Bolsonaro
Mario Sergio Conti: Cavalgaduras à caça de Marx
Um tropel ignaro acossa o filósofo, que volta à vida ao analisar 'Fausto'
A majestade do "Fausto", de Goethe, obstrui a fruição do esplêndido poema dramático alemão. Acrescente-se à fama fáustica um século e tanto de teses emboloradas, de empoladas notas de pé de página. Elas mais envelhecem que dão viço ao doutor que vendeu a alma a Mefistófeles.
Esse argumento foi defendido por Brecht, em 1954, num estudo ao qual deu o título certeiro de "A Intimidação Através do Classicismo".
Algo assim ocorre hoje no Brasil. Aqui, um bando de brutamontes macambúzios só ejacula ao maltratar Marx, do qual não leu uma parca página.
Mas até o capitão sabe que não dá para associar o PT ao pensamento radical. Desde o berço o partido prescindiu do marxismo, hostilizando-o com zelo pelego. Seu norte foi a reforma —nhô sim de chapéu na mão e cabeça baixa.
Inspirador do socialismo, Marx saiu de moda no mundo todo. Está ausente das cogitações das castas dirigentes de Pequim, Pyongyang e Havana —para não falar das paródias bolivariana e sandinista. Por que então manter Marx na condição de espectro ameaçador? "Buuuuu", ainda?
Como o status quo quer esmerar a espoliação, Marx serve para satanizar a justiça e a igualdade. Serve para desqualificar a razão radical. A "manu militari" é hostil a raciocínios. Viceja no mangue das teorias conspiratórias. Mito é palavra que lhe cabe como luva.
É escutar o capitão dois minutos para perceber seu desprezo pela argumentação. Seus idólatras terão de incrementar a exploração por meio da força, e não de ideias bem concatenadas. Daí sua cruzada contra Marx, que Brecht batizaria de "A Intimidação Através da Ignorância".
A intimidação, porém, implica atentar contra a ciência, a filosofia, a arte, a cultura e a própria noção de estudo. A cultura, no seu sentido clássico, está sendo dinamitada dia e noite pelos escribas e pornógrafos da bolsonaríada.
As figuras de linguagem preferidas pelos ideólogos da baixaria são a hipérbole, o eufemismo e o paradoxo.
Elas são encaradas como petardos retóricos na guerra para excomungar os discordantes. O objetivo é ofendê-los e expulsá-los do debate de alternativas. Só a fé obtusa salva.
Bem entendido: a fé do capitão e de seus cortesãos em si mesmos. O marxismo contra o qual deblateram ficou incapaz de galvanizar os trabalhadores de todo o mundo. Ao xingá-lo, os estafetas da nova ordem dizem na verdade que não se deve mudar o mundo. É preciso se submeter.
Marx foi um grande pensador e escritor. Assim ele é reconhecido mundo afora. Mesmo distante da subversão direta, tem muito a dizer às pessoas de aqui e agora. Denegri-lo tem tanto sentido quanto ofender Spinoza. Estudá-lo, em contrapartida, amplia a imaginação e o mundo.
Nos "Manuscritos Econômico-Filosóficos", que escreveu em 1844, mas que foram publicados no século seguinte, Marx analisa versos do "Fausto", de Goethe. Neles, Mefistófeles diz que o homem com dinheiro para comprar seis cavalos adquire a força deles: passa a ter 24 pernas.
Para o demônio, a individualidade vale menos que a riqueza. O sujeito é horrível, mas a força repelente da feiura não impede que atraia as mulheres mais belas —caso tenha dinheiro em abundância. Ele pode ser coxo, mas a riqueza lhe dá 24 patas. Ela anula as incapacidades individuais.
Marx, que tinha 26 anos, escreveu que o dinheiro isenta o milionário do trabalho de ser desonesto. E conclui: o dinheiro é o vínculo do homem com a sociedade e a natureza. Vínculo de todos os vínculos, ele tanto pode unir como apartar as pessoas.
Noutro manuscrito, "Grundrisse", de 1857, Marx dá um passo adiante na conceituação da riqueza —o ter dinheiro à farta. Observa que, na Antiguidade, a riqueza nunca foi o objetivo da produção. O seu objetivo era a melhoria dos cidadãos e da cidade.
Só no mundo moderno a riqueza se tornou um objetivo em si —mas da classe proprietária. Mesmo assim, Marx defende a riqueza da era moderna. Ela significa "a universalidade das necessidades, capacidades, fruições e forças produtivas dos indivíduos".
Ou seja: "quando despojada da sua estreita forma burguesa" —a propriedade privada—, a riqueza é o alfa e o ômega da sociedade, o produto do esforço coletivo racional, que condensa o trabalho criativo de gerações.
Abdicar desse objetivo coletivo racional, para delegá-lo às forças irracionais da economia e da política, é um contrassenso regressivo. A abdicação, contudo, é moeda corrente nas sociedades que produzem aquém do necessário à sua dignidade e iluminação. É o que o jovem Marx ensina.
*Mario Sergio Conti é jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".
O Globo: Fala de Bolsonaro sobre base americana no Brasil é sinal político
Para especialistas, instalação concreta está distante da realidade, mas declaração mostra maior aproximação com EUA em defesa e rejeição da Unasul
Por Heloísa Traiano, de O Globo
A hipótese de instalação de uma base militar americana no Brasil parece distante da realidade, apesar de o presidente Jair Bolsonaro ter se dito anteontem aberto a negociações com os EUA sobre o tema em um “futuro” não determinado. Para analistas, no entanto, a declaração indica um novo alinhamento na área de defesa entre Brasília e Washington, em contraposição aos governos do PT, que buscaram articular na agora abandonada União de Nações Sul-Americanas (Unasul) uma arquitetura contrária à presença militar americana. A tendência acompanha outra, de inclusão da região nos radares de China e Rússia, após anos de reduzida atenção da Casa Branca.
