Bolsonaro

Luiz Carlos Azedo: O general linha-dura

Braga Netto assumiu a Defesa para pressionar os demais Poderes e resgatar a tutela militar sobre as instituições. O que consegue, porém, é desgastar as Forças Armadas

Desde que assumiu o Ministério da Defesa, o general Braga Netto tem atuado para alinhar as Forças Armadas aos objetivos políticos do presidente Jair Bolsonaro. Extrapola, porém, as atribuições do cargo, ao se pronunciar sobre temas políticos que não dizem respeito nem demandam o posicionamento do Exército, da Marinha e da Aeronáutica. Como na desequilibrada nota contra a CPI da Covid, que foi emitida em nome dos comandantes militares, sem que saio menos um deles, com certeza, tenha sido consultado. Mesmo quando nega ter pressionado o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), a aprovar a proposta de voto impresso, sob risco de as eleições não serem realizadas, Braga Netto se manifesta sobre o assunto de forma inapropriada, pois é prerrogativa do Congresso decidir a questão sem se submeter a chantagens. Na prática, a nota reverbera de forma ambígua as suspeitas e ameaças do presidente Jair Bolsonaro ao pleito.

Pode ser que Braga Netto esteja confundindo os papéis de antigo ministro da Casa Civil, no qual desempenhava importantes missões políticas, e de ministro da Defesa, que não deve se imiscuir nas relações entre os Poderes. Em vez de se espelhar no figurino dos ex-ministros da Defesa Joaquim Silva e Luna, o primeiro militar a ocupar um cargo criado para ser exercido por civis, e de seu antecessor Fernando Azevedo e Silva, que se recusou a desempenhar esse papel, Braga Netto vestiu a fantasia dos generais linha-dura que pontificaram durante o regime militar — até o presidente Ernesto Geisel demitir o general Sílvio Frota, seu ministro do Exército.

Apesar dos desmentidos à matéria publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, de autoria das jornalistas Vera Rosa e Andreza Matais, houve a conversa do interlocutor de Braga Netto com o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), que não desmentiu a informação, tergiversou. Nos bastidores do Congresso, comenta-se que o portador do recado fora ninguém menos do que o senador Ciro Nogueira (PP-PI), que assumirá a Casa Civil no lugar do general Luiz Ramos. Mente-se muito na política, embora a mentira acabe quase sempre desnudada. Mente-se muito mais nos jogos de guerra. Os militares chamam isso de contrainformação, cujo objetivo é impedir ou dificultar o acesso à informação verdadeira, mediante, principalmente, a divulgação de informações diversionistas. O Palácio do Planalto trabalha nessa linha, não preza a transparência nem a informação de interesse público.

Por exemplo, o YouTube acaba de retirar do ar 15 lives do presidente Jair Bolsonaro sobre a pandemia da covid-19, por conterem informações falsas. O general Braga Netto, como chefe da Casa Civil e coordenador do governo no combate à pandemia, foi um dos construtores da narrativa negacionista e das desastradas ações do Executivo que defendiam o uso maciço da cloroquina e outros medicamentos ineficazes no combate ao coronavírus. Essa narrativa, até hoje, está presente nas redes sociais e somente fracassou porque o Brasil já registra 546 mil mortes pela doença. Mais cedo ou mais tarde, Braga Netto será chamado a depor na CPI do Senado, que investiga a atuação do Ministério da Saúde na pandemia, por sua atuação na Casa Civil.

Melar as eleições
A polêmica sobre o voto impresso é um case de contrainformação. A narrativa de Bolsonaro falseia a realidade com objetivo de melar as eleições de 2022, caso seja derrotado, como tentou o ex- presidente dos Estados Unidos Donald Trump, em quem se espelhou, ano ser derrotado pelo presidente Joe Biden. Quanto maior o favoritismo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva nas pesquisas de opinião e a desaprovação do governo, mais recrudescem os ataques de Bolsonaro à urna eletrônica, em que pese nunca ter apresentado provas de fraude na apuração das eleições de 2018, que afirma, fantasiosamente, ter ganhado no primeiro turno.

Braga Netto substituiu o general Fernando Azevedo para pressionar os demais Poderes e resgatar a tutela militar sobre as instituições republicanas. O que vem conseguindo, porém, é desgastar as Forças Armadas, como no episódio da não-punição do exministro da Saúde Eduardo Pazuello por ter participado e se manifestando no desfile de motociclistas bolsonaristas no Rio de Janeiro, mesmo estando na ativa. A politização das Forças Armadas e seu envolvimento na política em si é uma ameaça à democracia. O presidente Bolsonaro tenta cooptar militares da ativa para seu projeto autoritário ao requisitá-los para exercer funções civis no governo; de igual maneira, ao estimular pronunciamentos como o do ministro da Aeronáutica, brigadeiro Carlos de Almeida Baptista.

Entretanto, não existe um ambiente favorável a um golpe de Estado no país, muito pelo contrário, cresce a campanha pelo impeachment. Por isso, a retórica do presidente da República contra a segurança da urna eletrônica e as pressões de Braga Netto para aprovação do voto impresso soam como uma espécie de déjà-vu político. Esse morde-assopra é uma tática conhecida de contrainformação, que os militares utilizam em tempos de guerra, para testar suas cadeias de comando e a capacidade de resistência do inimigo. Por essa razão, tanto o Judiciário quanto Congresso precisam exercer com firmeza suas prerrogativas constitucionais, entre as quais, decidir sobre o sistema de votação e limitar a presença de militares da ativa em cargos civis.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-o-general-linha-dura/

Folha de S. Paulo: Debate do voto impresso é legítimo, diz Braga Netto

Militar também deu recado indireto a ministros do STF que têm atuado nos bastidores pela manutenção do atual sistema

Daniel Carvalho e Danielle Brant, Folha de S. Paulo

Ministro da Defesa, o general Walter Braga Netto fez coro com o presidente Jair Bolsonaro e disse em nota nesta quinta-feira (22) que existe no país uma demanda por legitimidade e transparência nas eleições.

Segundo ele, mais uma vez levantando uma bandeira bolsonarista, a discussão sobre o "voto eletrônico auditável por meio de comprovante impresso é legítima".

“Acredito que todo cidadão deseja a maior transparência e legitimidade no processo de escolha de seus representantes no Executivo e no Legislativo em todas as instâncias”, afirmou o militar.

“A discussão sobre o voto eletrônico auditável por meio de comprovante impresso é legítima, defendida pelo governo federal, e está sendo analisada pelo Parlamento brasileiro, a quem compete decidir sobre o tema”, afirmou, em um recado indireto a ministros do STF (Supremo Tribunal Federal).

Reportagem do jornal O Estado de S. Paulo publicada nesta quinta afirma que o ministro teria mandado um recado por meio de um interlocutor ao presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), de que, sem a aprovação do voto impresso, não haveria eleições em 2022.

Braga Netto negou. O vice-presidente Hamilton Mourão (PRTB) disse que as eleições de 2022 serão realizadas independentemente da aprovação ou não da proposta do voto impresso.

"É lógico que vai ter eleição. Quem é que vai proibir eleição no Brasil? Por favor, gente. Nós não somos república de banana", disse.

"Lógico [que] não [tem espaço para um regime autoritário]. Que regime autoritário? O Brasil é um país, a sociedade brasileira é complexa. Acontece que tem muita gente ainda na sociedade brasileira que está olhando pelo retrovisor; olha 50, 60 anos atrás sem entender o processo histórico que nós estamos vivendo."

