Bolsonaro
José Casado: Fracasso na estreia
Na noite de quarta-feira, dia 2, o presidente, o ministro da Justiça, o governador cearense e seu secretário de Segurança foram dormir avisados sobre episódios de violência nos subúrbios de Fortaleza, onde vivem quatro milhões de pessoas. Acordaram coma confirmação de ataques em série, com o caos disseminado.
Jair Bolsonaro (PSL), 63 anos, e o governador Camilo Santana (PT), 50 anos, estavam diante da primeira crise de governo. Hesitaram.
Adversários, permaneciam reféns de palanque. Bolsonaro ainda rumina a acachapante derrota no Nordeste, imposta pela coalizão do PT com PDT, PC doB, PSB e a fração alagoa nado MD B de Renan Calheiros, ex-presidente do Senado. Só conseguiu um de cada três votos válidos dos eleitores nordestinos.
Reeleito com quase 80% da votação no Ceará, Santana e os governadores do Nordeste se recusam a conversar com Bolsonaro, que costuma evocar a lembrança de Lula preso por corrupção: “O presidente deles está em Curitiba.” Eles boicotaram a posse presidencial.
Presidente e governador achavam-se politicamente protegidos pela distância de 2,2 mil quilômetros. A realidade bateu à porta dos palácios, com aviso sobre o risco de naufrágio no caos da insegurança pública.
Na quinta-feira, o governador Santana relutou em enviar (Ofício GG nº 05) um pedido de socorro ao adversário. Quando receberam, Bolsonaro e o ministro Sergio Moro (Justiça e Segurança) vacilaram por horas em decidira ajuda. A improvisada Força Nacional só chegou ao Ceará no quarto dia de pavor nas ruas, patrocinado por delinquentes presos.
A surpresa de Bolsonaro e de Santana expõe mútuas fragilidades. O governador coleciona fracassos na segurança. O presidente mostrou que a curadoria militar do seu governo sucumbiu na estreia: não tinha informação e nem plano para proteger uma população em perigo.
Os dois políticos se veem inimigos. Ególatras, remam juntos, mas hesitam em se entender sobre a sobrevivência nesse barco chamado Brasil.
Míriam Leitão: O risco da volta do ‘nunca antes’
Caixa, Banco do Brasil e BNDES já vinham passando por grandes mudanças de governança no governo Temer, Bolsonaro seguirá mesmo caminho
O novo governo chega com boas ideias na economia, mas certas mudanças que ele anuncia como sendo novidade absoluta já estavam em curso. Nos bancos federais, por exemplo, os presidentes tiveram liberdade de escolher seus diretores nos últimos três anos. Tudo o que não deveria acontecer é repetir-se no governo Jair Bolsonaro a mesma ideia que estava no discurso de “nunca antes” do ex-presidente Lula. Quando o ministro Paulo Guedes diz que a Caixa foi vítima de assaltos está certo, mas precisa dizer em que tempo. Nos últimos três anos, a Caixa melhorou controles, governança e cobriu um rombo de R$ 20 bilhões.
A cerimônia de posse dos presidentes de bancos públicos foi um bom momento para demonstrar harmonia entre o presidente e seu ministro da Fazenda. Era necessária por causa dos ruídos da última sexta-feira. Bolsonaro voltou a falar do seu “namoro” com Paulo Guedes. Teria sido mais bem-sucedido esse esforço para espantar os temores da última sexta se houvesse algum esclarecimento sobre a Previdência, assunto sobre o qual o presidente Bolsonaro falou em fazer uma reforma mais fraca do que a que tramita no Congresso. Teria sido melhor se fosse dado o recado inteiro. Bolsonaro preferiu falar que vai mudar a distribuição de verbas publicitárias — o que tem todo o direito — ou afirmar que o governo não pode errar, porque do contrário “vocês sabem quem volta”. Na campanha, funcionou apresentar-se como o antiPT. Isso explica o que não fazer. Mas agora, no governo, é preciso dizer o que se pretende fazer.
O ministro Paulo Guedes disse que a Caixa foi tomada de assalto, que foram concedidos “subsídios para os amigos do rei”, e que os bancos públicos foram dominados por “piratas privados, burocratas corruptos e criaturas do pântano”. Ele é excelente em imagens fortes. Mas isso está meio datado. Operações como Greenfield, Sepsis e Cui Bono desbarataram vários desvios na Caixa e revelaram como se davam as perigosas transações quando reinavam na Caixa pessoas como Eduardo Cunha, Fábio Cleto e Lúcio Funaro. Há boa descrição dos abusos que aconteciam nos relatos das operações. Houve também empréstimos e operações abusivas tanto na Caixa quanto no BNDES para os amigos do rei, um deles, Joesley Batista. Tudo isso remonta aos governos petistas. Nos últimos anos, a realidade é que a Caixa passou por um processo de avanço na governança e no redirecionamento do crédito, sob o comando da então presidente do conselho de administração Ana Paula Vescovi. Havia um rombo de R$ 20 bi que foi resolvido sem aporte do Tesouro. Os últimos integrantes do conselho de administração foram escolhidos por head hunter. Vescovi inclusive foi com o novo presidente apresentá-lo aos representantes de órgãos de controle.
Os bancos vêm mudando há muito tempo. O BNDES está aumentando a transparência dos seus atos e já aprovou a TLP que reduz o diferencial de juros. A TLP foi proposta pela Medida Provisória 777 editada no período em que a presidente do BNDES era Maria Silvia Bastos Marques. Ela também escolheu sua diretoria inteira. O Banco do Brasil vem se tornando cada vez mais eficiente. Guedes disse que isso ficará claro quando abrirem a caixa-preta desses bancos. Ecoava assim a palavra “caixa-preta” que havia sido usada pelo presidente no seu tweet matinal. Sempre haverá como elevar o grau de transparência sobre os empréstimos do banco, mas já foi superado aquele tempo em que se negou ao TCU informações sobre os financiamentos de Belo Monte. Em que o BNDES dizia que eram sigilosos os empréstimos para países estrangeiros ou dizia que feria o sigilo bancário dar detalhes das operações. Houve um avanço grande nesses pontos.