Para David Magalhães, professor de Relações Internacionais da FAAP e da PUC-SP e especialista em defesa, a ideia levantada pelo presidente parece ter relação com a vontade do governo recém-empossado de avançar nas negociações para o uso pelos EUA do Centro de Lançamento de Alcântara, no Maranhão, que haviam sido retomadas pelo governo Temer em junho último. Em novembro, o hoje ministro da Defesa de Bolsonaro, general Fernando Azevedo e Silva, cogitara firmar convênios para que outros países pudessem lançar satélites a partir da base, embora não tenha se referido especificamente aos Estados Unidos.
— Me parece que, se houvesse acordo, ocorreria dentro de negociação mais ampla da base de Alcântara. Mas poderia haver também conversas à parte — diz Magalhães.
Hoje não há bases militares dos EUA ativas na América do Sul. A última foi desativada em 2009 no porto equatoriano de Manta, depois da negativa do então presidente Rafael Correa de renovar o seu uso. No Brasil, a base em Natal que serviu aos americanos na Segunda Guerra Mundial deixou de ser usada pelos americanos em 1945.
Bases informais
Magalhães ressalta que os EUA vêm costurando acordos de defesa de outras modalidades com países sul-americanos. O próprio Bolsonaro disse na entrevista ao SBT que “a questão física pode ser simbólica, porque o poderio das Forças Armadas americanas, chinesas e russas alcança o mundo todo”.
—A ausência de bases formais na região não quer dizer que os americanos não estejam presentes militarmente. A estratégia tem sido estabelecer bases informais, como vemos em Peru e Argentina, com escritórios para que as forças americanas tenham contato direto com governos — diz Magalhães.
Segundo Matias Spektor, da FGV em São Paulo, uma base se traduziria em altos custos financeiros. Para justificá-los, seria necessário um cenário no qual o governo americano tentasse uma intervenção militar ou defender a região de outra potência. Na entrevista, Bolsonaro disse: “Sabemos a intenção da ditadura do Maduro, e o Brasil tem que se preocupar”.
— Bolsonaro tenta se consolidar como o principal aliado de Trump na América Latina, enquanto os EUA dão sinais de que a região voltou ao radar por conta do aumento das presenças chinesa e russa. Uma base transformaria de vez a dinâmica regional. Não há outro país latino que vá neste sentido. Criaria suspeitas em relação ao Brasil entre os vizinhos, por um lado, mas, por outro, transformaria o Brasil em aliado dos EUA — diz Spektor.
Magalhães argumenta que o novo presidente parece tentar mostrar rejeição ao legado do governo Lula, no qual foi acelerada a articulação da Unasul, que tem o seu Conselho de Defesa. Hoje paralisada, a organização não tem secretário-geral.
— É um movimento espalhado de oposição ao “legado lulopetista”. E os americanos percebem a mudança no temperamento político da região.
Ricardo Noblat: Por que não te calas, Bolsonaro?
Tropa desautoriza o capitão
Na última quarta-feira, em entrevista à GloboNews, o general Augusto Heleno, ministro do Gabinete de Segurança Institucional da presidência da República, já se vira obrigado a desautorizar o capitão Jair Bolsonaro.
Não, ainda não está certa a transferência de Telavive para Jerusalém da embaixada o Brasil em Israel, esclareceu Heleno. Por ora, a ideia está na cabeça de Bolsonaro sem data para passar ao papel.
Ontem, foi o caos. O ministro Onyx Lorenzoni, da Casa Civil, e o secretário especial da Receita, Marcos Cintra, foram escalados para apagar os mais recentes incêndios provocados pelo presidente recém-empossado.
Não, não era verdade que Bolsonaro assinara um decreto elevando o Imposto sobre Operações Financeiras (IOF) para aplicações no exterior como ele mesmo havia anunciado de manhã.
E não, também era falsa a informação dada por Bolsonaro que a alíquota máxima do Imposto de Renda (IR) das pessoas físicas seria reduzida imediatamente de 27,5% para 25%.
Quanto à redução da alíquota, segundo Bolsonaro, o anúncio seria feito à tarde pelo ministro Paulo Guedes, da Economia, depois de se reunir com a Comissão de Valores Mobiliários. Guedes cancelou a reunião e sumiu.
O decreto que Bolsonaro disse que assinara garantia a continuidade das superintendências de desenvolvimento da Amazônia e do Nordeste, nada tinha a ver com o aumento do IOS, explicou Lorenzoni.
Sobre a redução do teto do IR, Cintra admitiu que o assunto está sendo estudado, mas que não haverá mudança imediata. Uma eventual alteração, concedeu, só será discutida “posteriormente” e “no tempo correto”.
Ensinou em seguida: “Temos uma premissa que é obter o equilíbrio fiscal. Este ano, o déficit primário será de R$ 139 bilhões. Não podemos fazer nenhuma ação que possa resultar em redução da arrecadação”.
Na véspera, Bolsonaro revelara que a reforma da Previdência a ser proposta por seu governo prevê uma idade mínima de aposentadoria de 62 anos para homens e de 57 anos para mulheres. Falso, outra vez.
Bolsonaro, justificou Lorenzoni, quis apenas “passar para as pessoas a tranquilidade de que a transição vai ser humana”. O mercado financeiro respirou aliviado. Até o próximo susto.
Vinicius Torres Freire: Novo governo se enrola com o conflito dos impostos
Assessores parecem querer reformular o imposto sem o "tá ok" do chefe
Economistas de Jair Bolsonaro dizem com frequência que impostos sobre empresas vão baixar. Logo, a arrecadação vai diminuir. Então, alguém vai ficar com esta conta: vai pagar mais imposto.
