Bolsonaro

Eliane Cantanhêde: Itália, gato escaldado

Bolsonaro perdeu um belo troféu, mas isso não tira seu mérito no desfecho de Battisti

Assim como Lula e Tarso Genro foram os principais responsáveis por manter Cesare Battisti no Brasil, a eleição do presidente Jair Bolsonaro foi decisiva para mudar o destino dele, condenado à prisão perpétua por quatro assassinatos na Itália.

Bolsonaro, porém, não deu sorte ao capitalizar o feito. Ele anunciou já na campanha que o bem-bom de Battisti estava com os dias contados, mas foi sucessivamente atropelado na execução da promessa.

Quem determinou a prisão de Cesare Battisti (aliás, de forma bem atrapalhada) foi o ministro Luiz Fux, do STF, ao revogar em dezembro de 2018 sua própria liminar, de outubro de 2017, que mantinha o refúgio. Quem autorizou a extradição foi o então presidente Michel Temer. E quem mandou Battisti direto para a Itália foi o presidente da Bolívia, Evo Morales.

Gato escaldado tem medo de água fria e a Itália não quis correr riscos, depois de quase 40 anos sendo humilhada por Battisti e de ser desdenhada pelos governos petistas no Brasil. Com a prisão pela Interpol, um avião italiano foi enviado rapidamente para a Bolívia, com plano de voo de volta direto de um país ao outro, sem escala.

Trazer Battisti para o Brasil e daqui enviá-lo para a Itália seria uma concessão política para dar um troféu a Bolsonaro. Mas seria também dar sorte ao azar. Vai que entram com um Habeas Corpus no STF? Vai que, como o Brasil não reconhece prisão perpétua, exigissem o máximo de 30 anos de pena?

Assim, quem mais capitalizou a extradição de Battisti da América do Sul direto para a prisão perpétua foi Morales, justamente um presidente de esquerda, que orbitava o bolivarianismo, ou “socialismo do século 21”, de Hugo Chávez, mas tem se mostrado pragmático, responsável e diplomático, a ponto de participar tanto da posse de Bolsonaro quanto de mais uma posse de Nicolás Maduro na Venezuela.

A fuga para a Bolívia, que durou um mês, foi uma derrapada da Polícia Federal. Corintianos, flamenguistas e marcianos sabiam, tanto quanto o próprio Battisti, que a extradição seria uma questão de tempo e era óbvio ululante que ele faria o que sempre fez em dois terços da vida: fugir. Só a PF não sabia? Não estava de vigília?

Mas a fuga para a Bolívia foi também um erro de cálculo de Battisti, que buscou um refúgio tão óbvio quanto foi a sua própria fuga, não só pela proximidade da Bolívia como também porque esse é um dos últimos países ainda carimbados como “de esquerda” nos arredores do Brasil. O que ele não contava é que Morales pode continuar sendo de esquerda, mas não tem nada de bobo. Bater de frente com Itália e Brasil por uma causa perdida não estava certamente nos seus planos.

Assim, Bolsonaro até se esforçou, mas perdeu a chance de ostentar o troféu Battisti para a Itália, a Europa e o mundo, mas isso não lhe tira o mérito de ter deixado claro todo o tempo que faria justiça contra o condenado e a favor de um país irmão como a Itália. Tudo aconteceu tão rápido exatamente por sua determinação e sinalização política nesse sentido. O que, aliás, as autoridades italianas reconhecem e agradecem.

Como ministro da Justiça, Tarso Genro driblou os pareceres do seu próprio ministério, do Itamaraty e do Comitê Nacional para Refugiados (Conare) para alegar que Battisti era “condenado político” e mantê-lo no Brasil. No apagar das luzes de seu governo, Lula deu de ombros para a decisão do Supremo e confirmou o refúgio. Mas os ventos mudaram e, com eles, a sorte do italiano.

Isso remete ao banqueiro Salvatore Cacciola, extraditado do Mônaco para o Brasil, e ao ex-BB Henrique Pizzolato, que fugiu para a Itália e voltou direto para a prisão. O mundo está ficando muito pequeno para criminosos. A Justiça ainda tarda, mas começa a não falhar.


Míriam Leitão: Temas sensíveis em Davos

Bolsonaro fará estreia em Davos, com os investidores de olho no ajuste, mas também em temas sensíveis, como as políticas ambiental e indígena

Em uma semana o presidente Jair Bolsonaro fará sua estreia em Davos e a ordem interna foi de mobilização para preparar uma boa apresentação. Os outros dois integrantes do governo que falarão lá são conhecidos do mercado e dos presentes nesse encontro anual, o ministro Paulo Guedes e o ministro Sergio Moro. O foco será melhorar a imagem do governo que, admite-se internamente, não é boa no exterior. Eles, contudo, enfrentarão outros problemas.

O primeiro é que a elite do capitalismo mundial, que se reúne anualmente nas montanhas geladas que inspiraram Thomas Mann, há muito tempo mudaram-se de armas e bagagens para um conceito mais atual de sustentabilidade. Querem ouvir Paulo Guedes contar como tornará as contas públicas sustentáveis. Querem ouvir a história do juiz ícone do combate à corrupção no Brasil, agora em nova função. Mas querem também saber o que o governo pretende fazer para proteger florestas e seus povos originais. Não por querer interferir nos destinos internos do país, mas porque o combate aos gases de efeito estufa, a luta contra as mudanças climáticas, exige que cada um faça a sua parte. E o Brasil mesmo escolheu a sua parte: atingir o desmatamento zero em 2030. Ontem, o ministro do Meio Ambiente disse que o país continuará no Acordo de Paris. Mas o governo tem criticado essas metas.

Neste momento, grileiros estão se sentindo estimulados, pelos sinais exteriores do governo, a invadir terra pública, principalmente terra indígena. Foi o que já começou a acontecer na Terra Indígena (TI) Uru-eu-wau-wau, a 322 quilômetros de Porto Velho, em Rondônia, segundo informou a “Folha”. O risco, segundo o relato do jornal paulista, é enorme, porque os grileiros avisaram aos índios que o acampamento deles vai aumentar. O Instituto Socioambiental confirma o perigo sobre essa área.

Recebo notícia das aldeias Awá Guajá, no Maranhão, onde estive com o fotógrafo Sebastião Salgado, em 2013. As informações são de que os grileiros estão se organizando em São João do Caru para retomar as terras das quais foram expulsos na desintrusão havida em 2014. Ontem, o cacique Antonio Guajajara, da TI dos Caru, me disse que o perigo realmente é grande. As terra Awá Guajá, um paraíso raro no Maranhão devastado, já foi demarcada e homologada. Vinha sendo sitiada por invasores, que foram retirados. Agora os grileiros se reúnem novamente. Neste domingo foi marcada uma reunião em Maguary e convocados, para ela, produtores de São João do Caru, Governador Newton Bello, Zé Doca e Centro Novo. O objetivo é voltar para a terra indígena. Os índios da aldeia Juriti são os mais ameaçados. Para fazer a reportagem, eu passei uma semana nessa aldeia. A maioria dos índios nem fala português porque a etnia foi contatada nos anos 1990. São poucos e vulneráveis e a terra que preservam é preciosa porque é um dos últimos remanescentes da Floresta Amazônica no Maranhão. Fiz lá, com Salgado, a reportagem “O Paraíso Sitiado”, que ganhou o prêmio Esso. Os grileiros são conhecidos e estão se organizando para invadir de novo as terras. Os índios começaram a pedir socorro a outros indígenas da região. Pode haver uma tragédia.

Se o governo Bolsonaro não fizer imediatamente um sinal claro de que isso não será permitido, haverá uma onda de invasões de terras indígenas. A própria Funai alertou que a TI Arara, no Pará, estava sendo invadida. O ministro Carlos Alberto dos Santos Cruz disse, na entrevista que me concedeu, na semana passada, que é um absurdo interpretar que o governo aceitará invasões de grileiros. Mas é assim que estão sendo entendidas as decisões tomadas pelo governo Bolsonaro de enfraquecer a Funai, levá-la da Justiça para o Ministério da Mulher e Direitos Humanos e entregar a demarcação de terras indígenas a um líder ruralista dentro do Ministério da Agricultura.

Os investidores hoje não olham apenas a performance da bolsa, a reforma da Previdência, a trajetória da dívida. Querem saber desses indicadores econômicos, mas muitas empresas e fundos têm limitações nas suas regras de conformidade e de governança a investir em países que desmatam, ignoram os compromissos no combate à mudança climática ou onde grileiros invadem terras indígenas.