Ministros do Supremo articularam com 11 partidos um movimento contra a mudança na urna eletrônica e botaram em xeque a maioria que Bolsonaro tinha em relação ao tema na Câmara.

Bandeira do bolsonarismo, o voto impresso quase foi derrotado em reunião na sexta-feira (16) em uma comissão especial da Câmara, mas uma manobra de governistas adiou a votação para 5 de agosto, depois do recesso parlamentar, que vai de 18 a 31 de julho.

O tema tem sido usado insistentemente por Bolsonaro para fazer ameaças golpistas contra as eleições de 2022. Ele já afirmou, várias vezes, que, se a mudança não ocorrer, não haverá eleições. Uma reação de 11 partidos, porém, virou o jogo e, até a última sexta, garantia uma maioria para rejeitar a proposta.

Mesmo que avance na comissão especial, para aprovar uma PEC são necessários ao menos 308 votos na Câmara (de um total de 513 deputados) e 49 no Senado (de um total de 81 senadores), em votação em dois turnos. Para valer para as eleições de 2022, a proposta teria que ser promulgada até o início de outubro.

Ou seja, as chances de a proposta prosperar para o próximo pleito eram consideradas remotas mesmo antes da fala de Bolsonaro admitindo a provável derrota.

Nas últimas semanas, Bolsonaro provocou uma crise institucional ao afirmar que as eleições de 2022 podem não ocorrer caso não seja adotada uma modalidade de voto confiável —na visão dele, o impresso.

Sem apresentar provas, Bolsonaro alegou mais uma vez ter indícios de fraude na eleição presidencial de 2014, apesar de o próprio derrotado no segundo turno daquele ano, o hoje deputado federal Aécio Neves (PSDB-MG), ter declarado não acreditar que tenha existido essa irregularidade naquela disputa.

O mandatário também já afirmou —de novo sem provas— que houve fraude na eleição de 2018, quando ele derrotou Fernando Haddad (PT). A alegação de Bolsonaro é que ele teria recebido mais votos do que os que foram computados. Ele nunca apresentou evidências dessa acusação.

Como mostrou a Folha na semana passada, em meio a essa crise, Braga Netto virou o "provocador-chefe da República", na opinião de ministros do Supremo e mesmo de alguns de seus subordinados na cúpula militar.

Na visão dessas autoridades, o general tem sido tão bolsonarista quanto o chefe, estimulando o clima de conflito institucional que o próprio presidente tentou abafar após ter sido admoestado pelos chefes do Congresso, senador Rodrigo Pacheco (DEM-MG), e do TSE, ministro Luís Roberto Barroso.

Isso tem incomodado diversos oficiais-generais. Integrantes da cúpula do Exército e da Marinha afirmaram que a polêmica nota em resposta ao senador Omar Aziz (PSD-AM), presidente da CPI da Covid que falara sobre o "lado podre" das Forças Armadas, foi uma imposição de Braga Netto aos comandantes militares.

Ainda nesta quinta-feira, na mesma nota em que trata do voto impresso, Braga Netto disse que existe no país uma tentativa de criar “uma narrativa sobre ameaças feitas por interlocutores a presidente de outro Poder” e afirmou não se comunicar com presidentes de outros Poderes por interlocutores.

“O Ministério da Defesa reitera que as Forças Armadas atuam e sempre atuarão dentro dos limites previstos na Constituição”, diz o comunicado.

“A Marinha do Brasil, o Exército Brasileiro e a Força Aérea Brasileira são instituições nacionais, regulares e permanentes, comprometidas com a sociedade, com a estabilidade institucional do país e com a manutenção da democracia e da liberdade do povo brasileiro."

Reportagem do jornal O Estado de S. Paulo publicada nesta quinta afirma que o ministro teria mandado um recado por meio de um interlocutor ao presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), de que, sem a aprovação do voto impresso, não haveria eleições em 2022.

De acordo com o jornal, Lira teria dito ao interlocutor que não participaria de nenhuma ruptura institucional. Abordado por jornalistas ao chegar ao Ministério da Defesa, Braga Netto chamou a reportagem de "mentira, invenção".

Também nesta quinta, o presidente do TSE, Luís Roberto Barroso, disse ter conversado com Braga Netto e com Lira e afirmou que ambos “desmentiram, enfaticamente, qualquer episódio de ameaça às eleições”.

“Temos uma Constituição em vigor, instituições funcionando, imprensa livre e sociedade consciente e mobilizada em favor da democracia”, afirmou.

Questionado pela Folha sobre o teor da reportagem, Lira respondeu "MENTIRA", em letras maiúsculas. Ao tratar do assunto em uma rede social, o presidente da Câmara, no entanto, não desmentiu as ameaças.

"A despeito do que sai ou não na imprensa, o fato é: o brasileiro quer vacina, quer trabalho e vai julgar seus representantes em outubro do ano que vem através do voto popular, secreto e soberano”, escreveu.

“As últimas decisões do governo foram pelo reconhecimento da política e da articulação como único meio de fazer o país avançar."

O deputado se referia à decisão de Bolsonaro de convidar o presidente do PP, o senador Ciro Nogueira (PI), para ser ministro da Casa Civil, em substituição ao general Luiz Eduardo Ramos.

Com o movimento, Bolsonaro dá mais poder ao centrão, bloco do qual Lira faz parte e que era criticado em discurso pelo presidente da República.

Também nesta quinta-feira, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), publicou no Twitter uma mensagem na qual afirma que as decisões sobre o sistema político-eleitoral cabem ao Congresso e que as eleições são inegociáveis.

"Seja qual for o modelo, a realização de eleições periódicas, inclusive em 2022, não está em discussão. Isso é inegociável. Elas irão acontecer, pois são a expressão mais pura da soberania do povo​", escreveu.

Em uma rede social, Gilmar Mendes, ministro do STF, escreveu: "Os representantes das Forças Armadas devem respeitar os meios institucionais do debate sobre a urna eletrônica. Política é feita com argumentos, contraposição de ideias e, sobretudo, respeito à Constituição. Na nossa democracia, não há espaço para coações autoritárias armadas".

O governador de São Paulo, João Doria (PSDB), seguiu na mesma linha, também em postagem: "Não serão ameaças golpistas e autoritárias que vencerão a democracia brasileira. Nossas instituições são sólidas. Teremos eleições em 2022".


O Globo: Mourão afirma que é 'lógico' que Brasil terá eleições mesmo sem voto impresso

Vice-presidente afirmou que país não é 'república de banana' e questionou quem iria 'proibir eleição'

Daniel Gullino, O Globo

BRASÍLIA — O vice-presidente Hamilton Mourão afirmou nesta quinta-feira que é "lógico" que o Brasil terá eleições no ano que vem mesmo sem a aprovação do voto impresso, defendido pelo presidente Jair Bolsonaro. Mourão disse que o país não é uma "república de banana" e questionou quem iria "proibir eleição".

Leia mais:Ministro da Defesa nega ameaça às eleições e diz que cabe ao Congresso decidir sobre voto impresso

Há duas semanas, Bolsonaro afirmou que não haverá eleição no ano que vem se a disputa não for "limpa". O presidente não explicou o que ele considera uma eleição "limpa", mas ele tem defendido uma mudança no sistema de votação, apesar de nunca ter apresentado nenhuma prova de fraude no modelo atual.

