Bolsonaro

Luiz Carlos Azedo: O menino da Rua do Cupim

“A ministra Damares cumpre um duplo papel no governo: provoca a oposição em relação à identidade de gênero e sai em defesa da segurança das crianças e suas familias”

Damares Alves, a ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, já é uma estrela da nova equipe de governo de Jair Bolsonaro. Pastora evangélica, roubou a cena entre os seus pares ao afirmar, logo após a posse, para um grupo de apoiadores, que “menino veste azul e menina veste rosa”. Como quase tudo que acontece entre amigos, alguém gravou e vazou nas redes sociais a frase polêmica, que viralizou e levantou um debate sobre identidade de gênero muito maior do que aquele que ela própria pretendia.

A oposição e a imprensa atravessaram a rua para escorregar na casca de banana. Apontada pela mídia como patinha feia da equipe ministerial, Damares deu a volta por cima durante entrevista à GloboNews, na qual driblou os craques do jornalismo político da emissora com respostas que miravam os eleitores de Bolsonaro e não os seus interlocutores. Falou o que eles gostariam de ouvir. Não foi à toa, portanto, que o escritor, dramaturgo e jornalista Aguinaldo Silva disparou no Twitter: “Venderam a ministra Damares como uma espécie de “maluquete xiita” e ontem ela provou que na verdade é outra coisa: uma mulher conservadora, sim. Mas sensata, convencida do que diz, preparadíssima e disposta a fortalecer os vínculos na célula mater da sociedade, que é a família.”

O novelista sabe das coisas, é um premiado campeão de audiência no horário nobre da tevê brasileira e mais do que um observador arguto da revolução dos costumes sociais e políticos no Brasil, que já dura meio século. É um protagonista dessa revolução, ao lado de outros autores. Damares reagiu às críticas que recebeu com o argumento que repete à exaustão: “Fiz uma metáfora contra a ideologia de gênero, mas meninos e meninas podem vestir azul, rosa, colorido, enfim, da forma que se sentirem melhores.” Garantiu que não haverá retrocesso em termos de direitos adquiridos, em matéria de identidade de gênero. E partiu para a ofensiva num tema que explica muita coisa na eleição de Bolsonaro e que a oposição ainda não captou: a defesa das crianças e da família como instituição.

Ao contrário do que muitos imaginam, Damares não é só a pastora evangélica e assessora parlamentar que deu uma rasteira no chefe, o ex-senador Magno Malta, e virou ministra em seu lugar. É uma militante reconhecida do movimento em defesa das crianças que sofrem de depressão e outros distúrbios psicológicos, que têm impactado os altíssimos indicadores de suicídio e automutilação entre pré-adolescentes e adolescentes no Brasil. “Pobre, gay, mulato e abençoado”, Aguinaldo Silva, o menino da Rua do Cupim, no Recife, sacou que a ministra sabe o que está fazendo.

Em 1954, aos 11 anos, Aguinaldo Silva mudou com a família da Cidade de Carpina para a capital pernambucana. Trouxe na memória afetiva boa parte da matéria-prima de suas novelas, de Tieta ao Sétimo Guardião. No bairro dos Aflitos, viveu o drama de menino pobre que aos 11 anos era “esquisito” e passou a ser chamado de “frango” aos 13 anos. “Foram muito difíceis aqueles anos que passei na Rua do Cupim, tendo que ouvir todo tipo de acusações e insultos…, mas eles foram também muito prazerosos. Pois, na casa ao lado da minha, morava uma família de crentes cujo chefe tinha uma portentosa biblioteca da qual sua filha, Glyce, de vez em quando sacava um livro e me emprestava. Li “Madame Bovary” aos 13 anos e chorei feito um louco por causa de Ema, pois achei que, em sua loucura, ela estava certíssima… E felizmente ainda acho isso até hoje.”

Identidade de gênero
Aguinaldo já escreveu mais de 100 mil páginas de livros, novelas, séries, minisséries, peças de teatro, crônicas, artigos e reportagens, sem contar os textos do seu blog, no qual faz uma espécie de striptease da sua vida intelectual: “Aos 75 anos, escrevo todos os santos dias, sem falhar carnaval, Natal, ano-novo ou qualquer feriado. Não preciso fazer como o general Coriolano, da tragédia de Shakespeare, e ir à praça pública mostrar minhas muitas cicatrizes. Minhas 14 novelas e meus 16 livros estão aí para isso”.

A chamada pauta identitária de gênero virou uma armadilha política. Serviu para que o PT saísse do isolamento após os escândalos de corrupção que protagonizou no poder e o impeachment de Dilma Rousseff. O movimento “#EleNão” foi uma ponte com as manifestações de gênero e deu sustentação à campanha de Fernando Haddad, principalmente depois da prisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Entretanto, como no caso de Hillary Clinton, nas eleições norte-americanas, é uma agenda progressista, mas ideologicamente minoritária na sociedade. Espertamente, foi associada por Bolsonaro à desagregação da família, uma tragédia para os mais pobres, principalmente numa conjuntura de desemprego em massa.

Damares cumpre um duplo papel no governo: de um lado, espicaça a oposição em relação a um tema no qual a opinião pública ainda é conservadora e, majoritariamente, está ao lado de Bolsonaro; de outro, se propõe a enfrentar um problema que as políticas públicas oficiais, segmentadas, não deram conta de resolver. A atenção dada a gestantes, idosos e crianças, por exemplo, é estanque e não cuida da segurança da família como um todo. Quando fala em virar esse jogo, Damares sabe que é música para os eleitores do capitão. A estratégia de penetração dos pastores evangélicos nas comunidades pobres do país é focada exatamente nisso. Hoje, é uma experiência exitosa de trabalho social, religioso e político, que comeu o mingau eleitoral pelas beiradas.

http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-o-menino-da-rua-do-cupim/


Elio Gaspari: Bolsonaro desceu do palanque

Presidente trombou com a ekipekonômica, mas mostrou caminho para aprovar reforma da Previdência

Pelo andar da carruagem, a reforma da Previdência será aprovada. Numa revelação surpreendente feita durante uma entrevista aos repórteres Carlos Nascimento, Débora Bergamasco e Thiago Nolasco, o presidente Jair Bolsonaro pôs na mesa uma nova idade mínima para o acesso às aposentadorias e abriu o caminho para que ela passe a girar em torno de seu eixo principal, a “fábrica de desigualdades” exposta pelo ministro Paulo Guedes: “Quem legisla e julga tem as maiores aposentadorias e a população, as menores”.

Durante a campanha, Bolsonaro repetiu que a idade mínima do projeto mandado por Michel Temer era perversa. O anúncio da nova idade resultou numa trombada com a ekipekonômica. Resta saber quem manda e quem é capaz de fazer um projeto que passe pelo Congresso.

Bolsonaro defendeu de forma convincente a mudança na lei que permite a posse (não o porte) de armas. Afinal, em 2005, um plebiscito rejeitou a proibição da venda de armas de fogo. Felizmente, ele não comparou trabucos a automóveis, como faz o ministro Augusto Heleno.

O Bolsonaro da entrevista pareceu mais leve que o do palanque de mármore de Brasília. Ainda assim, disse que “hoje em dia o poderio das Forças Armadas americanas, chinesas e soviéticas alcança o mundo todo”. Como ele acha que com o seu governo o Brasil “começa a se livrar do socialismo”, alguém precisa avisá-lo de que a União Soviética se acabou em 1991.

O PODER DE PAULO GUEDES
Falta ao poderoso ministro Paulo Guedes um pé no Planalto. Parece detalhe, mas há dois tipos de ministros, os que têm sala no Palácio (Augusto Heleno, por exemplo) e os que não têm.

Quem está no primeiro grupo checa se o presidente está livre, toma o elevador e vai à sua sala. Quem não está precisa marcar hora ou arriscar-se a uma espera.

É claro que Guedes verá Bolsonaro sempre que isso for necessário, mas, por enquanto, a burocracia palaciana revela que nos primeiros cem dias de governo ele participará da reuniões do ministério às terças-feiras e de cinco encontros de “alinhamento”, sempre com outros colegas.

A trombada ocorrida na sexta-feira entre o que diz Bolsonaro e o que pensa a ekipekonômica mostra que faltam conversas. Isso na melhor das hipóteses, porque pode estar faltando disciplina. Choque com a ekipekonômica na primeira semana de governo é coisa nunca vista.