Por quê? O governo não pode tomar ainda mais empréstimos para cobrir suas despesas. Mesmo se cortar muito gasto, faltará dinheiro por anos: ainda haverá déficit e dívida crescente, um motivo principal desta meia década de crise.
Quem vai ficar com o mico?
Pode ser a classe média remediada ou ricos. Mas não sabemos. Parece que o governo também não. O próprio presidente não sabe o que seus assessores sabem e vice-versa, mesmo quando se trata de decisões que já teriam sido firmadas. Ou não.
No meio desta sexta (4), Bolsonaro disse que assinara um aumento do IOF (Imposto sobre Operações Financeiras). Era solução lamentável, dizia o presidente, para compensar uma perda de receita aprovada em 2018 pelo Congresso.
Horas depois, um ministro e um secretário negavam que havia decreto ou que haveria alta de imposto. Por cortesia, diga-se que foi um lapso. Ou não.
Assim que tratou do IOF, Bolsonaro contou que Paulo Guedes (Economia) anunciaria a "possibilidade" ou a "ideia inicial" de diminuir o Imposto de Renda da Pessoa Física. Rendimento superior a R$ 4.664,68 não pagaria mais a alíquota de 27,7%, mas de 25%.
Ficaria bem prometer um docinho de IR menor quando se aplicava uma injeção de IOF maior, mas nem isso fazia sentido.
Não era preciso compensar o IOF. Não é essa a discussão do IR entre economistas do governo, embora não se saiba bem quem está mal informado, se o presidente ou seus assessores que planejam reformular o imposto sem o "tá ok" do chefe.
A equipe econômica pensa em reduzir o número de alíquotas do IR das pessoas físicas (cada parcela do rendimento é tributada com cinco alíquotas cada vez mais altas, de zero a 27,5%). Haveria uma mordida maior para gente de renda mais alta. Ou não.
Além disso, discute-se o fim de certas deduções do IR, os conhecidos "abatimentos" com despesas particulares com educação e saúde. Isso resultaria na prática em aumento de imposto, embora a ideia seja socialmente justa.
A Receita prevê que, em 2019, o governo deixará de arrecadar R$ 21 bilhões por causa desses subsídios para gasto privado em saúde e educação. Isso equivale a uns dois terços do gasto com o Bolsa Família. Ou a quase metade do gasto federal com investimento em obras.
Pode ser ainda que aumente o imposto de quem recebe via empresa individual, o dito "PJ", pessoa jurídica. Seria uma mordida em profissionais liberais, na classe média alta ou nos ricos "mais pobres".
Talvez viesse dessas mordidas parte da compensação do fim de algum imposto sobre empresas ou da redução do IR de pessoas que ganham menos. Sabe-se lá.
Em suma, o governo diz que não quer nem aumentar a carga tributária nem perder receita. Mas, assim, se baixar imposto sobre alguns, terá de cobrar de outros. Transferir o peso da carga. Ou não?
A encrenca é que Bolsonaro se elegeu com a promessa maior de não aumentar impostos e, no futuro, de reduzi-los. Mas falava de carga tributária, o total arrecadado, não do imposto de cada um.
Uma reorganização dos tributos, no entanto, pode fazer com que milhões de pessoas paguem mais.
Ao que parece, o governo não sabe como dar essa notícia ao eleitorado e, pelo jeito, ao próprio presidente.
Míriam Leitão: Hora da clareza na Previdência
Se o risco é de colapso, como disse corretamente Bolsonaro, já passou da hora de o governo saber o que fazer para reformar a Previdência
Está na hora da clareza sobre a reforma da Previdência e nesta primeira semana de governo ela ficou mais obscura. O ministro Paulo Guedes, na posse, deu a entender que há uma alternativa à reforma, e todos sabem, inclusive ele, que não existe. O presidente Jair Bolsonaro na entrevista ao SBT criou mais dúvida quando falou de uma idade mínima menor do que a que está na reforma do ex-presidente Temer. O ministro Onyx Lorenzoni disse que era para ser mais suave, mas, na verdade, ela pode até ser mais dura dependendo do que se entender do que o presidente disse.
Não há mais tempo para o improviso e as falas conflitantes. O próprio presidente disse que a questão é urgente:
— Mais dois, três anos, vamos entrar em colapso. Nós não queremos que o Brasil chegue na situação da Grécia e todos vão contribuir um pouco para que ela seja aprovada.
Se o risco é de “colapso”, o governo precisa saber o que fazer. O que Bolsonaro disse é que a idade mínima será de 57 anos e 62 anos para a entrada em vigor em 2022. Bom, se for isso, é mais dura do que a de Temer, que previa 62 e 65 anos apenas em 2038. Na proposta que está no Congresso, a idade mínima de 62 anos, para homem no INSS, só seria atingida em 2032. Se na de Bolsonaro vai ser em 2022, então é dez anos antes. Agora, se ele está dizendo que essa será a idade mínima ao fim do processo, então está enfraquecendo a reforma.
Esses improvisos de Bolsonaro em assunto que ele não domina criaram ontem uma crise com a área econômica. Ele anunciou de manhã aumento de IOF e mudanças no Imposto de Renda e foi desmentido pelo secretário da Receita, Marcos Cintra. O ministro Paulo Guedes ficou em silêncio apesar de a confusão ter estourado em sua área.
