” do Congresso descobriram a sua força nos últimos anos e também como podem se locupletar unindo-se e fazendo número a favor dos interesses que lhes beneficiam. Ou simplesmente chantageando com o seu voto. Bolsonaro é dessa estirpe. Se ocupava um lugar no Congresso, era o de bufão. Até um ano atrás poucos acreditavam que poderia se eleger presidente. Parecia impossível que alguém que dizia as barbaridades que ele dizia poderia ser escolhido para o cargo máximo do país.

A massa que foi assistir à posse gritava: “WhatsApp! Facebook!”

O que se deixou de perceber é que quase todos tinham um tio ou um primo exatamente como Bolsonaro. Logo essa evidência ficou clara nos almoços de domingo ou nas datas festivas da família. Mas ainda assim parecia apenas uma continuação do que as redes sociais já tinham antecipado, ao revelar o que realmente pensavam pessoas que até então pareciam razoáveis. Deixou-se de enxergar, talvez por negação, o quanto esse contingente de pessoas era numeroso. Os preconceitos e os ressentimentos recalcados em nome da convivência eram agora liberados e fortalecidos pelo comportamento de grupo das bolhas da internet. As redes sociais permitiram “desrecalcar” os recalcados, fenômeno que tanto beneficiou Bolsonaro.

Os gritos das pessoas que ocuparam o gramado da Esplanada dos Ministérios, em Brasília, foram a parte mais reveladora da posse de Bolsonaro, em 1o de Janeiro. Eufórica, a massa berrava: “WhatsApp! WhatsApp! Facebook! Facebook!”. Quem quiser compreender esse momento histórico terá que passar anos dedicado a analisar a profundidade contida no fato de eleitores berrarem o nome de um aplicativo e de uma rede social da internet, ambos de Mark Zuckerberg, na posse de um presidente que as elegeu como um canal direto com a população e deu a isso o nome de democracia.

Bolsonaro representa, sim – e muito – um tipo de brasileiro que se sentia acuado há bastante tempo. E particularmente nos últimos anos. E que estava dentro de cada família, quando não era a família inteira. Todas as famílias gostam de se pensar como diferentes – ou, pelo menos, melhores (ou piores, conforme o ponto de vista) que as outras. A experiência de um confronto político determinado pelos afetos – ódio, amor etc – nestas eleições deixou marcas profundas.

Bolsonaro representa, principalmente, o brasileiro que nos últimos anos perdeu privilégios

Não engendrasse tantas possibilidades destruidoras para o país, o fenômeno Bolsonaro seria bastante fascinante quando olhado como objeto de estudo. Sugiro algumas hipóteses para compreender como o mediano entre os medianos se tornou presidente do Brasil. As pesquisas de intenção de voto mostraram que Bolsonaro era o preferido especialmente entre os homens e especialmente entre os brancos e especialmente entre os que ganhavam mais. Isso não significa que não tenha tido uma votação significativa entre as mulheres, os negros e os que ganham menos. Se não tivesse, Bolsonaro não conseguiria se eleger. Mesmo no Nordeste, a única região do Brasil em que perdeu para Fernando Haddad (PT), no segundo turno das eleições, Bolsonaro recebeu uma votação significativa.

O novo presidente representa, principalmente, o brasileiro que nos últimos anos sentiu que perdeu privilégios. Nem sempre os privilégios são bem entendidos. Não se trata apenas de poder de compra, o que é determinante numa eleição, mas daquilo que dá chão a uma experiência de existir, aquilo com que faz com que aquele que caminha se sinta em terra mais ou menos firme, conheça as placas de sinalização e entenda como se mover para chegar onde precisa.

Vária irrupções perturbaram esse sentimento de caminhar em território conhecido, em especial para o homem branco e heterossexual. As mulheres disseram a eles com uma ênfase inédita que não seria mais possível fazer gracinhas nas ruas nem assediá-las nos trabalho ou em qualquer lugar. A violência sexual foi exposta e reprimida. A violência doméstica, quase tão comum quanto o feijão com arroz (“um tapinha não dói”) foi confrontada pela Lei Maria da Penha. Afirmar que uma “mulher era mal comida” se tornou comentário inaceitável de um neandertal.

Na mesma direção, os LGBTI se fizeram mais visíveis na exigência dos seus direitos, entre eles o de existir, e passaram a denunciar a homofobia e a transfobia. Figuras públicas como Laerte Coutinho anunciaram-se como mulher sem fazer cirurgia para tirar o pênis. O que há entre as pernas já não define ninguém. E a posição de homem heterossexual no topo da hierarquia nunca foi tão questionada como nos últimos anos.

Tanto que, como reação, surgiram proposições como criar o “Dia do Orgulho Heterossexual” ou o “Dia do Homem” e até o “Dia do Branco”. Não faz sentido criar datas para quem tem todos os privilégios, mas as propostas apontam como mesmo a perda destes privilégios em particular parece balançar o mundo de quem sempre teve a coleção completa de vantagens como direito inalienável.

Em discurso, Bolsonaro prometeu “libertar” o Brasil do “politicamente correto”

O que a maioria dos homens entendia como direito – falar o que bem entendesse, especialmente para uma mulher – já não era possível. “Não dá para falar mais nada” se tornou uma frase clássica na boca destes homens. As já tradicionais piadas de “viado”, um tema clássico de fortalecimento da identidade de macho, tornaram-se inaceitáveis. O “politicamente correto”, que Bolsonaro e seus seguidores tanto atacaram nesta eleição, foi interpretado como agressão direta a privilégios que eram considerados direitos.

Para um homem pobre, seja ele branco ou negro, tripudiar sobre gays e/ou mulheres na vida cotidiana pode ser a única prova de “superioridade” enquanto enfrenta o massacre diário de uma jornada extenuante e mal paga. Bolsonaro compreendeu isso muito bem. Em seu discurso para a população aglomerada na Praça dos Três Poderes, nesta terça-feira, o presidente recém-empossado colocou o combate ao “politicamente correto” como uma das prioridades do seu governo. Não a assombrosa desigualdade social, que até mesmo presidentes conservadores achavam de bom tom citar, mas a necessidade de “libertar” a nação do jugo do “politicamente correto”.