— É lógico que vai ter eleição (mesmo sem voto impresso), pô. Quem é que vai proibir eleição no Brasil? Por favor, gente. Nós não somos república de banana — disse Mourão, ao chegar no Palácio do Planalto no início da tarde.

O vice-presidente ressaltou, no entanto, que ele também é favorável à proposta de voto impresso.

Mourão também questionou uma reportagem do jornal "O Estado de S. Paulo" que afirmou que o ministro da Defesa, Walter Braga Netto, teria feito uma ameaça e condicionou as eleições de 2022 ao voto impresso. De acordo com a publicação, Braga Netto enviou o recado ao presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), por meio de um interlocutor que não teve o nome revelado.

— Eu conheço o ministro Braga Netto há muito tempo, sei que ele não manda recado e não é, vamos dizer, da forma dele proceder que as coisas ocorressem dessa forma, até porque é um assunto que não diz respeito (a ele).

Veja também: 'Eu sou do Centrão', diz Bolsonaro em aceno ao PP

Braga Netto negou que tenha feito ameaças às eleições e afirmou que a discussão e a decisão acerca do voto impresso cabem exclusivamente ao Congresso Nacional, onde tramita uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) sobre o tema.


Igor Gielow: Episódio Braga Netto é primeiro tiro do centrão para desalojar militares

Comandantes em geral defendem voto impresso, mas não endossam suposta ameaça às eleições

Na operação de ocupação do agônico governo Jair Bolsonaro pelas forças do centrão, os militares novamente pagaram o preço de ter apadrinhado o capitão reformado do Exército em 2018 e integrado sua administração de forma ostensiva.

O episódio no qual o ministro Walter Braga Netto (Defesa) foi apontado como mentor de uma ameaça de golpe contra as eleições de 2022 é apenas o primeiro salvo no conflito que se seguirá, com o centrão buscando desalojar os militares da miríade de cargos que amealharam no governo federal.

Foi um movimento ao mesmo tempo sofisticado, por envolver alguns fatos reais, e tosco, pelo explícito de seu objetivo.

Ninguém, seja dentro das Forças Armadas, no governo ou no Congresso, tem dúvida de que Braga Netto é hoje um dos mais bolsonaristas ministros de Bolsonaro.

Que ele defenda o tal voto auditável por impressão, não é novidade. Praticamente toda a cúpula militar brasileira o faz em conversas reservadas.

Fazer dessa defesa, inadequada porque afinal de contas ele é ministro que cuida de militares e não de área política, uma ameaça de suspensão do pleito do ano que vem é outra coisa. Mesmo que o relato apresentado pelo jornal O Estado de S. Paulo seja fidedigno, não haveria tropas disponíveis para tal intento.

Ao menos neste momento, já que no Brasil até o passado é incerto, na frase atribuída ao ex-ministro da Fazenda Pedro Malan. Só o fato de haver a discussão sobre o papel institucional das Forças já diz muito do estado em que o país está e obriga monitoramento atento.

O vazamento da versão traz elementos verdadeiros. O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), esteve de fato com Bolsonaro e disse que não toparia aventuras antidemocráticas —esta Folha mesmo o reportou.

Mas o contexto era posterior à fala do presidente ameaçando as eleições, feita em público na semana retrasada. Disse Lira que iria até a uma derrota no ano que vem, mas só isso.

O mundo político caiu em cima de Bolsonaro, que aquiesceu por um momento, acelerando inclusive o processo de mudança no governo em nome de uma sobrevivência mínima visando a campanha de 2022.

Braga Netto não disfarçou seu intento na nota que publicou, onde novamente arrogou às Forças Armadas poderes constitucionais inexistentes, como a tutela sobre a "liberdade dos brasileiros". O ministro é incorrigível, como sua nota ameaçando a CPI da Covid já provara, reforçando a imagem de tigre de papel de seus comandados.

Alguns oficiais-generais ouvidos nesta quinta (22) voltaram a se queixar do ministro, naturalmente sob reserva. Consideram que o texto que editou para negar ter feito ameaças a Lira poderia dispensar a defesa da suposta vontade legítima dos brasileiros pelo voto impresso.

Leite derramado, o substrato da confusão é duplo. Bolsonaro ganhou vapor para sua decadente campanha pela mudança legal que não irá ocorrer, e que muitos temem ser a semente para uma reação anárquica caso seja derrotado nas urnas em 2022.

E o centrão, quem diria, ganha a pecha de defensor da democracia acossada ao mesmo tempo em que arrebenta as porteiras do governo que estaria ameaçando as instituições.

De quebra, o plano supõe que os militares sob fogo irão bater em retirada, deixando sob as ordens do derrotado general Luiz Eduardo Ramos as casamatas (e as mamatas, para ficar na terminologia presidencial) para os novos inquilinos.

Para um governo altamente militarizado, a impressão que fica é que, neste primeiro assalto, os fardados tomaram uma surra do antigo inimigo —que, diga-se de passagem, deixou tal condição desde pelo menos meados do ano passado, quando o namoro ora consumado começou.

Seja como for, foi uma primeira batalha. A guerra continua, com impactos institucionais ainda imprevisíveis, ainda mais com um comandante supremo notável em sua instabilidade.


O Estado de S. Paulo: Partidos querem enterrar ideia do voto impresso

Ideia é que a proposta, uma resposta a Braga Netto, seja votada na volta do recesso legislativo, em agosto

Lauriberto Pompeu, O Estado de S.Paulo

BRASÍLIA – Os presidentes do PSDB, DEM, MDB, Solidariedade e PSD articulam a derrubada da proposta de emenda à Constituição (PEC) do voto impresso, defendida pelo governo. O movimento já existia há algumas semanas, mas agora ganhou impulso, após a ameaça do ministro da Defesa, Walter Braga Netto, de não haver eleições em 2022 caso o Congresso não aprove o voto impresso, conforme revelou o Estadão. Há outros partidos que são contra a PEC, mas esses são os que encabeçam a linha de frente do movimento para adiantar a votação e rejeitar o texto.

A mobilização dos partidos foi informada pela CNN e confirmada pelo Estadão. Na prática, os partidos se mobilizam para evitar qualquer possibilidade de adiamento da comissão formada para analisar o tema. A ideia é que a proposta seja votada logo na volta do recesso legislativo, na primeira semana de agosto.

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“O nosso trabalho é para rejeitar esse absurdo”, disse o presidente do DEM, ACM Neto, ao Estadão. “Essa coisa do Braga Netto acaba reforçando a articulação contra (a PEC)”, declarou o ex-prefeito de Salvador. “A gente vai fazer tudo para votar esse negócio do voto impresso e derrubar logo na comissão”, completou o presidente do DEM.

Como mostrou o Estadão, a Comissão Especial da Câmara sobre o tema chegou a ter maioria de votos favoráveis para aprovar voto impresso, mas presidentes de partidos e ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) agiram para trocar os integrantes da comissão e deixar o texto sem apoio suficiente. No fim de junho, presidentes de 11 partidos fecharam um posicionamento contra o voto impresso. Os caciques das legendas, incluindo os da base do presidente Jair Bolsonaro no Congresso, decidiram derrubar a proposta discutida na Câmara e patrocinada pelo chefe do Planalto.

Na semana passada, no último dia antes do recesso legislativo, deputados contra a PEC tentaram convocar o colegiado para rejeitar o texto, mas o presidente da comissão, o deputado bolsonarista Paulo Eduardo Martins (PSC-PR), adiou a votação com uma manobra regimental. “O presidente (da comissão) fez uma manobra e não deixou votar. Se tivesse concluído a votação, a gente tinha derrubado”, disse ACM Neto.

