Bolsonaro
Fux prepara resposta a ameaças de Bolsonaro e Braga Netto às eleições
Presidente descumpriu o acordo firmado com o presidente do STF e voltou a tensionar a relação com a Corte e o TSE em busca do voto impresso
Weslley Galzo, O Estado de S.Paulo
O presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Luiz Fux, deve usar o tradicional discurso de retomada dos julgamentos na Corte na segunda-feira, 2, após o recesso do Judiciário, para enviar recados ao Palácio do Planalto, diante das sucessivas ameaças à realização das eleições em 2022. Fux prepara uma resposta à tentativa de intimidação do ministro da Defesa, Walter Braga Netto. Como revelou o Estadão, o ministro mandou um interlocutor avisar aos Poderes que não haveria eleições de 2022 se não fosse aprovado o voto impresso.
O recado chegou para o presidente da Câmara, Arthur Lira (Progressistas-AL), que cobrou do presidente Jair Bolsonaro respeito ao processo democrático. Desde a semana passada, Fux vem sendo pressionado a se manifestar sobre as ameaças golpistas que agora também partem da Esplanada dos Ministérios. Segundo apurou o Estadão, o presidente do STF deve discursar em defesa da democracia, destacando que os Poderes não podem extrapolar o seu papel no Estado de Direito.
Em conversas reservadas, o ministro disse que avalia citar nominalmente as Forças Armadas e Braga Netto, que teriam gerado a crise política instalada a partir de acenos golpistas. Há, ainda, a possibilidade de que a declaração seja mais genérica, evitando despertar animosidade no meio militar, mas que, mesmo assim, cumpra o papel de sinalizar aos outros Poderes e à caserna o comprometimento do Supremo com a estabilidade democrática.
A crise entre o Supremo e o Planalto ganhou fôlego depois que ministros da Corte se reuniram com dirigentes de partidos para reverter a tendência de aprovação do voto impresso pelo Congresso. Após a ameaça de Braga Netto, houve reação pública de três magistrados — Gilmar Mendes, Edson Fachin e Luís Roberto Barroso –, e se chegou a considerar uma nota conjunta a respeito.
Vice-presidente do TSE, Fachin declarou, momentos após a publicação da reportagem do Estadão, que “o sistema eleitoral do País encontra-se desafiado pela retórica flagiciosa, perversa, do populismo autoritário”. Nesta quinta-feira, 29, Barroso fez duras críticas à proposta de adoção do voto impresso como mecanismo adicional de auditagem das urnas eletrônicas. “O discurso de que se eu perder houve fraude, é um discurso de quem não aceita a democracia”, afirmou. A manifestação de Barroso foi feita no mesmo dia em que Bolsonaro prometeu apresentar provas de que as eleições de 2014 e 2018 foram manipuladas. O presidente queria dizer que as do ano que vem também serão. Em transmissão ao vivo nas redes sociais, porém, acabou admitindo não ter provas, mas apenas “indícios”.
Em cerca de duas horas de live, retransmitida pela TV Brasil, ele usou uma série de alegações falsas para contestar a segurança da urna eletrônica, além de repetir ataques ao TSE e ao ministro Barroso, presidente da Corte eleitoral. Durante o discurso de Bolsonaro, o TSE rebateu as acusações por meio de checagens enviadas à imprensa.
Reunião
O pronunciamento de Fux ocorrerá pouco após um novo episódio de conflito entre as instituições. O discurso na sessão inaugural, no entanto, não será o único ato do presidente do Supremo na tentativa de debelar a crise institucional instalada na Praça dos Três Poderes. Na próxima semana, Fux deve se encontrar com Bolsonaro e com os presidentes da Câmara e do Senado, Arthur Lira (Progressistas-AL) e Rodrigo Pacheco (DEM-MG).
O encontro deveria ter ocorrido no último dia 14, mas foi desmarcado porque Bolsonaro precisou ser submetido a tratamento médico de emergência em São Paulo. Naquele momento, o presidente do STF tentava reunir as lideranças para remediar a crise política entre os Poderes causada, sobretudo, pela atitude beligerante de Bolsonaro em relação à adoção do voto impresso.
No dia 12 deste mês, pouco antes da data prevista para a realização do encontro de líderes, Fux chamou Bolsonaro ao Supremo para selar um acordo de paz. Na ocasião, o magistrado pediu ao presidente que ‘respeitasse os limites da Constituição’. Em resposta, o político teria se comprometido a moderar os ataques aos ministros do STF e do TSE. Esse encontro ocorreu depois que Lira avisou Bolsonaro que não compactuaria com atitudes golpistas, como revelou o Estadão.