Logo no início do discurso, Bolsonaro afirmou: “É com humildade e honra que me dirijo a todos vocês como presidente do Brasil e me coloco diante de toda a nação neste dia como um dia em que o povo começou a se libertar do socialismo, se libertar da inversão de valores, do gigantismo estatal e do politicamente correto”.

É esse brasileiro “acorrentado” que votou para retomar seus privilégios, incluindo o de ofender as minorias, como seu representante fez durante toda a carreira política e também na campanha eleitoral. Para muitos, o privilégio de voltar a ter assunto na mesa de bar – ou o de não ser reprimido pela sobrinha empoderada e feminista no almoço de domingo.

Somado a isso, as cotas raciais nas universidades, assim como o Estatuto da Igualdade Racial, conquistas dos movimentos negros reconhecidas pelos governos do PT, atingiram fundo os privilégios de raça, tão enraizados quanto os privilégios de classe e de gênero no Brasil, possivelmente mais.

Os negros passaram a não aceitar passivamente ser maioria nas piores estatísticas, ter menos tudo, assim como morrer mais e mais cedo. É desse confronto que vem a frase sem qualquer lastro na realidade, mas repetida com persistência por Bolsonaro e seus seguidores: a de que “o PT inventou os conflitos raciais”. É claro que, enquanto os negros seguissem aceitando o seu lugar subalterno e mortífero na sociedade brasileira, não haveria conflito. Mas esse tempo acabou e até mesmo lugares que pareciam reservados apenas aos filhos dos brancos, como as carreiras mais disputadas das universidades públicas, começaram a ser ocupados pelos negros.

Para as famílias, especialmente as brancas, outra mudança atingiu profundamente um privilégio arraigado que está na formação do Brasil, e que foi pouco alterado pela abolição da escravidão negra. No início da segunda década do século, a “PEC (Proposta de Emenda Constitucional) das Domésticas” deu a essa categoria formada majoritariamente por mulheres, a maioria delas negras, direitos trabalhistas que outras categorias tinham há décadas mas que sempre foram negados a elas, como o limite da jornada de trabalho e o FGTS (Fundo de Garantia por Tempo de Serviço).

O ódio dos bolsonaristas se expressa não pela ação, mas pela reação: a de quem se defende do que acredita ser um ataque

Isso fez com que muitas famílias de classe média temessem não poder mais manter a sua escrava contemporânea fazendo todo o serviço dentro de casa e/ou cuidando dos filhos dos patrões por um tempo ilimitado de horas. Essa medida afetou profundamente as mulheres brancas de classe média, ainda hoje em grande parte responsáveis pela administração doméstica, apesar dos avanços feministas. As reclamações ocupavam todos os espaços. Os direitos das empregadas domésticas eram compreendidos como privilégios, quando na verdade era o privilégio dos brancas de ter uma mulher negra explorada e mal paga fazendo o serviço doméstico que estava em jogo.

Os direitos de gênero, classe e raça estão conectados. O reconhecimento destes direitos e a ampliação do acesso dos negros a espaços até então reservados aos brancos teve grande impacto no resultado eleitoral e também no antipetismo. O ódio dos bolsonaristas se expressa não na ação, mas na reação: a de quem se defende do que acredita ser um ataque. Também por isso sentem ser legítimo lançar as piores e mais violentas palavras contra o outro. Acreditavam – e ainda acreditam – estar apenas se defendendo, o que na sua visão de mundo justificaria qualquer violência. Também por isso o outro é inimigo – e não opositor.

Quando Bolsonaro assume o poder, este homem sente que também ele volta a governar um mundo que já não compreendia

Mas qual é o ataque que acreditam estar sofrendo? A suspensão de privilégios que consideravam direitos, acirrada pelo desamparo que uma crise econômica e a ameaça de desemprego provocam. Era gente – principalmente homens, heterossexuais e brancos – que nos últimos anos via o chão desaparecer debaixo dos seus pés. Excluídos das elites intelectuais, pressionados a ser “politicamente corretos” porque outros saberiam mais do que eles, ridicularizados na sua macheza fora de época, assombrados por mulheres até mesmo dentro de casa, reagem. Como se sentem fracos, reagem com força desproporcional.

Esses brasileiros não querem um homem melhor do que eles na presidência. O que querem é um homem igual a eles no governo. Numa época em que até as metáforas se literalizaram, Bolsonaro lhes devolve – literalmente – aquilo que sentem que lhes foi tirado. Ao assumir o poder, Bolsonaro mostra que a ordem do mundo volta ao “normal”. Com Bolsonaro, eles voltam também ao Governo de suas próprias vidas, sem serem questionados nem precisarem ser questionados sobre temas tão espinhosos como, por exemplo, a sexualidade e seu lugar na família e na sociedade.

São principalmente homens, mas também são mulheres que sentem que a opressão é um preço baixo a pagar para voltar a um território que, mesmo asfixiante, é conhecido e supostamente mais seguro num mundo movediço. São brasileiros que pertencem a diferentes religiões, mas a votação mais expressiva recebida por Bolsonaro foi entre os evangélicos. As igrejas evangélicas neopentecostais têm multiplicado o número de fiéis e aumentado sua representação no Congresso nos últimos anos, encarnando uma das mais importantes mudanças culturais – e políticas – do Brasil.

Como disse Bolsonaro em seu discurso às massas, logo após ser ungido com a faixa presidencial: “Não podemos deixar que ideologias nefastas venham a dividir os brasileiros. Ideologias que destroem nossos valores e tradições, destroem nossas famílias, alicerce da nossa sociedade. Podemos, eu, você e as nossas famílias, todos juntos, reestabelecer padrões éticos e morais que transformarão nosso Brasil”.

Bolsonaro se torna herói porque enfrenta o “politicamente correto” e liberta os sentimentos reprimidos de seus iguais

Como se sentiam burros diante da intelectualidade acadêmica que sempre lhes torceu o nariz pontudo, os bolsonaristas adotaram seus próprios intelectuais. E também foram adotados por eles, como fez Olavo de Carvalho, que graças a isso se tornou um autor best-seller e passou a exercer seu autoproclamado “anarquismo” de forma bastante interessante.