‘Ameaça do Braga Netto aumentou a indisposição com a PEC’, diz deputado

O deputado Fábio Trad (PSD-MS), integrante titular da comissão especial, afirmou que a “orientação do partido é para rejeitar”. De acordo com ele, as ações do ministro reforçam as articulações contra a ideia. “Esta ameaça do Braga Netto aumentou a indisposição com a PEC”, declarou.

A proposta de emenda à Constituição do voto impresso é uma das principais bandeiras políticas do presidente Jair Bolsonaro, que já deu declarações consideradas golpistas ao dizer que “ou fazemos eleições limpas ou não temos eleições”. 

Bolsonaro afirma, seguidamente, que sem esse mecanismo as eleições serão fraudadas. Ele também repete, sem nunca ter apresentado qualquer prova, que teria vencido a eleição de 2018 já no primeiro turno e que o deputado Aécio Neves (PSDB) venceu a disputa de 2014, algo que o próprio tucano disse não acreditar.  

Voto impresso auditável

O voto impresso já foi implantado em caráter experimental nas eleições presidenciais de 2002 — e acabou reprovado pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Naquele ano, para testar o sistema, a medida foi adotada em 150 municípios, atingindo 6,18% do eleitorado.  

“Sua introdução no processo de votação nada agregou em termos de segurança ou transparência. Por outro lado, criou problemas”, apontou um relatório do TSE. 

O tribunal concluiu que, nas seções com voto impresso, foram maiores o tamanho das filas e o percentual das urnas que apresentaram defeitos, além das falhas verificadas apenas nas impressoras.  “Houve incidência de casos de enredamento de papel, possivelmente devido a umidade e dificuldades de manutenção do módulo impressor”, apontou o relatório do TSE.  

No Distrito Federal, que adotou o voto impresso em todas as seções eleitorais em 2002, o índice de quebra de urna eletrônica no primeiro turno foi de 5,30%, enquanto a média nacional foi bem inferior: 1,41%.

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Caminho para o Brasil é ‘tirar Bolsonaro da presidência’, diz Marina Silva

Cleomar Almeida, Coordenador de Publicações da FAP

Depois de bater o recorde recente da explosão de desmatamento na Amazônia por dois meses seguidos, o Brasil só tem um caminho para se sustentar como nação, de acordo com a ex-ministra do Meio Ambiente Marina Silva (Rede): “Tirar Bolsonaro da frente da presidência”. Segundo ela, o país virou “terra arrasada”.

A ex-ministra ressalta que as possibilidades de retirada de Bolsonaro da presidência estão previstas na Constituição. “É a eleição ou o impeachment”, diz, em entrevista ao portal da Fundação Astrojildo Pereira (FAP). “Ele está inviabilizando o Brasil do ponto de vista de saúde pública, ambiental, econômico e social. Com Bolsonaro, não haverá esperança para o meio ambiente em hipótese alguma”, assevera.

Destruição

Marina Silva vai discutir a política ambiental brasileira e os desafios da sustentabilidade, na segunda-feira (31/5), a partir das 19 horas. Ela e outros ex-ministros do Meio Ambiente têm presença confirmada no primeiro dos dois eventos online do Observatório da Democracia já agendados. Portais e redes sociais da FAP e de outras 10 entidades parceiras farão a transmissão em tempo real (veja a relação de todas ao final desta reportagem).

Em abril, pelo segundo mês seguido, a Amazônia bateu novo recorde recente de desmatamentode acordo com dados do Deter, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Segundo o levantamento, foi também o pior abril da série histórica atual, que tem início em 2015, com dados mais precisos.

Leia também: Bolsonaro vê Amazônia como espaço para ocupação predatória, diz ex-presidente do Ibama

No mês passado, os alertas de desmatamento do Deter superaram 580 km² de destruição na floresta, um salto de quase 43% na devastação em comparação com o mesmo mês em 2020, que registrou cerca de 406 km² de desmate. Até então, o recorde para o mês era de 2018, com 489 km² desmatados. Março já havia registrado recorde, com mais de 367 km² de desmatamento.

Na quarta-feira (26/5), o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), tirou sigilo de investigação que envolve o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, em suposto esquema de contrabando de produtos florestais.

Desmatamento em abril foi o pior da série histórica atual, iniciada em 2015. Foto: Daniel Beltrá / Greenpeace

“Essa é uma agenda, além dos graves problemas, de conivência com contraventores”, critica Marina Silva, ressaltando os trabalhos da Operação Akuanduba, da Polícia Federal, deflagrada no dia 19 de maio.

Na avaliação dela, o cenário brasileiro é um só. “O que existe é um verdadeiro desmonte, uma terra arrasada, de toda a proteção ambiental brasileira, a desconstrução da Política Nacional do Meio Ambiente e do Sistema Nacional do Meio Ambiente”, critica Marina Silva.

Íntegra da entrevista concedida pela ex-ministra ao portal da FAP

Qual a sua avaliação da política ambiental no Brasil hoje?

Na verdade, a minha avaliação é de que não existe uma política ambiental hoje. O que existe é um verdadeiro desmonte, uma terra arrasada, de toda a proteção ambiental brasileira, a desconstrução da Política Nacional de Meio Ambiente e do Sistema Nacional de Meio Ambiente. O governo desmontou a estrutura de proteção ambiental existente no Brasil e agora está tentando bombardear o arcabouço legal no Congresso Nacional, mudando licenciamento, alterando a lei que protege os povos indígenas, como tentaram hoje (26/5) fazer a mudança no Estatuto dos Povos Indígenas para que o governo possa reaver parte das áreas que já foram demarcadas. Nós não temos uma política ambiental. Essa é a verdade.

No início, após o resultado das eleições, houve um grande alvoroço dizendo que o Brasil estava com novo Congresso, uma nova política, uma nova cara, mas esse Congresso, em alguma medida, também tem respaldado essas ações contra o meio ambiente. A senhora concorda com isso?

Infelizmente, no quesito de proteção ambiental, o Congresso tem maioria de parlamentares altamente conservadora e uma parte significativa de pessoas reacionárias, inclusive, que estão espalhadas em diferentes partidos, com raras exceções. São visões que querem desenvolvimento do início do século 20, em prejuízo da proteção das florestas, dos recursos hídricos, das mudanças climáticas, da política de combate aos efeitos do aquecimento global, enfim. Se não fosse a mobilização da sociedade e a resistência da oposição nas pessoas dos parlamentares que fazem essa resistência e a mobilização da sociedade, já teríamos inúmeros retrocessos em vários aspectos da legislação brasileira.

Marina Silva: “O que existe é um verdadeiro desmonte, uma terra arrasada, de toda a proteção ambiental brasileira”. Foto: Divulgação/Rede

A gente assiste, com frequência, ao governo apresentar dados, e essas entidades que se organizam socialmente rebatem com outras informações, acompanhamentos técnicos. A senhora acredita que a existência desses movimentos também representa resistência ao governo e em defesa do meio ambiente?