Os ministros com sala no Palácio têm um acesso informal ao presidente e essa circunstância cria um tipo especial de convivência. Para o bem, produz eficácia, para o mal, intrigas. É mais fácil se desviar de uma bola nas costas estando perto do juiz.

SANTAS PALAVRAS
Pode-se achar o que se queira do discurso de posse de Paulo Guedes, mas é impossível discordar de seu diagnóstico sobre os bancos públicos:

“Eles se perderam nos grandes programas, onde piratas privados, burocratas corruptos e criaturas do pântano político se associaram contra o povo brasileiro.”

A BIC DE TEREZA
A caneta Bic de Tereza Cristina, ministra da Agricultura, tem mais tinta que a da maioria dos ministros civis.

O SAMBA DE ARAÚJO
O grande ausente na posse do chanceler Ernesto Araújo foi o escritor Oswald de Andrade (“Tupi or not tupi”). Quando o diplomata pediu a seu colegas que lessem mais José de Alencar e menos o New York Times, poderia ter feito uma ressalva, recomendando sua obra de ficção. Nela há um negro endiabrado sendo chamado de “bugio”, mas ficção é ficção.

Há um outro Alencar, político, deputado, ministro da Justiça e escravocrata convicto. Ele chamou a Lei do Ventre Livre de “iníqua e bárbara”. Isso em 1871, seis anos depois do fim da Guerra Civil que acabou com a escravidão nos Estados Unidos.

Alencar criticava o “fanatismo do progresso” e advertia: “A liberdade e a propriedade, essas duas fibras sociais, caíram desde já em desprezo ante os sonhos do comunismo.”

“Toda lei é justa, útil, moral, quando realiza um melhoramento na sociedade e representa uma nova situação, embora imperfeita, da humanidade. Neste caso está a escravidão.”

“Se a escravidão não fosse inventada, a marcha da humanidade seria impossível.”

Alencar sustentava que o Estado não deveria se meter a legislar sobre a relação trabalhista da escravidão.

O MITO DE ARAÚJO
Noves fora José de Alencar, o chanceler Araújo deu-se a comentários sobre figuras míticas, valendo-se do rei português d. Sebastião. Com sua erudição, poderia ter associado Jair Bolsonaro a uma centenas de outras figuras.

D. Sebastião era meio pancada, sumiu na batalha de Alcácer Quibir (1578) e, como tinha horror às mulheres, foi-se embora sem deixar descendência. Disso resultou na anexação de Portugal pela Espanha por 60 anos.

EREMILDO, O IDIOTA
Eremildo é um idiota e acha que os condenados na primeira instância do Judiciário devem ir para a cadeia sem direito a recurso.

O que o cretino não entende é por que o ministro Sergio Moro quer enviar ao Congresso uma emenda constitucional assegurando e prisão dos condenados na segunda instância.

Como juiz, Moro defendia esse procedimento e o tema está na pauta do Supremo Tribunal Federal para o dia 10 de abril.

Como é impossível que o Congresso aprove a emenda em tão pouco tempo, Eremildo ficou com a impressão de que a iniciativa seja uma pressão inútil. Até porque, o tribunal sempre poderá julgar a mudança inconstitucional.

A APPLE MANCOU
A queda do valor da Apple foi atribuída pelo mercado a uma retração dos compradores chineses.

Algo pior pode vir por aí. Depois de ter mudado os hábitos de consumo com os iPhones e os iPads, a Apple está mancando no novo mercado de aplicativos e de assistentes digitais que recebem ordens por comandos de voz.

Esses equipamentos têm o tamanho de um pequeno pote. Entre outras coisas, processam mensagens, ligam luzes, tocam músicas, registram ordens de compras e a cada dia expandem sua capacidade. O Echo da Amazon e o Google Home dominam o mercado, enquanto o HomePod da Apple está bem atrás. Steve Jobs não deixaria isso acontecer.

WITZEL NO PALANQUE
O governador Wilson Witzel ainda não desceu do palanque. Quando ele disse que o país precisa de “estabelecimentos prisionais destacados, longe da civilização, precisamos ter a nossa Guantánamo”, ofendeu a geografia e, tendo sido juiz, massacrou o Direito.

A prisão americana de Guantánamo não fica longe da civilização. Está a 899 km de Miami e a 65 km de Santiago de Cuba. Quando o presidente Bush resolveu mandar terroristas para lá, o que ele queria era mantê-los fora do alcance da Constituição dos Estados Unidos. A Corte Suprema cortou-lhe as asas.

TEMER PERDEU
O pente-fino determinado pela Casa Civil para o reestudo das últimas medidas tomadas pelo governo de Michel Temer é o preço que ele pagará por ter apostado no escurinho do fim de mandato para disseminar um testamento.

Deu o mau exemplo nomeando protegidos para a direção de agências reguladoras e acabará enrascado em maluquices de escalões inferiores.


Merval Pereira: A força dos evangélicos

Os evangélicos são a sustentação da base eleitoral de Bolsonaro e Trump, que representam a atual guinada ideológica à direita

O embaixador de Israel no Brasil, Yossi Shelley ter comparado o presidente Jair Bolsonaro a Oswaldo Aranha, que presidiu em 1947 a sessão da Assembléia Geral das Nações Unidas que levou à criação do Estado de Israel, só mostra a importância para Israel do compromisso político do novo governo de transferir a embaixada brasileira para Jerusalém, como fez Trump.

Os evangélicos fundamentalistas são o sustentáculo da base eleitoral dos dois presidentes que representam, cada qual a seu modo, a atual guinada ideológica no mundo à direita, sob três pilares fundamentais: contra o aborto, a favor de Israel e a favor de armas.

No Brasil, esses pilares podem ser traduzidos pela segurança pessoal e a defesa de valores morais conservadores.

Nos Estados Unidos, o grupo Christian United for Israel que faz o mais forte lobby a favor de Israel bíblica, o que implica o reconhecimento de Jerusalém como capital, independentemente de um acordo com os palestinos. Por isso o governo de Israel, nas palavras de seu embaixador no Brasil, considera que Bolsonaro está mudando a História.

Os evangélicos apoiaram Bolsonaro, que, católico, foi batizado no Rio Jordão, a exemplo de Cristo, pelo pastor Everaldo, presidente do Partido Social Cristão (PSC) ligado à Assembléia de Deus, a maior igreja evangélica do país.

Outra igreja evangélica importante no apoio a Bolsonaro foi a Universal do Reino de Deus comandada pelo auto-intitulado Bispo Macedo, do PRB, Partido Republicano Brasileiro. O PRB foi criado em 2005 para substituir o PL, manchado pelas denúncias do mensalão. Na ocasião, o então prefeito Cesar Maia o chamou de “o gospel do crioulo doido”, tal a disparidade de seus fundadores.

A Universal tem em São Paulo sua maior igreja, uma cópia do Templo de Salomão, cujo altar tem o formato da Arca da Aliança, onde, segundo relato bíblico, o rei Davi guardou os Dez Mandamentos no primeiro Templo de Salomão, construído no século XI a.C., em Jerusalém.

O projeto político continua sendo o controle da chamada “nova classe média”. A preocupação do PT com a ascendência da Universal sobre o eleitorado, que ainda tem a TV Record, quase a emissora oficial de Bolsonaro, foi explicitada pelo ministro Gilberto Carvalho, então secretário-geral da Presidência, que alertou que as esquerdas deveriam disputar ideologicamente a massa dos emergentes.

O mesmo Carvalho, revelou a revista Época, foi disfarçado à Praça dos Três Poderes no dia da posse para ver de perto o povo que abandonou o PT por Bolsonaro. Quem identificou pioneiramente essa classe emergente como base política fundamental foi o sociólogo professor de Harvard Mangabeira Unger, que participou da fundação do PRB, mas apoiou Ciro Gomes.

Ele não considera que a vitória de Bolsonaro seja uma regressão autoritária, mas “a afirmação do agente mais fundamental do país, que são os emergentes”. Nessa categoria ele inclui “a pequena burguesia em grande parte evangélica”, e “uma multidão de trabalhadores mais pobres, que assimilaram essa cultura de auto-ajuda e iniciativa. Eles são a vanguarda do povo brasileiro, agentes decisivos”.

Mangabeira Unger considera que os evangélicos brasileiros têm semelhança com pioneiros que fundaram os EUA e tinham o espírito empreendedor que faria a diferença para o desenvolvimento do Brasil.