É bom saber que o esforço vai continuar. Ninguém duvidaria que este seria o caminho, por exemplo, de Joaquim Levy no BNDES, que faz parte da modernização do Brasil desde o governo Fernando Henrique Cardoso. Um fato positivo é a devolução ao Tesouro do dinheiro que fora transferido ao BNDES. Já foram devolvidos mais de R$ 300 bilhões. E agora Levy completará. O importante é que o processo de aperfeiçoamento continue. Muita coisa já foi feita. Muita há por fazer. O governo Bolsonaro não está inaugurando o Brasil.
Leandro Colon: Bolsonaro precisa entender logo a cadeira que ocupa
Episódios da primeira semana indicam pontos capazes de criar sérios problemas
Jair Bolsonaro completa nesta segunda-feira (7) o sétimo dia como presidente da República.
É prematuro e desonesto qualquer balanço concreto em uma semana, mas os episódios colecionados desde a posse indicam pontos sensíveis que podem criar sérios problemas futuros ao novo ocupante do terceiro andar do Palácio do Planalto.
Os mais expostos deles são a bagunça na comunicação palaciana e os sinais de divergência entre a equipe econômica e ministros do núcleo político. Nada inédito tratando-se de poder em Brasília. Antonio Palocci, na Fazenda, e José Dirceu, na Casa Civil, por exemplo, discordavam e buscavam protagonismo no começo do primeiro governo Lula.
O episódio do aumento do IOF é mais do que um mal entendido entre alas bolsonaristas. O presidente afirmou, em rápida entrevista coletiva, que assinou o decreto. O ministro Onyx Lorenzoni (Casa Civil) admitiu que a hipótese de reajustar o imposto estava na mesa em discussão até a manhã de sexta-feira (4).
Uma reunião de emergência foi convocada à tarde e, pouco depois, ficou a versão oficial de que Bolsonaro apenas se "equivocou" ao declarar ter assinado um documento.
Bolsonaro passou a campanha e o governo de transição sem um assessor de imprensa oficial ou um porta-voz. Apostou até aqui na comunicação pelas redes sociais, dispensando o que chama de intermediários.
É, entre outros motivos, uma estratégia de autoproteção porque Bolsonaro sabe de suas limitações. Bastaram duas entrevistas dele após a posse —ao SBT e a um grupo de jornalistas em um evento— para o governo experimentar o sabor da crise.
Em seu primeiro fim de semana como chefe da República, Bolsonaro gastou tempo para atacar o PT e a imprensa nas redes sociais. Somente no sábado foram 12 mensagens.
A falta de medidas relevantes na primeira semana não chega a ser um mau presságio. Há razões técnicas e burocráticas para tanto. O presidente só precisa entender logo o que significa de fato a cadeira que ocupa.
Cacá Diegues: A honra de viver
De que socialismo nosso novo presidente prometeu nos libertar, em seu discurso de posse no parlatório do Planalto?
Na minha juventude, éramos todos socialistas, queríamos que os homens fossem mais iguais e ninguém passasse fome. Podia até ser uma utopia, mas era um projeto sincero e generoso para a humanidade. Quem fosse inteligente e tivesse coração não podia deixar de ter ideias socialistas, se opondo à irracionalidade desumana do capitalismo. De acordo com nossa formação e crenças pessoais, o ideário podia vir recheado de princípios cristãos ou marxistas, conforme cada momento e a fé de cada um. Foi o socialismo real em alguns países, com sua violência e seu autoritarismo, que começou a nos afastar desse sonho.
Muitos saíram então em busca de uma alternativa à selvageria capitalista nos regimes de welfare state, o bem-estar social e democrático que bastaria às nossas pretensões humanistas. O exemplo estava na Escandinávia e eventualmente em outros países europeus, como a Inglaterra. Até que o vitorioso furacão individualista de Margaret Thatcher conquistasse o país e mais da metade do mundo. Inclusive os Estados Unidos de Ronald Reagan, recém empossado como presidente. Me lembro sempre da célebre e cruel declaração da primeira-ministra britânica, no início de seu mandato: “O socialismo dura até acabar o dinheiro dos outros”. Para Thatcher, o que era chamado de dinheiro público não existia; o que existia era apenas “o dinheiro de quem paga impostos”.
Com o fim da ditadura no Brasil e o início de nossa redemocratização, procuramos, por aqui mesmo, nossa remissão das dores do capitalismo e da pobreza subdesenvolvida. O Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) parecia uma modernização do socialismo democrático para os trópicos. E o Partido dos Trabalhadores (PT) deixava de ser uma agremiação sindical de resistência para se tornar um partido popular. Eles se alternaram no poder, durante décadas de nossa democracia adolescente, sem nunca atender ao que eles próprios anunciavam. Nós bem que tentamos acreditar neles e em seus líderes mais expressivos.
Agora vem o novo presidente, eleito em proclamada oposição a tudo que esses partidos representaram no poder, dizer que vai libertar o Brasil do socialismo. Que Brasil? Que socialismo?
A desigualdade em nosso país é cada vez mais brutal e vergonhosa. Ela não ficou estacionada em números escandalosos, anteriores ao PSDB, ao PT e ao MDB, mas se agravou nesses últimos anos, mesmo que certos aparentes sucessos governamentais tenham dado outra impressão ao país. Segundo relatório da Oxfam Brasil, revelado pelo presidente de seu Conselho Deliberativo, o 1% mais rico de nossa população detém cerca de 25% da renda nacional. Os 5% mais ricos, por sua vez, ganham o mesmo que a soma de todos os outros 95%. E 165 milhões de brasileiros, mais de 75% de nossa população, vivem com menos de dois salários mínimos mensais. Tem mais: 0,1% da população concentra 48% de toda a riqueza nacional e os 10% mais ricos ficam com 74% dela. Em outro cálculo estatístico sobre a nossa desigualdade, a Oxfam demonstra que os mais pobres morrem, em geral, com idade inferior a 60 anos; enquanto os mais ricos sobrevivem, em média, até os 80 anos. E por aí vai.