Está aí um assunto que não precisava de dúvidas. Houve muita bateção de cabeça na época da transição. Bolsonaro indicou que vai aproveitar a reforma que já está na Câmara, mas com mudanças:
— Pretendemos, ao colocar num plano a reforma da Previdência, é nós passarmos um corte até o final de 2022. Isso seria aumentar para 62 os homens, 57 as mulheres, um ano a partir da promulgação e outro ano em 2022, e o futuro presidente reavaliaria esta situação para passar para 63 ou 64.
Quando ele fala “aumentar”, parece estar se referindo ao servidor público porque o Regime Geral não tem idade mínima. O funcionalismo tem idade mínima de 55 e 60 anos. E em 2022 seria 57 e 62. Quando Bolsonaro diz que o próximo presidente “reavaliaria”, levanta outra questão. Todos sabem que uma reforma da Previdência não pode estar contida dentro do curto tempo de um mandato. Precisa haver regras válidas para décadas.
Bolsonaro não é o único a gerar dúvidas sobre o tema de crucial importância para a solidez da economia. O próprio ministro Paulo Guedes no seu discurso levantou uma grande interrogação quando disse que se a reforma não fosse aprovada haveria outra PEC a ser enviada desvinculando as receitas. Admitiu haver alternativa para a reforma, o que é um erro, e além disso acenou com um projeto ainda mais difícil de aprovar.
O Brasil está diante do seguinte fato. A primeira vez que o governo propôs a idade mínima foi na reforma do então presidente Fernando Henrique, há 23 anos. Não foi aprovada e desde então estamos rodando em círculos nesse assunto. O déficit cresce de forma vertiginosa. Em 2019, a projeção é de R$ 218 bilhões no INSS, de R$ 44 bi nos servidores civis federais e de R$ 43 bilhões nas Forças Armadas. Soma-se tudo, chega a R$ 305 bilhões, sem contar os estados. E crescerá ainda mais nos próximos anos. A reforma não é panaceia. Ao contrário do que disse Paulo Guedes, ela, sozinha, não é a garantia de que o país cresça durante 10 anos. Uma agenda de reformas, com esta e outras mudanças, pode sim dar um impulso novo à economia brasileira. Nessa agenda, a reforma da Previdência é indispensável. Sem ela não dá para começar o trabalho de elevar a confiança.
Em fevereiro assume o novo Congresso e até lá o governo terá que se organizar para falar de forma única sobre esse assunto. A Previdência, além de ter um rombo insustentável, é, como disse Guedes, uma fábrica de desigualdades. Cristalizou-se a ideia de que reformá-la prejudica os pobres, quando é exatamente o oposto. Quanto mais o governo se contradiz e bate cabeça, mais fica difícil convencer o país.
Paulo Roberto da Silva Gomes Filho: O passado como prólogo
Líderes que ignoraram a História desperdiçam tempo, recursos e a paciência dos afetados
“Tolhidos pela mudança
acelerada, os líderes
importantes atuais parecem
não ter tempo ou inclinação
para olhar para o
passado para pedir ajuda”
A citação acima é de autoria de Williamson Murray e Richard Sinnreich. Os autores da obra O Passado como Prólogo (Bibliex, 2017) alertam para o fato de que líderes responsáveis por decisões de segurança nacional teriam a convicção de que a História tem pouco a oferecer ao elaborador de políticas nos dias de hoje. Isso se deveria à velocidade com que os eventos se sucedem. Ao lidarem com um presente exigente e um futuro ameaçador, poucos líderes, civis e militares, estariam dispostos a cair numa reflexão sistemática sobre o passado.
Na verdade, não creio tratar-se de um problema exclusivo das chamadas “lideranças”. Formadores de opinião – aqui incluídos os presentes nas novas mídias, chamados de “influenciadores digitais” –, analistas, acadêmicos e jornalistas, além da famosa categoria dos “intelectuais e artistas”, despejam opiniões diariamente, aparentemente, como escrevem Murray e Sinnreich, sem olhar o passado para pedir ajuda.
O grego Tucídides, que, 2.400 anos atrás, escreveu a monumental História da Guerra do Peloponeso, disse tê-lo feito para informar “àqueles que quisessem entender com clareza os eventos que ocorreram no passado e que, sendo a natureza humana como ela é, em algum momento e das mesmas formas, repetir-se-iam no futuro”. O caminhar da humanidade ao longo dos séculos confirmou a previsão.
Como anteviu o grego, talvez o maior de todos os historiadores militares, a história das guerras é particularmente rica em casos em que o estudo do passado talvez tivesse evitado fracassos e mudado o curso da História. O episódio mais emblemático é o da Operação Barbarossa (1941), a invasão nazista da União Soviética. É claro que, depois dos fatos acontecidos e sabedores do fracasso da invasão, é inevitável lembrar que invasões anteriores, tentadas por Carlos XII (1700) e Napoleão (1812), já haviam fracassado. Será que os planejadores nazistas se detiveram com necessário cuidado sobre o passado antes de decidirem pela invasão?
E as atuais lideranças globais? Será que estão atentas às lições da História? Para ficar num exemplo óbvio, no campo das relações internacionais: seria o surgimento de uma potência global emergente, desafiando a potência dominante, um fato inédito na História do mundo? Certamente que não. Desde Atenas desafiando Esparta, passando pela Espanha ultrapassando Portugal na época dos grandes descobrimentos, pelos Estados Unidos suplantando a Inglaterra após a 1.ª Grande Guerra e a Alemanha desafiando a Europa, na 2.ª Guerra Mundial, o mundo já viu muitas vezes situações como esta em que a ascensão da China desafia os Estados Unidos.