As pesquisas durante a eleição presidencial mostraram que a sociedade exaltava o “autoritarismo” de Bolsonaro, provavelmente confundindo com “autoridade”, para trazer ordem aos serviços públicos, proteção à família, (instituição mais valorizada pelos brasileiros segundo o Datafolha), e meritocracia no trabalho. “Tudo sob a proteção divina”.

Bolsonaro foi identificado como o que mais ajuda os ricos, primeira vez que um candidato à Presidência da República liderou a disputa com essa definição, que era depreciativa e hoje parece ser uma qualidade almejada pela maioria, com sonhos de ascensão social.

Esse desejo já havia sido detectado, logo após a eleição municipal que o PT perdeu em São Paulo em 2016, por uma pesquisa do Instituto Perseu Abramo, do próprio partido. Bolsonaro entendeu o que se passava.


Míriam Leitão: O rosto da direita que chega ao poder

Direita no poder: a luta pela agenda liberal será dura, as ideias de alguns ministros são constrangedoras, militares têm sido o poder moderador dentro do governo

Nossa democracia estava capenga, afirmou o ministro da Economia, ao dizer que só a centro-esquerda havia governado o Brasil. Mas que direita é essa que chegou agora? Nos muitos discursos e certas decisões da última semana, o novo rosto do poder começou a ser esboçado. A economia perseguirá a agenda liberal, o que será uma guerra, na qual o front mais ingrato será o interno. Em outras áreas, como direitos humanos, educação e relações exteriores, os ministros mostraram um desconcertante alheamento da realidade. Os militares nomeados parecem ser a força moderadora dentro do próprio governo. A agricultura recebeu poderes indevidos e que levarão a conflitos de interesse.

A democracia pressupõe alternância de grupos e ideias no poder. Até agora, houve o governo de direita de Fernando Collor, de curta duração e final infeliz. Depois o pêndulo oscilou entre o centro, tucano, e a esquerda, petista. Houve uma administração tampão do MDB, que se pode definir como centro-direita. E agora chega ao poder um governo assumidamente de direita.

No Brasil, os conceitos políticos são bem imprecisos. A esquerda fez coisas como aumentar as transferências para o capital, ainda que tenha também ampliado os programas sociais. Vamos entender nos próximos anos o que realmente significa uma administração de direita no Brasil. Destes pouquíssimos dias extrai-se pouca informação. O presidente, Jair Bolsonaro, garantiu que cumprirá promessas de campanha, como a de liberar a posse de armas. O ministro das Minas e Energia, almirante Bento Albuquerque, surpreendeu favoravelmente anunciando que a Eletrobras será privatizada, o que levou a uma alta de 20% nas ações em um único pregão. Houve também momentos constrangedores. As ideias da ministra Damares sobre divisão de cores por gênero são principalmente infantis, as do ministro Ernesto Araújo, confusas.

No Ministério da Justiça, o que se tentará é, a partir da experiência da Lava-Jato, reforçar o arcabouço legal contra a corrupção. Na posse, o ministro Sérgio Moro explicou que “um juiz de Curitiba pode pouco”. Um erro de interpretação dos fatos. Foi um juiz em Curitiba, no caso, ele mesmo, que permitiu, com suas decisões, que a Operação Lava-Jato alcançasse a dimensão que tem tido na vida nacional. Moro assumiu com projeto pronto para o combate à corrupção, mas não parece ter propostas para todos os outros assuntos que agora estão sob seu comando.

Na economia, o ministro Paulo Guedes tem ideias consolidadas. Ele é um homem de ideias, um pensador. A vida real dentro de um gabinete ministerial pode ser mais árdua do que ele imaginava. O que fazer diante de um presidente que anuncia de forma confusa e contraditória pedaços da “primeira e maior” das reformas econômicas? E quando o presidente anuncia que subirá o IOF e o secretário da Receita precisa desmentir? Confusos esses primeiros dias na área econômica.

A hora do espanto foi a do discurso barroco do ministro das Relações Exteriores. Depois de citações em grego e latim, ele desculpou-se: “Não conheço tantas línguas antigas assim. Não conheço hitita nem sânscrito”. O problema do chanceler é respeitar a linguagem diplomática, que requer mais cuidados do que ele demonstra ter ao falar de outros países. Ele os escolhe pelo governo que está agora no poder. Elogiou a “nova Itália, a Polônia, a Hungria”. Demonstra encantamento com Donald Trump. Como qualquer aluno do Instituto Rio Branco sabe, os governos são temporários, por isso as relações são entre os países. Ele propõe que o Itamaraty lute contra a “teofobia”, sem esclarecer o que essa cruzada contra problema inexistente tem a ver com os interesses do Brasil.

Na reorganização da administração, o governo acabou com o Ministério do Trabalho, enfraqueceu a Funai e tirou poderes do Ministério do Meio Ambiente. Tudo isso está dentro do ideário da direita. A redução do número de ministérios é bem-vinda. O problema é entregar o poder de demarcar as terras indígenas ao Ministério da Agricultura e transferir o Serviço Florestal Brasileiro do Meio Ambiente para a Agricultura. Isso certamente dará muito conflito.

Foram apenas as primeiras pinceladas no novo rosto do poder. Seria bom que as confusões e os delírios desses primeiros dias dessem lugar ao entendimento da verdadeira natureza dos problemas nacionais.


Fernando Henrique Cardoso: Novo ano, novos desafios

Espero que o novo governo ache rumos melhores do que alguns membros apontam

Ao iniciar o ano, as pessoas estão cheias de esperança, querendo o melhor para si e para o País. É também o que eu desejo para os leitores e para todos os brasileiros. Contudo os desejos não substituem os fatos, e estes podem impedir que aqueles se realizem em 2019. Certamente torço para que o Brasil encontre um rumo melhor. Mas um olhar realista se impõe.

Comecemos olhando para o mundo. Desde o fim da guerra fria e, especificamente, desde que, no início da década de 1970, Henry Kissinger convenceu o então presidente Richard Nixon a visitar a China e a normalizar as relações com aquele país, vivemos um período de relativa tranquilidade no sistema internacional. O entendimento sino-americano visou de início a isolar a União Soviética, rival da China no mundo comunista. À medida que aquela foi declinando, dissolvendo-se em 1991, o mundo assistiu à crescente complementaridade econômica entre a maior potência mundial, os Estados Unidos, e a potência em ascensão, a China.

Com a Pax americana, coadjuvada pela China, os conflitos se tornaram localizados. A ambição que motivou a formação das Nações Unidas, a de pôr um ponto final nas grandes guerras mundiais, ficou ainda mais próxima da realidade com o colapso do mundo soviético, iniciado com a simbólica queda do Muro de Berlim, em 1989.

Sob a liderança de Deng Xiaoping, ao final dos anos 1970, os chineses compreenderam que seu país precisaria reformar-se e abrir-se ao mundo para prosperar. De Deng Xiaoping até o atual líder chinês, Xi Jinping, todos sustentaram uma política externa orientada para evitar a chamada "armadilha de Tucídides": a colisão e ao final a guerra entre a potência hegemônica e a emergente. As lideranças chinesas falavam de uma ascensão pacífica e de um "socialismo harmonioso", juntando o regime de partido único e o Estado socialista com a integração financeira e produtiva ao mundo capitalista. A China abriu-se às multinacionais que quisessem disputar seu mercado ou exportar, desde que aceitassem as regras do poder. E mais: tornou-se a maior detentora de papéis do Tesouro americano.

Há sinais, contudo, de que a Pax global começa a ser ameaçada não propriamente pela guerra convencional ou atômica, permanecendo um cenário remoto, mas por uma crescente disputa pela liderança tecnológica, da qual a guerra comercial ora em fase de escaramuças é o aspecto mais visível. A disposição de Trump de desmantelar a ordem liberal vigente visa a impedir que a China assuma a dianteira na corrida tecnológica nas áreas de inteligência artificial e computação quântica. Sob Xi Jinping os chineses já não escondem suas ambições na corrida tecnológica, mesmo no campo militar disputam o controle de parte do Pacífico. Mais do que na interferência online nos processos políticos dos Estados Unidos e da Europa, como os russos, a China aposta na sua capacidade no terreno tecnológico para o sucesso econômico e bélico. Ainda não conhecemos os desdobramentos dessa disputa, mas parece que a ordem liberal pós-guerra fria está ficando para trás, com riscos para a paz mundial.