Não me rio da ministra que viu Jesus Cristo trepando na goiabeira, embora ache ridícula essa história de que meninas só vestem rosa e meninos, azul. Assim como não vejo por que rir do cavalo que faz baixar seu santo no terreiro. Ou subestimar a capacidade de fazer milagres de João de Deus, o estuprador. Acredito em toda crença ou em toda fantasia humana que não faça mal a ninguém. Tudo isso só nos traz mais esperança no que pode acontecer conosco e no mundo. Mas esses números são a prova de nossos descuido, despreparo e incompetência. Sobretudo de nossa indiferença e desinteresse pelos outros.
Ninguém precisa libertar o Brasil do socialismo, porque no Brasil nunca houve socialismo nenhum, apenas a demagogia sempre vencida pela desigualdade real e crescente. É essa que precisa ser extirpada, a qualquer preço, por qualquer que seja o partido no poder, por qualquer que seja seu programa de governo. É preciso viver a existência do outro, justificar o mote generoso de nosso grande jurista Dario de Almeida Magalhães: “Viver é uma honra”.
Fernando Gabeira: Salvação e salvadores
Política externa do PT foi desvio voluntarista. Ao delírio da esquerda, não se pode responder com o delírio da direita
Outro dia, li uma nota levemente crítica ao ministro Ernesto Araújo, das Relações Exteriores. Ele escrevera um artigo afirmando que Deus estava na diplomacia, na política, em todos os lugares.
Embora não seja propriamente um teólogo, considero bastante previsível a crença na onipresença divina. Algumas religiões estendem o dom da ubiquidade a todos os espíritos. Para dizer a verdade, alguns deuses, como o hindu Shiva, têm poderes muito mais ecléticos: dança, destrói, faz um carnaval.
Não temos o dom divino da onipresença porque somos humanos e não toleraríamos a presença na vastidão. No meu caso, dispensaria Bruxelas sob chuva e as noites de Codó, no Maranhão.
O que me intriga no pensamento do ministro Araújo é sua crença na salvação do Ocidente, liderado por Donald Trump. Essa história de salvação, creio que surgiu, pela primeira vez, com Zoroastro, perpassou o cristianismo, reaparece na religião laica que é o marxismo e sobrevive em alguns setores da ecologia que acreditam poder salvar o planeta.
Se a salvação para mim é um conceito duvidoso, o que diria do salvador? De que podemos ser salvos por alguém como Trump, que diz às crianças que Papai Noel não existe e contrata advogados para silenciar mulheres com quem transou?
Se pelo menos Trump usasse o que se diz sempre — errar é humano, a carne é fraca, atire a primeira pedra —, os valores ocidentais estariam em melhores mãos. O problema central é a relação com os Estados Unidos. Ela precisa de equilíbrio, e há quem trabalhe nesse tema desde o século passado.
Afonso Arinos, em 1952, quando ainda esboçava suas ideias sobre uma política externa independente, defendeu o Acordo Militar Brasil-EUA. O governo Vargas queria isso, mas não teve coragem de dar as caras. Resultado, Arinos apanhou sozinho da esquerda.
Acontece que no acordo havia um só tópico que não interessava ao Brasil. Arinos ofereceu uma fórmula diplomática para contornar a dificuldade. Apanhou da direita.
Mesmo nos primórdios do que mais tarde seria uma política externa independente, a proximidade com os Estados Unidos representava um fato decisivo. Mas também era bastante claro que a proximidade não significava uma adesão acrítica a todas as propostas americanas.
No momento, esta questão vai aparecer com muita delicadeza, entre outras, nas relações com a China. Trump espera apoio na sua guerra comercial. Mas tem negociado intensamente com Xi Jiping.
Não está muito claro o papel que teremos nesse triângulo. Por enquanto, estamos ainda em discussões teológicas, ave-maria em tupi, José de Alencar e arroubos nacionalistas.
Tudo isso, para mim, anima um pouco o morno universo político brasileiro. Mas existem algumas contradições. Um forte tom nacionalista quando se trata de organismo multilateral. Uma duvidosa escolha do salvador, quando se trata das ameaças ao Ocidente.
Não imagino que o olhar severo do ministro Araújo esteja voltado contra os jogadores de I Ching ou leitores do Tao. Ele se preocupa com o marxismo chinês, com os grupos islâmicos, com a desaparição de traços culturais do país num mundo globalizado.
Mas é um exagero supor que nossa política externa seja uma medíocre omissão baseada em interesses comerciais. O desejo de defender a paz e solução negociada para os conflitos é um dado da cultura brasileira.
No século passado, o Peru inaugurou uma avenida com o nome de Afrânio Mello Franco, pai de Afonso Arinos. Os peruanos acham que o velho contribuiu para evitar uma guerra com a Colômbia.
Se isso não basta, lancemos um olhar para o próprio governo Bolsonaro. Dois dos seus ministros são generais destacados na manutenção da paz no mundo: Augusto Heleno, no Haiti; Carlos Alberto dos Santos Cruz, no Congo.
O Brasil não é uma invenção intelectual. A política externa do PT foi um desvio voluntarista. Ao delírio da esquerda, não se pode responder com o delírio da direita.
Política externa é fruto de um consenso nacional. Não adianta forçar a barra. Sofremos com isso, e o preço político que os vencedores do momento pagarão é bem maior que os equívocos domésticos, num país em que nem todos os meninos se vestem de azul, nem todas as meninas de rosa.
Paloma Amado: Princesas, príncipes e as crianças sem cor do Brasil
Há 83 anos, meu pai, o escritor Jorge Amado, publicou seu quinto livro. Ele tinha apenas 23 anos. O romance “Capitães da Areia” retratava a vida dos meninos de rua da Cidade da Bahia, que ele tão bem conhecia. Nos contava que naquele então eles não eram mais que 300 adolescentes e crianças. Podia-se conhecê-los pelo nome. Hoje, nas estatísticas oficiais, são 24.000 no Brasil. Será? Acho que são muitos mais.