Os movimentos da sociedade civil, em grande parte, fazem a resistência e têm conseguido algumas vitórias, ainda que temporárias, porque têm que ficar o tempo todo vigilantes para que não se seja surpreendido com o rolo compressor do governo, que toda hora tenta, através de [emendas] jabutis, colocar leis para desmontar todo o arcabouço legal da proteção ambiental do nosso país. Então, a política ambiental é a política que cortou o orçamento do Ibama, tirou o serviço florestal do Ministério e o colocou no Ministério da Agricultura, que tentava tirar a Funai do Ministério da Justiça e colocar no Ministério da Agricultura, que tentou acabar com o próprio Ministério do Meio Ambiente, do ponto de vista institucional. Não acabou, institucionalmente, mas está acabando, na prática. É o governo que promoveu o aumento do desmatamento em 2019 e 2020 em mais de 40%, algo em torno de 47%. Agora, em abril, tivemos um dos maiores desmatamentos do mês de abril registrados nos últimos anos. Então, é terra arrasada. Essa é uma agenda, além dos graves problemas, de conivência com contraventores. Há as investigações que estão sendo feitas pela Polícia Federal, agora a quebra do sigilo do ministro, o afastamento de dez pessoas da confiança do ministro por estarem fazendo, segundo as investigações, aquilo que eles chamam de corrupção institucional e de corrupção em relação à regulamentação, que é mudar as regras para deixar a lei em conformidade com o crime. Eles chamam de corrupção normativa, quando você muda a lei para conformar a lei à ação dos criminosos, como foi o caso a exportação de madeira para os Estados Unidos, que deu origem à operação que fez a busca e apreensão do ministro Ricardo Salles.

Rádio FAP – Podcast Marina Silva

Com um governo como este que o Brasil tem, qual é o desafio tanto para o meio ambiente quanto para nação? Como se busca e se alcança a sustentabilidade de uma nação como o Brasil a partir de agora?

O principal caminho é ir pelos meios previstos na nossa Constituição, que é a eleição ou impeachment, e tirar Bolsonaro da frente da presidência do Brasil. Ele está inviabilizando o Brasil do ponto de vista de saúde pública, ambiental, econômico e social. Com Bolsonaro, não haverá esperança para o meio ambiente, em hipótese alguma. Então, esse é o grande desafio. As pesquisas mostram que mais de 70% [da população] querem ver as florestas e a biodiversidade protegidas, mas o governo promove exatamente o contrário. Agora, com o governo, que tem a noção do que está em jogo, dos prejuízos que estão sendo causados e o próprio interesse econômico do país, em função da política desastrosa, [o desafio] é recuperar as políticas que já vinham dando certo, como era o caso do plano de prevenção e controle do desmatamento; apoiar cada vez mais a agenda de desenvolvimento sustentável, como o programa de agricultura de baixo carbono, que permite que o Brasil dobre sua produção sem precisar mais destruir florestas; investir na bioeconomia para criar alternativas para o novo ciclo de prosperidade; recuperar as instituições que foram enfraquecidas completamente, como é o caso do Ibama, ICMBio e Inpe; além do fortalecimento do serviço florestal, no âmbito do Ministério do Meio Ambiente, e todas as políticas que precisam ser implementadas de forma transversal.

O desafio da sustentabilidade e do desenvolvimento sustentável não é tarefa de um ministério. É tarefa de todas as instituições públicas do governo federal e todos os ministérios. É uma agenda que, no mundo inteiro, é transversal. E fico muito feliz de saber que, em 2003, quando assumi o Ministério do Meio Ambiente, a primeira coisa que falei era que a política ambiental seria pautada pelo controle e participação social, pela transversalidade da política ambiental, pelo fortalecimento do Sistema Nacional do Meio Ambiente e desenvolvimento sustentável. Essas diretrizes são as que o mundo começa a trabalhar. É só ver Estados Unidos, Canadá, Japão, União Europeia, Reino Unido, todos os países ocidentais que compreenderam o desafio que está posto no mundo da grave crise ambiental circunstanciado com problema da mudança climática.

SERVIÇO

Política Ambiental brasileira e os desafios da sustentabilidade

Data:
 31/5/2021
Transmissão: a partir das 19 horas
Onde: portais e redes sociais da Fundação Astrojildo Pereira (FAP) (Facebook e Youtube) e outras entidades parceiras
Realização: Observatório da Democracia


2º Webinar da Semana do Meio AmbienteCrise climática e a Amazônia brasileira

Data: 7/6//2021
Transmissão: a partir das 19 horas
Onde: portais e redes sociais da Fundação Astrojildo Pereira (FAP) (Facebook e Youtube) e outras entidades parceiras
Realização: Observatório da Democracia

Entidades participantes:

  • Observatório da Democracia
  • Fundação Astrojildo Pereira (Cidadania);
  • Fundação Lauro Campos/Marielle Franco (PSoL);
  • Fundação Leonel Brisola/Alberto Pasqualini (PDT);
  • Fundação João Mangabeira (PSB);
  • Fundação Maurício Grabois (PCdoB);
  • Fundação Ordem Social (PROS);
  • Fundação Rede Brasil Sustentável (Rede);
  • Fundação Verde Herbert Daniel (PV);
  • Instituto Claudio Campos;
  • Fundação Ulysses Guimarães (MDB);
  • Fundação Teotônio Vilela (PSDB).

 

Fonte:


Cristina Serra: Bolsonaro e o trator da corrupção

Não é de hoje que as emendas parlamentares se prestam ao toma lá, dá cá. Mas a coisa ganha outra dimensão quando se sabe quem pediu o quê, para quem e quanto, como mostrou o repórter Breno Pires, de O Estado de S. Paulo. A reportagem revela a existência de um orçamento secreto e o intrigante pendor dos congressistas por máquinas agrícolas, especialmente tratores. A malandragem já vem batizada: é o tratoraço de Bolsonaro.

A reportagem é o roteiro de uma investigação. Nomes, valores e destinação das máquinas estão ali. Tudo cheira mal na rapinagem de R$ 3.000.000.000,00 do orçamento público. Teoricamente, as máquinas vão ser usadas em obras de prefeituras. Algumas estão localizadas a milhares de quilômetros da base eleitoral dos parlamentares, e foi detectado superfaturamento de até 259% nas compras. Ora, mas Bolsonaro não havia acabado com a corrupção?

O tratoraço de Bolsonaro explica a eleição folgada de Arthur Lira para a presidência da Câmara, o engavetamento dos pedidos de impeachment (além dos que foram herdados de Rodrigo Maia) e a dificuldade de criação da CPI da Covid-19 no Senado, arrancada a fórceps por decisão do STF. A pilhagem tem que ser investigada no contexto da pandemia. O mesmo Bolsonaro que usa dinheiro público para aliciar parlamentares é o que está no comando do genocídio brasileiro.

O que sobra para encomendar tratores e, claro, produzir cloroquina falta para comprar oxigênio, abrir leitos de UTI e para as tão esperadas vacinas. Por falta delas, capitais suspenderam a imunização. Sem a matéria-prima da China, o Butantan interrompeu a produção de doses. Sem vacina para todos, a morte, a fome e o desemprego seguirão nos ameaçando por tempo indefinido.

Penso no Brasil de Bolsonaro como a metáfora de uma casa abandonada, onde os ratos se sentem à vontade para disputar os despojos. Para não chegarmos a isso, é preciso CPI, impeachment, processo, condenação e prisão.