A promessa, no entanto, caiu por terra pouco tempo depois da conversa com Fux. No último sábado, 24, Bolsonaro voltou a questionar a lisura do sistema eleitoral brasileiro e a defender o voto impresso. "Na quinta-feira (29) vou demonstrar em três momentos a inconsistência das urnas, para ser educado. Não dá para termos eleições como está aí", disse a apoiadores em frente ao Palácio da Alvorada. Ele ainda afirmou que o povo não aceitaria o pleito sem a possibilidade de imprimir o comprovante do voto.
Horas antes da live prometida, Bolsonaro voltou a atacar o Supremo. Dessa vez, o tensionamento da relação com a mais alta corte do Judiciário ocorreu devido ao vídeo publicado ontem pela Secretaria de Comunicação do STF.
Na peça publicitária que integra a campanha “#VerdadesdoSTF”, é desmentida mais uma vez a versão reproduzida reiteradamente pelo presidente e por aliados do Planalto de que o tribunal teria proibido o governo federal de agir no enfrentamento à pandemia de covid-19.
Parafraseando a famosa frase de Joseph Goebbels, ministro da Propaganda do regime nazista de Adolf Hitler, o Supremo dizia no texto de divulgação do vídeo em resposta a Bolsonaro que “uma mentira contada mil vezes não vira verdade”.
Na manhã desta quinta-feira, 29, o presidente respondeu e subiu o tom em conversa com apoiadores em frente ao Alvorada: “O Supremo cometeu crime ao dizer que prefeitos e governadores podem suprimir direitos”. A afirmação desinformativa foi seguida pela declaração também inverídica e recorrente de que o tribunal o impediu de atuar. “Prefeitos e governadores tinham mais poder do que eu”, disse. Em sua conta oficial no Twitter, Bolsonaro escreveu que o Supremo “delegou poderes para que Estados e municípios” agissem no enfrentamento da doença.
A decisão por unanimidade no plenário da Corte apenas definiu a possibilidade de concorrência entre as instâncias do Executivo na adoção de medidas preventivas à doença. O voto do ministro Edson Fachin, por exemplo, avaliou que a concentração das decisões na figura do presidente da República, sem contrapartida aos prefeitos e governadores, viola a separação dos Poderes.
Em uma medida cautelar que referendou a decisão do Supremo, o ministro Alexandre de Moraes declarou que não cabe ao Executivo tomar qualquer iniciativa “que vise a desautorizar medidas sanitárias adotadas pelos Estados e municípios com o propósito de intensificar ou ajustar o nível de proteção sanitária”. Apesar de não poder evadir a competência de prefeitos e governadores, a decisão não retira os poderes do governo federal “de atuar como ente central no planejamento e coordenação de ações integradas de saúde pública, em especial de segurança sanitária e epidemiológica no enfrentamento à pandemia da Covid-19”, como cabe em suas atribuições.
Uma trégua, se houver, será apenas institucional. Na agenda do tribunal encontram-se pautas importantes, que dizem respeito inclusive a Bolsonaro, como o julgamento previsto para setembro que definirá se o presidente prestará depoimento no inquérito que apura se ele tentou interferir indevidamente nas atividades da Polícia Federal. Em novembro, os ministros votam a criação do juiz de garantias nos processos judiciais do País.
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Fonte:
O Estado de S. Paulo
https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,fux-prepara-resposta-a-ameacas-de-bolsonaro-e-braga-netto-as-eleicoes-e-quer-reuniao-entre-poderes,70003794730
Após 3 anos falando em fraude eleitoral, Bolsonaro assume não ter provas
Presidente muda discurso, admite que 'não tem como provar' e divulga conjunto de relatos já desmentidos
Ricardo Della Coletta e Renato Machado, da Folha de S. Paulo
Após três anos denunciando supostas fraudes nas eleições brasileiras, o presidente Jair Bolsonaro realizou uma live nas redes sociais nesta quinta-feira (29) para apresentar o que ele chama de provas das suas alegações, mas trouxe até as 20h apenas teorias que circulam há anos na internet e que já foram desmentidas anteriormente.
Ao longo de sua fala, Bolsonaro mudou o discurso e admitiu que não pode comprovar se as eleições foram ou não fraudadas.
"Não tem como se comprovar que as eleições não foram ou foram fraudadas. São indícios. Crime se desvenda como vários indícios”, declarou.
Durante a apresentação, que começou às 19h e continuava por volta das 20h, foram veiculados vídeos divulgados na internet que buscam transmitir a mensagem de que é possível fraudar o código fonte para computar o voto de um candidato para o outro.