A publicação daquele que tem sido o maior best seller de Jorge Amado nos seus quase 100 anos de autor publicado, com alguns milhões de exemplares vendidos no mundo todo e ainda hoje tendo novos contratos a cada ano, coincidiu com a Ditadura do Estado Novo, de Vargas. A Ação Integralista Brasileira de Plínio Salgado preconizava o conservadorismo no lema “Deus, Pátria e família”. Resultado: Livro apreendido, queimado em grande fogueira em praça pública, com decreto em Diário Oficial e tudo. O livro ganhou público através de sua versão para o espanhol, em seguida para o francês. Demorou a sair no Brasil. Desde então, é o mais vendido sempre.
A história de Pedro Bala e do grupo de jovens marginais, de porte bem menor, se comparado com o que se vê hoje nas comunidades dominadas pelas gangues de narcotraficantes e de milicianos, e de Dora, menina que conseguiu fugir aos ataques sexuais de homens perversos, quando da morte da mãe por bexiga negra (e falta de qualquer tratamento), ganhou mundo como um grito de socorro para o gravíssimo problema que, já naqueles idos de 35, chamava a atenção para a total falta de sensibilidade em relação às crianças pobres do Brasil.
Nos anos 50, João e eu estudávamos no Colégio Andrews (único colégio particular que frequentamos na vida, e por pouco tempo), quando uma escola adotou como leitura para seus alunos adolescentes o livro de José Condé, “Um ramo para Luísa”, e o “Capitães “ de papai. Um grupo de mães e pais foi contra, buscaram os jornais:
-- Minha filha jamais será uma Luisa, não quero que ela conheça o lado ruim da vida...
-- Meu filho é um menino descente e não um “capitão d’areia”, para que ler tal barbaridade?
Me lembro das conversas em casa, com Zé Condé e papai, todos muito tristes por não serem minimamente compreendidos. Afinal, quem se preocupava com os menores abandonados? Os socialistas, é claro. “Uma corja... ”
O patrulhamento religioso, naquele tempo, também era grande para as crianças na escola. Millor Fernandes publicou uma piada em sua página semanal em “O Cruzeiro”. A piada era:
Jesus, da cruz, olha para Madalena e diz:
-- Hoje não, Madalena, estou pregado.
A discussão pegou fogo no Andrews. João, meu mano, foi dos poucos ( o único?) a defender Millor.
-- Ele tem o direito de falar de quem quiser, não temos censura no Brasil, que é um país laico ...
No final das aulas, tomou uma surra gigante. Teve a camisa rasgada, o que desgostou muito nossa mãe, pois custava caro e os tempos eram bicudos. Remendou e Juca foi remendado o resto do período letivo.
Nos últimos 40 anos, Capitães da Areia é sempre adotado pelas escolas como leitura obrigatória. Não só no Brasil! Conheci meninos portugueses, franceses e angolanos que leram o livro e aprenderam sobre cuidar da infância com este clássico de Jorge Amado, recomendado por suas escolas.
Assisti à posse do novo presidente, assim como alguma coisa da transmissão dos cargos dos novos ministros. Gosto de estar por dentro daquilo que me causa medo e horror. Foi pior do que pensei. Ouvi da Ministra Damares Alves, o que conta esta nota de jornal:
“Futura ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, a pastora Damares Alves defendeu nesta terça-feira (11) uma “contrarrevolução cultural” e disse que meninas devem ser tratadas como princesas e meninos, como príncipes.
“No momento em que coloco a menina igual ao menino na escola, o menino vai pensar: ela é igual, então pode levar porrada. Não, a menina é diferente do menino. Vamos tratar meninas como princesas e meninos como príncipes”, declarou.
“É uma nova era no Brasil: menino veste azul e menina veste rosa", afirmou a ministra.
A advogada e pastora evangélica assumiu o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos nesta quarta-feira . Em discurso na solenidade de transmissão de cargo a ministra afirmou: "O Estado é laico, mas esta ministra é terrivelmente cristã".
Como assim, Cara Pálida?
Dá medo, não é? A mim deu! Meninas de rosa, meninos de azul. Os que estão na rua, sem a menor chance de nada seriam o que? Provavelmente os de marrom desbotado. Esses ficam para lá, não são mencionadas ações para restabelecer seus direitos como ser humano. Que oportunidades os meninos e as meninas têm, quais suas opções? Infelizmente sabemos que são cooptados pelos bandidos, prostituídos, brutalizados. Eles não querem ser príncipes e nem princesas, querem ter o que vestir, não importa a cor.
É terrível, a gente tem que engolir o discurso em libras da primeira dama, vestida de princesa (vestido copiado da Princesa Aurora, da Disney, que por sua vez copiou de Grace Kelly), para distrair os brasileiros que ainda acreditam em uma “mudança”. Grande marqueteiro eles têm! Nossa primeira dama é uma princesa! E por isso ela se vestiu como uma das que está no imaginário da população. A primeira mulher do seu marido fugiu dele, foi para a Noruega, prestou queixa por agressão e na campanha voltou atrás... mas esta o ama e o beija na boca para que todos os brasileiros vejam... Vamos, meu povo, quem sabe despertem dessa história de conto de fadas, como aconteceu com a Princesa Aurora, a Bela Adormecida. Quem sabe um beijo pelas crianças desamparadas do Brasil, aquelas sem cor, faça com que abram os olhos.
Mal acabara de escrever estas reflexões, e quem eu vejo sendo entrevistada na televisão? A própria ministra Damares. O assunto do rosa e do azul (os príncipes e princesas fizeram menos sucesso de público...) como tema palpitante. Ela fala em metáfora, em combater a discriminação na escola dos que usam azul e rosa, o bullying feito às crianças que querem ser tratados por príncipe e princesas que querem ficar longe da realidade da vida, isso lhe parece cruel... Não vejo esta resposta como coisa séria. Sobre o menor abandonado nenhuma palavra, também não foi perguntada. Certamente para este tema a resposta seja a diminuição da maioridade legal e balas a queima roupa. Pobres Pedros Balas, Sem Pernas, Gatos, Doras...
Sempre saindo pela tangente, de repente uma resposta, na hora do Ping Pong, é dada sem hesitação. Qual o seu escritor brasileiro preferido?
-- Vocês vão se surpreender! É Jorge Amado...