O Brasil tem um novo governo. Fala-se muito que o País, na esteira da onda conservadora no mundo, virou à direita. Será esse o sinal enviado pelo eleitorado, que em sua maioria votou por repúdio ao PT, à falta de segurança pública e à podridão política, sem, entretanto, algum conteúdo ideológico definido? Se o novo governo deslizar para a direita, será menos porque o eleitorado assim decidiu e mais porque os vencedores assim pensam.

Pensam? Depende: na economia o governo é liberal, nos costumes, reacionário e, quanto à visão do mundo, basicamente anacrônico, a julgar pelo que disseram alguns de seus membros. Dos militares pouco ou nada se ouviu a respeito. Subscreverão as teses do futuro chanceler? Ou a norma de que sem objetivos e sem preparação não há guerra a ser ganha?

Para concluir, diante do quadro internacional, quais devem ser os objetivos básicos de um país como o Brasil, grande, populoso, diverso e excêntrico, isto é, distante dos polos do conflito? Acelerar o crescimento da economia, em bases socioambientais sustentáveis, para dar melhores condições de vida ao povo, preservar o acervo de boas relações que o País construiu ao longo do tempo, afirmar (e praticar internamente) valores que nos são caros, a começar pela democracia. Para isso, por que tomar partido diante de um eventual choque de interesses entre a China e os Estados Unidos ou de quem quer que seja? Por que tomar partido nas disputas que dividem os Estados Unidos e a Europa? Melhor será, penso, cuidar de manter nossa influência na América do Sul, região a que pertencemos, e, sem entrar em briga graúda, participar mais amplamente dos fluxos globais de comércio, informação, criatividade e desenvolvimento, para obter a melhor inserção possível no mundo.

É, no mínimo, anacrônico pensar que a disputa por poder e influência no sistema internacional se dê entre gladiadores comunistas e capitalistas, cruzados da fé cristã contra cosmopolitas sem fé e sem pátria. A luta real é por mais ciência e tecnologia, para melhorar a qualidade dos empregos e da vida em sociedades que não devem nem podem mais se encerrar em si mesmas nem se agarrar dogmaticamente a identidades étnicas, religiosas, etc., fechadas e excludentes. A ideologia que se insinua é tão distante dos interesses permanentes de um país como o Brasil quanto o foi a que ela pretende substituir.

Por isso espero que o novo governo encontre rumos melhores do que os que, com estridência, apontam alguns de seus membros. À oposição cabe criticar impulsos ideológicos, alertar para os riscos de alinhamentos automáticos e contribuir para que os interesses reais do Brasil e de sua gente prevaleçam na definição e implementação das políticas, externa e interna.

*Sociólogo, foi presidente da República


Luiz Werneck Vianna: As ondas grandes e a oposição

O horizonte que agora se entrevê é de céu de brigadeiro para o início do novo governo

Não será a primeira vez, mas a terceira, que nos deixamos enredar na trama sinistra do que vem por aí. E, pior, sempre por nossos erros, pela desconsideração do País real, conservador a tal ponto que permitiu que sua quasímoda estrutura fundiária, herdada do período colonial, não só encontrasse sobrevivência, mas se convertesse, com a emergência do agronegócio, num dos esteios do processo de modernização burguesa ainda em curso, caso clássico de passagem para o capitalismo pela via prussiana de desenvolvimento capitalista e seus efeitos antidemocráticos, tema bem estudado por grandes autores como Barrington Moore e Charles Tilly, entre tantos outros. Estão aí a sua robusta bancada parlamentar e sua presença em postos estratégicos do novo governo.

As anteriores, de 1937 a 1945 e de 1964 a 1985, foram longevas, e em ambas a preservação da estrutura agrária cumpriu papel relevante: sob o regime de Vargas excluiu-se o trabalhador do campo da legislação social, reservada apenas aos trabalhadores urbanos; e no regime militar, por meio de uma generosa abertura de créditos para proprietários selecionados politicamente e de uma política de colonização que lhes concedessem acesso a mercados, convertendo-os em capitalistas modernos, história bem descrita e analisada em tese de doutoramento por Rafael Assunção de Abreu em A boa sociedade: história sobre o processo de colonização no norte de Mato Grosso durante a ditadura militar (Iuperj, 2015).

O legislador constituinte teve consciência da necessidade de democratizar a estrutura fundiária do País, mas seus esforços foram barrados por intensa mobilização das nossas elites junkers, que se arregimentaram, até mesmo em grupos armados, na União Democrática Ruralista (UDR), obstando uma via de reforma. Uma de suas principais lideranças de então, Ronaldo Caiado, antes senador, foi agora eleito governador de Goiás. A democratização do País teria de conviver com esse pesado lastro que lhe vinha do período colonial, e se os grandes proprietários de terra encontravam oportunidades de converter seus antigos papéis tradicionais em modernos no emergente capitalismo brasileiro, a massa dos trabalhadores da terra seria condenada à situação de retirante sem eira nem beira, mão de obra barata para as indústrias e os serviços dos centros urbanos, dependentes em sua sobrevivência dos ciclos expansivos da economia.

A herança da escravidão e a da estrutura a agrária colonial estão, como notório, na raiz da abissal desigualdade social brasileira, diagnosticada desde o Império por grandes intelectuais liberais, como Tavares Bastos, André Rebouças e Joaquim Nabuco. Na esteira dos movimentos sociais que se mobilizaram em torno do processo constituinte, o tema da igualdade encontrou vocalização e sustentação nos partidos de perfil social-democrata que então se organizaram, o PSDB e o PT, mais neste do que naquele, embora ainda sem o vigor necessário para enfrentar o tamanho do desafio que tinham pela frente.

Ademais, o PT, o mais vocacionado para interpelar os movimentos sociais, se na prática seguia o roteiro de uma política social-democrata, era refratário a assumir identidade desse tipo. Aos poucos, como se viu, sua política eleitoral se desalinhou do centro político e de suas inspirações originais de autonomia da vida associativa diante do Estado, reeditando em boa parte as políticas prevalecentes na era Vargas. Cooptadas pelos aparelhos estatais, as organizações sociais dos seres subalternos perderam vigor e capacidade de mobilização e, ao menos por ora, encontram-se sem capacidade de reação.

A agenda do novo governo, de confessada profissão de fé no neoliberalismo de modelo chileno de Pinochet, encaminha-se sem rebuços para a remoção do que há de inspiração em nossas instituições, principalmente na Carta de 88, da social-democracia europeia, tendo pela frente um deserto de vida sindical e associativa, e um Supremo Tribunal Federal esvaziado do carisma que a sociedade sempre reconheceu nele pelos conflitos fratricidas que corroem sua legitimidade, pela ação de alguns dos seus integrantes. A profecia de que para silenciá-lo basta um cabo e um soldado, antes anedótica, já conta com possibilidades de se autocumprir.

Diante desse cenário, embora a composição dos quadros governamentais revele opções erráticas que prometem ser fontes de problemas futuros, além das óbvias dificuldades para um governo que pretende realizar reformas dependentes de uma sólida base congressual com que não conta, o horizonte que agora se entrevê é de céu de brigadeiro para o início do seu mandato. No mais, as forças sociais e políticas que já se opõem a ele, esfaceladas e desarvoradas como se encontram, não devem, ao menos de imediato, significar obstáculos efetivos para a realização dos seus propósitos, e com todas as devidas vênias, não será um centro radical, esse espécime que não se vê desde a Revolução Francesa sob o consulado de Napoleão Bonaparte, que fará as vezes de uma oposição robusta.

Uma imagem trazida dos atletas do surf que praticam sua modalidade em ondas grandes talvez seja inspiradora para a oposição. Ondas grandes em geral vêm em série, um desequilíbrio do atleta que nelas se aventura pode ser-lhe fatal, em caldos sucessivos que não lhe permitam a respiração, mantendo-o preso ao remoinho das águas que o impeçam de voltar à superfície. Em cuidado com esses riscos, seus praticantes fazem exercícios de apneia, com que se preparam para o pior em suas evoluções.

Isso que aí está, aqui e alhures, é, sem dúvida, uma Praia da Nazaré com suas medonhas ondas grandes. Não se vai enfrentá-las sem treinamento adequado e sem lideranças de tirocínio comprovado, senão o caldo é certo, como o do AI-5, de infausta memória, há 50 anos. As lideranças se farão no caminho. E o caminho, adverte o poeta, se faz ao andar.