Os discursos do presidente e dos seus ministros podem ser muito aplaudidos, mas num segundo momento o que o governo Bolsonaro tem dito e feito nas áreas climática, ambiental e de direitos indígenas pode se voltar contra o objetivo de atrair investidores. Nem só de ajuste fiscal vive a imagem de um país, mesmo diante dos capitalistas.


Bernardo Mello Franco: A outra boquinha da filha do Queiroz

Depois de ser exonerada por Bolsonaro, a filha do motorista Fabrício Queiroz ganhou outro cargo em Araruama. Segundo a secretária da prefeita, ela nunca foi vista por lá

Araruama costuma se orgulhar da hospitalidade com os turistas. Não é só com eles. Depois da eleição de 2018, o município da Região dos Lagos ofereceu um exílio remunerado à personal trainer Nathalia de Melo Queiroz. Ela é filha de Fabrício Queiroz, o motorista que virou um problema para a família Bolsonaro.

Nathalia foi exonerada do gabinete de Jair Bolsonaro em 15 de outubro, quando o pai já era investigado pelo Conselho de Controle de Atividades Financeiras. Duas semanas depois, ganhou um cargo de assessora especial da prefeita Lívia de Chiquinho (PDT).

A personal continuou a morar na capital fluminense, a 108 km de Araruama. A secretária da prefeita, Angela Barreira, disse que nunca a encontrou no local de trabalho. “Parece que ela era meio ruim de serviço. Como eu nunca vi, não posso dizer”, desculpou-se.

Morar longe não era problema, disse Cláudio Márcio Teixeira Motta, assessor estratégico da prefeitura. Ele definiu a filha de Queiroz como “pau para toda obra”. Quando pedi que fosse mais específico, afirmou que ela recebia para representar a prefeitura na Assembleia Legislativa e “escrever alguma coisa nas redes sociais”.

Motta disse que Nathalia ganhava “cerca de mil reais”. Ele ironizou a suspeita de que ela recebia como funcionária fantasma. A personal costumava postar fotos na academia de ginástica em horário comercial. “Se entre uma coisa e outra ela encontrava o namorado, ia ao Bob’s, não tenho nada com isso”, disse. “Nunca precisei de personal, mas até que seria bem-vindo”, gracejou.

A filha de Queiroz é citada no relatório do Coaf porque transferiu R$ 97 mil para as contas do pai. Na época, os dois estavam lotados no gabinete do senador eleito Flávio Bolsonaro. Na terça passada, ela faltou a um depoimento ao Ministério Público do Rio.

Nathalia foi exonerada da prefeitura em 7 de dezembro, um dia depois de o jornal “O Estado de S. Paulo” revelar a investigação sobre o motorista. A secretária da prefeita disse que “coincidências acontecem”. O assessor Motta admitiu que houve mais do que isso. “Ela pediu as contas. Pode ter sido a pressão”, disse. A defesa de Queiroz não se manifestou até a conclusão da coluna.


José Casado: Hegemonia verde-oliva

Talvez seja útil à curadoria militar do governo Bolsonaro a presença de Villas Bôas no núcleo de conselheiros presidenciais

O presidente se perfilou diante do general que respirava por máscara. Bateu continência, debruçou sobre a cadeira de rodas, e segredou-lhe algo. Então, encarou a plateia fardada: “Obrigado, comandante Villas Bôas. O que nós já conversamos morrerá entre nós. O senhor é um dos responsáveis por (eu) estar aqui.”

Talvez um dia, Jair Bolsonaro e Eduardo Villas Bôas resgatem a memória de suas conversas nos últimos 34 meses. Seria útil à História o relato do que ocorreu desde quando o deputado, ex-capitão-paraquedista, pediu para avisar ao general no Forte Apache — como é conhecido o QG do Exército em Brasília— que planejava saltar da planície política para o topo do poder no Planalto.

Encontraram-se, mais tarde, na despedida de Villas Bôas do Comando do Exército. O general-ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, foi enfático: “A maior entrega deste comandante é o que ele conseguiu evitar. Foram tempos que colocaram à prova a postura do Exército como organismo de Estado, isento da política e obediente ao regramento democrático.”

Azevedo e Silva, também, tem uma dívida com a História. Pode resgatá-la contando o que Villas Bôas “conseguiu evitar”, desde 2015 no Comando do Exército. Azevedo e Silva chefiava o QG do Rio. O hoje vice-presidente Hamilton Mourão regia a tropa do Sul e incitava “uma luta patriótica” para derrubar Dilma Rousseff.

Quando Mourão homenageou o coronel Brilhante Ustra, “Doutor Tibiriçá” para os presos torturados em porões da ditadura, Villas Bôas tomou-lhe a tropa. Depois, saiu a instigar o “expurgo” de Temer. Villas Bôas disse-lhe, então, que já não cabia mais na cadeira do Alto Comando.

O general de pijama foi acompanhar o antigo capitão no salto bem-sucedido para o topo. Não se sabe o que aconteceu entre o presidente e seu vice, mas é visível que algo mudou. Se mostram distanciados.

Talvez seja útil à curadoria militar do governo Bolsonaro a presença de Villas Bôas no núcleo de conselheiros presidenciais. Arquiteto dessa hegemonia verde-oliva, ele continua sendo o líder que “consegue evitar”.


Luiz Werneck Vianna/IHU On-Line: 'O texto constitucional está em risco'. Para onde a balança do novo governo vai pender?

Por  Patricia Facchin, do IHU On-Line

“O caminho pelo qual nós enveredamos ainda é muito misterioso e não se sabe para onde a balança vai pender”, diz o sociólogo Luiz Werneck Vianna à IHU On-Line ao comentar os primeiros movimentos do governo de Jair Bolsonaro. O discurso de posse do presidente, avalia, “foi ameaçador” e indica a intenção de fazer a “roda girar para trás” na questão dos costumes e das mulheres, mas “em outros temas ele tem a intenção de que a roda gire de uma maneira diversa da que estava girando, e essa maneira é a maneira neoliberal”. O modelo econômico que orienta o governo, pontua, “não é bom nem mau”, mas é preciso “ver o cenário social e político dele. Para fazer tudo isso, quem tem que ser removido? Quem tem que perder? Esse não é um jogo somente de ganhadores. Há ganhadores e perdedores, e os perdedores, por ora, estão do lado de baixo e devem perder muito mais do que já perderam”, pondera.

Entre os passos a serem observados no novo governo, Werneck Vianna chama atenção para qual será a participação e as posições a serem defendidas pelos militares no governo. “Existe um personagem no governo que não está claro como está se comportando ou como irá se comportar, que são os militares, especialmente os do Exército”, menciona. Até onde se sabe, diz, “a corporação continua unida em torno de alguns propósitos gerais, como desenvolvimento, uma ideia de grandeza nacional ainda subsiste, e isso tudo parece indicar uma certa indisposição com essa nova política externa que se preconiza, com a nova economia neoliberal que se preconiza”.

Nos primeiros meses de governo, Werneck Vianna aposta que as políticas econômicas do governo encontrarão “apoio” entre os militares, mas “algumas partes serão mais sensíveis, especialmente no tema da privatização de algumas estatais. Quanto ao tema da abertura da soberania de alguns territórios, acho que essa é uma tese que não passa entre os militares, mas, enfim, a ver”. Mas o que “vai se ver” com certeza no novo governo é a reforma da Previdência. A questão é saber se “esse modelo vigente de captação entre as gerações vai permanecer ou vai ser substituído por um sistema de capitalização”.

O sociólogo frisa também que “por mais que se diga que não, o texto constitucional está em risco” e “o programa de Bolsonaro incide de forma negativa diretamente sobre vários pontos da Constituição”. Ele explica: “O mais recente deles é o trabalho, porque o novo governo pretende dissolver a Justiça do Trabalho, que está prevista constitucionalmente. Então, um embate dessa questão com o judiciário parece ser inevitável se essa ideia prosperar”.

Luiz Werneck Vianna é professor-pesquisador na Pontifícia Universidade Católica - PUC-Rio. Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo - USP, é autor de, entre outras obras, A revolução passiva: iberismo e americanismo no Brasil (Rio de Janeiro: Revan, 1997); A judicialização da política e das relações sociais no Brasil (Rio de Janeiro: Revan, 1999); e Democracia e os três poderes no Brasil (Belo Horizonte: UFMG, 2002). Sobre seu pensamento, leia a obra Uma sociologia indignada. Diálogos com Luiz Werneck Vianna, organizada por Rubem Barboza Filho e Fernando Perlatto (Juiz de Fora: Ed. UFJF, 2012). Destacamos também seu novo livro intitulado Diálogos gramscianos sobre o Brasil atual (FAP e Verbena Editora, 2018), que é composto de uma coletânea de entrevistas concedidas que analisam a conjuntura brasileira nos últimos anos, entre elas, algumas concedidas e publicadas na página do Instituto Humanitas Unisinos - IHU.