Fonte:

Folha de S. Paulo

https://www1.folha.uol.com.br/colunas/cristina-serra/2021/05/bolsonaro-e-o-trator-da-corrupcao.shtml


Naercio Menezes Filho: Mercado de trabalho na pandemia

A pandemia afetou o mercado de trabalho em vários países do mundo, mas a queda no emprego foi especialmente severa no Brasil. Enquanto a atividade econômica já voltou aos níveis de antes da pandemia, a taxa de desemprego continua bastante alta por aqui, assim como o número de pessoas que desistiu de procurar emprego. E os trabalhadores menos qualificados são os que estão sofrendo mais os efeitos da pandemia. Por que será que o emprego está demorando tanto a reagir? Qual a perspectiva futura para os trabalhadores jovens que não conseguiram completar o ensino médio?

A figura ao lado mostra índices de emprego medidos através da Pnad Contínua para os trabalhadores que completaram o ensino médio ou superior e também para os que só estudaram até o ensino fundamental ao longo de 2019 e 2020, na indústria, comércio e serviços. Podemos notar que as séries apresentaram um leve aumento ao longo do 2019. Mas, já no início da pandemia, no primeiro trimestre de 2020, o emprego dos trabalhadores menos qualificados começa a declinar acentuadamente, ao passo que entre os mais qualificados a queda é mais suave e concentrada no comércio e serviços.

Com o agravamento da pandemia, o emprego despencou entre os menos qualificados dos três setores, com cerca de 20% dos trabalhadores perdendo seu emprego. Já entre os trabalhadores com ensino médio completo ou superior, a queda foi de 7% no comércio e apenas 3% na indústria e serviços. Desde então, o emprego tem reagido lentamente para todos os grupos, mas enquanto os mais qualificados já atingiram o nível de emprego do início de 2019, os menos escolarizados permanecem 20% abaixo. A situação é especialmente grave entre os mais jovens que não completaram o ensino médio. Por que isso ocorreu?

Em primeiro lugar, devemos notar que esses efeitos fortes da pandemia no desemprego não estão acontecendo devido às políticas de distanciamento adotadas para conter a disseminação do vírus. O comportamento do emprego ao longo de 2020 foi bastante parecido nos locais que adotaram políticas de distanciamento mais rígidas logo no início da crise com relação aos que não as adotaram. Na verdade, esses efeitos decorrem em grande parte do receio das pessoas de saírem de casa e serem contaminadas pelo vírus.

A taxa de isolamento social em São Paulo, que antes da pandemia era de apenas 28%, atualmente está por volta de 40%. Assim, mesmo depois de 1 ano e 2 meses desde o início da crise, 12% das pessoas que costumavam sair de casa todos os dias para trabalhar ainda permanecem isoladas em casa. E essa taxa apresentou poucas variações ao longo da pandemia, independentemente das medidas de isolamento tomadas no Estado.

Junto com o isolamento, a pandemia provocou alterações na forma de trabalho e nos padrões de consumo. Quase 13% dos trabalhadores qualificados continuavam trabalhando de casa no final do ano passado, com poucas alterações nesta taxa ao longo da pandemia. Por outro lado, menos de 1% dos trabalhadores menos qualificados adotou o home office, pois trabalham em ocupações que não permitem o teletrabalho. Mas será que as pessoas que estão trabalhando de casa irão voltar a circular pelas ruas quando a pandemia acabar?

Há evidências de que grande parte delas não voltará mais ao trabalho presencial, mesmo após o fim da pandemia. Dados do Instituto de Pesquisa DataSenado (2020) mostram que entre aqueles adotaram o home office, 75% preferem que no futuro o trabalho permaneça dessa forma. E a grande maioria acha que a sua produtividade aumentou ou permaneceu igual com o teletrabalho, o mesmo acontecendo com a produtividade da empresa em que trabalham. Por fim, 70% afirmam que a adaptação ao home office foi fácil.

Acontece que, devido à alta concentração de renda no Brasil, os padrões de consumo da parcela mais rica da população têm muito impacto na geração de empregos dos menos qualificados. Os 10% mais ricos concentram cerca de 1/3 do consumo total no Brasil. Assim, mudanças de comportamento e no padrão de consumo dessa classe têm efeitos multiplicadores no emprego bem maiores do que mudanças nas classes média e baixa. Por exemplo, se as pessoas com maiores rendimentos permanecerem mesmo trabalhando de casa após a pandemia, deixarem de frequentar restaurantes em dias úteis e passarem a comprar comida e outros produtos pela internet, a recuperação dos empregos menos qualificados pode demorar muito para ocorrer, pois este tipo de compra não exige a presença de vendedores e garçons.

Em suma, apesar da retomada da atividade econômica, a taxa de ocupação continua baixa, especialmente entre os jovens e menos qualificados. Isso reflete uma persistência na taxa de isolamento social, facilitada pelo fato de que parcela relevante das pessoas com maiores rendimentos continua trabalhando de casa. Como estas pessoas são responsáveis por uma grande parcela do consumo agregado no Brasil, sua mudança no padrão de consumo tem grande efeito sobre o emprego nos setores de alimentos, vestuários, shoppings e viagens, que empregam uma grande parcela de trabalhadores não-qualificados. A renda desses trabalhadores, por sua vez, movimenta o comércio informal nas ruas.

Assim, se grande parte das pessoas com maior poder aquisitivo permanecer em home office após o final da crise, será difícil que o emprego dos jovens não qualificados retorne para os níveis de antes da pandemia, mesmo com a volta da circulação das pessoas nas ruas e nos shoppings nos finais de semana. E quanto mais tempo os jovens permanecerem desempregados, mais a sua trajetória profissional será afetada, diminuindo sua felicidade, produtividade e salários no futuro, empurrando-os para a criminalidade e aumentando a desigualdade de renda.

*Naercio Menezes Filho, é professor titular da Cátedra Ruth Cardoso no Insper, professor associado da FEA-USP e membro da Academia Brasileira de Ciências

Fonte:

Valor Econômico

https://valor.globo.com/opiniao/coluna/mercado-de-trabalho-na-pandemia.ghtml


Vladimir Safatle: Uma revolução molecular assombra a América Latina

O termo veio pelas mãos de Álvaro Uribe, ex-presidente da Colômbia e líder efetivo da direita linha dura que hoje Governa o país. Diante das inéditas manifestações que tomaram as ruas da Colômbia, fazendo o Governo abandonar um projeto de reforma tributária que mais uma vez passava para os mais pobres os custos da pandemia, não lhe ocorreu ideia melhor do que conclamar os seus à luta contra uma “revolução molecular dissipada” que estava a tomar conta do país. No que, há de se reconhecer, Uribe tinha razão. Normalmente, são os políticos de direita que entendem primeiro o que se passa.

A América Latina, ou ao menos uma parte substantiva do continente, está a passar por um conjunto de levante populares cuja força vem de articulações inéditas entre recusa radical da ordem econômica neoliberal, sublevações que tensionam, ao mesmo tempo, todos os níveis de violência que compõem nosso tecido social e modelos de organização insurrecional de larga extensão. As imagens de lutas contra a reforma tributária que tem à frente sujeitos trans em afirmação de sua dignidade social ou desempregados a fazer barricadas juntamente com feministas explicam bem o que “revolução molecular” significa nesse contexto. Ela significa que estamos diante de insurreições não centralizadas em um linha de comando e que criam situações que podem reverberar, em um só movimento, tanto a luta contra disciplinas naturalizadas na colonização dos corpos e na definição de seus pretensos lugares quanto contra macroestruturas de espoliação do trabalho. São sublevações que operam transversalmente, colocando em questão, de forma não hierárquica, todos os níveis das estruturas de reprodução da vida social.