Bolsonaro torna-se então aquele que “não tem medo de dizer o que pensa” ou “aquele que diz a verdade”. Bolsonaro se torna herói porque enfrenta o “politicamente correto” e liberta os sentimentos reprimidos de seus iguais. Eles, que começam a se sentir uns merdas diante de mulheres cada vez mais assertivas e de negros que não aceitam mais um lugar subalterno podem então voltar a mentir sobre privilégios serem direitos – e afirmar que esta é “a verdade”. Bolsonaro prega “transformação”, mas só se elegeu porque sua proposta de “mudança” trabalha com a ilusão do retorno. Essa “nova direita” compreende muito bem os anseios de uma parcela dos homens desesperados desse tempo.

Na tentativa de volta ao passado que já não pode ser, mesmo com Bolsonaro no poder, os privilégios perdidos foram tachados de “ideologia”. Aqueles que ideologizam tudo, até mesmo a orientação sexual e a religião alheias, culpam a ideologia por tudo. Se não gostam dos fatos, como o aquecimento global, convertem-nos em “ideologia marxista”. Transformam “politicamente correto” num palavrão. Qualquer limite torna-se uma afronta à liberdade, em especial a liberdade de ser violento. Chamam todos aqueles que apontam a necessidade de limites de “comunistas” ou “esquerdistas”, como se ambas as palavras significassem uma espécie de pecado capital.

Bolsonaro e seus seguidores corrompem a realidade e afirmam sua mediocridade como valor

Como sentiam-se oprimidos por conceitos que não compreendiam, os bolsonaristas descobriram que poderiam dar às palavras o significado que lhes conviesse porque o grupo os respaldaria. E, graças às redes sociais, o grupo os respalda. O significado das palavras é dado pelo número de “curtir” nas redes sociais. Esvaziadas de conteúdo, história e consenso, esvaziadas até mesmo das contradições e das disputas, as palavras se tornaram gritos, força bruta.

É assim que um homem medíocre como Bolsonaro vira “mito”. Ameaçados de perder a diferença que lhes garante privilégios que já não podem ter, Bolsonaro e seus seguidores corrompem a realidade e afirmam sua mediocridade como valor. Macho. Branco. Sujeito Homem.

Mas é este brasileiro que chega ao poder com Bolsonaro? Em parte sim. Mas em parte não. Este é o enredo que assistiremos a partir de agora. Tornar-se adulto não é apenas uma condição biológica. É, no sentido mais amplo, reconhecer seus limites e responsabilizar-se pelas próprias escolhas. Bolsonaro, claramente, é uma criança voluntariosa e mal educada que precisa da aprovação dos maiores.

Ao vislumbrarem que Bolsonaro poderia ganhar a eleição, diferentes grupos das elites se aproximaram e respaldaram sua candidatura. Cada um com seu projeto próprio. Há Paulo Guedes, o ultraliberal ambicioso e intoxicado pela própria importância que quer marcar a história, comandando o superministério da Economia. Há Sergio Moro, o juiz que mostrou que pode violar a lei caso ela perturbe seu projeto pessoal, porque acredita que seu projeto pessoal é público e acredita saber o que é melhor para a nação, como acreditam todos os que se creem superiores ou mesmo super-heróis.

Como o garoto Bolsonaro vai lidar com as disputas no mundo dos adultos?

Há os representantes do “agronegócio”, ramo que no Brasil se confunde com crimes como grilagem (roubo) de terras públicas e conflitos agrários causadores de dezenas de assassinatos a cada ano. Fiadores do governo de Michel Temer (MDB) e também da candidatura de Bolsonaro, os ruralistas não apenas estão no governo, mas “são” o governo.

Esse grupo vai abrir a Amazônia para a exploração – soja, gado e mineração, além de grandes obras. Isso significa, entre outras medidas, mudar ou “regulamentar” a Constituição para abrir as terras públicas de usufruto exclusivo dos indígenas ou as terras coletivas dos quilombolas para lucros de grupos privados. Uma das primeiras medidas de Bolsonaro, logo após ser empossado na presidência, foi transferir a demarcação das terras indígenas e das terras dos quilombolas para o Ministério da Agricultura. Já no primeiro dia Bolsonaro entregou o futuro da floresta e do cerrado àqueles que os destroem.

No escalão mais subalterno, há um ministro do Meio Ambiente condenado por violar o meio ambiente, um ruralista escolhido pelos ruralistas. Há uma ministra da cota evangélica que vai cuidar de temas tão amplos como direitos humanos, mulheres e indígenas, a partir de uma leitura literal da Bíblia. Há um ministro de Cidadania que será responsável também pela área da cultura, mas já afirmou não entender nada da área.

Há ainda os ministros da cota afetiva de Bolsonaro, como o chanceler Ernesto Araújo, que assumiu para si a tarefa de construir a base intelectual da ideologia de Bolsonaro. Em artigo publicado numa revista americana, o diplomata que parece desprezar a diplomacia lançou uma espécie de nacionalismo religioso: “Deus através da nação”. E há o ministro da Educação que acredita que o golpe que levou o Brasil a 21 anos de ditadura deve ser comemorado. O apagamento da história, sacrificando os fatos em nome da ideologia, é uma das missões do governo Bolsonaro.

E há, finalmente, aquele que é talvez o grupo mais significativo, composto por sete militares ocupando postos chaves no governo. Nem sempre esses grupos concordam sobre o que é melhor para o Brasil. É provável que em alguns pontos possam discordar radicalmente. Como então o garoto Bolsonaro vai lidar com a disputa de gente grande?

Como o menino mimado vai se haver com a realidade, agora que a campanha acabou? Como vai ser quando a corrosão dos dias ameaçar a paixão das massas? E, no lado oposto, como os adultos da sala vão lidar com a criança cheia de vontades quando ela não puder ser manipulada – ou estiver sendo manipulada pelo grupo adversário – e ameaçar seu projeto de poder? Como se dará essa negociação? Quais são os riscos de ruptura?