El País: “Criticar ‘ideologia de gênero’ dá permissão ao Estado para atacar um grupo social”, diz Javier Corrales

Cientista político traça paralelos entre Chávez e Bolsonaro e adverte à oposição brasileira: "Se não conseguirem tomar o poder no Congresso, perdem o jogo"

Por Flávia Marreiro, do El País

O cientista político Javier Corrales, do Amherst College, em Massachusetts, lançou há quase uma década Dragon in the Tropics (Dragão nos Trópicos), um livro que mostrava como Hugo Chávez estava, pouco a pouco, afrouxando o sistemas de pesos e contrapesos da democracia assim como Vladimir Putin fazia na Rússia. De lá para cá, o fenômeno que ele chamava de regimes híbridos ou "democracias iliberais" só cresceu. No ano passado, o professor lançou um segundo livro, Fixing Democracy (Oxford Press, 2018), sobre as reformas constitucionais na América Latina nos últimos anos e seus impactos.

É com essa ampla lente comparativa que Corrales analisa agora a chegada ao poder de Jair Bolsonaro. Ele não duvida em traçar paralelos entre o militar reformado brasileiro e o líder venezuelano morto em 2013. "Bolsonaro e Chávez acham que seus mandatos são para agradar seus seguidores e castigar e ignorar seus opositores", afirmou em entrevista por e-mail, horas antes da posse do presidente ultradireitista.

“Criticar ‘ideologia de gênero’ dá permissão ao Estado para atacar um grupo social” Assine nossa newsletter diária: mais jornalismo para um ano sem precedentes
O professor, que também estuda a mobilização por direitos LGBT na América Latina, diz que a retórica usada pelo novo Governo brasileiro contra a "ideologia de gênero", um termo pejorativo para iniciativas de promoção da diversidade sexual e de gênero, não deve ser minimizada. "Quando se critica a 'ideologia de gênero', se declara um grupo nacional como inimigo".

Pergunta. O senhor e outros acadêmicos já apontaram semelhanças entre Chávez e Bolsonaro, especialmente a maneira como chegaram ao poder e os discursos de “a minoria deve ser curvar à maioria". Vê um novo dragão nos trópicos, com vontade de afrouxar pesos e contrapesos?

Resposta. Existem muitas diferenças, sem dúvida, mas há muitas semelhanças. Comecemos com as semelhanças. A semelhança principal é que são movimentos que não colocam a democracia liberal como prioridade. Democracia liberal significa respeito aos freios e contrapesos que são responsabilidade do poder executivo e respeito à oposição. Bolsonaro e Chávez não acham que o propósito de seus mandatos é fortalecer a democracia liberal. Acham que seus mandatos são para agradar seus seguidores e castigar e ignorar seus opositores. Outra semelhança é uma agressividade aberta contra o status quo, contra tudo o que foi feito no passado, e vontade de refundar o sistema político. Isso os leva a ser mais impacientes com a questão da reforma e a querer se impor. Existe também um desejo de romantizar o papel das Forças Armadas. Chávez desde o começo falou de uma aliança cívico-militar. Foi horrível ver a esquerda da Venezuela e da América Latina ser tão tolerante com a mensagem tão militaróide de Chávez. Para Bolsonaro, a aliança cívico-militar proposta terá propósitos diferentes (combater a criminalidade, enquanto para Chávez era impulsionar e melhorar a prestação de serviços por parte do Estado), mas na hora da verdade, eram movimentos alinhados às forças de segurança. Por último, os dois movimentos enfatizam muito a luta contra a corrupção. Colocam a culpa pela corrupção na ideologia e nos partidos anteriores, e não à falta de freios e contrapesos. Ou seja, para Chávez, a corrupção da Venezuela era produto do neoliberalismo, que em si, era produto de partidos em decadência. Para Bolsonaro, a corrupção é produto do esquerdismo, e certamente do PT em decadência. A solução, portanto, é exterminar essas ideologias / partidos. Não é criar sistemas de freios e contrapesos ao executivo.

P. E as diferenças?

R. A primeira é que Bolsonaro procura melhor relação com os EUA. Isso irá fortalecê-lo. Bolsonaro também tem uma equipe econômica melhor do que a de Chávez, apesar de existirem divisões internas. Bolsonaro tem mais apoio dos evangélicos, que são mais fortes no Brasil do que eram na Venezuela há 20 anos. Essas são as diferenças que ajudarão Bolsonaro. As diferenças que irão enfraquecer Bolsonaro estão relacionadas às instituições, que não estão desprestigiadas no Brasil como eram na Venezuela em 1999, após duas décadas de crises econômicas profundas. A outra diferença é que a oposição a Chávez praticamente acabou na eleição presidencial de 1998 e durante o período da assembleia constituinte de 1999 na Venezuela. Ela se fragmentou demais e muitos aderiram ao chavismo. No Brasil, Bolsonaro tem uma oposição forte. O PT perdeu as eleições, mas não acabou. Há um melhor entendimento no Brasil hoje dos perigos de se perder a democracia liberal do que existia na Venezuela em 1999, quando as pessoas pensavam que a democracia participativa era melhor do que a liberal. Por fim, Bolsonaro nunca terá uma mina de ouro, como é a indústria do petróleo na Venezuela, em poder do Estado e que foi transformada por Chávez em seu talão de cheques pessoal.

P. O senhor diz que essa aliança entre evangélicos e partidos de direita é um "casamento perfeito" não só no Brasil e está revolucionando a balança da política na região, por dar à direita um caminho para acessar os eleitores mais pobres. O que é o "modelo brasileiro" e por que é tão bem-sucedido?

R. Porque no Brasil os evangélicos fazem tudo o que se espera das ONGs mais bem-sucedidas e muito mais. Têm presença em todos os setores da sociedade, de pobres a ricos, brancos e não brancos, urbanos e não urbanos. Prestam serviços sociais aos seus fiéis, com os quais recebem muitos agradecimentos por parte deles. Predicam sua mensagem semanal, e quase sem ser criticados dentro de seus âmbitos de discussão - não há pluralismo interno. Mobilizam enormes recursos econômicos quase sem prestar contas. Eles se uniram em relação a várias questões fundamentais: sexualidade, criminalidade, o que lhes dá força política. Têm presença nas redes sociais e na imprensa. Além disso, têm presença no Congresso, que é muito mais do que conquistaram os evangélicos no restante da América do Sul.

P. Qual o papel dos católicos e do papa Francisco nisso?

R. O Brasil tem uma tradição de católicos progressistas, que agora precisa coexistir com o renascer de um catolicismo mais conservador, mais evangélico, menos tolerante com a diversidade. Acho que o Governo de Bolsonaro dividirá os católicos mais do que qualquer outra religião.

P. Existem sinais de que o novo Governo irá explorar mensagens religiosas de maneira muito central. Essa cruzada tem potencial para afetar os direitos já conquistados da comunidade LGBT e das mulheres?

R. Acho que sim. Por todos os lados vemos mensagens contra a "ideologia de gênero". É preciso ser claro. Quando se critica a "ideologia de gênero", se declara um grupo nacional como inimigo: aquele que representa e defende a diversidade de gênero e sexual. Para mim, criticar a "ideologia de gênero" ocupa o mesmo lugar que a questão dos “imigrantes ilegais” de Trump. Dá permissão ao Estado para atacar esse grupo. Virá um ataque no Brasil contra feministas e grupos pró LGBT, que será um ataque defendido por setores religiosos.

P. Antes de ser uma questão mainstream, o senhor estudou os “regimes híbridos”, como os de Chávez e Putin. De seu livro para cá, o fenômeno só cresceu. De onde vem essa onda “iliberal”? Existem fatores que os unem atravessando territórios e espectros ideológicos?

R. Acho que a questão se espalhou por duas razões: primeiro, a maneira como os regimes híbridos crescem. Esses governos não suspendem a democracia liberal de uma vez, o que seria escandaloso em todos os lugares. Eles o fazem, como diz a canção, despacito (devagarzinho). E além disso, o fazem com medidas complementares, como gostam, e que alguns chamam de participativas. Ou seja, tiram e põem simultaneamente. Chávez concentrava poder, mas gastava em programas sociais. Muita gente, portanto, não vê claramente a gravidade do assunto da erosão do sistema de freios e contrapeso no começo. É um pouco como a velhice. As pessoas não se dão conta do que acontece enquanto está acontecendo.