De fato, o século XXI começou assim. Engana-se quem acredita que o século XXI começou em 11 de setembro de 2001, com o atentado contra o World Trade Center. Essa é a maneira como alguns gostariam de contá-lo. Pois seria a forma de colocar o século sob o signo do medo, da “ameaça terrorista” que nunca passa, que se torna uma forma normal de governo. Colocar nosso século sob o signo paranoico da fronteira ameaçada, da identidade invadida. Como se nossa demanda política fundamental fosse, em uma retração de horizontes, segurança e proteção policial.

Na verdade, o século XXI começou em uma pequena cidade da Tunísia chamada Sidi Bouzid, no dia 17 de dezembro de 2010. Ou seja, começou longe dos holofotes, longe dos centros do capitalismo global. Ele começou na periferia. Nesse dia, um vendedor ambulante, Mohamed Bouazizi decidiu ir reclamar com o governador regional e exigir a devolução de seu carrinho de venda de frutas, que fora confiscado pela polícia. Vítima constante de extorsões policiais, Bouazizi foi à sede do Governo com uma cópia da lei em punho. No que ele foi recebido por uma policial que rasgou a cópia na sua frente e lhe deu um tapa na cara. Bouazizi então tacou fogo em seu próprio corpo. Depois disso, a Tunísia entrou em convulsão, o Governo de Ben Ali caiu, levando insurreições em quase todos os país árabes. Começava assim o século XXI: com um corpo imolado por não aceitar submeter-se ao poder. Começava assim a Primavera Árabe. Com um ato que dizia: melhor a morte do que a sujeição, com uma conjunção toda particular entre uma ação restrita (reclamar por ter seu carrinho de venda de frutas apreendido) e uma reação agonística (imolar-se) que reverbera por todos os poros do tecido social.

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Desde então o mundo verá uma sequência de insurreições durante 10 anos. Occupy, Plaza del Sol, Istambul, Brasil, Gillets Jaunes, Tel-Aviv, Santiago: são apenas alguns lugares por onde esse processo passou. E na Tunísia já se via o que o mundo conheceria nos próximos 10 anos: sublevações múltiplas, que ocorrem ao mesmo tempo, que recusam centralismo e que articulavam, na mesma série, mulheres egípcias que se afirmavam com seios a mostra nas redes sociais e greves gerais. A maioria dessas insurreições irá se debater com as dificuldades de movimentos que levantam contra si as reações mais brutais, que se deparam com a organização dos setores mais arcaicos da sociedade na tentativa de preservar o poder tal como sempre foi. Mas há um momento em que a repetição acaba por gerar uma mudança qualitativa. Dez anos depois, ela ocorreu e foi possível de ser vista no último domingo, no Chile.

No último domingo, o Chile elegeu uma nova Assembleia Constituinte. Depois de manifestações massivas em outubro de 2019 que fizeram as ruas chilenas queimarem até o Governo parar de matar sua própria população e aceitar convocar um processo constitucional, o Chile elegeu 155 deputados constituintes, dos quais 65 são independentes, ou seja, não vinculados a estrutura partidária alguma, mas unidos, como os 24 constituintes da Lista del Pueblo, por um “Estado ambiental, igualitário e participativo”; 79 constituintes são mulheres, sendo a única Assembleia Constituinte da história mundial a ter maioria de mulheres; 18 são povos originários, sendo que todos estão presentes (desde os Rapanui da Ilha da Páscoa até os Mapuches). A direita, que ansiava alcançar ao menos um terço para poder barrar as modificações constitucionais, terá apenas 37 deputados.

O caráter absolutamente único do processo chileno encontra-se no fato de ele se produzir como institucionalização insurrecional. Ele foi resultado de uma insurreição que exigiu imediatamente uma nova institucionalidade. Os islandeses tentaram isso, quando a crise econômica produziu profundas mobilizações populares que terminaram por produzir uma nova constituição. No entanto, o Parlamento não reconheceu a nova carta, abortando o processo.

Tal excepcionalidade andina deve ser compreendida à luz do que foi a via chilena para o socialismo. O Governo de Salvador Allende (1970-1973) procurou realizar um programa marxista através de uma mutação progressiva da vida social que preservava largas partes da estrutura da democracia liberal. Muitos criticaram tal estratégia depois do golpe, mas há de se lembrar de suas razões. Era a maneira dos chilenos e chilenas impedirem a militarização da vida social, como normalmente ocorreu em todos os processos revolucionários até agora. Havia uma questão real que o Chile procurou resolver inovando.

De certa forma, esse processo interrompido retoma agora 47 anos depois. Desde as revoltas estudantis no Governo Bachelet, o Chile viu lideranças estudantis se tornarem deputados e deputadas para arrancar do Congresso uma reforma que tornava gratuito o sistema público de ensino. Agora, eles fizeram o movimento inédito de só saírem das ruas com uma constituinte nas mãos, o que os tunisianos só conseguiram anos depois da formação do primeiro Governo pós-ditadura. Ao acoplar os dois processos, o Chile permitiu que o entusiasmo insurrecional comandasse o processo constitucional, institucionalizando sua revolução molecular.

O espectador que vê tudo isso do Brasil pergunta-se o que ocorre conosco. No entanto, erram aqueles que pensam que tal dinâmica não chegará no Brasil. Ocorre que ela encontrará uma situação muito mais dramática. Pois o Brasil é o país no qual as forças da reação organizaram-se de forma insurrecional. São setores expressivos da população que foram e irão às ruas pedir golpe militar e defender o fascismo de quem nos governa. Dentro da lógica da contrarrevolução preventiva, o Brasil, à diferença de outros países latino-americanos, foi capaz de mobilizar as dinâmicas de um fascismo popular. Por isso, o cenário tendencial entre nós é o de uma insurreição contra outra insurreição. Uma revolução fascista contra uma revolução molecular dissipada. Melhor seria estarmos preparados para tanto.

Vladimir Safatle é professor titular do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo.

Fonte:

El País

https://brasil.elpais.com/opiniao/2021-05-19/uma-revolucao-molecular-dissipada.html


Monica Bergamo: FHC e Lula se reúnem na casa de ex-ministro Nelson Jobim

Os ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso e Lula se reuniram há alguns dias no apartamento do ex-ministro do STF e ex-ministro da Justiça e da Defesa Nelson Jobim.

O encontro, no dia 12 de maio, pode ser considerado histórico: os dois estiveram em lados opostos nas últimas sete eleições presidenciais, ou em um embate direto ou apoiando diferentes candidatos.

Depois da reunião, o tucano e o petista começaram a trocar amabilidades por meio da imprensa. Fernando Henrique Cardoso disse, em entrevista à TV Globo, que votará em Lula em 2022 caso o segundo turno fique entre o petista e Jair Bolsonaro.

Lula retribuiu a gentileza e disse que faria o mesmo caso a disputa ficasse entre o tucano (que não é candidato) e Bolsonaro.”Fico feliz que ele tenha dito que votaria em mim e eu faria o mesmo se fosse o contrário. Ele [FHC] sempre foi um intelectual e sabe que não dá para inventar uma candidatura”, escreveu o petista em suas redes sociais.

De acordo com fontes ouvidas pela coluna, os dois conversaram sobre os problemas do Brasil e os desafios diante da crise econômica e da pandemia do novo coronavírus. E concordaram nas críticas em relação a Bolsonaro.