Como todo medíocre, Jair Bolsonaro arrota ignorância como se fosse sabedoria. Mas, também como todo medíocre, no fundo, bem no fundo, ele suspeita que é medíocre. E busca desesperadamente a aprovação dos adultos.

No momento, Bolsonaro está encantado por ter um intelectual ligado à Escola de Chicago dizendo a ele o quanto é especial. Um herói da Operação Lava Jato lhe tecendo elogios. E, principalmente, generais batendo continência ao capitão. Mas a realidade é implacável com as ilusões.

Para acirrar a possibilidade de conflitos, há ainda a família de Bolsonaro, com seu trio de principezinhos, desta vez mimados pelo pai, que ainda chama marmanjos sem limites de “garotos”. Extasiados com o poder, eles já mostraram o quanto gostam do palco e quanta confusão podem aprontar. Como pai típico deste momento histórico, Bolsonaro protege seus meninos. Neste caso, da própria mediocridade. Os Bolsonaros Júnior parecem ter certeza de que são excepcionais e que a realidade vai se dobrar à sua vontade. Se não se dobra, sempre podem chamar “um cabo e um soldado” para fazer o serviço.

A experiência de Brasil que agora se inicia é fascinante. Mas só se vivêssemos em Marte e se a maior floresta tropical do planeta não estivesse ameaçada. Em algum momento, Jair Bolsonaro se olhará no espelho e verá apenas Fabrício Queiroz, o PM e ex-assessor do filho que não consegue explicar de onde vem o dinheiro que depositou na conta da primeira-dama. Em algum momento, Jair Bolsonaro poderá se olhar no espelho e verá apenas a imagem mais exata de si mesmo. Assombrado pela verdade que não poderá chamar de “fake news”, ele correrá para as ruas para ouvir os Queiroz gritarem: “Mito! Mito! Mito!”. Mas o grito pode ter sido engolido pela realidade dos dias. Saberemos então, em toda a sua magnitude, o que significa Bolsonaro no poder.

*Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A


Alon Feuerwerker: Radicalização ideológica de Bolsonaro previne corrosão política enquanto a economia não reage

Todo poder político trabalha, antes de tudo, para perpetuar-se. Frases como “eles têm projeto de poder, nós temos projeto de país” servem para consumir papel e tinta (literais ou eletrônicos) mas não têm significado real no mundo da política. Um atributo notável de Jair Bolsonaro é a transparência: a alternância com a esquerda não está mesmo nos planos.

Era (e foi) esperado que esse apego viesse embalado como do mais alto interesse nacional. Tanto eficaz será a comunicação de qualquer líder e governo quanto mais o interesse particular for apresentado, e aceito, como interesse geral. Também por isso o governo Bolsonaro começou bem a disputa da comunicação. O “Brasil acima de tudo” continua funcionando.

Governar é decidir, e também saber comunicar a decisão. Quem pede moderação e conciliação no discurso bolsonarista pede que o novo regime abra mão de sua principal fonte de poder: a convicção popular, alimentada por anos, de que a solução para os principais problemas do país reside na eliminação de um pedaço da política. Ou da própria sociedade.

É esperado que os operadores encarregados de aprovar as coisas no Congresso peçam alívio no discurso. Também parece ser o sentimento dos estrategistas, quase todos militares. O problema? Quando propõem a conciliação, governos nascidos de batalhas políticas radicalizadas acabam passando a ideia de fraqueza. A última vítima disso foi Dilma Rousseff.

O poder é permanentemente rondado por quem deseja tomar o lugar. No caso de Jair Bolsonaro o perigo imediato não está na esquerda, isolada e por enquanto dividida. Vem da eleitoralmente pulverizada mas socialmente sempre influente direita não bolsonarista. É quem melhor personifica no Brasil o dito globalismo, besta-fera do bolsonarismo.

É uma corrente que está apenas à espera de as coisas começarem a dar errado para se apresentar como a solução à mão. Exemplos: 1) O PSDB oferecer-se para entrar no governo Collor, 2) o “ministério ético” do próprio Collor, 3) a nomeação de Fernando Henrique ministro da Fazenda de Itamar e 4) Dilma entregar a Michel Temer a articulação política na crise.

O único caso em que isso “deu certo” foi o terceiro, ao custo de Itamar abrir mão do poder real, concessão necessária para não ser derrubado. Na prática o governo Fernando Henrique Cardoso começou não em janeiro de 1995, mas em maio de 1993. Apesar das tentativas de manter viva a ideia de ter havido um governo Itamar Franco até o final de 1994.

Qual o desafio imediato de Bolsonaro? Inverter rapidamente as expectativas econômicas para impedir o surgimento de uma bolha de frustração que drene seu prestígio popular antes de o governo apresentar resultados. O instrumento à disposição é manter a luta ideológica bem aquecida e tentar despertar o chamado “instinto animal” do empresariado.

Jair Bolsonaro assume em condições bastante razoáveis. Inflação controlada, PIB em (lenta) recuperação, apoio maciço no empresariado e (potencialmente) no Congresso, imprensa ou favorável ou não radicalmente hostil, oposição entretida em disputas internas (coisa normal depois de derrota), Forças Armadas a favor e atuando como poder moderador.

Mas, como se diz, uma hora o governo precisará entregar a mercadoria. A economia precisa reagir, até porque a ideia é substituir progressivamente as proteções estatais ao povão por oportunidades que a economia privada oferecerá a esse povão. E quando esse despertar econômico é tentado mais pelo lado do investimento que do consumo o prêmio costuma demorar mais.

*
Não há registro no Brasil de Congresso Nacional que tenha criado problemas para governos que largam com amplo apoio na elite. Fernando Collor tinha uma base formal estreitíssima e não teve a menor dificuldade para aprovar o enxugamento temporário de liquidez que quando ele caiu em desgraça se transformou no “sequestro da poupança". Recordar é viver.

*
O governo Bolsonaro oferece uma grande oportunidade para o jornalismo. Acabou o tempo em que bastava se indignar e seguir a cartilha das causas pré-definidas como “do bem”. A coisa agora vai exigir mais sofisticação, pois o novo poder se apresenta com uma ideologia estruturada. Para criticar, antes de tudo é preciso entender o que outro está dizendo.