Outra razão é que os regimes iliberais geram polarização, e essa polarização no final acaba ajudando o poder executivo. No começo, a polarização enfraquece esses regimes, mas depois os ajuda. E essa é a explicação. Os partidos da oposição se tornam aborrecidos. A única coisa que fazem é criticar, criticar e criticar. O que é necessário. Mas as pessoas se cansam de tanta crítica. Além disso, começam a se dividir entre quanto criticar, o que criticar e, certamente, sobre o que fazer. Vemos então que nos regimes híbridos há um ponto em que a oposição, mesmo começando forte, começa a se dividir, a gerar repúdio, e termina se enfraquecendo. Se não conseguirem tomar o poder no Congresso, perdem o jogo.


Dawisson Belém Lopes: Deus e o diabo na terra da política externa

Chanceler promete diplomacia que reflita religiosidade popular, mas será que brasileiros são contra o secularismo?

Há algo de farsesco, ainda que bastante engenhoso, no modo como a política externa do governo Bolsonaro vem buscando legitimar-se publicamente. O principal impulso ao processo é dado pelo chanceler Ernesto Araújo, homem de fortes convicções morais, admirador dos nacionalismos românticos e da herança ocidental. Trata-se, ademais, de um fiel devoto de Donald Trump.

Araújo vem se aproximando, nas manifestações feitas em seu blog pessoal e nas peças que publica na imprensa, do apelo popular de Jair Bolsonaro à religiosidade do povo brasileiro. A fórmula da nova política externa, segundo o chanceler, terá de alinhar-se a essas circunstâncias.

Se a gente brasileira é religiosa, logo a política externa, praticada por um presidente com mandato democrático, também deverá sê-lo. O Brasil, entende Bolsonaro, necessita pautar-se nas suas relações internas e internacionais por valores judaico-cristãos, pois é isso que o povo reivindica na atualidade.

Do raciocínio deriva o receituário da política externa bolsonarista: o país precisa rejeitar o “globalismo” e o “marxismo cultural”, tendências emanadas de foros diplomáticos e editoriais internacionais, desprovidas do empuxo popular e, alegadamente, corruptoras da soberania nacional e do patriotismo. Eis o bilhete para a “libertação do Itamaraty” – na expressão carregada de Araújo.

Para tanto, devem-se recusar peremptoriamente as resoluções das entidades multilaterais e juntar-se à liga dos regimes fortes e cultores das tradições ocidentais. Estados Unidos, Itália, Polônia e Hungria, nações cristãs, credenciam-se como parceiras preferenciais. Israel, o Estado judaico, candidata-se a aliado incondicional.

Percebe-se, todavia, que a equivalência “voz do povo, voz de Deus”, proposta pelos bolsonaristas como o verdadeiro elo perdido da autoridade, resulta logicamente falaciosa. Se é bem verdade que a sociedade brasileira preza a dimensão religiosa, não se extrai daí que os cidadãos sejamos refratários ao secularismo como princípio organizador da vida política.

Mero estereótipo
De resto, a experiência religiosa dos brasileiros, como já amplamente difundido pelos antropólogos, é de um tipo sincrético, não acomodando no cotidiano os rigores da ortodoxia. Somos o país dos milhões de cristãos “não praticantes”, das infusões e dos intercâmbios entre as variadas denominações de fé.

Ao substituir as máximas mundanas do realismo político por princípios idealistas e metafísicos, Araújo e colaboradores recriam o ciclo de produção da política externa brasileira. Tira-se o povo da conversa, reduzindo-o a mero estereótipo de uma expressão religiosa. Habilmente, o chanceler e seu grupo promovem jogos filosóficos e de linguagem cujo saldo é a elitização decisória em política externa.

Explica-se: quando o mote da política externa democrática era anteriormente evocado, imaginava-se uma tensão constitutiva entre os aristocráticos homens de Estado e a plebe. A democratização poderia até avançar, lenta e dialeticamente, por meio de choques de interesses. Por um truque retórico, contudo, essa tensão dissipou-se no discurso corrente, dado que os novos mandatários imaginam falar pelo e para o povo, interpretando de maneira peculiar os sentidos da sua fé.

Os diplomatas profissionais, integrantes da comunidade cosmopolita global, tradicionalmente autorizados a pronunciar-se sobre as relações exteriores do Brasil, dão lugar a teocratas e nativistas. Dentro desse esquema de coisas, saber técnico, trajetória institucional e acúmulo acadêmico não se tornam, necessariamente, alavancas de poder. Afinidade ideológica e proximidade com a chefia do Poder Executivo, sim.

Existe, ainda, um inesperado problema empírico com a narrativa diplomática em construção: segundo levantamento do instituto Datafolha, divulgado em 27 de dezembro último, 66% dos brasileiros não querem ver o país associado aos Estados Unidos nos assuntos estrangeiros. É um rechaço popular emitido em alto e bom som aos caminhos vislumbrados pelo novo governo federal.

* Professor de política internacional da UFMG, é o autor de “Política Externa e Democracia no Brasil: Ensaio de Interpretação Histórica” (Ed. Unesp, 2013) e “Política Externa na Nova República: Os Primeiros 30 Anos” (Ed. UFMG, 2017).


O Globo: Frente evangélica apoia Israel por crença no Apocalipse e na volta de Cristo

Maior entusiasta da mudança da Embaixada do Brasil para Jerusalém, grupo acredita na conversão de judeus ao cristianismo

Por André Duchiade, de O Globo

Não se conhece grupo que apoie tanto o projeto do presidente Jair Bolsonaro de transferir a embaixada brasileira em Israel para Jerusalém como a Frente Parlamentar Evangélica, que deve reunir 91 parlamentares a partir deste ano, entre 84 deputados e sete senadores. No fundamento do apoio, além da conexão do Estado de Israel moderno ao antigo reino hebreu, há uma razão voltada para o futuro — o cumprimento de supostas profecias bíblicas do retorno de Cristo e do Apocalipse.

— Israel é um termômetro dos sinais do cumprimento do que está escrito no Livro do Apocalipse — diz o deputado federal e membro da Assembleia de Deus Sóstenes Cavalcante (DEM-RJ). —A nossa fé acredita nisso. A transferência da embaixada diz respeito a isso. Para nós, todo cenário será preparado para o Armagedom, como descrito no Apocalipse, e o palco do Armagedom será na cidade de Jerusalém.

As declarações ajudam a explicar a proximidade do presidente Jair Bolsonaro, que durante a campanha contou com a poio maciço da comunidade evangélica, com Israel. Para um grande número dos líderes protestantes do país, sobretudo os neopentecostais, a criação do Estado de Israel, em 1948, foi um prenúncio da volta de Cristo.

De acordo com Christopher Rollston, professor de Estudos Bíblicos da Universidade George Washington, esses grupos evangélicos são chamados pré-milenaristas, e veem uma grande continuidade entre eventos descritos na Bíblia e o mundo moderno:

— De acordo com a sua leitura, certas passagens em livros de Daniel, de Ezequiel e da Revelação preevem a criação do Estado de Israel— afirma o professor, destacando que não compartilha da leitura, assim como “praticamente todos os estudiosos sérios da Bíblia”. — Eles creem que a conversão dos judeus aos cristianismo se seguirá à criação do Estado de Israel e tudo isso se concluirá com a segunda vinda de Jesus.

Expectativa pelo fim
Yaakov Ariel, professor de estudos religiosos da Universidade Chapel-Hill e autor de “Uma relação incomum: cristãos evangélicos e judeus” (“An unusual relationship”), diz que, em sua origem, o cristianismo se baseava no messianismo — o retorno de Cristo à Terra seria iminente, com o estabelecimento do Reino de Deus. Com o tempo, as maiores tendências cristãs começaram a interpretar as passagens como simbólicas ou alegóricas, com a Igreja Católica assumindo o papel de iluminar o rebanho, no lugar de um retorno de Jesus. A partir da Reforma Protestante, no século XVII, contudo, a expectativa pelo Apocalipse reaparece:

— Lendo o Velho Testamento de uma nova maneira, alguns pensadores messiânicos passaram a esperar que os judeus desempenhariam um papel importante nos eventos do fim dos tempos, que pensavam que estavam prestes a começar — afirma o autor. — As raízes do apoio cristão ao sionismo podem ser encontradas aí.