Confira a entrevista:

IHU On-Line - Qual sua avaliação do discurso de posse do presidente Jair Bolsonaro e da primeira semana do novo governo?
Luiz Werneck Vianna –
O discurso de posse foi ameaçador. Por mais que se diga que não, o texto constitucional está em risco. Existe um personagem no governo que não está claro como está se comportando ou como irá se comportar, que são os militares, especialmente os do Exército. Havia, até bem pouco tempo atrás, a convicção de que eles estavam comprometidos com a defesa da Carta de 88, inclusive isso era claro em declarações públicas do general Villas Bôas. Mas parece que isso não é tão claro, porque o programa de Bolsonaro incide de forma negativa diretamente sobre vários pontos da Constituição. O mais recente deles é o trabalho, porque o novo governo pretende dissolver aJustiça do Trabalho, que está prevista constitucionalmente. Então, um embate dessa questão com o judiciário parece ser inevitável se essa ideia prosperar.

Um fenômeno local e global
A minha ideia geral sobre esse tema não é apenas local. Trata-se de um processo de alcance muito mais geral, que envolve a Itália, a Hungria, a Polônia, os EUA principalmente, e agora o Brasil, com a importância que tem na América Latina. Há um diagnóstico, por parte da direita emergente, de que se tudo permanecesse como antes, com a ONU, com o tema do meio ambiente, o tema da paz, o mundo do capitalismo iria conhecer dissabores importantes no tempo em que vivemos e no tempo em que ainda viveríamos. Vejo essa movimentação da direita como uma concertação internacional no sentido de devolver ao capital e ao capitalismo liberdade de movimentos, fazendo com que ele remova todos os obstáculos que estão antepostos a ele. Isto ocorreu na Inglaterra com o Brexit, que ainda é um processo inconcluso, mas, de qualquer modo, as reações reacionárias, que se opõem às mudanças que estavam ocorrendo e ainda estão, foram demonstradas nas próprias eleições na Itália, na Hungria, e o preço foi contestado por um processo plebiscitário, isto é, dentro dos canais democráticos. Então, a democracia apresentou e vem apresentando caminhos novos, como a emergência da direita no mundo através da manipulação eleitoral e através da exploração dos perdedores por aqueles setores sociais afetados pela globalização.

Esse mundo todo vem percorrendo um caminho que desconhece, que passa por cima ou que passa ao largo das questões do mundo urbano industrial. Os trabalhadores da indústria e os personagens do século XX, sindicatos, partidos de esquerda, partidos em geral, sofreram um processo de esvaziamento muito grande. Hoje o mundo transcorre mais na área dos serviços e das finanças. A política se tornou necessária para liberar o andamento dessa economia nova, financeirizada, para que ela remova os obstáculos da sua reprodução. A roda da história está girando. Quais são os grandes alvos desse movimento? A ONU, a paz.

Programa do governo
O programa desse governo que aí está é mais um programa de limpeza de terreno dos obstáculos existentes a uma reprodução mais flexível do capitalismo. Está aí a questão indígena e a liberação de terras indígenas para a mineração e o agronegócio.

A grande propriedade agrária está desempenhando um papel central na formação do governo, muito importante na formação do parlamento. Fazer a roda girar para trás é possível, mas é muito difícil. Daí que o mundo de Trump não seja um mundo de céu de brigadeiro, inclusive internamente, mas eles estão se esforçando bastante nessa direção e existe uma consciência nova, uma ação nova, novos protagonistas, que devolvem liberdade de movimento ao capitalismo.

A questão feminina não depende da movimentação política, de movimentos feministas e partidários — isso ajuda —, mas é sobretudo o movimento das coisas. O mundo capitalista atual foi obrigado a atrair as mulheres ao mercado de trabalho e, com isso, afetou a família nuclear, o patriarcalismo, inclusive no Oriente esse processo está chegando. Não é possível fazer com que esse movimento da emancipação feminina retroceda. No Brasil, o que se observa como reação àemergência das mulheres no mundo é essa epidemia de feminicídio que vem ocorrendo entre nós. É claro que estou mostrando e acentuando um aspecto microscópico disso, mas isso tem por trás mudanças societais imensas e revolucionárias do ponto de vista antropológico. A família nuclear que o mundo tradicional conheceu não volta mais ao que era; isso foi subvertido por processos sociais inamovíveis. Esse é um tema de fundo, não é um tema lateral, e está presente no combate às chamadas ideologias de gênero, tão forte nos discursos de campanha presidencial de Bolsonaro, e na armação ideológica do discurso anacrônico e primitivo do ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo.

Além do mais, o pentecostalismo cresceu no Brasil, mas o país continua católico, majoritariamente católico. Isso cria travas não na questão da mulher exatamente — não é a isso que estou me referindo. Estou me referindo à matriz que formou a identidade nacional brasileira, que não é uma matriz protestante, mas é uma matriz da catolicidade. Tem uma sofisticação dada por séculos e uma capacidade de resistência muito grande. Não creio que esses traços da identidade pela catolicidade no Brasil sejam facilmente radicáveis por essas novas ideologias de fundo pentecostal, como a ideologia da prosperidade e coisas do gênero. Não vejo como isso possa avançar a ponto de jogar a velha matriz que presidiu a formação da nossa identidade. Então, esse é outro ponto que tende a suavizar e amenizar essa ira da Reforma Protestante — não quero me referir ao protestantismo de modo pejorativo, mas a esse impulso de reforma que está nos pentecostais que querem que nos costumes, na sociabilidade, o mundo volte atrás, isso num momento em que Cuba, por exemplo, alivia o seu texto constitucional da repressão ao homossexualismo. Esse é um tema que também não volta atrás. De outra parte, o nível de independência, de liberdade com que o Brasil viveu as últimas décadas levou o país a ter novos personagens, novos temas, e não vai se fazer essa roda girar para trás. Então, esse é um lado do governo, digamos que o lado obscuro do governo.

O lado mais racional, digamos, admitindo de forma generosa a racionalidade disso, estava na necessidade de que o mundo da economia brasileira, especialmente das suas elites, vem ao seu encontro com a ideologia neoliberal. O neoliberalismo implica a remoção das conquistas sociais que foram acumuladas nas últimas décadas. O neoliberalismo precisa de uma movimentação livre de capitais, cujos custos sociais não importam. Os melhores dirão que, com a riqueza que o neoliberalismo trará, todos vão se beneficiar. Isso não se viu em parte alguma e é de uma improbabilidade quase absoluta. O que vai se ver é uma intensificação da exploração, do domínio. Sabe-se lá se vai encontrar resistências ou não.

IHU On-Line – Que problemas o senhor identifica na visão econômica do novo governo?
Luiz Werneck Vianna – É o de que terão de remover os direitos que estão aí: legislação do trabalho, Justiça do Trabalho, abrir a terra para a exploração mineral e agropecuária. Apostar no mercado com a crença de que, a longo prazo, isso vai trazer benefícios a todos.

IHU On-Line – Seria melhor continuar com o capitalismo de Estado que prevaleceu até então?
Luiz Werneck Vianna – Não. De jeito nenhum.

IHU On-Line – O que seria uma outra via?

Luiz Werneck Vianna – Uma via liberal, e não neoliberal. A economia com o governo Bolsonaro vai apenas selecionar regiões privilegiadas para a sua intervenção. Esse é um ponto. Outro ponto são os militares.

IHU On-Line – Por que o senhor está com receio da participação dos militares no governo?
Luiz Werneck Vianna – Eles sempre foram refratários à privatização e sempre tiveram um papel favorável à intervenção do Estado, às estatais, a Petrobras, a Eletrobras. Como eles irão se comportar diante disso ainda é um segredo, um mistério. Tem de se presumir que haverá alguma dificuldade ou algum ruído em algumas dimensões. É um governo com opções arriscadas, que se importa em produzir mudanças que se refletem em outros segmentos do próprio governo. Por exemplo, vamos franquear parte do nosso território a bases militares americanas, como preconizam tantos, como o ministro das Relações Exteriores? Os militares concordarão com isso? Acerca da questão de transferir a embaixada em Israel para Jerusalém, como ficaria isso para o setor agropecuário que depende tanto das exportações para o mundo árabe? Tudo isso não dá para antecipar.