Os vídeos utilizam uma linguagem bem didática, com desenhos animados, para deixar a mensagem facilmente assimilável.
O TSE, reportagens jornalísticas e checadores já mostraram, diversas vezes, que esses esse tipo de fraude não é possível e que os vídeos que circulam na internet não indicam qualquer tipo de irregularidade ou que alguma urna tenha sido corrompida.
A apresentação ocorreu em transmissão no Palácio da Alvorada na noite desta quinta-feira (29).
Estavam presentes na residência oficial da Presidência os ministros Luiz Eduardo Ramos (Secretaria-Geral da Presidência), Anderson Torres (Justiça), Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional), além do senador Flávio Bolsonaro (Patriota-RJ).
O responsável pela exibição dos indícios foi um homem identificado apenas como Eduardo, que, segundo Bolsonaro, é analista de inteligência.
O presidente abriu o evento com um discurso de cerca de 40 minutos, sem abordar especificamente as provas que havia prometido. Tratou de remédios sem eficácia comprovada para o tratamento da Covid-19, novamente criticou governadores e prefeitos que promoveram isolamento social e mencionou políticas de seu governo
Bolsonaro também criticou, por diversas vezes, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, seu provável adversário no pleito de 2022. De acordo com a última pesquisa do Datafolha, o petista venceria Bolsonaro no segundo turno por 58% a 31% das intenções de voto.
O presidente também atacou o presidente do TSE (Tribunal Superior Eleitoral), ministro Luís Roberto Barroso, e defendendo a sua tese do voto impresso —chamado por Bolsonaro de “auditável” e democrático.
"Por que o presidente do TSE quer manter suspeição das eleições? Quem ele é? Por que ele fica interferindo por aí, com que poder? Não quero acusá-lo de nada, mas algo muito esquisito acontece", disse Bolsonaro
"Onde quer chegar esse homem que atualmente preside o TSE? Quer a inquietação do povo? Quer que movimentos surjam no futuro que não condizem com a democracia?"
Bolsonaro afirmou ainda, erroneamente, que a contagem dos votos seria feita em uma sala escura no TSE pelo mesmo homem que determinou a soltura do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
O presidente então repetiu a mentira de que a contagem das eleições hoje seria secreta e de que quer uma apuração pública, algo que não faz sentido, pois atualmente o processo de totalização dos votos já pode ser auditado, inclusive com um registro impresso, que é o boletim da urna.
Os boletins de urna são distribuídos aos partidos políticos e afixados nos locais de votação em cada seção eleitoral. A impressão e publicidade dada aos boletins de urna impressos às 17h em cada seção eleitoral garantem a auditoria e impedem fraudes na totalização, pois uma diferença entre os números impressos e os totais podem ser identificados.
A proposta do voto impresso em debate no Congresso e defendida por Bolsonaro não provocaria alterações na contagem dos votos.
Embora tenha prometido provas, em determinado momento da transmissão, o presidente transferiu para a responsabilidade de mostrar fatos concretos a quem defende o sistema.
"Será que esse modo de se fazer eleições é seguro, é blindado? Os que me acusam de não apresentar provas, eu devolvo a acusação. Me apresente provas [de que] não é fraudável", desafiou.
Como indícios de fraude, Bolsonaro exibiu vídeos de analistas e jornalistas acompanhando a apuração do primeiro turno de 2018.
Naquele pleito, Bolsonaro chegou a marcar 49% dos votos quando as parciais começaram a ser divulgadas. A primeira divulgação de resultados parciais, um pouco depois das 19h, realmente mostrava Bolsonaro com 49,02% dos votos, e um total de 53,49% das urnas apuradas.
Naquele momento o status da apuração por região divulgado pela televisão e mostrado na live de Bolsonaro era o seguinte: Norte (48,02%), Nordeste (43,93%), Centro-Oeste (73,51%), Sudeste (10,99%) e Sul (85,38%).
Ele aponta que o fato de o Nordeste estar mais adiantado e o Sudeste mais atrasado seria indício de fraude. No entanto, nada disso faz sentido. Se houvesse alguma adulteração dos resultados durante a apuração, como o vídeo indica, isso poderia ser comprovado por meio de auditoria com os boletins de urna.
A variação das porcentagens ao longo da apuração depende tão somente da ordem em que as urnas são apuradas. O resultado das seções eleitorais são transmitidos ao TSE por meio de uma rede exclusiva da Justiça Eleitoral, o que impediria, qualquer tentativa de interceptação por hackers.