*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação


Vera Magalhães: De um lado, diagnóstico e prioridades; de outro, retórica ideológica

No primeiro time se destacaram Sérgio Moro e Paulo Guedes, cujas falas iniciais, densas, técnicas e bem centradas, confirmam a análise de que serão os pilares e os esteios do governo

Os discursos dos ministros de Jair Bolsonaro nas cerimônias de transmissão de cargos ontem em Brasília evidenciaram a existência de dois grupos na Esplanada. De um lado aqueles dotados de superestruturas, equipes afiadas, metas ousadas e prioridades para alcançá-las. De outro, o grupo escolhido por afinidade ideológica com a agenda conservadora com toques de religião, cujas falas primaram pela retórica sem conteúdo prático.

No primeiro time se destacaram Sérgio Moro e Paulo Guedes, cujas falas iniciais, densas, técnicas e bem centradas, confirmam a análise de que serão os pilares e os esteios de um governo que tem na economia seu maior desafio e na segurança e combate à corrupção suas mais poderosas bandeiras.

Moro começou explicando por que trocou a estável carreira de juiz por uma aposta na política (sim, a missão é em última instância política, por menos que ele goste). Avaliou que poderá avançar em sua agenda primordial, a do combate à corrupção, com a estrutura que terá em mãos.

E demonstrou ter consciência de que deve priorizar também o combate ao crime organizado – o que inclui enfrentar o caos nos presídios e o estrangulamento financeiro das facções – e a segurança pública, tão presente nos discursos de Bolsonaro. Tem cacife, inclusive, para mediar os excessos dos bolsonaristas nesta última seara.

Guedes deu uma aula de liberalismo no longo e nem por isso maçante discurso que proferiu ao assumir a tentacular pasta da Economia. De forma didática e desassombrada demonstrou por que a reforma da Previdência é condição sine qua non para o sucesso do governo e o crescimento sustentável da economia.

Não fez a demonização rasa da agenda anterior, ao reconhecer que a alternância de ciclos econômicos é normal e em alguma medida desejável. E, muito importante, demonstrou ter amadurecido no período da transição ao admitir reconhecer que a tarefa pode desencorajar quem, como ele, não conhece os meandros de Brasília e enaltecer a importância da articulação política e da imprensa para o convencimento da sociedade quanto à agenda liberal.

A precisão de diagnóstico e estratégia da dupla destacou ainda mais a inconsistência do outro grupo, no qual a cereja do bolo foi o discurso confuso, cheio de citações que se pretendiam eruditas, mas eram apenas deslocadas e sem relação umas com as outras, do chanceler Ernesto Araújo. Quando a retórica ideologizada toma o lugar das propostas, o resultado é sempre constrangedor. Seja na esquerda dilmista ou na neodireita bolsonaro-olaviana.


Ricardo Noblat: Pela direita, como quis a maioria

Falso assombro

A esquerda começou a estrilar com as primeiras medidas anunciadas pelo governo do capitão Jair Bolsonaro. Como se elas pudessem ser diferentes. Como se fosse possível ao presidente eleito pela direita com larga maioria de votos, governar pela esquerda ou apenas pelo centro.

Em 2002, Lula elegeu-se pela esquerda, e até a queda do ministro Antônio Palocci, da Fazenda, governou pela direita, como o próprio PT, contrariado, reconheceu à época. Dilma reelegeu-se em 2014 pela esquerda e tentou governar pela direita. Caiu, mas não por causa disso.

Lula no primeiro mandato e Dilma no segundo cometeram um estelionato eleitoral, crime comum a governantes por aqui e em vários lugares. José Sarney já o havia cometido com o Plano Cruzado em 1986, e Fernando Henrique Cardoso com o Real ao se reeleger em 1998.

O capitão não dá nenhum sinal de que poderá ser mais um a se eleger prometendo uma coisa para depois fazer o inverso. Ponto para ele. O choro e o assombro dos derrotados não são sinceros. Eles não esperavam nada de original. Reagem assim para manter sua tropa unida.

Quando o ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, anuncia que irá retirar “de perto da administração pública federal todos aqueles que têm marca ideológica clara”, repete o que fez PT ao chegar ao poder pela primeira vez, com a diferença de que o PT não anunciou o expurgo, executou-o.

Governa-se com os seus à direita ou à esquerda. Isso se chama alternância no poder, um dos princípios do regime democrático. Caberá ao eleitor, na data marcada, confirmar a escolha que fez ou revê-la.

Itamaraty em estado de choque
O ministro maluquinho

Nem entre bolsonaristas de raiz pegou bem o discurso feito pelo embaixador Ernesto Araújo ao assumir, ontem, o cargo de ministro das Relações Exteriores. Foi um desempenho, o dele, capaz de deixar chocados diplomatas tupiniquins e estrangeiros.

Consolida-se a imagem de um homem que leu muito, misturou tudo que conseguiu reter, bateu num liquidificador e oferece agora aos obrigados a ouvi-lo da maneira a mais confusa possível, quase incompreensível. Arrota conhecimentos e colhe perplexidade.

É uma enciclopédia viva com tudo fora do lugar.


Vinicius Torres Freire: Guedes reafirma desmanche do Estado

Ministro toma posse com plano de desfazer 40 anos de estatismo em 4 de Bolsonaro

Paulo Guedes tomou posse com um discurso de combate, no estilo bolsonarista, embora tenha elogiado imprensa e Congresso.

Reafirmou na íntegra a promessa de desmanche do Estado, uma reviravolta histórica que pretende desfazer pelo menos 40 anos de fracassos de uma economia dirigida, disse.

No futuro, que trouxe de modo afobado a valor presente, a carga tributária nacional baixaria em um terço, uma enormidade. O início das reformas neste 2019 bastaria para o país crescer por uma década.

Descontadas as animações futuristas, o ministro da Economia explicou seu programa inicial. Esse plano ainda ambicioso, mas mais pragmático, pareceu mais plausível com a informação de que o bolsonarismo, o centrão e talvez parte da esquerda devem reeleger Rodrigo Maia (DEM) presidente da Câmara, que estava ao lado de Guedes no palco da posse. É uma primeira e crucial aliança política de Bolsonaro.