IHU On-Line – Os militares de hoje têm uma visão diferente do nacionalismo se comparado aos militares do passado?
Luiz Werneck Vianna – É uma coisa a ver. O mundo militar é um mundo muito complexo e tem uma geração mais jovem. Está saindo uma pesquisa produzida pelo meu departamento na PUC-Rio, coordenada por Eduardo Raposo e Maria Alice Rezende de Carvalho, a qual foi feita num convênio com segmentos da corporação militar e patrocinado pela Capes. Por essa pesquisa, os elementos de continuidade aparecem muito fortes, a corporação continua unida em torno de alguns propósitos gerais, como desenvolvimento, uma ideia de grandeza nacional ainda subsiste, e isso tudo parece indicar uma certa indisposição com essa nova política externa que se preconiza, com a nova economia neoliberal que se preconiza. O caminho pelo qual nós enveredamos ainda é muito misterioso e não se sabe para onde a balança vai pender. Ela não vai poder ficar sem indicar lados perdedores e vencedores por muito tempo, porque as questões são muito pesadas e importantes. Abrir o território nacional para uma presença militar estrangeira é uma questão que vai mexer profundamente com as Forças Armadas e a sociedade inteira. A questão da transferência da embaixada em Israel vai mexer com um segmento, mas um segmento muito importante, que é o do agronegócio, e por aí vai. Outros temas, como o dos costumes, mexem com a sociedade toda.

O carnaval vem aí e ele não vai se passar que nem missas campais pentecostais; vai ser o carnaval de sempre, da sensualidade desenfreada, da liberação de sempre, e talvez ele também se comporte de forma a caracterizar o que está se passando fora dele, fora do mundo do carnaval. Blocos, escolas de samba vão refletir, como sempre refletiram, sobre temas do cotidiano, e vai ser interessante de ver. Nesse sentido, também por aí, não vai se conseguir fazer a roda girar para trás.

IHU On-Line – O novo governo tem a intenção de fazer a roda girar para trás, ou tem a intenção de fazer a roda girar para frente, mas ainda assim irá fazer a roda girar para trás?
Luiz Werneck Vianna – Em algumas questões, para trás, como na dos costumes, das mulherespor exemplo. Em outros temas ele tem a intenção de que a roda gire de uma maneira diversa da que estava girando, e essa maneira é a maneira neoliberal. Não à toa o Chile de Pinochet é um paradigma do que está aí. Uma coisa que vai se ver é a reforma da Previdência. Esse modelo vigente de captação entre as gerações vai permanecer ou vai ser substituído por um sistema de capitalização?

IHU On-Line – O ministro Paulo Guedes disse em seu discurso de posse que o projeto econômico de sua equipe é sustentado em cima de três pilares: a reforma da Previdência, a privatização acelerada e a redução ou unificação de impostos. Como o senhor avalia esse conjunto de propostas?
Luiz Werneck Vianna – O modelo em si não é bom nem mau. Tem que ver o cenário social e político dele. Para fazer tudo isso, quem tem que ser removido? Quem tem que perder? Esse não é um jogo somente de ganhadores. Há ganhadores e perdedores, e os perdedores, por ora, estão do lado de baixo e devem perder muito mais do que já perderam.

IHU On-Line – Os militares irão apoiar esse modelo ou tendem a divergir?
Luiz Werneck Vianna – No começo, em linhas gerais, vai haver apoio. Algumas partes serão mais sensíveis, especialmente no tema da privatização de algumas estatais. Quanto ao tema da abertura da soberania de alguns territórios, acho que essa é uma tese que não passa entre os militares, mas, enfim, a ver. O mundo gira, os atores mudam, os cenários mudam. Aqui mesmo estamos vendo uma mudança muito grande de cenário.

Cosmopolitismo como ideia-força
Algumas ideias se tornaram ideias-força. Por exemplo, o cosmopolitismo se tornou uma ideia-força. Arrebatadora? Não, tanto é que as resistências estão aí. Essa globalização não tem mais como frear, tem que ver quem está ganhando com ela e quem está se sentindo ameaçado por ela. A situação da China é real: a China é uma potência emergente no mundo, que está disputando a hegemonia com os EUA. China e Rússia estão se aproximando agora. Se se aproximarem de verdade, veja a mudança no tabuleiro. O que está por trás da ameaça de Trump? A ameaça pela perda da hegemonia. É um processo mundial de luta pela hegemonia. O Brasil vai tomar parte nisso? Parece que vai tomar partido de um lado contra o outro. Isso interessa a quem pensa em um país de grandeza e afirmação? Acho que não. Haverá ruídos por aí. Enfim, fomos envolvidos por uma trama infernal que está se dando no plano mundial por hegemonia, onde somos dependentes da China e deveremos ser mais.

Nesse cenário, vamos tomar partido contra a China? Isso é uma coisa que não passaria pela cabeça de um estadista como Vargas, que procurava trabalhar com as oportunidades que apareciam, jogando com os conflitos mundiais de forma tal que aproveitasse o Brasil, como foi o caso da industrialização com o financiamento americano. Vamos nos deixar arrebatar por apenas um dos polos do conflito nessa luta terrível pela hegemonia, que pode terminar em guerra? A guerra comercial já está aí. EUA, Rússia e China não param de aprimorar seu armamento, suas formas de defesa e agressão: mísseis balísticos para cá, mísseis balísticos para lá. Essa situação nos traz de volta aos anos 30, que é um período terrível, que parecia que tínhamos deslocado, com esse papa, esse Vaticano, com o tema do meio ambiente, o tema da paz, o tema da cooperação, da solidariedade. Esses eram temas emergentes até ontem, que estão sendo deslocados por essa gramática de guerra que está ocorrendo no mundo.
Tem uma bibliografia muito importante sobre o risco.

Sempre que se fala nela, lembro do alemão Ulrich Beck, que fez uma demonstração, um inventário de uma reflexão muito poderosa sobre a sociedade de risco, que é hoje a nossa. Não é que sejamos catastrofistas, mas sem reflexão, sem consciência, sem denúncia, o mundo da catástrofe se avizinha, progride, ganha terreno. A ecologia é um tema ineliminável do mundo contemporâneo e, não obstante isso, no Brasil e nos EUA de Trump, erradicaram essa questão como se fosse uma questão ideológica.

Então, há toda uma bibliografia em ciências sociais que vive agora a ameaça de ir para a lata do lixo. A sociologia do risco está sumindo do mapa. Reflexões das melhores consciências que o mundo desenvolveu nos últimos anos estão sendo jogadas na lata do lixo. Um país como a Inglaterra, civilizado, sofisticadíssimo, votou no Brexit por uma motivação rústica, primitiva. É ameaçador. Os EUA, com as suas tradições libertárias dos federalistas, têm na presidência da República um homem como o Trump. É ameaçador.

IHU On-Line – O que explica o apoio de parte da população desses países à emergência da direita?
Luiz Werneck Vianna – Isso vem com a ideologia do populismo, com as perdas que setores da classe média e mesmo setores dos trabalhadores vêm sentindo com as mudanças estruturais que estão ocorrendo na economia e que jogam algumas profissões no lixo da história, com mudanças que não são inclusivas, como a industrialização foi. Quem chegava à cidade vindo do mundo rústico do campo, conseguia emprego nas fábricas. E agora? O mundo industrial encolheu e os requerimentos educacionais para entrar no mundo da informática são altos e deixam gerações de fora. Não adianta ter informação, boa formação em outras dimensões, se não tiver formação do mundo informacional. Eu, por exemplo, estaria condenado à fome e à miséria dada a minha má formação no mundo digital. O populismo de direita avança em cima desse ressentimento, com ameaças trazidas pelos grandes grupos migratórios contemporâneos.

Temos que pensar no mundo a partir da globalização e não com esse populismo nacionalistaque só leva à intensificação dos conflitos e, no limite, à guerra. Só que a guerra agora pode ser final.

IHU On-Line – O retorno ao nacionalismo é uma reação às consequências da globalização?
Luiz Werneck Vianna – Este é o conflito da cena contemporânea: o local e o universal. Isso demanda estadista, intervenções sofisticadas, e não intervenções rústicas, como muros, como fechamento autárquico dos países. A Hungria não tem força de trabalho e fecha as portas à imigração. É todo o continente: a África Subsaariana e outros territórios africanos estão mudando em busca de oportunidades de vida e mudando de continente, marchando para Washington. Isso é algo sem paralelo. As pessoas levam seus filhos, inclusive de colo, nessa epopeia que é atravessar o continente para pedir acolhimento, o qual eles sabem que não terão. Reclamam por abertura do mundo, por uma ordem mais aberta, reivindicam o cosmopolitismo. Aí a presença do papa é uma presença beatífica, porque ele representa esses ideais de cooperação, de paz, embora sem força.