O perfil oficial de Lula no Instagram também registrou o encontro. Disse que o almoço oferecido por Jobim aos dois teve “muita democracia no cardápio”: “Os ex-presidentes tiveram uma longa conversa sobre o Brasil, sobre nossa democracia, e o descaso do governo Bolsonaro no enfrentamento da pandemia”.

Jobim foi ministro da Justiça no governo de FHC e da Defesa nos governos de Lula e Dilma Rousseff.

A declaração de voto de FHC em Lula irritou Jair Bolsonaro.

Em live na quinta (20), o presidente afirmou que “esse cara de pau do FHC dizendo agora que vai votar no Lula. Dá vontade de soltar um dinheirinho para o MST da região da fazenda do FHC para o pessoal invadir de novo lá. Quem sabe ele aprenda”. Em setembro de 2000, quando o tucano ainda era presidente, um grupo de sem-terra ligado ao MST invadiu uma fazenda no Pontal do Paranapanema que tinha como herdeiro um ex-sócio de FHC.

Em um debate online promovido pelo Instituto para Reforma das Relações entre Estado e Empresa, Fernando Henrique Cardoso voltou a dizer que quer uma terceira via para 2022. Mas que, se ela não se viabilizar, votará em Lula no segundo turno.

“Vou lutar para que haja um candidato. Se for do PSDB, bom. Se não for, também não tem importância. Mas vou votar contra Bolsonaro”, disse o tucano.

Disse também que conhece Lula “razoavelmente bem” há muitos anos e que o petista sente o momento político.

“Não sou lulista.. Se tiver terceira solução, melhor. Mas ele [Lula] sente o momento. O presidente atual do Brasil não sente o momento, não sente nada. O outro [Lula] tem suficiente esperteza para sentir”. E seguiu: “Acho melhor terceira via, mas, se não houver, quem não tem cão caça com gato. E, no caso, o gato não é tão feroz, não é uma onça. É um gato pacificado, já tem experiência. A vida ensina. Pelo menos alguns aprendem. É melhor apostar”.

Uma pesquisa do Datafolha divulgada em 12 de maio mostrou que Lula lidera a corrida eleitoral e que polariza com Bolsonaro. Nomes que seriam da terceira via ficam bem atrás dos dois na disputa.

De acordo com o instituto, Lula teria hoje 41% dos votos, contra 23% de Bolsonaro. Sergio Moro teria 7%, Ciro Gomes, 6%, Luciano Huck, 4%, João Doria, 3%, Luiz Henrique Mandetta, 2%, e João Amoedo, 2%.

No segundo turno, Lula bateria Bolsonaro por 55% a 32%.

Fonte:

Folha de S. Paulo

https://www1.folha.uol.com.br/colunas/monicabergamo/2021/05/fhc-e-lula-se-reunem-na-casa-de-ex-ministro-nelson-jobim.shtml


Alon Feuerwerker: Sinal amarelo

À sombra das disputas políticas que desfilam no palco da Comissão Parlamentar de Inquérito no Senado da Covid-19, os números da epidemia no Brasil começam a trazer dados algo precocupantes.

A curva da média movel de mortes ainda é declinante, mas isso convive com uma certa escalada na média móvel de casos, e agora também com alguns sinais, aqui e ali, de que voltou a subir a taxa de ocupação das UTIs (leia).

Será preciso acompanhar a situação nos próximos dias com grande atenção. Será necessário saber se estamos no início de uma terceira onda, qual a variante propulsora, e se é mais transmissível, se é mais letal.

Será mais que nunca obrigatório vigilância para que as autoridades não baixem a guarda, não desativem serviços hospitalares, especialmente na área de cuidados intensivos.

Não podemos repetir os equívocos acontecidos entre a primeira e a segunda ondas.

A CPI está corretamente debruçada sobre os erros passados. Não repeti-los é uma boa maneira de inclusive homenagear a memória das vítimas.

*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação

Fonte:

Análise Política

http://www.alon.jor.br/2021/05/sinal-amarelo.html


Alon Feuerwerker: Sobre autocríticas e líderes

Tem sido habitual exigir do interlocutor político que faça autocrítica. Por falar nisso, o tema é sempre uma oportunidade de voltar ao livro Depoimento, autobiografia de Carlos Lacerda. Ele explica por que tentara fazer a Frente Ampla com João Goulart e Juscelino Kubitschek, adversários figadais dele poucos anos antes. Simples, diz, lá atrás o perigo tinha sido um. Agora era outro.

O ex-governador da Guanabara talvez tenha sido propositalmente vago. Ou tentou ser delicado no uso das palavras. Lá atrás o inimigo dele era um, Jango, e agora passara a ser outro, o regime militar. Alianças políticas são feitas por critérios de conveniência, e visando a derrotar o inimigo principal.

Mas sempre com um olho no peixe e outro no gato.

Daí a velha máxima: nunca esteja tão ligado a alguém que não possa romper com ele, nem tão conflitado com alguém que não possa se aliar a ele.

A exigência de que o outro faça autocrítica costuma carregar a marca do amadorismo e da ingenuidade. Ou da esperteza. Vamos imaginar que Luiz Inácio Lula da Silva e o PT aceitassem fazer autocrítica. Algo como “erramos sim no governo, somos realmente culpados de muito do que nos acusam, mas prometemos não errar mais”. A única consequência prática seria passarem a campanha eleitoral não fazendo outra coisa além de tentar se explicar.

“O líder que erra e, para ser coerente, se recusa a corrigir a rota está a caminho de levar os liderados à catástrofe”

O mesmo se dá quando exigem de quem apoiou o impeachment de Dilma Rousseff admitir a tese de ter sido um golpe. Até imagino o político “de centro” reconhecendo: “Foi mal, o impeachment não tinha base jurídica, erramos, fomos gulosos, e se entrarmos agora de vice numa chapa prometemos não fazer isso de novo”.

Na vida política, autocríticas são raras, a não ser quando o objetivo é fazer a “autocrítica” dos erros dos outros. No mais, é melhor tocar a vida e concentrar-se no objetivo. Agora, por exemplo, o candidato anti-establishment de 2018, Jair Bolsonaro, tenta enlaçar a — ou ser enlaçado pela — velha política, que oferece o escudo de proteção no momento mais perigoso do mandato dele.

E pode proporcionar a barca para a dura travessia reeleitoral do presidente.

A política é jogo de interesses, definido pela correlação de forças. Lula e Bolsonaro disputam nos estados o apoio de políticos que até outro dia falavam o diabo do PT e de quem o atual presidente e seu círculo próximo falavam o diabo. E tem mais: os que entre esses políticos toparem outro caminho, aderir ao centrismo, à chamada terceira via, terão garantido um refresco junto à opinião pública, ganharão de bônus uma bela repaginada na imagem.

Mas a opinião é livre e nada impede que vozes se levantem a exigir coerência, supostamente um valor absoluto.

Será? A coerência é muito perigosa na política. Pode conduzir a desastres. O líder que erra e, para ser coerente, se recusa a corrigir a rota está a caminho de levar os liderados à catástrofe. Não faltam exemplos, velhos e novos.

Bons líderes são os capazes de mudar a rota sem dizer que estão mudando, e sem ter de explicar por que o hoje é diferente do ontem. Não é para qualquer um.

Publicado em VEJA de 26 de maio de 2021, edição nº 2739

Fonte:

Veja

https://veja.abril.com.br/blog/alon-feuerwerker/sobre-autocriticas-e-lideres/