O mercado se animou com esse caminho luminoso. Com a ajuda do preço do petróleo e da possibilidade de privatização da Eletrobras, a Bovespa decolou, juros e dólar caíram bem.

Guedes indicou que quer reformar a Previdência em dois grandes tempos. Primeiro, a mudança do atual sistema, remendando e aprovando no menor tempo possível o projeto de Michel Temer. A mudança para o sistema de contas individuais de poupança previdenciária (capitalização) ficaria para depois.

Logo de início, o governo tocaria privatizações rápidas e a redução de gastos previdenciários e assistenciais que não depende de mudança constitucional ou mesmo de lei. Em breve, começaria o processo de unificação de impostos federais e a extinção paulatina da CLT.

Enfim, o ministro mantém o projeto de reduzir ao osso a banca estatal, a começar pelo BNDES. Mesmo programas de empréstimos subsidiados (microcrédito) deveriam ser tocados pelo setor privado.

A Caixa deve passar por enxugamento grande também —não disse, mas era possível ouvir tal coisa no governo.

Guedes foi enfático ao dizer que agora começa uma história liberal no Brasil.

Que o excesso de Estado gerou dois bastardos, a corrupção e o dirigismo, que mata o crescimento: “Piratas privados, burocratas corruptos e criaturas do pântano político se associaram contra o povo brasileiro”.

O descontrole do gasto público e más políticas econômicas criaram uma dívida enorme e juros altos, o “paraíso dos rentistas, inferno dos empresários”; provocaram colapsos econômicos variados, de hiperinflação a crises e calotes da dívida externa, que obriga o país até hoje a manter um excesso de reservas internacionais.

Guedes fala tanto de história também porque quer fazer história. No limite da utopia, o governo central seria uma agência reduzida, que teria repassado recursos e tarefas a estados e cidades.

O ar seco de Brasília costuma desidratar planos túrgidos, decerto, mas o ministro parece não estar nem aí.

Convém prestar atenção, até porque a maioria do país acaba de votar em uma mudança radical depois de uma crise de raridade secular, política e econômica.

E se não passar a Previdência? O governo então iria propor a desvinculação geral de todos os gastos federais, saúde e educação inclusive, imensa mudança constitucional.

O ministro sugeriria, pois, lançar uma bomba atômica na terra arrasada que seria a de um governo fracassado na Previdência.

Guedes aprendeu um bom tanto de política desde a campanha. Mas ainda não se graduou, pelo jeito.


Matias Spektor: Ernesto Araújo enfrenta primeiro teste em Lima

Resultado da jornada do novo chanceler terá três impactos fundamentais

Está marcada para amanhã a estreia do chanceler Ernesto Araújo, quando ele participa da reunião do Grupo de Lima, o clube de países interessados em coordenar uma resposta à ditadura venezuelana.

Trata-se de encontro importante porque Nicolás Maduro está prestes a assumir um novo mandato presidencial e, pela primeira vez em muito tempo, devido à crise econômica galopante, dissidentes e opositores conseguem oferecer uma perspectiva de mudança.

Em Lima todos os holofotes estarão sobre o chanceler brasileiro. Bolsonaro alimentou a expectativa de que o Brasil jogará seu peso contra o chavismo, e a pergunta que todos farão é se Araújo consegue liderar a costura de um consenso regional ou se ele tropeçará nos obstáculos que, há tempos, inviabilizam um front comum.

Ao pousar em Lima, o ministro terá somente apoio líquido e certo da Colômbia. O México lhe fará oposição. Argentina, Chile e Peru terão alguma simpatia, mas precisarão ser convencidos.
O resultado da jornada terá três impactos fundamentais.

O primeiro é sobre a Venezuela. Se houver consenso em Lima, os opositores do regime em Caracas e no exílio farão novos movimentos. Se a região ficar dividida, tudo fica como está.

O segundo impacto é sobre Bolsonaro. O presidente terá sua primeira vitória diplomática se o grupo publicar uma declaração com medidas duras, tais como a negação de vistos a representantes do regime venezuelano, a imposição de sanções, uma denúncia ao Tribunal Penal Internacional ou uma crítica à China e à Rússia, as duas potências que ainda ajudam a manter o chavismo no poder.

Ao contrário, Bolsonaro terá amargado um fracasso se a declaração de Lima for murcha, com decisões inócuas, tais como uma mera retirada de embaixadores de Caracas ou um palavreado vazio sobre o não-reconhecimento da legitimidade de Maduro.

O terceiro impacto da reunião de Lima será sobre a posição do próprioErnesto Araújo no governo. Devido às escolhas que fez para alcançar o cargo, ele ainda tem muito chão pela frente antes de consolidar seu nome na Esplanada dos Ministérios.

Enquanto sua força for derivada do deputado Eduardo Bolsonaro, sua permanência no cargo estará sempre por um fio. Para sobreviver no lugar que ocupa, reassegurar quem duvida dele e isolar opositores, ele precisa selar o apoio inconteste do presidente.

Uma vitória em Lima faria isso. Não só devido à Venezuela, cujo desfecho é incerto. Mais pelo efeito de entregar uma região unida contra o chavismo: a garantia de que Bolsonaro encontrará portas abertas por toda a Washington, muito além da Casa Branca.

* Matias Spektor é professor de relações internacionais na FGV.


Fernando Canzian: Com economia, Bolsonaro pode ser duplamente cruel com a esquerda

Única coisa que nos afasta do crescimento é saber de onde tiraremos os R$ 300 bi para fechar as contas

Não são pequenas as chances de Jair Bolsonaro dar certo na economia. E de implementar por um bom tempo uma agenda de retrocessos em outras áreas. Sobretudo em temas caros à esquerda.

Além de ter perdido a eleição, a esquerda pode ficar à deriva por um longo período caso a equipe de Bolsonaro consiga entregar o contrário do que o PT propôs na campanha —mais gastos estatais para tirar o país da crise e a não urgência na reforma da Previdência.