Como esses atores se vão comportar, quais serão as consequências políticas, econômicas, sociais e científico-tecnológicas de tais comportamentos para o mundo, inclusive para nós, aqui, na periferia global? Haverá crise? A crise evoluirá para uma guerra? Como isso nos vai afetar? Certamente o estudo da História não traria todas as respostas. Afinal, causas semelhantes nem sempre produzem efeitos similares e essas causas também interagem de maneira imprevisível em cada momento histórico. Mas, certamente, do passado podem surgir modelos que levem a suposições de potenciais desfechos para as situações presentes.
E os nossos planejadores, professores, analistas, formadores de opinião? Estão hoje se detendo sobre os acontecimentos humanos passados, na busca da compreensão global de todo o fluxo de eventos que nos trouxeram ao ponto em que nos encontramos? Ou são reféns dos preconceitos aos quais servem, procurando encontrar justificativas para reforçar visões preconcebidas, comprometidas pela ideologia ou pelo posicionamento político que adotam?
Líderes e formadores de opinião que ignoram a História, que não têm a intenção de consultar o passado e de escutar os seus ecos, abrem mão de decidir com base em rica experiência anterior. Ignoram de antemão circunstâncias similares, relações de causa e efeito, tradições. Tratam repetidamente de “reinventar a roda”. Desperdiçam tempo, recursos e a paciência de tantos quantos são os afetados por suas decisões.
No Brasil “até mesmo o passado é incerto”. A frase, atribuída a um famoso economista, teria sido dita levando em conta a incerteza jurídica que atrapalharia o ambiente econômico do País. Ela demonstra, em seu tom jocoso e algo cínico, toda a problemática do estudo deficiente dos acontecimentos humanos do passado, que tento demonstrar neste artigo.
O País vive um momento de acirramento de ânimos, fruto de uma grave crise política e econômica, acompanhada de uma perigosa perda de legitimidade de alguns atores políticos, flagrados em casos de corrupção. Este acirramento inclui uma disputa pela preeminência de uma narrativa favorável ao posicionamento político/ideológico do autor. Informações mentirosas, as tristemente famosas fake news, são tomadas por verdades, contanto que estejam alinhadas e contribuam para o fortalecimento da narrativa defendida. Neste ambiente tóxico, em que a verdade é a primeira vítima, falar em estudo sistemático dos acontecimentos do passado parece pregar no deserto...
É urgente a superação deste momento. Se o ambiente interno do País está conturbado, o cenário geopolítico externo não parece animador. Não há tempo a perder. Que os decisores consultem o passado e ouçam seus ecos no presente, evitando que os mesmos erros sejam repetidos.
*CORONEL DE CAVALARIA. EMAIL: PAULOFILHO.GOMES@EB.MIL.BR
Julianna Sofia: Rotação e translação
Discurso lúcido e franco de Guedes perde força com pragmatismo de Brasília
O discurso preceptoral de Paulo Guedes (Economia) ao assumir a superpasta inflamou a banca financista e a elite empresarial por ser lúcido no diagnóstico e franco nas intenções ultraliberais. Bastou um movimento de rotação para o inescapável choque de Brasília dar contornos mais realistas a alguns dos conceitos guedistas.
Para o economista, se o governo Jair Bolsonaro aprovar em alguns meses a reforma da Previdência, estará garantido por dez anos o crescimento econômico. No dia seguinte, o presidente anunciou na TV que aproveitará a proposta de Michel Temer, mas indicou que suavizará o texto.
Bolsonaro quer tratar da escadinha para fixação de uma idade mínima só para o período de seu mandato; e, a despeito da convergência de regras pretendida por Temer, ele não tratará todos de forma igual. A fala vaga e sem detalhes desanimou investidores porque prenuncia desidratação, reduzindo o efeito fiscal da reforma. Sem reversão da dívida pública, não haverá crescimento.
Guedes ainda discorreu sobre um plano B caso a reforma não vingue. Os parlamentares precisarão ingerir remédio mais amargo e aprovar emenda constitucional para desvincular e desindexar o Orçamento.
O sincericídio foi lido como ameaça ou inabilidade política. Desnecessárias 24 horas para os líderes partidários criticarem o roteiro que juntou na mesma cumbuca temas tabus nos trópicos: aposentadoria, funcionalismo, saúde e educação.
Na parolagem de quarta (2), Guedes atacou a política de desonerações, que verte R$ 300 bilhões/ano. Explorou a necessidade de redução da carga tributária (36% do PIB), pois acima de 20% é o “quinto dos infernos”. Pois bem. Na quinta (3), Bolsonaro assinou prorrogação de benefícios para o Norte e Nordeste, com impacto bilionário por cinco anos. Para compensar, anunciou (e recuou) aumento de imposto num bate-cabeça federal com a área econômica.
O Chicago Oldie precisará modular discurso e ideias para resistir aos solavancos de quatro translações.
João Domingos: A mira é o PT
Bolsonaro não abandonou o discurso de campanha nem na posse nem depois dela
Com menos de uma semana do governo declaradamente de direita de Jair Bolsonaro, é possível identificar na direção da máquina do Estado alguns nichos já muito bem definidos. Uns trabalham em silêncio, ou já adiantam medidas que pretendem tomar, como os ministros da Economia, Paulo Guedes, e da Justiça, Sérgio Moro; outros mostram ponderação, como os ministros das áreas de infraestrutura; e há os que fazem um barulho danado com suas posições polêmicas, seja por declarações, seja por manifestações nas redes sociais. Entre estes últimos estão os ministros da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, e das Relações Exteriores, Ernesto Araújo. O presidente da República é outro que está no meio dos barulhentos.