O jornalista quis saber porque deveria ficar surpreendido. Eu, que de verdade fiquei surpresa, pensei com meus botões: Vai falar agora de comunismo, da esquerda perversa, etc. Nada disso, motivo do espanto para ela é por ser autor que fala de sexo em suas obras!
Falou de Tieta e Gabriela. Eu aproveito aqui para falar também de Tereza Batista, menina vendida pela tia ao Capitão sado-masoquista. O povo brasileiro, que Tereza representa, é tão forte e formidável, que mesmo sem os apoios necessários consegue dar a volta por cima, enfrentar a crueldade, lutar. Um grupo feminista italiano usa seu nome como emblema.
Gostaria de aproveitar este gancho e pedir à Ministra que, sendo mesmo fã de meu pai, leia “Capitães da Areia” e “Tereza Batista, cansada de guerra”. Leia e reflita. E leia tantos autores maravilhosos que existem no Brasil. Não deixe que a literatura brasileira seja banida das escolas, ela que tem contribuído para a formação do hábito de leitura de nossos meninos e meninas. Ler a boa literatura brasileira, do velho Graciliano, passando por Milton Hatoun e Raduan Nassar, chegando aos jovens como Giovani Martins, é muito melhor que os contos de fadas da Disney. Refletir sobre o que é o nosso país é sem dúvidas um caminho melhor para a formação da nossa juventude, do que sonhar com príncipes e princesas.
Finalmente, gostaria de dizer que eu sou socialista. Aprendi com meus pais que nós, seres humanos, somos iguais, nascemos para ter liberdade, pensar pela própria cabeça, sermos unidos em irmandade, compartilharmos ao máximo o que temos em excesso com os que têm menos. Faço, da minha parte, tudo o que posso, com alegria e gratidão por esse maravilhoso povo brasileiro.
Maurício Huertas: Oi, sumido! Quantos likes vale esse governo?
O twitter já tem um presidente. Falta Jair Bolsonaro assumir de fato a presidência do Brasil. O diversionismo nas redes sociais vai durar até quando? E a lua-de-mel com a opinião pública, resiste a quantos desmentidos? Esses emergentes governistas se esquecem que tudo na política é cíclico. O poder é passageiro, assim como a paciência da maioria silenciosa. O clima festivo tem prazo de validade. É uma sinuca. A bola da vez passa. Logo vem a próxima. É a sina.
A militância ruidosa e empolgada funciona para fazer espuma, mas a onda recua. Os dois candidatos que foram ao segundo turno, assim como seus apoiadores mais fiéis, não saíram ainda da campanha. Parece que a eleição não terminou. Não é à toa o constante bate-boca protagonizado por Bolsonaro e Haddad nas redes, para delírio das claques uniformizadas. Curioso, mas ambos parecem ter razão nos mais baixos xingamentos.
Adentramos janeiro com a "despetização" de Brasília anunciada pelo novo governo: o que na prática funciona na mão inversa como uma "bolsonarização" das instituições que - estas sim - deveriam ser desideologizadas. Mas trocam seis por meia dúzia. Saem os entusiastas da esquerda, entram os fanáticos da direita. Muda apenas a orientação da seita. Se a facção que controla o poder é destra ou canhota. No fundo são todos inflexíveis nas suas doutrinas arcaicas.
Essa moda neopopulista de se comunicar pela internet e (des)informar por whatsapp é mera avacalhação, empulhação, marmelada, trapaça. Não tem nada de republicano e muito menos democrático. É a nova versão da voz oficial. É um monólogo capenga de quem não quer ouvir o contraditório. Típico de qualquer ditadorzinho de republiqueta. Autoritário, autocrático, opressor.
Outra desculpa esfarrapada são os perfis fakes, apresentados como se fossem satíricos, mas que na verdade são criados deliberadamente para difundir notícias falsas, versões sabidamente mentirosas, quase sempre seguindo a orientação chapa-branca dos estrategistas do marketing governista para confundir o leitor e diluir a repercussão negativa de verdades incômodas. Tristes tempos.
Se alguém votou, sinceramente, esperançoso em algo novo na política ou no salto qualitativo para um governo liberal, já deve estar frustrado. Quem busca alguma essência republicana ou democrática também percebe fácil o engodo. Até para os padrões militares, esse início de governo Bolsonaro é um fracasso retumbante. Tudo que não se viu nessa primeira semana foi ordem, hierarquia, planejamento e inteligência. É pura desordem e retrocesso.
Não é só o fato do capitão comandar os generais, como foi mostrado em tom de humor para humanizar e disfarçar o lado truculento e tirânico desse bolsonarismo que se impõe como antídoto ao lulismo que predominava até então. Ambos são tóxicos. Nem é tão problemático, embora inusitado, o fato de técnicos e funcionários de segundo escalão virem a público desmentir o presidente em anúncios, promessas e compromissos que não se sustentam. Preocupante é a incompetência, o despreparo, a indigência intelectual desse títere da nova ordem que chega ao poder.
Contra a "ameaça comunista", inimiga imaginária dos bolsonaristas (na falta de fatos concretos ou argumentos racionais) usada para manter alguma coesão interna, aparece o patriotismo exacerbado, a aversão aos princípios básicos do estado democrático de direito. Contra as liberdades e conquistas elementares da cidadania, o fundamentalismo religioso, o criacionismo bíblico, o discurso bélico, a violência, o ódio e o preconceito.
Seguimos acompanhando e aprendendo sobre quem são esses personagens caricatos que se apossam do governo central. Quem são os novos inquilinos dos palácios de Brasília, liderados por um meme que virou presidente e por seus filhos que parecem saídos de uma série da Netflix, identificados à la Capitão Nascimento como 01, 02 e 03 - e que, neste momento, discutem publicamente sobre a infestação de oportunistas que cercam seu pai, atraídos pelo poder como mariposas pela luz.
Ah, uma luz... Como é necessária! Pode ser rosa ou azul (laranja*, oi?), artificial ou divina, mas que ilumine essas mentes obscuras pelos próximos anos. Por favor! E que nos aponte um caminho sem atalhos fáceis à esquerda ou à direita. Nem armadilhas e disfarces virtuais. Que olhem menos para as redes e mais para as ruas. Menos para os avatares e mais para os cidadãos. Menos para milhões de seguidores e mais para milhões de brasileiros.