Enfim, esse inventário de conquistas está sob ameaça, inclusive no Brasil. Penso que o mundo da reflexão, da consciência, o mundo dos trabalhadores tem que exercer um sistema de defesa contra esses avanços ameaçadores que criamos da Segunda Guerra para cá. Por onde isso vai, não me pergunte, porque não sei. Só sei que vai haver muito conflito, porque são muitos interesses contrariados.

IHU On-Line - Qual sua expectativa para o novo governo?
Luiz Werneck Vianna – A minha expectativa é a de que será um cenário de competição, de muito conflito. E espero que vivamos isso de uma forma civilizada, sobretudo se conseguirmos garantir a Constituição que nos rege que, a essa altura, mais do que nunca, é o melhor instrumento de defesa da civilização brasileira.


Hamilton Garcia: A esquerda e a resistência

Logo depois da contrarrevolução de 1964, a esquerda se dividiu em duas alas visceralmente opostas: uma que apontava para a saída cubana, com mobilização popular em torno de ações armadas das vanguardas revolucionárias – tendo a guerra popular prolongada, de inspiração chinesa, peso menor neste espectro – e outra que buscava uma frente ampla (democrática) com os setores descontentes com o crescente autoritarismo militar. A profunda divergência entre elas não impediu que fossem, ambas, esmagadas pelo aparato repressivo montado pela ditadura, nem tampouco a visão estratégia dos reformistas lhes garantiu a liderança da esquerda na redemocratização. A história é assim.

À época, falava-se de resistência contra o “entreguismo”, a manutenção da pobreza e a perda das “liberdades políticas”. O “entreguismo" saiu pela culatra, pois os militares, não obstante o alinhamento anticomunista (feroz) com os norte-americanos, fizeram uma política de desenvolvimento nacional junto a uma diplomacia pragmática, que buscou oportunidades econômicas inclusive no bloco comunista/nacionalista do terceiro mundo.

Já a pobreza foi reduzida de quase 70% para menos de 40%, entre 1970-1980*, e radicalmente transformada de pobreza rural (invisível e dispersa) para pobreza urbana (exposta e concentrada), com todo o corolário de desagregação social conhecido – portanto, dialeticamente agravada, não obstante reduzida. Na mosca mesmo só a previsão da perda das liberdades políticas, que muito provavelmente estaria em situação ainda pior se a revolução tivesse vencido – como demonstra o exemplo cubano e seus 60 anos de regime fechado.

Hoje, volta-se a falar de “resistência”; por incrível que pareça, da mesma. Acredita-se que Bolsonaro vai entregar as riquezas do país aos EUA (e Israel!), que a pobreza vai se aprofundar e as liberdades serão novamente tolhidas. Nada disso pode ser descartado, é verdade, mas tais expectativas parecem fazer tábula rasa dos desafios presentes na realidade brasileira, que tiveram poder determinante sobre o voto popular (vide, A Democracia na Furna da Onça).

Falar em “entreguismo" depois de quase 24 anos de desindustrialização regada à corrupção globalizada (nos 13 anos petistas), incentivo cambial aos gastos no exterior e às importações, sugere certa desorientação – se não pura desfaçatez – e elude a questão central: a retomada da industrialização de modo a sustentar, via aumento da renda interna, a economia, os empregos e a diminuição da pobreza, foi possível no regime militar com o aludido alinhamento geopolítico aos EUA, ao passo que se frustrou tanto com o globalismo liberal-democrático dos tucanos, quanto com o alinhamento “anti-imperialista” dos petistas.

Do mesmo modo, falar em "aprofundamento da pobreza” depois da brutal recessão provocada pelo estelionato eleitoral petista – que precipitou o esgotamento do Estado de compromisso (neopatrimonial) e da inclusão financista pelo consumo – mostra a vocação prestidigitadora deste tipo de esquerda. O processo de redução da pobreza ocorreu tanto por políticas de esquerda, quanto de direita e, olhando-as retrospectivamente, percebe-se que, se combinadas, teriam tido seus efeitos positivos maximizados.

Se nos anos 1970 vimos a inclusão pela aceleração econômica produtiva, sem a devida promoção social dos mais pobres, nos anos 2000 observamos exatamente o inverso, sem a devida qualificação educacional – a bolha econômica de commodities, por sua sazonalidade, por mais prolongada que seja, não pode sustentar tal processo. Em outros termos, se a diversificação das cadeias produtivas e a promoção das populações historicamente marginalizadas, por meio da escolarização e do trabalho, se conjugarem, no futuro, teremos mais chances de solucionar o problema da abissal desigualdade.

Até mesmo o tema da liberdade política fica comprometido no olhar da esquerda anacrônica. Não só pelas relações carnais dela com as ditaduras “populares" do Ocidente e do Oriente – como, de resto, já sucedera aos comunistas no século passado, embora de maneira menos constrangedora –, mas também por sua simbiose com as classes neopatrimoniais, que acabou levando seu maior líder para a cadeia. O fracasso do Governo Bolsonaro, neste quesito, ou seja, sua capitulação ao “jogo democrático” em voga, está longe de significar a vitória da "resistência democrática”, sendo mais provável que signifique a vitória do MDB-Centrão – naturalmente em parceria com sua “esquerda".

Esta tendência farsesca em relação à história e sua repetição, é ainda mais explícita nas alas “revolucionárias” do petismo, para as quais as transformações ocorridas ao longo dos séculos, no capitalismo, não afetaram nem sua composição de classe – proletariado e burguesia permanecem como classes originais em sua constituição –, nem suas relações com o Estado – “comitê executivo da burguesia”, no dizer do Manifesto Comunista de 1848(!). Um prodígio de teoria sem fatos, que nos faz compreender plenamente as razões da famosa frase do velho Marx: “tudo o que sei é que não sou marxista”.

A ideia predominante entre estes setores mais radicais, é que a derrota do PT não foi tática, mas estratégica: "depois de treze anos e meio no governo”, nos diz Valério Arcary[i], "a principal lição (…) é que não será possível transformar a sociedade brasileira através de negociações de um projeto de reformas com a classe dominante”, que "tolerou o PT no contexto da conjuntura, muito excepcional e inédita, de um mini-boom de crescimento econômico, turbinado pela (…) ascensão chinesa”. Ou seja, a revolução volta ao proscênio, à semelhança do ocorrido na Venezuela de Chaves – que é apoiada pelos petistas apesar do desastroso resultado.

"A estratégia da burguesia brasileira para retirar o capitalismo semiperiférico da estagnação prolongada, prossegue o autor, é atrair investimentos externos e impor padrões de superexploração 'asiáticos'. Portanto, não está disposta à concessão de reformas ‘europeizantes’” – que o PT, diga-se de passagem, tentou fazer em patamar de produção muito inferior ao “europeu”, fadando-as ao fracasso, sem  que o autor disto se aperceba.

Este pequeno detalhe se agrega a outro, que também passa despercebido, não obstante seu caráter histórico, impedindo um olhar mais profundo sobre o real equívoco estratégico do PT e da esquerda bolivariana em geral, que é o de continuar considerando, mesmo depois do fracasso cubano e do colapso soviético, que a simples eliminação da burguesia e a formação de Estados socialistas seria o suficiente para colocar as economias nacionais em graus mais avançados de produtividade e as liberdades em níveis interditados ao capitalismo (vide, A Que Herança Renunciamos — do socialismo cientítico ao socialismo mítico). Mesmo no caso da China, onde a NEP pôde se desenvolver plenamente, ao contrário da URSS, as liberdades continuaram circunscritas ao Estado-partido, não obstante o sucesso econômico.

Estamos, de fato, "diante de um projeto de reposicionamento global do Brasil no mercado mundial e no sistema de Estados”, como diz Arcary, mas reduzir este processo à dimensão conotativa da denúncia do "neoliberalismo” e de ode ao "proletariado internacional”, é apenas reiterar a impotência político-intelectual do “marxismo-leninismo".