Bolsonaro não abandonou o discurso de campanha nem na posse nem depois dela. É provável que vá mantê-lo por um bom tempo, enquanto sentir necessidade de falar as coisas que seu eleitor gosta de ouvir: liberação da posse e flexibilização do porte de armas, fim do auxílio-reclusão, adeus ao indulto de fim de ano para presos, manutenção da prisão para condenados em segunda instância, salvo-conduto para policiais no enfrentamento com bandidos, ataque à corrupção, combate ao PT para que a bandeira nacional nunca seja vermelha e enxotamento do socialismo do País (dois exageros), para citar alguns dos temas que garantiram popularidade ao presidente.
Jair Bolsonaro sabe que, ao abordar esses assuntos nos discursos, nas entrevistas ou pelas redes sociais, ele consegue falar diretamente com o eleitor que votou nele. Então, mãos à obra. Ao mesmo tempo, seus técnicos, no caso Guedes, Moro e os ministros da infraestrutura, vão preparando as reformas que serão enviadas ao Congresso, o plano de privatização e de investimentos.
Enquanto as medidas na área econômica não vêm, e elas precisam vir para dar à sociedade a sensação de que as coisas vão mesmo mudar, e com profundidade, o presidente fica no palanque, funcionando como aquele que distrai a plateia para que outros possam preparar as atrações principais. É um estilo curioso de governar.
Nesse papel, Bolsonaro se incumbe também de ser o presidente bonzinho para com a população. Quer que ela pague menos imposto, diz que a alíquota de 27,5% do Imposto de Renda da Pessoa Física já está de bom tamanho e que o Imposto sobre Operações Financeiras (IOF) deve ser o menor possível. E também que a idade mínima para a aposentadoria deve ser de 62 anos para os homens e 57 para as mulheres, menor do que a atual para os servidores públicos, de 65 e 60 anos, respectivamente.
Só não dá mesmo é para tolerar o PT e seus agregados, que teriam implantado o socialismo no País, arruinado sua economia e corrompido geral. Quando confrontado com a realidade, que jamais esse país foi socialista, Bolsonaro não se importa. Responde que o socialismo só não chegou por aqui porque os militares não deixaram. Uma forma simplista de ver as coisas, mas que fala ao eleitor. Se fala ao eleitor, por que não tirar também as cadeiras vermelhas do Palácio da Alvorada, onde ele passou a morar com a família, e substituí-las pelas azuis? Foi isso o que o presidente fez.
Quem sabe entre os servidores comissionados há uma legião de petistas? Então, que sejam todos demitidos, como fez o ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, ao exonerar 320 sob seu comando, com recomendação para que os outros ministros façam o mesmo.
O capitão Jair Bolsonaro, que serviu na arma da Artilharia quando estudou na Academia Militar das Agulhas Negras, aprendeu que o sucesso dele como aluno dependia, entre outras coisas, do cálculo de tiro e do acerto na mira. Agora no comando, a mira é o PT. Socialista ou social-democrata. Não importa.
Miguel Reale Júnior: Contra o pacto e contra os brasileiros
Isolamento do País no concerto internacional deixa os brasileiros no exterior desassistidos
A migração tem se tornado problema em todos os continentes, com significativas populações se deslocando para habitar outras terras, trazendo problemas sociais, mas, ao mesmo tempo, contribuindo para o desenvolvimento dos locais de destino. Hoje, mais de 250 milhões de pessoas estão em outros países como imigrantes regulares ou irregulares, essa é uma questão a ser enfrentada pelo conjunto das nações, como reconhecem os 160 signatários do Pacto Global da Migração, firmado dia 10 de dezembro em Marrakesh, no 70.º aniversário da Declaração dos Direitos Humanos da ONU.
O Brasil e a América Latina tiveram intensa participação na elaboração do Pacto Global da Migração, fruto do trabalho de anos, como explicou Alicia Bárcena, diretora da Comissão Econômica para a América Latina (Cepal). As cinco comissões econômicas regionais das Nações Unidas ajudaram a compreender as causas e o tamanho das migrações, bem como a característica das pessoas: seus idiomas, habilidades, necessidades de saúde, nutrição e educação.
Assim, foi possível perceber, como se assinala no pacto, a importância da união, do espírito de cooperação, no qual todos ganham, ao se criar uma estrutura juridicamente não vinculativa, fruto do reconhecimento de que nenhum Estado pode abordar a migração por conta própria, dada a natureza intrinsecamente transnacional desse fenômeno.
Conforme António Guterres, secretário-geral da ONU, o Pacto Global de Migração, além de não ser juridicamente vinculativo, tem a natureza de uma cooperação internacional, enraizada num processo intergovernamental de negociação de boa-fé. Dessa maneira, há proteção da soberania de cada nação, preservando-se o direito soberano dos Estados de determinar sua política nacional de migração e a prerrogativa de, dentro de sua jurisdição, distinguir entre o status de migração regular e irregular, levando em consideração diferentes realidades, políticas, prioridades nacionais para entrada, residência e trabalho.
O pacto global, todavia, acentua dever-se respeito ao Estado de Direito, ao devido processo legal e à garantia de acesso à Justiça como elementos fundamentais para impedir discriminações e permitir a concessão de serviços básicos e a viabilidade de inclusão e coesão social. A inclusão começa pela possibilidade de obtenção de prova de identidade legal e documentação adequada, para em seguida poder haver um recrutamento justo e ético de modo a salvaguardar condições de trabalho decente, não similar ao trabalho escravo.
Dois segmentos merecem especial atenção no Pacto Global de Migração: as crianças e as mulheres. Quanto às mulheres, recomenda-se que suas necessidades específicas sejam devidamente compreendidas e abordadas e seja fortalecida a igualdade de gênero. Com relação às crianças, acentua o pacto ser prioritário o atendimento de suas exigências primárias, mormente de meninos e meninas desacompanhados e separados da família.