Curtiu?
(*Queiroz, me segue que eu te sigo de volta!)
* Mauricio Huertas, jornalista, é secretário de Comunicação do PPS/SP, líder RAPS (Rede de Ação Política pela Sustentabilidade), editor do Blog do PPS e apresentador do #ProgramaDiferente
Roberto Freire: início do novo governo é lastimável e preocupante
Lastimável e preocupante. Foi assim que o presidente do PPS, Roberto Freire, resumiu os quatro dias do novo governo, em sua conta no Twitter, diante da série de declarações equivocadas do presidente Jair Bolsonaro a respeito do aumento de IOF (Imposto sobre Operações Financeiras) e da reforma da Previdência.
“Que lastimável início de governo!”, afirmou Freire, ao considerar, no entanto, que os equívocos cometidos por Bolsarano ainda “são poucos”, mas que vão se acumulando em pouco tempo de mandato.
“Início preocupante. São poucos os equívocos, mas ocorrem em muito pouco tempo de mandato. Falta de comando no governo precisa ser resolvido para o bem do País”, escreveu o presidente do PPS na rede social.
Na quinta-feira (03), Bolsonaro deu declarações sobre a reforma da Previdência que surpreenderam sua equipe. Os técnicos estão trabalhando para fixar uma idade mínima de 65 anos, mas o presidente disse que a proposta de seu governo prevê uma idade de 62 anos para homens e de 57 anos para mulheres, sem especificar a quem se referia.
O presidente disse nesta sexta-feira (04) que havia assinado um decreto elevando o IOF para aplicações no exterior e que a alíquota máxima do IR (Imposto de Renda) das pessoas físicas seria reduzida imediatamente de 27,5% para 25%.
Coube ao secretário especial da Receita, Marcos Cintra, dizer que não haveria aumento de IOF. Ele explicou que o que o presidente assinou foi um decreto limitando a execução dos projetos da Sudam e da Sudene à disponibilidade de recursos no Orçamento. Cintra esclareceu que o decreto tornou desnecessário outro tipo de compensação, como a elevação do IOF.
Sobre a redução da alíquota do IR, Cintra admitiu que o assunto está sendo estudado, mas que não haverá mudança imediata. Segundo ele, uma eventual alteração só será discutida “posteriormente” e “no tempo correto”.
Já o ministro-chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, disse que Bolsonaro se equivocou sobre o IOF e que o governo não vai aumentar impostos.
“É um princípio deste governo não haver aumento de carga tributária”, afirmou Onyx, ao explicar a sanção do projeto de incentivos fiscais para as superintendências de Desenvolvimento da Amazônia (Sudam) e do Nordeste (Sudene).
Bolsonaro também provocou desconforto ao criticar o formato da fusão entre Boeing e Embraer. A negociação com a Boeing prevê criação de nova empresa na qual a fabricante americana teria 80% do capital. A declaração do presidente fez com que as ações da Embraer sofressem uma forte desvalorização na Bolsa de Valores nesta sexta-feira (04). (Com informações das agências de notícias)
Ascânio Seleme: Nossa democracia é sólida
Hoje, apesar do discurso eleitoral do novo presidente, a democracia brasileira continua viva
Recebi uma mensagem de boas festas do deputado Chico Alencar (PSOL-RJ) em que, além de saúde e paz, ele desejava um 2019 “sem retrocessos na nossa frágil democracia”. Com a cortesia habitual, Chico expressava um sentimento bastante comum entre quadros da esquerda nacional, o temor de que o governo Bolsonaro possa causar ruptura constitucional que represente dano à democracia brasileira. Com todo respeito que o deputado merece, preciso discordar dele. Nossa democracia é sólida e já comprovou sua força inúmeras vezes.
A primeira grande prova de estresse da democracia nacional foi vencida logo no primeiro minuto após o seu renascimento, antes mesmo do último general-presidente deixar o Palácio do Planalto. A internação do primeiro presidente civil depois da ditadura na véspera da sua posse resultou numa madrugada tensa, que foi ultrapassada de acordo com o estabelecido pela Constituição. O vice tomou posse. Em seguida, pouco mais de um mês depois, o presidente internado morreria, e o vice assumiria de vez o poder. Justamente o vice que traíra os generais, saindo do partido que apoiava a ditadura e ajudando a derrotá-la. Mesmo assim, nenhum passo atrás foi dado.
Alguns anos mais tarde, o Brasil produziria uma nova Constituição, rompendo com todos os dogmas e preceitos militares impostos na Carta anterior, que tinha sido escrita em gabinete a pedido e orientada pelos militares que detinham o poder. Ao promulgá-la, o presidente da Constituinte a batizaria de Constituição Cidadã e diria ter ódio, ódio e nojo, da ditadura que se encerrara apenas três anos antes. Outra vez, nenhum recuo, nenhuma ameaça. A democracia que se reinstalara recentemente no Brasil seguia seu roteiro e perseverava. Os novos generais que comandavam as Forças Armadas respeitavam e participavam da nova vida nacional.
O Brasil provaria outras vezes que era um novo país. O segundo presidente civil, e o primeiro eleito pelo voto popular, tomaria o poder confiscando a poupança nacional e em seguida se enredaria num mar de lama que só seria visto de maneira igual anos depois, na era petista. Foi abandonado pelos poucos parlamentares que o apoiavam e acabou sendo afastado do seu cargo pelo impeachment, um instrumento constitucional usado pela primeira vez na História do país. E não ocorreu retrocesso.
Ao longo dos anos, os governos empacotaram inúmeras propostas de controle da inflação sem sucesso. Alguns, como o do confisco das poupanças, causaram enormes danos à economia nacional, outros geraram esperança antes de resultarem em enorme frustração popular. Todos os brasileiros perderam inúmeras vezes por estes pacotes mal amarrados, os pobres perderam mais. Os muitos cenários de caos econômicos que se sucederam não foram suficientes para causar solução de continuidade na vida democrática.