Seria melhor que a esquerda voltasse ao pensamento (auto)crítico de Marx&Engels e se preparasse para a hipótese de um novo arranjo entre a direita e os militares, diverso do liberalismo anacrônico oitocentista, pleiteando para si a melhor forma de atender as demandas da modernidade social, que, entre nós, passa pela questão republicana (superação do neopatrimonialismo) e a valorização do desenvolvimento para todos, nos moldes de uma NEP democrática, que nada teria a ver com o “politicamente orientado” que conhecemos, onde a questão social é residual e os grandes interesses reinam sobre o conjunto das classes sociais impedindo a consolidação e o progresso democrático.

 

Hamilton Garcia de Lima (Cientista Político, UENF[ii])

São João da Barra, 11/01/19.

*Vide gráfico abaixo[iii]:

[i] Vide Valério Arcary, Esquerda Online, 16 de dezembro, in. <https://esquerdaonline.com.br/2018/12/16/as-revolucoes-tardias-sao-as-mais-radicais/>, em 09/01/19.

[ii] Universidade Estadual do Norte-Fluminense (Darcy Ribeiro).

[iii] Apud José Eustáquio Diniz Alves, Aumenta a pobreza e a extrema pobreza no Brasil, in. <https://www.ecodebate.com.br/2018/08/13/aumenta-a-pobreza-e-a-extrema-pobreza-no-brasil-artigo-de-jose-eustaquio-diniz-alves/> em 30/12/18.


O Globo: Toffoli diz que Constituição não impede mudança nas regras para a posse de armas

Para presidente do Supremo, decreto do governo Bolsonaro que pretende flexibilizar acesso a armamento e restrições à progressão de pena não atingem cláusulas pétreas

Por Carolina Brígido, de O Globo

BRASÍLIA — A intenção do governo Bolsonaro de mudar as regras sobre posse de armas e endurecer o sistema de progressão de pena a condenados pode não encontrar resistência no Supremo Tribunal Federal (STF). O presidente da Corte, ministro Dias Toffoli, acredita que toda política pública pode ser alvo de mudança, desde que não ofenda cláusula pétrea da Constituição — ou seja, aquelas regras que não podem ser alteradas.

Para Toffoli, é juridicamente possível deixar o preso atrás das grades por mais tempo, como defende o governo Bolsonaro. Hoje, para um condenado trocar o regime fechado pelo semiaberto, por exemplo, precisa cumprir no mínimo um sexto da pena. O Planalto quer aumentar o tempo para essa transição.

Toffoli também explicou que políticas que facilitem o acesso da população a armas podem, em tese, ser alteradas por novas legislações. O governo Bolsonaro planeja editar um decreto sobre o tema, e o texto está sendo analisado na Casa Civil. Toffoli ponderou, no entanto, que não pode haver mudança em cláusulas pétreas e citou como exemplo a pena de morte, que é vedada pela Constituição.

— Qualquer política pública pode ser formatada, desde que não ofenda cláusula pétrea. Por exemplo: alterar regime de progressão de pena é possível, a Constituição não impede. Alterar a política de armamento da população, a Constituição também não impede. Estabelecer pena de morte: aí a Constituição impede, é cláusula pétrea — disse o ministro ao GLOBO.

Como já disse em outras ocasiões, Toffoli quer deixar o protagonismo para os novos Executivo e Legislativo, eleitos pela população. Ficariam na conta do STF só decisões essenciais para garantir a democracia e a liberdade de expressão. Ainda assim, alguns temas serão inevitáveis, como a reforma da Previdência. Se aprovada no Congresso Nacional, certamente será questionada no STF. A recomendação de Toffoli é que seja negociada uma reforma para reduzir regras, e não ampliar, como uma forma de gerar menos contestação judicial.

— Todas as reformas vieram para o STF. Isso é o resultado de uma Constituição muito ampla. Talvez o caso seja de reformas que diminuam o tamanho da Constituição, e não que aumentem. Porque, quanto mais aumenta, mais você dá margem para contestação jurídica, para conflito jurídico. Esse é um dos problemas das nossas reformas: elas geralmente tendem a aumentar o número de dispositivos da Constituição — ponderou.

Toffoli também defendeu a liberdade de imprensa e disse que o STF sabe conviver com as críticas.

— Se você tem uma imprensa manietada, censurada, ou se você tem um Judiciário que não é independente, você vai ter o autoritarismo de alguma forma. E quem garante a imprensa livre no Brasil é o Supremo. Mesmo que muitas vezes o Supremo seja criticado pela imprensa tradicional, ou ministros sejam criticados, é unânime aqui a defesa da liberdade de imprensa e de uma imprensa livre — declarou Toffoli.

CRIMINALIZAÇÃO DA HOMOFOBIA NA PAUTA

Ao falar sobre ataques sofridos pelo tribunal nas redes sociais, especialmente no fim do ano, quando foi aprovado um reajuste salarial para juízes da ordem de 16,38%, ou ainda antes, a partir de decisões que levaram à soltura do ex-ministro da Casa Civil José Dirceu e do empresário de ônibus do Rio Jacob Barata, Toffoli diz que as críticas à Corte são do jogo democrático. Mas ele alerta para o fato de que elas não podem resvalar para práticas criminosas:

— É a covardia do anonimato das redes sociais. Tem mentiras, fake news. Temos que nos acostumar: numa sociedade democrática, a crítica também faz parte. A pessoa tem todo o direito de não gostar desta ou daquela pessoa. Isso faz parte da democracia. O que não pode ter é ato violento e ato desrespeitoso, do ponto de vista calunioso.

O presidente do Supremo afirmou ainda compreender quem fica descontente com decisões judiciais, mas não se deve chegar ao ponto de pedir o fechamento de um tribunal por conta da discordância com a decisão proferida.

— Tem que deixar claro que os juízes não acordam de manhã e dizem: “Vou julgar isso aqui”. Vem alguém pedir ao Judiciário. Então fechar o Judiciário é fechar o acesso do exercício da cidadania, é fechar a democracia. Isso nenhum governo autoritário no Brasil fez, em nenhum momento da História — sustenta.

Apesar de ter julgamento sobre as prisões de segunda instância marcado para abril, o STF deve ter o papel penal reduzido este ano. Com a transferência de processos da Lava-Jato para a primeira instância, por causa da mudança na regra do foro especial, o tribunal tende a se ocupar mais de temas constitucionais.

Para o primeiro semestre de 2019, estão previstos julgamentos importantes para a sociedade, como a obrigatoriedade de o poder público fornecer medicamentos de alto custo para quem não tem condições financeiras e também o processo que trata da criminalização da homofobia. Além de lidar diretamente com os direitos das pessoas, as causas têm em comum o fato de que o Congresso Nacional não legislou sobre os assuntos, por falta de consenso político.


Blog do PPS: Que movimento boçal este bolsonarismo, meu Deus!

Que o Blog do PPS faz e fará sempre oposição declarada a esse governo boçal do presidente Jair Bolsonaro não deve ser novidade para ninguém, né?

Tanto quanto fizemos oposição aos (des)governos de Lula e Dilma Rousseff, bem como registramos a nossa posição contrária, crítica e equidistante a Bolsonaro e Haddadno 1º e no 2º turno das eleições de 2018.

Estava muito claro para nós que essas duas saídas polarizadas à direita e à esquerda seriam igualmente equivocadas e prejudiciais ao Brasil. Mas se esta foi a decisão da maioria do eleitorado, não há o que se discutir. Assim funciona o estado democrático de direito, e assim seguimos: eles no governo, nós na oposição. Simples assim.

Aqui da trincheira da resistência à burrificação e ao ódio reinante, que tenta reescrever a História de acordo com as narrativas mais convenientes ao bolsonarismo ou ao lulismo, vamos tentar preservar a racionalidade, o equilíbrio e o bom senso. Trazemos hoje a coletânea de alguns bons textos que fazem pensar e dão em boa medida o retrato desse momento insano que o país vive. Leia:

Henry Bugalho: O avesso da verdade

Celso Rocha de Barros: Os Generais

Esquerda x Direita: Bolsonarismo importa dos EUA teoria conspiratória sobre marxismo cultural

Antonio Prata: A milícia de Brancaleone

Jair Bolsonaro: O meme que virou presidente

Enquanto isso, no mundo surreal da política...


Almir Pazzianotto Pinto: Novas esperanças, velhos desafios

Reforma da Previdência deve ser o primeiro e decisivo teste para o novo governo

A posse do presidente da República, Jair Bolsonaro, deve ser encarada como o anúncio de nova era de liberdade, segurança e desenvolvimento. O discurso perante o Congresso Nacional, logo após o solene juramento de “manter, defender e cumprir a Constituição”, não se harmoniza, porém, com a promessa de “promover o bem-estar do povo”, mediante a realização de “reformas estruturantes, que serão essenciais para a saúde financeira e sustentabilidade das contas públicas, transformando o cenário econômico e abrindo novas oportunidades”.