No final do século XIX, relata Ariel, essas leituras ganharam força, sobretudo a chamada escola dispensionalista, criada nos EUA. De acordo com a doutrina, que é a mesma defendida por pastores neopentecostais hoje (outros grupos, como a Igreja Presbiteriana, não a compartilham), Jesus virá para resgatar os seus crentes e a sua igreja, antes de um período chamado de Grande Tribulação. Durante essa época, que durará sete anos, a Terra será devastada por cataclismos como enchentes e terremotos, somados a regimes ditatoriais, piores do que o Holocausto, promovidos por um Anticristo que se dirá um Messias.

O retorno de Cristo, ao cabo da turbulência, derrotará o governante satânico, para então reinar por um período de paz de mil anos. Cavalcante, que, além de deputado, é teólogo, se esquiva da resposta sobre o destino dos que não se converterem, mas afirma que os judeus terão a oportunidade de arrependimento e de conversão ao cristianismo, por serem o povo escolhido:

— Os judeus terão uma segunda oportunidade de arrependimento — afirma. — Eles serão a única nação que terá a oportunidade para o arrependimento.

Rolsston explica o futuro dos que rejeitarem a conversão:

— Evangélicos acreditam que qualquer um que não se converter ao cristianismo vai para o inferno — afirma.

Essa visão de mundo, segundo Rollston, é “completamente incompatível” com a de qualquer judeu praticante, seja ortodoxo ou conservador reformista. Dentre as diferenças, estão a leitura profética daquilo que o judaísmo entende serem textos antigos, assim como a conversão completa dos judeus aos ensinamentos de Cristo:

—Em certos aspectos, a visão pré-milenarista é muito antissemita, porque o seu objetivo é a conversão dos judeus ao cristianismo.

Apelo às bases
Se concretizada, a transferência da embaixada brasileira se seguirá às dos EUA e a da Guatemala. Nos três casos, as ações dos presidentes agradam a bases evangélicas — o país centro-americano tem a maior proporção de evangélicos na América Latina, cerca de 40% da população, enquanto no Brasil são 22%. Nos EUA, onde os evangélicos são 25%, entre 48% e 65% dos líderes do grupo são pré-milenaristas, segundo pesquisas.

Segundo altas autoridades israelenses ouvidas pelo GLOBO, o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu entende que Bolsonaro quer realizar a transferência de modo incondicional, por amizade a Israel. Em um encontro entre líderes evangélicos e o premier num hotel de Copacabana no penúltimo dia de 2018, Bibi, como é conhecido o premier, exaltou os presentes:

— Não temos melhores amigos no mundo do que a comunidade evangélica. E a comunidade evangélica não tem melhor amigo do que Israel.

Rollston afirma que o premier ignora propositalmente a concepção de mundo de seus aliados, por obter vantagens a partir dela. De acordo com o jornal israelense Haaretz, cristãos evangélicos enviaram mais de US$ 60 milhões na última década para a Cisjordânia, para financiar assentamentos israelenses. Quase meio milhão de cristãos visita Jerusalém todos os anos, incluindo 50 mil do Brasil.

— É claro que Netanyahu sabe que a visão que esse grupo têm do judaísmo é problemática, mas quer o apoio mesmo assim, então a ignora — diz Rollston.

Para o deputado Cavalcante, a transferência é inegociável:

— Não vamos abrir mão de valorizar políticas externas, agora que estamos exercendo influência no Executivo. Entendemos que isso que está acontecendo está baseado no cumprimento profético.

(Colaborou Mateus Coutinho, de Brasília)


O Estado de S. Paulo: ‘Ficamos satisfeitos com a oferta da base militar’, diz Pompeo

Secretário de Estado afirma que Estados Unidos estão ‘entusiasmados’ com guinada à direita na América do Sul

Eliane Cantanhêde, de O Estado de S.Paulo

BRASÍLIA - O secretário de Estado Mike Pompeo disse que os Estados Unidos estão “muito entusiasmados” com a guinada da América do Sul à direita, liderada pelo governo Jair Bolsonaro no Brasil, e agradeceu particularmente a oferta do novo presidente para a instalação de uma base militar em solo brasileiro no futuro: “Nós ficamos satisfeitos.”

Em entrevista concedida por telefone ao Estado, nesta sexta-feira, 4, Pompeo disse que a recondução de Nicolás Maduro na Venezuela é “inaceitável” e alertou contra a “atividade predatória” da China. Ambos foram temas de Pompeo em sua vinda a Brasília para a posse de Bolsonaro.

É conveniente e apropriado um alinhamento automático do Brasil com os EUA desde já, logo depois da posse de Bolsonaro?

Estou muito satisfeito de ter tido a chance de passar algum tempo com o novo presidente e de nossas equipes terem ainda mais tempo juntas. Tivemos muito bom consenso sobre diferentes questões-chave de interesse não só para as relações entre os dois países, mas também para a região. Então, eu realmente creio que teremos um bom alinhamento nas nossas políticas daqui em diante, inclusive para desenvolver melhor as relações econômicas e comerciais e gerar empregos e oportunidades para os cidadãos no Brasil e nos EUA.

Quando será a visita do presidente Bolsonaro aos EUA?

Nós convidamos o presidente Bolsonaro para visitar Washington e espero que isso possa ocorrer já nessa primavera (que começa em março no hemisfério norte), ainda sem data. O presidente (Trump) espera recebê-lo aqui, por causa dessas coisas que acabei de descrever. Há tantas coisas em que nossos países podem trabalhar juntos, para tornar o mundo um lugar mais seguro e próspero.

Há também expectativa de reunião de Trump com os presidentes de Brasil, Colômbia e Chile, por exemplo? Qual a agenda?

Não sei se há um plano nesse sentido, mas sei que há momentos em que se ruma na mesma direção e essa coleção de países preza pelos mesmos princípios, logo, isso facilita bastante que todos eles trabalhem muito bem com a nossa nação em uma série de temas.

Ou seja, a posse de Bolsonaro lidera uma guinada à direita na região e um movimento de aproximação com Washington?

Exatamente. Estamos muito entusiasmados diante dessa perspectiva e vislumbramos grandes oportunidades.

Que tipo de apoio concreto Brasil e EUA pretendem dar para a Venezuela restaurar a democracia, como discutido com o chanceler Ernesto Araújo?

Não vou abrir o que conversamos privadamente, mas o chanceler e eu, de fato, falamos sobre a importância da restauração da democracia para o povo venezuelano e sobre a decisão da Assembleia Nacional no dia 10 janeiro – minha nossa! a menos de uma semana. O regime Maduro reivindica ocupar a Venezuela por mais um mandato, mas nós não consideramos que a eleição foi justa, achamos que foi uma farsa. Portanto, queremos ter certeza de que não só EUA e Brasil, mas os demais países da região deixem muito, muito claro que isso é inaceitável e que a democracia tem de ser restaurada. Há várias coisas que podem ser feitas e eu espero trabalhar com o nosso novo parceiro aí no Brasil em cada uma delas.

Esse foi seu principal tema na Colômbia, depois do Brasil?

Sim, também falei com o presidente (Iván) Duque (Márquez) e equipe e, além da Colômbia, outros países partilham nossa profunda preocupação com o impacto do regime Maduro na região. São mais de três milhões de pessoas querendo sair da Venezuela, o que joga um enorme peso sobre os outros países e, acima, de tudo prejudica e desvaloriza a vida dos que têm de fugir do regime.

O sr. concorda com a opinião do chanceler Araújo contra o “globalismo”? E com sua avaliação de que só Trump pode impedir uma ameaça liderada pela “China maoísta” contra os valores cristãos do Ocidente?

O presidente Trump tem sido muito, muito claro. Nos lugares onde as instituições globais fazem sentido e trabalham, nós desejamos integrá-las e ajudá-las a avançar, mas estamos reavaliando várias delas para determinar onde essas instituições estão atingindo os objetivos para os quais existem e onde não estão. Assim, podemos desistir de participar, se o trabalho delas vai num caminho contrário aos interesses dos Estados-Nações no mundo, não só nos EUA, mas certamente nos EUA e também nos demais países. Nós acreditamos profundamente que a ideia de soberania nacional, com os países usando sua soberania e seus poderes para trabalhar coletivamente, pode atingir grandes objetivos. E conversei com o ministro de Relações Exteriores sobre isso.