Mais adiante, na eleição do primeiro presidente operário do país, a transição foi tão democrática quanto festiva. O país dava um passo importante na consolidação de suas instituições, tinha balizas bem definidas pela Constituição que nem mesmo um presidente de esquerda poderia ultrapassar. E esse presidente nem tentou avançar o sinal. Fez um governo social democrata com foco magnificado na distribuição de renda. Seu êxito quase se perdeu pelo escândalo do mensalão. Mas o país ultrapassou mais este revés e a democracia seguiu sólida adiante.
E ainda haveria um outro megaescândalo seguido de novo impeachment que geraram uma divisão jamais vista entre os brasileiros. Mas nenhum passo atrás foi dado. Hoje, apesar do discurso eleitoral do novo presidente, a democracia brasileira continua viva. Tanto aquele discurso do então candidato a presidente quanto o temor agora manifestado pelo campo derrotado na eleição refletem apenas retórica. No primeiro caso, para mostrar distância do PT. No segundo, para manter a esquerda unida em torno de um inimigo comum.
A democracia brasileira é forte e vencerá outra etapa. A vida nacional seguirá seu rumo. Se o presidente tiver êxito, poderá ser eleito para um segundo mandato ou fazer seu sucessor. Se fracassar, perderá a próxima eleição. Se atentar contra a Constituição, será afastado, como outros já foram, e o vice ocupará o cargo. Se o vice cair, o presidente da Câmara assumirá o poder e convocará novas eleições. É isso o que prevê a Constituição. E será assim que o país seguirá construindo a sua História.
Gaudêncio Torquato: A farda do político
Os militares encarnam a simbologia nacionalista
Jair Bolsonaro fez questão de exibir sua identidade verde-amarela ao adentrar o território da política. Ao puxar a bandeira brasileira do bolso e acenar para a multidão, no Parlatório do Palácio do Planalto, o presidente enalteceu compromissos de sua campanha: o verde-amarelismo abriga ânimo cívico, nacionalismo, soberania nacional, combate à ideologia de esquerda. O fecho da mensagem aponta a divisão entre seu eleitorado e contingentes lulopetistas: “essa bandeira jamais será vermelha”.
A expressão se fortalece em função de sua origem. Mais que outros segmentos, os militares encarnam a simbologia nacionalista, como definir o Brasil sob seu mando como enclave poderoso no sul do continente a lutar contra a foice e o martelo (o comunismo) e, por tabela, o socialismo, este suavizado por elementos do liberalismo, formando a social-democracia.
A esquerda tem se enfraquecido nos países social-democratas, casos de Alemanha, Itália, Espanha, Hungria, Polônia e até Suécia. A crise da democracia representativa fragiliza vetores, como arrefecimento das ideologias, declínio de partidos, desânimo das bases, fragmentação das oposições. Em contraposição, novos polos de poder se multiplicam em decorrência de coisas como a globalização, a imigração e o nacionalismo.
A globalização rompeu as fronteiras nacionais. A livre circulação de ideias e a troca de mercadorias contribuem para a formação de uma homogeneidade sócio-cultural, com prejuízo para os conceitos de soberania, independência, autonomia. Explosão demográfica, carências das margens sociais e conflitos armados aceleram processos migratórios. Na Europa, há o temor de que os imigrantes contribuam para o desemprego da população nativa, com impactos culturais descaracterizando signos e símbolos das Nações.
Nos Estados Unidos, os fenômenos são tratados de maneira dura por Donald Trump que insiste no muro na fronteira com o México, desfralda o discurso nacionalista de proteção ao emprego e melhora das condições de vida de populações ameaçadas pelo fluxo migratório. Daí sua posição ante a globalização, contrário a acordos patrocinados pela ONU sobre o clima, a situação de países como Venezuela, Cuba e Nicarágua e a política de defesa de direitos humanos.
Nessa encruzilhada, Bolsonaro e Trump se encontram. Como pano de fundo, vê-se a integração contra ideologias de esquerda, o fortalecimento de vínculos conservadores e o impulso ao liberalismo. Deixar o Estado com o tamanho adequado para cumprir suas tarefas. E manter o cobertor social no tamanho dos recursos. Nem lá nem cá. Mais: sem apoio a núcleos que batalham por direitos. (A decisão de combater o “politicamente correto” não seria resposta à ideologia de gêneros?)
Em suma, um programa arrojado na economia, ações no campo, combate à corrupção, disposição de cortar as fontes da bandidagem, desfralde dos valores da família, sob as bênçãos de Deus, é assim que o novo governo quer “consertar” o país.
P.S. Com direito da população de acompanhar tudo pela linguagem de Libras. Com a simpática Michelle, ao lado do marido, e seu cativante sorriso.
*Gaudêncio Torquato é jornalista, professor titular da USP e consultor político
Vera Magalhães: Ordem na cozinha
É no Planalto que tem de haver coordenação para evitar ruídos
Ruídos, bateção de cabeça e recuos são normais na primeira semana de qualquer evento: casamento, emprego, treino, dieta, escola. Não seria diferente numa estrutura tão complexa quanto o governo de um país. Os que se viram nos últimos dias, portanto, podem ser colocados na conta daquele momento da mudança em que tudo está em caixas espalhadas e você não sabe onde achar uma xícara para tomar o café pela manhã. Tá ok.
Mas assim como funcionários não podem passar muito tempo perdidos na função e as provas começam pouco tempo depois do início das aulas, governos têm urgências diárias, envolvem decisões cruciais em todas as pastas a todo momento e requerem organização rápida. No caso do governo federal, esse papel é exercido na cozinha, que é o Palácio do Planalto. E é justamente ali que parece reinar a bagunça maior na mudança da “família” Bolsonaro.
Desde a transição, o arranjo montado para o Planalto pareceu meio esquisitão, disfuncional. Onyx Lorenzoni, primeiro ministro anunciado pelo “capitão”, como insiste em chamar o presidente até hoje, chegou com um voluntarismo diretamente proporcional à própria inexperiência. Demonstra uma certeza na empostação de voz que lhe falta nas respostas mais básicas, como se viu nos episódios do salário mínimo e da reforma da Previdência.