O Congresso eleito em 1986, com as prerrogativas de Assembleia Nacional Constituinte, deveria limitar-se ao restabelecimento do regime democrático, protegê-lo contra tendências ao autoritarismo, demarcar as áreas de competência dos três Poderes da União e garantir os direitos fundamentais. Não foi o que aconteceu. Emendada uma centena de vezes, a Lei Fundamental continua à espera de alterações destinadas a torná-la objetiva, fácil de ser lida e entendida, isenta de promessas inalcançáveis, flexível e adaptável às exigências da Nação.

Entre as reformas constitucionais, a da Previdência Social “terá de puxar a fila”, por ser o atual sistema responsável pelo déficit “que cresce no ritmo de R$ 50 bilhões ao ano”, segundo a visão dos economistas Gustavo Franco e Elena Landau. “Reformar a Previdência não é mais uma escolha. Os números falam alto e o País terá de tomar uma decisão o quanto antes”, declarou Marcelo Caetano, então secretário de Previdência Social do Ministério da Fazenda (Estado, 30/12, B4).

Anote-se que as disposições constitucionais relativas à Previdência Social resultam de alterações introduzidas pelas Emendas n.º 20, de 1998; n.º 41, de 2003; e n.º 47, de 2005. O estado pré-falimentar do sistema previdenciário público e privado era conhecido e alvo de discussões desde 1995, quando teve início a série histórica de progressivos déficits anuais.

Melhor proveito haveria se voltássemos aos textos das Constituições de 1946 ou de 1967, deixando-se a regulamentação por conta de legislação ordinária. A primeira incluía, entre as garantias essenciais para os trabalhadores, no artigo 157, inciso XVI, “previdência, mediante contribuição da União, do empregador e do empregado, em favor da maternidade e contra as consequências da doença, da velhice, da invalidez e da morte”. O inciso seguinte determinava “obrigatoriedade da instituição do seguro pelo empregador, contra os acidentes do trabalho”. A Constituição de 1967 prescrevia, no artigo 165, XVI, “previdência social nos casos de doença, velhice, invalidez e morte, seguro-desemprego, seguro contra acidentes do trabalho e proteção da maternidade, mediante contribuição da União, do empregador e do empregado”.

O artigo 195 da Constituição atual, de 1988, determina que a seguridade social, que garante os direitos à saúde, à previdência e à assistência social, “será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e de contribuições do empregador, da empresa, de entidade a ela equiparada, incidentes sobre a folha dos salários, receita e faturamento, lucro”, etc.

Tanta complicação não impediu alarmantes déficits. O problema não está nas fontes, mas nas despesas, na sonegação, na fraude, no envelhecimento da população, na redução da atividade econômica, no desemprego, na informalidade prevalecente no mercado de trabalho.

Sobre a necessidade da reforma todos se põem de acordo. O problema reside no conteúdo. Será apenas mais uma, destinada à contemporização, ou o presidente Jair Bolsonaro se valerá da autoridade inquestionável de que dispõe para resolver enigma que levará o Tesouro Nacional à insolvência?

Julgo impossível aumentar as exigências que recaem sobre os trabalhadores, seja no que se refere à idade, seja no que diz respeito a benefícios. Vá lá que se aceite a eliminação da aposentadoria por tempo de serviço. Com 35 anos de contribuição para o homem e 30 para a mulher, conforme reza o artigo 201, I, da Constituição de 88, quem consegue demonstrar que começou a trabalhar aos 14 anos pode se aposentar aos 49 ou 44, mesmo em excelentes condições de saúde.

A reforma da Previdência deve ser o primeiro e decisivo teste para o novo governo. Dela dependerá para abrir caminho às reformas reestruturantes. Como ensinam consagrados cabos de guerra, é vital o emprego do máximo de força para a conquista do estratégico objetivo. Além da mobilização dos aliados na Câmara dos Deputados e no Senado, será indispensável cuidar da comunicação. Nesse quesito o presidente Michel Temer foi malsucedido. Embora fragmentada, a oposição permanece viva. Não é impossível para os partidos de esquerda fazerem da questão previdenciária o centro de gravidade de que necessitam para se aliarem contra governo que alardeia ser de direita.

No embalo das reformas, o presidente Jair Bolsonaro poderá encaminhar emenda destinada a corrigir o artigo 7.º, IV, que define salário mínimo. Trata-se de direito imaginário, de impossível realização. Em país nenhum há piso salarial capaz de atender às necessidades do trabalhador e sua família, “com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuários, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo”. É um dos mitos constitucionais, que devem ser suprimidos.

Para encerrar, creio ser arriscado ampliar afoitamente o leque de reformas. Extinguir a Justiça do Trabalho é inimaginável. “Só se destrói o que se substitui”, escreveu Auguste Comte, o filósofo positivista. Para onde iriam milhões de processos em tramitação?

É a pergunta que deixo para o presidente.

* Almir Pazzianotto Pinto é advogado, foi ministro do Trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho


Tasso Jereissati: Janela de oportunidade

Parlamento tem de entender resultado das urnas

O eleitor brasileiro deu um claro recado de que não suporta mais viver sob o jugo de um Estado dirigista, provedor de privilégios para uns e de privações para outros. Clama por uma política de simplificação tributária, de controle dos gastos públicos e combate permanente à hipertrofia do Estado que levou à bola de neve da estagnação econômica.

No seu dia a dia, o cidadão pode até não saber formular com clareza sua demanda, mas, ao votar na proposta mais distante do establishment político, deixou patente que não suporta mais conviver com a falta de atendimento à saúde, à educação, com o transporte público ineficiente, sem segurança e, principalmente, com os escândalos de corrupção que tomaram conta da cena política.

Para fazer frente a tantos e urgentes desafios, o mundo político não pode fazer de conta que essa mensagem foi dirigida apenas ao Executivo. Trata-se de um recado também ao Legislativo e ao Judiciário.

O mesmo eleitor que votou para presidente votou também, com o mesmo sentimento, para os seus representantes no Congresso, de quem se esperam demonstrações de distanciamento do jogo de toma lá dá cá, que se tornou quase um padrão nas relações com o Executivo.

As grandes reformas estruturantes, da Previdência, fiscal, e trabalhista, assim como tantas outras de não menor importância, são pautas que exigem atitude republicana de deputados e senadores.

Combater o patrimonialismo e o corporativismo, enfrentar a ferida absurda da desigualdade social, ao mesmo tempo criando um ambiente democrático favorável à livre iniciativa e aos negócios, com segurança jurídica, são exigências morais que não podem estar condicionados a jogos de interesses paroquiais. Sem as reformas, ninguém conseguirá governar, seja o presidente, sejam os governadores ou os prefeitos.

Para conseguir obter consenso na reforma da Previdência, a mãe de todas as reformas, o governo terá que lidar com a maior fragmentação partidária da história do Parlamento. Somente no Senado, foram 15 os partidos que obtiveram assentos. Mesmo considerando fusões inevitáveis, o Parlamento brasileiro apresenta-se com uma das maiores fragmentações partidárias do planeta, perdendo apenas para Papua-Nova Guiné.

E não se espere que tamanha fragmentação seja o reflexo do contraste do nosso quebra-cabeça coletivo. Agremiações parecem não ter um autêntico lastro social que resulte no acesso dessa miríade de partidos às cadeiras do Parlamento. A governabilidade já é comprometida na origem pela ausência de uma maioria estável, exigindo tratativas e negociações com uma base tão heterogênea que se traduz em alto custo político do processo decisório.

Em democracias consolidadas e maduras, o partido mais votado alcança em torno de 40% do total dos votos. No Senado, o mais votado, o MDB, alcançou só 14,8%. Vale lembrar que para aprovar uma PEC (proposta de emenda constitucional) são necessários 60% dos votos. Isso indica as dificuldades enormes de articulação política que terá o novo governo. Sem contar o fato de que, das 54 vagas em disputa neste ano, 46 serão ocupadas por novos nomes.

Mas devemos ter presente que o momento que vivemos não é um soluço no tempo. É fruto de camadas de ressentimentos populares contra o que se tornou a imagem da política e dos políticos. A população, pelo voto, não apenas elegeu seus novos representantes, mas definiu uma carta de navegação para a ética política, à qual estamos todos sujeitos, independente do espectro político que ocupemos. Sendo o Legislativo o poder originário, o único em que todos os seus membros se submetem à vontade coletiva, devemos ser também os primeiros a auscultar o ânimo que brota do voto democrático e soberano da cidadania.