Isso porque, com uma fraude, os resultados impressos nos boletins não corresponderiam aos totais apresentados pelo TSE como resultados finais. Os boletins são impressos quando as urnas eletrônicas são encerradas. Ou seja, nas seções eleitorais os resultados já são conhecidos e estão registrados em papel, o que ocorre depois disso é a transmissão dos resultados e a totalização.
Fonte:
Leão sem dentes contra o fundo eleitoral
Malu Gaspar / O Globo
Já virou padrão: toda vez que é pego em contradição com o que ele mesmo defendia em 2018, Jair Bolsonaro diz que não teve escolha. Do contrário, “viriam para cima” dele. Foi o argumento que o presidente da República tirou da cartola ao explicar a seus seguidores, no cercadinho do Alvorada, o recuo sobre o fundo eleitoral de 2022, aprovado pelo Congresso há duas semanas — que pode chegar a R$ 5,7 bilhões.
Depois de reagir indignado ao valor, que classificou como “enorme”, uma “casca de banana”, uma “jabuticaba”, Bolsonaro surgiu nesta segunda-feira no cercadinho bem mais manso e circunspecto. “Vou deixar claro (sic) uma coisa: vai ser vetado o excesso do que a lei garante, tá? É de quase 4 bilhões o fundo. O extra de 2 bilhões vai ser vetado. Se eu vetar o que está na lei, eu tô incurso na lei de responsabilidade.”
Todo mundo sabe que o presidente é pródigo em espalhar desinformação, mas essa aí constaria fácil numa coletânea de melhores momentos. Primeiro porque, hoje, não há nenhuma lei dizendo que o fundo eleitoral para 2022 tem de ser de R$ 4 bilhões.
Nos últimos dias, consultei especialistas em legislação eleitoral e deputados de vários partidos. Não encontrei ninguém que soubesse apontar de que lei o presidente Bolsonaro está falando. Portanto, se não há lei, evidentemente não há excesso de R$ 2 bilhões.
Segundo os limites estabelecidos pelas fórmulas em vigor hoje, o valor obrigatório para o fundo eleitoral é de R$ 800 milhões (reembolso estatal às redes de TV pelo horário eleitoral), mais uma porcentagem do total destinado às emendas de bancada, decidida a cada ano eleitoral.
No último dia 15, os parlamentares decidiram que a fatia das emendas a ser destinada ao fundo eleitoral de 2022 deverá corresponder a 25% do orçamento de dois anos da Justiça Eleitoral. Somando o reembolso das TVs com essa cota, mais correção pela inflação, chega-se a R$ 5,7 bilhões para 2022. Em 2020, o total foi de R$ 2 bilhões.
Sejam esses critérios casca de banana, jabuticaba ou pequi roído, eles foram aprovados com a participação e o aval de todos os líderes do governo no Congresso.
Apesar do que disse no Alvorada, o que Bolsonaro tenta agora, nos bastidores, é encontrar uma maneira de vetar essa forma de cálculo, mantendo sua narrativa, e de, ainda assim, contentar os parlamentares com um fundo eleitoral de R$ 4 bilhões. É disso que se trata.
Se quisesse, o presidente poderia fazer isso de modo transparente, liderando um debate adulto com a sociedade brasileira sobre de onde deve vir o dinheiro que financia as campanhas, quanto os cidadãos estão dispostos a pagar em forma de impostos e quanto aceitam que venha de outras fontes, como empresas e pessoas físicas.
Num momento de tantos ataques à democracia, em que o próprio presidente da República dissemina desconfianças sobre a lisura do processo eleitoral, uma discussão aberta, civilizada e consequente sobre financiamento de campanha seria muito bem-vinda.
Mas é claro que Bolsonaro não está interessado em nada disso. Seu único objetivo é continuar fingindo que o país é um grande cercadinho onde ele pode disseminar suas confusões nada aleatórias, enquanto tenta garantir sua sobrevivência política.
É só por isso que, às claras, ele insiste em dizer que as urnas eletrônicas não são confiáveis, mesmo sem apresentar prova alguma — mas, por debaixo dos panos, avaliza acordos que multiplicam o orçamento dessas mesmas eleições, elevando o fundo eleitoral a valores recordes.
A verdade que nem mesmo o cercadinho é capaz de esconder é que, depois de passar os primeiros meses de mandato enchendo a boca para dizer “sou eu que mando, o presidente sou eu”, Bolsonaro gasta cada vez mais tempo justificando decisões impopulares com o “se eu não fizer, vão vir para cima de mim”.
Tudo o que ele tem para brandir a seus seguidores é o mito do herói ameaçado pelos inimigos. Na segunda-feira, ele encerrou a explicação sobre o fundo eleitoral com o apelo: “Espero não apanhar do pessoal aí, como sempre, né? Porque, se começar a bater muito, vai ter de escolher no segundo turno Lula ou Ciro”.