Em vez da prisão e do envio forçado para o país de origem, propõem-se medidas para facilitar o regresso e a readmissão seguros e dignos.
Mas para buscar promover a migração regular e controlada o pacto sugere prevenir, combater e erradicar, com cooperação, o tráfico de pessoas no contexto internacional, além de gerenciar as fronteiras de forma integrada com os países vizinhos. Em suma, deve haver uma política de governo, pois importa em integrar diversos setores da administração, em linhas vertical e horizontal.
Dois aspectos merecem destaque com referência ao Brasil: primeiramente, a absoluta convergência do texto do Pacto Global de Migração com o teor da nossa legislação, a recente Lei n.º 13.445/17, e a relevante circunstância de sermos hoje tanto um país de imigração como de emigração.
Com efeito, há atualmente cerca de 2 milhões de estrangeiros no Brasil como imigrantes, definidos como pessoa nacional de outro país que trabalha ou reside e se estabelece temporária ou definitivamente no Brasil, aqui estando de forma regular ou irregular. Sucede, todavia, conforme números do Ministério das Relações Exteriores, que há número maior de brasileiros instalados no exterior, ou seja, emigrantes brasileiros estabelecidos temporária ou definitivamente no exterior. Há cerca de 3 milhões de brasileiros nessa condição.
Assim, é de grande interesse para nossos compatriotas, residentes de forma regular ou irregular no estrangeiro, que o Brasil seja signatário do pacto, para os brasileiros receberem, lá fora, os benefícios concedidos pela nossa lei aos imigrantes.
A recente lei, a ser respeitada, consagra, por exemplo, os seguintes princípios em favor dos imigrantes: promoção de entrada regular e de regularização documental, acolhida humanitária, garantia do direito à reunião familiar, inclusão social e laboral para o migrante e seus familiares.
Tais princípios estão em consonância com o proposto pelo Pacto Global de Migração, que, no entanto, tão logo assinado pelo nosso então ministro das Relações Exteriores, Aloysio Nunes Ferreira, foi, precipitadamente, anunciado pelo então chanceler indicado do novo governo, pelo Twitter, como a ser denunciado pelo Brasil: “O governo Bolsonaro se desassociará do Pacto Global de Migração por ser um instrumento inadequado para lidar com o problema, pois a imigração não deve ser tratada como questão global, mas sim de acordo com a realidade e a soberania de cada país”.
Importante conclusão do pacto foi no sentido de a questão só poder ser enfrentada em conjunto pelas nações, em cooperação, com boa-fé, sendo esse instrumento não vinculativo e respeitador da soberania dos países. O novel chanceler, curiosamente, diz exatamente o inverso, isolando nosso país no concerto internacional e deixando, no exterior, os brasileiros desassistidos, enquanto nossa lei, aqui, protege os estrangeiros.
*Advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras, foi ministro da Justiça
El País: Por que a guerra de Bolsonaro contra a mídia prejudica a imagem do Brasil no mundo
O capitão reformado chegou à chefia de Estado com uma imagem internacional negativa, e isso não o ajuda a ampliar relações políticas e comerciais
Alguém deveria explicar ao presidente Jair Bolsonaro que sua guerra inútil contra os meios tradicionais de comunicação acabará prejudicando gravemente a imagem do Brasil no mundo. Acreditar que alguém em uma democracia pode governar só com as redes sociais é um erro pelo qual os políticos pagarão caro. Nenhum presidente nem chefe de Governo se manteria no poder contra os jornais e redes de televisão nacionais. Até os ditadores que silenciaram ou censuraram os meios de comunicação que os criticavam mimaram os que lhes eram fiéis.
O Brasil já viveu, no primeiro Governo de Luiz Inácio Lula da Silva, um confronto com o então correspondente do The New York Times no Brasil, Larry Rohter. Depois que o jornalista denunciou os excessos etílicos do popular presidente, Lula quis expulsá-lo do país. O então ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, um dos personagens mais inteligentes de seu Governo, aconselhou Lula a não expulsar o jornalista norte-americano. Mesmo assim, a notícia correu o mundo, criando a primeira sombra sobre o caráter democrático do Governo progressista brasileiro.
Sem negar os méritos do ex-presidente sindicalista, que foram muitos, ele nunca teria tido a imagem positiva que teve internacionalmente sem a ajuda dos meios tradicionais de informação, que são os que criam a imagem de um país fora de suas fronteiras. Bolsonaro deve saber que sua política como candidato, centrada nas redes sociais, não poderá ser a mesma no Planalto, onde sua imagem tem projeção no mundo.
O capitão reformado chegou à chefia de Estado com uma imagem internacional negativa. Foi apresentado ao mundo como um ultradireitista autoritário com saudade da ditadura, cercado de generais e com tentações teocráticas, colocando, em um país laico como o Brasil, Deus como guia de seus passos. Essa imagem não o ajuda a ampliar relações políticas e comerciais com as grandes democracias mundiais.
Não adianta citar como exemplo o presidente norte-americano, Donald Trump, que também tenta governar com as redes sociais, em luta contra os meios tradicionais de informação. O presidente norte-americano não é Bolsonaro, e os Estados Unidos não são o Brasil. No caso dos EUA, estamos falando da maior potência mundial e de uma democracia com instituições fortes, capazes de desafiar as piores loucuras de seus presidentes.