O paradoxo hoje é o seguinte: o Brasil nunca esteve tão quebrado, precisando de quase R$ 300 bilhões por ano para conter a trajetória explosiva da dívida pública. Por outro lado, raramente teve condições tão propícias para voltar a crescer.

Apesar do endividamento estatal recorde (próximo a 80% do PIB), os juros básicos pagos a quem financia a dívida pública (todos os que têm alguma aplicação no banco) estão em 6,5% ao ano. Com uma inflação de 4%, o juro real é de 2,5% --algo muito baixo para nossos padrões.

Há uma capacidade produtiva inutilizada nas empresas de 25%, ante a média mais apertada pré recessão de 17%. Isso permite que o consumo volte a crescer —e as empresas a produzir mais— sem pressões sobre a inflação.

No setor externo, que no passado nos levou repetidamente ao FMI, a situação é invejável. Há US$ 380 bilhões em reservas (acumuladas pelo PT) e expectativa de saldo comercial acima de US$ 60 bilhões neste ano —valor próximo ao que deve entrar também em investimentos.

Em resumo, a única coisa que nos afasta do crescimento é saber de onde tiraremos os R$ 300 bilhões para fechar as contas. Eles podem vir de uma mistura de corte de gastos, aumento de impostos e de uma arrecadação maior caso o crescimento acelere.

Na equipe montada por Paulo Guedes (Economia) encontram-se alguns dos melhores técnicos da praça. Muitos são funcionários de carreira que têm, há anos, um diagnóstico bastante coerente dos problemas. Entre eles:

1) a produtividade do trabalho cresce em ritmo muito lento, com alta de apenas 17% em 20 anos, ante 34% na média dos países desenvolvidos;

2) gastos com a Previdência equivalentes a 8% do PIB, mais que o dobro do percentual em países com demografia parecida com a nossa;

3) despesas da máquina federal que dobraram para 19,5% do PIB nos últimos 25 anos, também pela remuneração de servidores, que aumentou até três vezes acima do que é pago no setor privado.

Atacar esses pontos exigirá mexer diretamente na máquina pública e em quem forma as bases dos partidos de esquerda no Brasil, como funcionários públicos representados pela CUT e seus sindicatos.

Se der certo, Bolsonaro não só pode alijar por um bom tempo a esquerda do poder. Mas chegar a isso minando justamente o seu principal terreno.

*Fernando Canzian é jornalista, autor de "Desastre Global - Um Ano na Pior Crise desde 1929". Vencedor de quatro prêmios Esso.


Eugênio Bucci: A responsabilidade da esquerda

Em vez de se defender pela negativa, deve partir para a autocrítica pública, aberta e radical

“Ma non vivere di lamento
come un cardellino accecato”
Giuseppe Ungaretti

Está certo que o contexto lá fora não ajuda. Polônia, Hungria, Áustria, Rússia, Turquia, Estados Unidos e outros países mostram a ferocidade de um novo conservadorismo raivoso: nacionalista, xenófobo e autocrático. Quanto às plataformas autointituladas “progressistas” (esse adjetivo meio curinga), descambam em farsas bonapartistas e métodos sangrentos, como na Nicarágua ou na Venezuela. Nesses casos, o bonapartismo é tão farsesco e a sanguinolência tão metódica que os resquícios de “progressismo” já vão longe, como a poeira deixada pelas patas do cavalo de Simón Bolívar. O tal “progressismo” se degrada em ditaduras que não cultivam nenhum valor humanista.

Também no Brasil, o cenário não ajuda. Nas eleições do ano passado, as agremiações de esquerda não foram meramente derrotadas: foram sentenciadas a uma desmoralização prolongada, condenadas ao papel incômodo de motivo de chacota, de ódio ou de desprezo intelectual. Os militantes que ainda não perceberam a tragédia que os engoliu se refugiam num gregarismo messiânico. Põem a consciência para hibernar, em pleno verão, enquanto uma nova direita brucutu, herdeira da ala mais fascista da ditadura militar, vai tomando posse das fantasias tanáticas de milhões de brasileiros. Essa direita hostiliza a imprensa, escarnece da cultura dos direitos humanos e agora dá as cartas.

Definitivamente, o contexto não ajuda. O entorno é adverso. A intuição do militante socialista o impele na direção de um único verbo: resistir. Acontece que, nesta hora, a intuição reativa induz a erro, é má conselheira. A saída é contraintuitiva: a esquerda – e o PT especialmente – precisa demolir os muros dentro dos quais se encolheu. Em lugar de se defender pela negativa, deve partir para a autocrítica – pública, aberta e radical.

Aí está a única agenda que conta, a única que pode abrir novas pontes de diálogo com a sociedade e reafirmar os valores da solidariedade e da liberdade além do mercado. Debater os erros programáticos, os estelionatos eleitorais e os crimes de corrupção cometidos durante os governos liderados pelo PT fará bem ao PT e à esquerda. Sem isso não haverá superação. Recusar essa agenda significará validar as infâmias dos que querem varrer os socialistas da terra brasileira, como numa confissão de culpa de amplo espectro. Ou a esquerda parte para a sua autocrítica, ou será fossilizada.

Mas como partir para a autocrítica? Quem mais se opõe à ideia é a direção do PT, sob a alegação de que isso favoreceria a direita e exporia o partido a uma expiação em praça pública. Sofisma. Em lugar do debate franco, a cúpula petista propõe o mutismo, que só faz agravar o isolamento. Em vez de esclarecer o que interessa ao campo democrático, insiste na repetição dos bordões vazios que servem apenas para tergiversar (como matraquear que o PSDB cometeu os mesmos “erros”, etc.). Nada poderia ser pior para a esquerda do que o silêncio devocional.

A cúpula prefere, como nos versos de Ungaretti, “viver se queixando, viver de lamentações, de lamúrias, de resmungos, como um pintassilgo cego”. As “aristocracias” do trabalhismo e seu instinto (equivocado) de preservação talvez sejam o maior entrave para o futuro da esquerda. Há cem anos, na Europa, a “aristocracia operária”, apegada a seus privilégios mesquinhos, escreveu páginas de traição na história da social-democracia. Agora, por um capricho dessa mesma história, algo de parecido aprisiona o PT. Um processo de autocrítica radical ameaçaria o lugar cativo da elite partidária e esta, classicamente, prefere o naufrágio a perder suas acomodações nas cabines de primeira classe.