Tratou de anunciar a “despetização” da pasta como a medida mais importante que promoveria. Como se o PT não estivesse fora da Presidência há 2 anos e 7 meses. Pelo jeito, o afã de mandar todo mundo embora foi tal que faltou gente para fazer as informações chegarem a ele, que se mostrou absolutamente vendido quando sua postura corporal e sua arrogância costumeira afetavam certezas inexistentes.
O general Santos Cruz, instalado na Secretaria de Governo, por ora é uma incógnita. Fechado, reservado, chama a atenção pelo silêncio num governo de tagarelas. Pode ser bom, mas, tendo-se em vista que seu cargo envolve participação na articulação política, fica a dúvida: para que, afinal, ele está no Planalto?
A equipe da cozinha conta ainda com Gustavo Bebianno, na Secretaria-Geral da Presidência. Depois de sobreviver a uma tentativa de fritura entre a campanha, quando foi muito importante, e a transição, o ex-presidente do PSL assegurou presença no entorno de Bolsonaro para coordenar a modernização do governo e ser a interface com a sociedade civil. Na prática, será um contraponto a Onyx, o que pode gerar muita cotovelada justamente onde Bolsonaro precisa de concertação – ainda mais dada a ansiedade demonstrada por ele próprio em sua primeira semana na Presidência, anunciando como assinadas medidas que haviam sido descartadas ou queimando a largada na discussão do projeto mais importante de seu governo, a reforma da Previdência.
Diante do caos reinante entre as panelas, com o fogão com todas as bocas funcionando com chama alta e os pedidos que não param de chegar do salão, caberá, ao que tudo indica, ao general Augusto Heleno a função de colocar ordem na cozinha.
Sua entrevista à GloboNews na semana que passou esteve entre as falas virtuosas de uma semana que terminou confusa – juntamente às de Paulo Guedes e Sérgio Moro, justamente os dois manda-chuvas fora da cozinha. Com segurança e sem medo de defender posturas polêmicas ou duras (mas de forma fundamentada), Heleno demonstrou entender a cabeça de Bolsonaro e comungar de suas ideias, mas ter a sensatez e a experiência necessárias para mitigar as mais exóticas delas, alertar para os riscos do voluntarismo excessivo e corrigir os arroubos dos aprendizes das facas e cutelos. É bom Bolsonaro lhe dar logo o avental antes que a sopa entorne.
Eliane Cantanhêde: A volta do Tio Sam?
Com Bolsonaro e guinada à direita, volta a influência dos EUA na América do Sul
A decisão do Grupo de Lima de não reconhecer um novo mandato para Nicolás Maduro na Venezuela – aliás, por todos os motivos do mundo – marca a volta firme e determinada da influência direta dos Estados Unidos nos rumos da América Latina, particularmente da América do Sul. Washington, que não integra o grupo, participou ativamente da articulação.
É por essas, e por muitas outras, que o secretário de Estado Mike Pompeo disse em entrevista ao Estado que os EUA estão “entusiasmados” com a guinada à direita na região. Para ser exata: “Estamos muito entusiasmados diante dessa perspectiva e vislumbramos grandes oportunidades”.
Além das questões mais objetivas, comércio, negócios, investimentos e cooperação, essas “oportunidades” incluem uma presença política efetiva de Washington na região, com reflexos óbvios sobre posições conjuntas nos arranjos regionais, como no caso do Grupo de Lima, ou em organismos multilaterais, como a própria ONU.
Pompeo se encontrou com os presidentes Jair Bolsonaro e Iván Duque, da Colômbia, no dia seguinte à posse de Bolsonaro, ou seja, justamente dois dias antes de 12 dos 13 países do Grupo de Lima tomarem a necessária, mas igualmente audaciosa decisão de rejeitar a manutenção de Maduro no poder. Há a versão de que ele inclusive telefonou e manifestou a posição americana no meio da reunião na capital peruana.
Dos 13 países, o único a não subscrever a declaração enxotando Maduro da convivência regional foi o México, onde a eleição de López Obrador foi na contramão da América Latina. Brasil, Argentina, Paraguai, Chile e de certa forma o Equador aderiram à “direita, volver”, somando-se à Colômbia e Peru, mas o México foi para a esquerda. Não, diga-se, a ponto de pular no naufrágio do “bolivarianismo”.
O papel do Brasil nesse novo ambiente, tão favorável – ou entusiasmante – para os EUA, é decisivo. Não só como o maior, mais populoso e mais rico país da região, mas principalmente pela ascensão de Jair Bolsonaro, Eduardo Bolsonaro e Ernesto Araújo, com Olavo de Carvalho pairando sobre eles.
Não é trivial ter um chanceler de um país dessas dimensões assumindo publicamente que só Deus pode salvar o Ocidente e seus valores cristãos e, no fim, nomear o presidente Donald Trump como esse Deus tão poderoso. Também não é nada trivial, mas sim pueril, que o presidente eleito mande o próprio filho como a cara e a voz do Brasil em visitas até a membros da Casa Branca em Washington. Os sinais são de alinhamento automático aos EUA e de veneração a Trump.
Registre-se, porém, a cautela com que Pompeo respondeu sobre a conveniência e oportunidade de um alinhamento automático do Brasil aos EUA já. Em vez de fogos e comemorações, disse sóbria e vagamente que os dois países terão “um bom alinhamento nas suas políticas”.
Como bastidor: antes de saber exatamente a que Bolsonaro veio e até onde pode chegar, não convém a Washington um engajamento tão simbólico com o governo que está só começando. Forte aproximação, com certeza, mas o momento é de observação, acompanhamento, para ver como as coisas caminham.
De outro lado, grandes diplomatas e especialistas em política externa lembram que nem no regime militar houve sempre alinhamento automático aos EUA. E mais: alertam que, se Bolsonaro ainda é uma incógnita aqui, Trump vive tempos conturbados lá, perdendo subordinados um atrás do outro, sob acusações de relações heterodoxas com a Rússia e leniência com a Arábia Saudita.
Logo, o melhor é também observar e acompanhar, até por reciprocidade subjetiva. Como diziam nossas velhas tias, “prudência e caldo de galinha não fazem mal a ninguém”. Taí, elas dariam boas diplomatas.