O Brasil, apesar de ser um país continental, não deixa de ser um país periférico no planeta que precisa estabelecer relações positivas com os países que hoje contam no mundo. E para isso Bolsonaro vai precisar desfazer a imagem negativa com a qual chegou ao Planalto. Não conseguirá isso, no entanto, em guerra contra os meios de comunicação. Não se pode esquecer que o declino tanto de Lula como do PT começou com a tentação do fatídico “controle social” da mídia, um eufemismo para tentar impor a censura. Chegou-se a planejar até uma cartilha com pontos positivos e negativos dados a cada jornalista por um conselho criado pelo Governo. Foi Dilma Rousseff, quando chegou ao Planalto, quem abandonou aquele projeto, depois de afirmar em seu discurso de posse que ela não só não iria impor nenhum controle sobre a mídia, como preferia “o barulho da imprensa livre ao silêncio das ditaduras”.
O barulho da imprensa, ou seja, o controle crítico dos governantes, sempre incomoda um Governo, mas também o faz crescer. O que o leva à morte é o silêncio provocado pelo medo da transparência, um dever sagrado em relação àqueles que o elegeram para governar à luz do sol e não na escuridão dos esgotos da prevaricação e até da mentira. Bolsonaro e seu novo Governo ainda estão a tempo de evitar esse perigoso desafio aos meios de comunicação governando sem medo do escrutínio público de seus atos.
Roberto Freire: Oposição ao novo governo deve ser democrática
“As oposições não podem aceitar a bobagem do ‘Fora Bolsonaro’.
O presidente do PPS, Roberto Freire, disse em sua conta no Twitter que a oposição ao novo governo não pode “aceitar a bobagem” do #Fora Bolsonaro, uma das expressões que estiveram entre os assuntos mais comentados nos últimos dias nas redes sociais.
Para ele, a oposição a Bolsonaro deve ser “democrática e não pensar ser resistência própria das guerras”.
Temos que pensar uma ação comum mínima para enfrentar retrocessos que virão e já são vistos na organização das novas funções do governo. A oposição deve ser democrática e não pensar ser resistência própria das guerras”, escreveu no Twitter.
Eliane Cantanhêde: O capitão e os generais
Bolsonaro é instrumento dos militares, ou os militares é que são de Bolsonaro?
Antes, discutiu-se se o carismático Lula era instrumento do PT e de suas bases para instalar um projeto de esquerda no Brasil, ou se o PT e suas bases sindicais, acadêmicas e católicas eram instrumento de Lula para chegar e manter o poder. A história mostra que Lula venceu o PT.
Agora, o Brasil vive o mesmo dilema, mas com personagens opostos: o capitão-político Jair Bolsonaro é instrumento das Forças Armadas e seus seguidores para instalar um projeto de direita, ou são os militares e seus seguidores que se tornaram instrumento de Bolsonaro e seus filhos para chegar ao poder?
Por isso, a transmissão de cargo mais instigante e concorrida foi a do general Fernando Azevedo e Silva na Defesa. De tão disputada, foi no Clube do Exército. De tão importante, foi a única com discurso do presidente.
Diante do dilema, sobressaiu-se o enigma jogado no amplo salão por Bolsonaro. Dirigindo-se ao comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, confidenciou: “O que nós conversamos morrerá entre nós”. Ato contínuo, agradeceu: “Obrigado. O sr. é um dos responsáveis por eu estar aqui”.
O que eles conversaram não se sabe, mas sabe-se que Villas Bôas, infelizmente acometido de uma doença degenerativa, é o maior líder militar, um homem inteligente, articulado, simpático e que, bem antes das eleições, já vinha assuntando sobre quem seria o candidato ideal para trazer a direita de volta ao poder. Bolsonaro? O ruralista Ronaldo Caiado? Algum empresário?
Pode nem ter sido a primeira opção, pode nem ter sido o ideal, mas quem enfrentou o desafio, viabilizou-se para a tarefa e conquistou o apoio dos integrantes das três Forças foi o capitão que saiu pela porta dos fundos do Exército, integrou o baixo clero da Câmara 28 anos e agora se cerca de militares nos cargos mais sensíveis.
No mesmo discurso para seus velhos pares, Bolsonaro fez questão de esclarecer uma outra dúvida: quem enfiou o general da reserva Hamilton Mourão na vice? Há quem jure que foram os militares, mas Bolsonaro disse que ouviu outras pessoas, mas a decisão foi dele, pessoal. “Não tem mais capitão nem general. Agora, somos todos soldados a serviço do Brasil.”
O novo ministro Fernando Azevedo e Silva admitiu que “são tempos difíceis de escassez”, mas já defendendo a “urgente reestruturação” e “novos atrativos” para a carreira militar. E Bolsonaro acenou com a revisão da MP de 2001 que acabou com a promoção automática dos militares que passam para a reserva, além do auxílio-moradia e do adicional de inatividade dos militares.
Se há algo que separa Bolsonaro e Villas Bôas, parece ser a relação com Fernando Henrique Cardoso, que é pródigo de elogios ao comandante do Exército e tem uma velha rixa com o atual presidente. Depois de citar Sarney, Collor e Itamar e suas decisões relativas aos militares, desdenhou: “Depois, tivemos o outro governo, os senhores sabem qual foi. Tivemos alguns problemas, em especial comigo”.
Para Bolsonaro, as Forças Armadas são “obstáculo para quem quer usurpar o poder”, mas quem se apossou do poder político e alijou os civis por 20 anos foram elas. E há quem veja no novo governo a volta dos militares. Observando as posses, os discursos e a bajulação, porém, os ministros militares estão entre os mais sensatos, menos bajuladores e se comportam como quem veio não pelo gosto pelo poder, mas para ajudar a resgatar a ordem no País e na gestão pública. Ao jeito deles.
Destaque-se, aliás, a compreensão do general Fernando sobre a imprensa: “Mais do que reproduzir notícias, ela nos avisa, nos cobra quando necessário e sempre ajuda a dar transparência às nossas atividades”. Vamos combinar: melhor do que muito civil e bem melhor do que muito bolsonarista de internet.