Está cada vez mais explícita a dificuldade que certas camadas dirigentes têm em promover a democracia interna. Há décadas, agrupamentos de esquerda (não todos) padecem desse déficit democrático muito particular, que decorre diretamente dos obstáculos criados por “aristocracias” sindicais ou partidárias contra a democracia interna. Agora, quando seus aparelhos estrebucham, a “aristocracia” teima. O que farão, então, os partidos de esquerda? O que fará a esquerda? Saberá compreender a responsabilidade que lhe cabe?

Organizações de esquerda que não se renovam, não fomentam a alternância dos seus quadros dirigentes e não dinamizam a democracia interna são incapazes de liderar a modernização da sociedade e o aprimoramento do Estado de Direito. Não por acaso, quando instalados no governo, no Parlamento ou em cargos públicos, alguns dos agentes dessas organizações terminam por aboletar-se em feudos dentro do Estado e aí reproduzem, com poucas adaptações, os vícios ancestrais do patrimonialismo. Nesse ponto, é bom sublinhar, as práticas corruptas e o déficit democrático andam de mãos dadas (mesmo que às escondidas).

E agora? O PT vai abrir a discussão? Vai reciclar seu corpo dirigente? Vai punir internamente (mas publicamente) os filiados que, em funções partidárias ou públicas, cometeram crimes de corrupção? O partido enfrentará a sua quota de déficit democrático? Ainda nesse tópico, fará a crítica pública das ditaduras da Venezuela e da Nicarágua? E as outras agremiações de esquerda? Entrarão abertamente nesse debate?

Se a resposta a essas perguntas for “não”, a esquerda brasileira perderá a chance de se credenciar como oposição consequente ao governo direitista de Jair Bolsonaro. Ficará choramingando em suas catacumbas imaginárias e pondo a culpa nos outros, sempre nos outros, como os pintassilgos cegos e os adolescentes mimados.

No fim, a democracia também sairá perdendo, porque sem uma esquerda respeitada a democracia se enfraquece. Se a esquerda não se libertar do seu silêncio obsequioso, será corresponsável por mais esta: o encolhimento da cultura democrática.

*Jornalista, é professor da ECA-USP


William Waack: Quem sabe faz a hora

Por uma ironia da História, o refrão ‘esperar não é saber’ pode mudar de mãos

Momentos decisivos na história são raros e o Brasil acabou de entrar num deles. A eleição de Bolsonaro foi só a preparação para o que vem agora: um País que, se quiser sair da mediocridade e estagnação, terá de confrontar a si mesmo.

O novo presidente prometeu libertar o Brasil de amarras que levaram gerações para serem confeccionadas. E que podem ser resumidas numa constatação preocupante: a sociedade brasileira falhou na tentativa de construir um Estado de bem-estar social nos moldes de países europeus. Nossa geração de riquezas não comporta um Estado de bem-estar social com o qual sonhamos.

Criamos um marco regulatório e legal que é um verdadeiro compendio de aspirações sociais, e que atribui ao Estado distribuir e garantir essas benesses e direitos codificados em leis. Esse papel garantiu a explosão de custos do setor público que financiamos através de aumentos de impostos nos últimos 30 anos (agora no nível do insuportável) e endividamento (beirando também o insuportável). Tudo junto mais a baixa produtividade são o famoso “custo Brasil”, que torna o País pouco competitivo.

O principal desafio de curto prazo é conhecido: lidar com as contas públicas, o que significa reformar a Previdência. Os principais obstáculos políticos são bem conhecidos também. Bolsonaro tomou posse graças a uma onda transformadora de amplo alcance e raízes profundas (ainda que em parte disfarçadas pelo repúdio ao petismo). O “mandato” conferido por esse fenômeno político para “defender a liberdade”, “acabar com corrupção e privilégios” e “fazer o Brasil crescer” é amplo para funcionar como inspiração, mas precisa ganhar contornos práticos e diretos imediatamente.

A combinação dos dois discursos de Bolsonaro no dia da posse é elucidativa. Ele reconhece que precisa do Congresso para governar e preferiu não esbravejar com o Legislativo – ao contrário, confia em velhas mãos (leia-se Rodrigo Maia como presidente da Câmara). Mas continua tratando de galvanizar o eleitorado como forma de manter a “temperatura” política necessária para, eventualmente, lidar numa posição de força com os senhores legisladores. Não parece que haverá em breve qualquer grande separação entre “palanque” e “governo”.

Ocorre que há sempre um limite para o nível de ebulição e efervescência políticas e o capital acumulado em termos de votos na recente eleição é erodido pelo tempo, que não é o cronológico. É o tempo da consagrada expressão alemã do “momentum”, a rápida conjunção de fatores estruturais e circunstanciais que abrem às vezes oportunidades únicas para alcançar objetivos amplos e difíceis.

Claro, seria muito mais elegante e refinado reescrever a Constituição (quem sabe tornando-a liberal) ou realizar uma ampla reforma política (a mãe de todas as reformas), mas isso significaria perder o ritmo e se deixar sufocar pelo peso monstruoso da crise fiscal, que já está paralisando serviços essenciais de saúde e segurança em vários Estados. O Brasil não é um país com mentalidade predominantemente liberal. Ao contrário: aqui a burocracia é encarada por muitos como proteção e não como obstáculo. O lucro é visto como pecado, e se alguém ficou rico é porque alguém ficou pobre.

O “ponto de equilíbrio” entre mudança e “status quo” no qual nos encontramos é o da instabilidade política, insegurança jurídica, estagnação econômica e mediocridade generalizada. Momento decisivo é empurrar o País para fora disso aí. Oportunidades desse tipo não se apresentam muitas vezes. E que ironia da História: cabe agora a um outro conjunto de forças políticas entoar o velho refrão – “quem sabe faz a hora, não espera acontecer”.