Esse quadro torna ainda mais importante a eleição de um presidente do Senado capaz de se constituir de fato como o representante máximo do Parlamento frente à sociedade. Cabe a ele a interlocução com os meios de comunicação, autoridades, sindicatos, empresas e representantes diplomáticos. Estamos numa rara janela de oportunidade para desenhar um novo pacto constitucional entre os Poderes e, para tal, é necessário que o Parlamento, independente e altivo, compreenda o resultado das urnas.

*Tasso Jereissati, senador (PSDB-CE) desde 2015 e de 2003 a 2011; ex-governador do Ceará (1987-1991 e 1995-2002)


Alon Feuerwerker: A fisiologia do poder acaba se impondo. Com seus inevitáveis traços tribais

Não acredite na sinceridade do governante quando diz que a existência de uma oposição forte e a alternância são essenciais para as coisas andarem bem. É cascata. Todo líder deseja eliminar os oponentes ou cooptar (uma forma de eliminação), e perpetuar no poder ele e/ou o grupo.

Daí que, por exemplo, a higidez da assim chamada democracia representativa dependa não principalmente dos códigos escritos, mas de algum equilíbrio de forças. Se estiver suficientemente forte, o governante - qualquer um - dará, no popular, uma banana para os tais códigos.

E do que depende essa força? Principalmente da capacidade de impor o medo. Mas a eficácia da ameaça de punição será maior quanto mais apetitoso é o prêmio por se submeter. Por isso, no poder líderes cuidam de recompensar a tribo.

"Política não fisiológica” é um oxímoro. A política é o exercício da fisiologia que mantem vivo o organismo das relações de poder.

Se o primeiro ministério de Luiz Inácio Lula da Silva premiou essencialmente o PT, o gabinete inaugural de Jair Bolsonaro tampouco obedece, para espanto de alguns, a fantasia do “critério técnico”. Leis da natureza são teimosas.

A equipe do governo sustenta-se essencialmente em quatro partidos: o PEM (Partido da Economia de Mercado), o PM (Partido dos Militares), o POC (Partido do Olavo de Carvalho) e o PLJ (Partido da Lava Jato). Siglas que mesmo não registradas no TSE ajudaram a construir o desfecho eleitoral.

Há também tribos não tão contempladas quantitativamente, mas ainda assim essenciais. O PA (Partido do Agronegócio) e o PE (Partido dos Evangélicos). Na extrema periferia do sistema, políticos não “puros” mas sortudos, sobreviventes da caça à política.

As legendas informais têm as características dos seus irmãos formais. Têm chefes, regras internas, programa. E uma disciplina a seguir, e portanto a ser imposta. Se não se investe energia para manter o edifício organizado, a tendência natural é desorganizar.

Uma diferença aparente de Bolsonaro para Lula é que este só tinha, a rigor, um partido para premiar. Mas se a coisa for olhada mais de perto fica claro que não era bem assim. O PT organizou-se como um partido de tendências, e o presidente precisou/decidiu contemplá-las todas.

As melancias vão se ajeitando na carroceria do caminhão conforme os solavancos da estrada. Algumas frutas despedaçam-se, outras caem no caminho. Isso não é problema. Onde está o xis da questão? Na capacidade de o presidente mediar os conflitos para uma resultante boa.

Aí é que mora o perigo. Que solução Jair Bolsonaro providenciará para o conflito entre os evangélicos e o agronegócio (e outros ramos do empresariado) em torno da mudança ou não da embaixada em Israel de Tel-Aviv para Jerusalém? Uma hora o presidente vai ter de resolver.

Como fazer os políticos votar uma reforma da previdência que possa ser vendida ao público como justa e ao mesmo tempo preservar, ao menos em parte, as condições privilegiadas dos segmentos da burocracia estatal decisivos para a eleição do atual presidente da República?

A lista só vai crescer com o passar do tempo. Um dia alguém disse que o presidente dos Estados Unidos talvez se achasse o sujeito mais poderoso da Terra, mas não passava mesmo era de um guarda de trânsito. Organizando um tráfego mais ou menos caótico, mas um guarda de trânsito.

E tudo feito de um jeito de que possa ser explicado.

*

Solavancos são normais, mas a quantidade virou notícia neste início de governo. O primeiro impulso é dizer que as pessoas são incompetentes. Competência e incompetência são parâmetros algo subjetivos. Para objetivar, precisa complementar. Competência para fazer o quê?

Talvez o ruído esteja em outro lugar. Talvez as pessoas tenham sido escaladas não na melhor posição para cada uma delas. Faça você mesmo o teste. Simule um roque (o do xadrez) nas posições no Planalto. É uma simulação interessante. Em alguns casos, divertida.

*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação


Antonio Prata: A milícia de Brancaleone

“As eleições acabaram, não há lugar para revanchismo”, dizem os supostos arautos da racionalidade, “agora é torcer pra dar certo” — e todos aqueles que não acompanham as primeiras estultices do governo Bolsonaro fazendo coraçãozinho com a mão são petistas ressentidos, incapazes de aceitar as regras da democracia: “Vai pra Cuba!”.

Tenho dificuldade em torcer para o governo Bolsonaro “dar certo”, não por ser um “petista ressentido” —no infinito rol dos inimigos da pátria criado por esta direita neo-jurássica estou mais para “esquerda-caviar”. O problema é que não compreendo o que seria este governo “dar certo”. Se for Bolsonaro e sua milícia de Brancaleone conseguirem pôr em prática boa parte do que prometeram na campanha e começaram a tentar implementar nas últimas duas semanas —com exímia incompetência, felizmente—, estou fora.

Sejamos francos: estes caras são uns lunáticos. Como não chamar de maluco quem acredita que o aquecimento global é um “plot marxista”? Quem acha que a Folha (“Foice”) de S.Paulo e a Globo (“Red Globo”) são comunistas? Quem vê um plano da esquerda, infiltrada em todas as ramificações do ensino e da cultura, para destruir a família? Para Olavo de Carvalho, o Osho da seita Jair messiânica, o “plot” é ainda mais doido: a esquerda é manipulada pelo grande capital que, minando a família do trabalhador, poderá explorá-lo melhor.

“A sociedade que o ‘multiculturalismo’ anuncia” —escreveu aqui na “Foice”, em 2017, o Rajneesh dosbolsominions— “(...) é uma sociedade de tipo romano em que só os ricos e poderosos têm o privilégio de possuir uma família estruturada, enquanto o povão se esfarela numa poeira de átomos soltos, sem pais nem mães, nem tradição, nem passado, nem referência —a massa de manobra ideal para os engenheiros sociais a soldo da elite bilionária”.

Imagina o grau de delírio da pessoa para, toda vez que vê a bunda do Zé Celso, enxergar a carteira do George Soros? Nem no Centro Acadêmico de Ciências Sociais eu me lembro de testemunhar paranoia tão delirante. E olha que lá no CA o pessoal misturava Foucault com maconha, Kaiser quente e Bakunin —coquetel, agora sei, preparado pelos ocultos barmen da “elite bilionária”.

Voltando à terra: imagino que a maioria dos que torcem para o governo “dar certo” se refere à recuperação da economia. Sim, todos queremos crescimento, empregos, riqueza. Mas o que viria na esteira deste crescimento? Porte de arma para a população no país que já é o campeão mundial em mortes por bala? “Ponto final em todos os ativismos no Brasil”, i.e., mais violência contra mulheres, negros, LGBTs? Destruição das florestas, extinção das reservas indígenas? Execuções sumárias pela polícia? Murundu na política externa só para lamber as botas do Trump?

Os mesmos jedis da racionalidade que “torcem pelo Brasil” costumam reduzir tudo à economia, como se o nosso grau de desenvolvimento pudesse ser medido em toneladas de soja e as pautas de “costumes” fossem perfumaria. Ora, “costume” não é dar um ou dois beijinhos. É uma questão de costume escravizar ou não escravizar seres humanos. Uma mulher morrer assassinada a cada duas horas é uma questão de costume. (Eis a tradição que se preserva com a cretinice do azul e do rosa). Desigualdade e injustiça: costume. O que separa a Noruega do Brasil não é a economia, o DNA, a providência divina: são os costumes.

Sinceramente, não sei para o que torcer. Parece-me que a tragédia dell’arte que ora se desenrola diante de nossos olhos não tem como “dar certo”.

*Antonio Prata é escritor e roteirista, autor de “Nu, de Botas”, e colunista do jornal Folha de S. Paulo.