O sr. espera apoio do Brasil na disputa entre EUA e China, maior parceiro comercial brasileiro?

Nós chegamos a uma posição inquestionável de que a China não pode ser liberada para se engajar numa atividade econômica predatória ao redor do mundo. Isso não é do interesse de ninguém. Onde a China se apresenta, no Brasil, Chile, Equador ou qualquer parte, tem de haver competição, transparência e liberdade, então, se é bom para eles, isso é ótimo, companhias vêm de todos os lugares do mundo e competem e companhias americanas competem contra negócios chineses. Mas eles não podem ter permissão para se apresentar nos países e se engajar em práticas que não são abertas, transparentes, de forma a obter benefícios políticos usando esses fatores comerciais. Isso não é apropriado e vocês têm visto que nosso presidente (Trump) está preparado para lutar contra isso, onde quer que, em questões comerciais, a América não encontre práticas justas e recíprocas da China. Isso vale para outras atividades em que a China esteja envolvida.

Bolsonaro anunciou que o Brasil pode sediar uma base militar dos EUA no futuro. Há planos nesse sentido?

Isso é algo que estamos constantemente avaliando aqui nos EUA: qual a melhor forma de ter bons parceiros na região, bons parceiros ao redor do mundo, e onde, quando e como instalar nossas “US forces”. Essa é uma discussão colocada o tempo todo, e nós ficamos satisfeitos com a oferta do presidente Bolsonaro. Eu estou confiante de que vamos continuar as discussões sobre todo um conjunto de temas com o Brasil, enquanto o novo governo vai colocando seus pés no chão. Isso é algo que nós estamos desejando muitíssimo.

Qual a previsão para concluir o acordo bilateral para ativar a Base de Alcântara?

Nós temos muito interesse nessa questão e o Departamento de Estado está negociando esse acordo de salvaguardas tecnológicas com o Brasil, que liberará licenças para lançamentos de veículos espaciais e satélites dos EUA a partir da Base de Alcântara. Estou muito esperançoso de que iremos progredir também nesse tema.


Sérgio Dávila: Bolsonaro pode ser salvo pelo 'estado profundo'

Burocratas tentam mitigar alcance de decisões tresloucadas anunciadas pelo presidente

Em apenas quatro dias de governo, o presidente Jair Bolsonaro recuou ou foi desautorizado por sua equipe ao ritmo de quase um desmentido por dia. O caso mais recente foi revelado por esta Folha e é uma história em quatro atos, como o jornal publicou no Twitter:


@folha
IOF: UMA HISTÓRIA EM QUATRO ATOS

PERSONAGENS

- Jair, o presidente

- Marcos, o secretário

- Onyx, o ministro

7.116
19:58 - 4 de jan de 2019
3.135 pessoas estão falando sobre isso
Informações e privacidade no Twitter Ads

Primeiro ato: o presidente avalia elevar a alíquota do Imposto sobre Operações Financeiras para crédito pessoal para compensar a prorrogação de benefícios fiscais às regiões Norte e Nordeste;

Segundo ato: ele anuncia o aumento da alíquota do IOF. “Infelizmente, foi assinado decreto nesse sentido para quem tem aplicações fora. É para poder cumprir uma exigência de um projeto aprovado, tido como pauta-bomba, contra nossa vontade”;

Terceiro ato: Marcos Cintra, secretário especial da Receita, o desmente. “Não, não. Deve ter sido alguma confusão. Ele não assinou nada.”

Quarto ato: Onyx Lorenzoni, ministro da Casa Civil, põe panos quentes. “Ele se equivocou, ele assinou a continuidade do projeto Sudam e Sudene.”

Antes, como antecipou a coluna Painel, o presidente anunciou em entrevista ao SBT pontos de sua reforma da Previdência diferentes dos estudos sendo feitos pelo Ministério da Economia, que ficou alarmado.

Desde que Donald Trump foi eleito nos EUA, ganhou fama a expressão “deep state” (estado profundo). É a ação de burocratas, geralmente quadros técnicos, que tentam mitigar o alcance de decisões tresloucadas anunciadas pelo presidente, deixando-as de lado até serem esquecidas ou não as executando.

Muitas vezes, ela foi mais efetiva que o sistema de freios e contrapesos da democracia norte-americana. Foi assim quando o republicano revelou que retiraria os 28.500 soldados da Coreia do Sul, o que causaria um desequilíbrio de forças importante na península, fortalecendo a ditadura do Norte. Nada foi feito.

Trump é inspiração confessa de Bolsonaro. Que o “deep state” inspire o entorno bolsonarista.

*Sérgio Dávila é editor-executivo da Folha e autor dos livros "Diário de Bagdá - A Guerra do Iraque segundo os Bombardeados" e "Nova York - Antes e Depois do Atentado".


Jânio de Freitas: O time de guardiães

Primeiros passos de Bolsonaro parecem planejados para preocupar militares

Os primeiros passos do governo, e do próprio Jair Bolsonaro, parecem planejados para preocupar os militares. O descritério da entrega de cargos na problemática Educação e nas complexas Relações Exteriores, por exemplo, não precisaria ser acompanhado pelo coro de desvarios, vindos de vários ministros, para indicar o perigo à frente.

Já esses dias iniciais desacreditam muito o propalado sistema de contenção de desvarios operado pelos 11 militares do governo.

O problema prático é o alto risco de embates internos, com potencial de crises. Em sentido mais amplo, o que está em jogo para os militares, se a contenção falha, é o comprometimento das Forças Armadas como responsáveis pelo governo desnorteado.

Por intermédio de generais reformados, o Exército aceitou esse risco, curvando-se outra vez à ilusão primária de salvador da pátria.

Não teria como negar sua responsabilidade, tanto na identificação que permitiu a um oficial excluído, sem credencial alguma para tal crédito, como na participação associada à condição de militares.

Na formação dessas linhas cruzadas, Marinha e Aeronáutica mantiveram-se à distância, entregues a um profissionalismo exemplar. Talvez jamais tenha havido aqui outro período de tão correta conduta militar como a dessas duas instituições, nos últimos tempos.

Por isso a generalização da palavra militares, em assuntos políticos atuais, é uma utilidade imprecisa e injusta. Militares da Marinha e da Aeronáutica não estão nos jogos da política. Não deixam de ser incógnitas, porém, na eventualidade de um insucesso governamental que pesaria, por certo, no conceito das Forças Armadas em geral. Mais uma vez.

Militares que entrem na política têm que ser políticos. Sempre existiram. A dubiedade nunca levou a bom resultado. É esta, no entanto, a propensão visível nos desvarios que já escandalizam. Inaugurados, por sinal, pelo próprio Bolsonaro: sua primeira medida na Educação foi de cunho religioso e antiescolar, liberando para faltas os alunos que invoquem motivo religioso.

CELESTIAL
Na trapalhada sobre impostos, cuja alteração Bolsonaro divulgou, ou não sabia o que é IOF (Imposto sobre Operações Financeiras), ou não sabia o que assinou. Ou os dois desconhecimentos.

Mas ficou o mistério: de onde ele tirou a ideia de que assinara as duas alterações, e ainda explicou a razão de ambas?

O secretário especial da Receita Federal, Marcos Cintra, disse que nada há a respeito das alterações. Onyx Lorenzoni o confirmou. Bem, pode ter vindo diretamente do céu.

SEM REMÉDIO
Passadas apenas 48 horas da rescisão cubana com o Mais Médicos, o governo Temer informou e Bolsonaro reafirmou já haver inscritos para 80% das substituições. Das vagas de 8.332 médicos cubanos, só 5.846 substitutos se apresentaram até agora (Folha, 4.jan). Quase um terço das vagas continua em aberto.

O que as “autoridades” e assemelhados mentem no Brasil não os condena, jamais. Condena a imprensa.

Vida real do Mais Médicos
Os médicos cubanos, argumentou o humanitário Bolsonaro, eram escravizados. A julgar por suas bagagens de volta —tantas tevês enormes, computadores, equipamentos de som, roupas, tralhas a granel, expostas nos jornais como coisa normal—, aqui é melhor ser escravo. O salário mínimo agora “corrigido”, para 2019, aumenta pouco mais de R$ 1 por dia.

Não é correção, é humilhação.