Por enquanto, esse tipo de ameaça ainda funciona para uma parcela dos eleitores. Mas nenhum fingimento dura para sempre. Quanto mais o tempo passa, mais fica claro que o mandatário que hoje se expõe ao cercadinho é um leão sem dentes, domesticado pelos profissionais — da política, do lobby, dos negócios.
Nesse contexto, o “excesso” do fundo eleitoral é só um detalhe.
Dualidade de políticas marca comunicação do governo Bolsonaro nas redes sociais
Goebbels dizia que uma mentira repetida mil vezes vira verdade, o que parece ser uma máxima da política de comunicação de Bolsonaro nas redes sociais
Luiz Carlos Azedo / Nas Entrelinhas / Correio Braziliense
Um episódio emblemático demonstra que o governo Bolsonaro passará a ter duas políticas, que podem se antagonizar no decorrer do processo. No mesmo dia em que o novo ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira (PP-PI), sentava na cadeira de ministro, a Secretaria de Comunicação da Presidência divulgou nas redes sociais uma mensagem comemorativa do Dia do Agricultor, com uma foto de um homem armado com um rifle, em vez das tradicionais imagens de agricultores exibindo as mãos calejadas, suas ferramentas de trabalho ou mesmo um trator. Diante da repercussão negativa, a nota foi substituída por uma tabela com indicadores de invasões de terra. Para bom entendedor, foi um recado subliminar de que a paz no campo seria obtida fazendo justiça pelas próprias mãos.
Sabe-se que Bolsonaro governa com um grupo de generais de sua confiança — Luiz Ramos, transferido para a Secretaria-Geral da Presidência; Augusto Heleno, ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI); e o general Braga Netto, ministro da Defesa — e o clã formado com os filhos Flávio (senador), Eduardo (deputado federal) e Carlos (vereador), o verdadeiro responsável pela política de comunicação do governo e operador das redes sociais de Bolsonaro. Foi dele, provavelmente, a ideia de publicar a foto. Como em outros momentos do governo, toda vez que Bolsonaro se afasta da narrativa de sua campanha eleitoral, como agora, ao empoderar o Centrão no Palácio do Planalto, logo surge alguma coisa que sinaliza para a base bolsonarista que o presidente não abandonou seus compromissos de extrema-direita.
Político profissional habilidoso, Ciro Nogueira não é ingênuo e sabe muito bem o que vai enfrentar na Casa Civil para mudar o eixo de atuação do governo. Trata-se de abandonar a radicalização e o confronto com os demais Poderes e optar por uma política de formação de maioria no Congresso e reaproximação com os eleitores que se afastaram de Bolsonaro, por causa do seu radicalismo e do mau desempenho do governo. Sua presença na Casa Civil não terá nenhum sentido se tudo continuar como antes. Bolsonaro até tentou retroceder do convite, mas não lhe foi possível, porque seria uma desfeita com Nogueira e o PP oferecer-lhe outra pasta de menor importância. Políticos profissionais não são como generais que aceitam ordem unida, tudo tem algum tipo de barganha.
O novo ministro da Casa Civil, porém, precisa fazer uma demonstração de força política. Até agora, seu maior trunfo é o apoio do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL). A oportunidade para isso será a cerimônia de posse no cargo, prevista para o próximo dia 3, à qual pretende convidar os velhos caciques do PP remanescentes da antiga Arena e do PDS, como Delfim Neto e Francisco Dorneles, e seus aliados dos demais partidos do Centrão. Nos bastidores no Senado, o Palácio do Planalto tenta se reaproximar da maioria da bancada do MDB, que tem dois líderes de governo, o do Senado, Fernando Bezerra (PE), e o do Congresso, Eduardo Gomes (TO). A ideia é forçar uma reunião para desautorizar o líder, Eduardo Braga (AM), e o relator da CPI da Covid, senador Renan Calheiros (AL). Não é da tradição da legenda confrontos dessa ordem, porque o MDB é uma confederação de caciques regionais, que convivem na divergência, uns na oposição e outros na base do governo.
Verdades e mentiras
A maior demonstração de que há uma dualidade de políticas no Palácio do Planalto foi dada pelo próprio presidente Bolsonaro, que voltou a responsabilizar o Supremo Tribunal Federal (STF) pela desastrosa atuação do Ministério da Saúde, ao afirmar que uma decisão da Corte impediu que o governo combatesse a pandemia. A resposta do STF foi inédita e pelas redes sociais, o que assinala uma mudança de postura.
Seu presidente, ministro Luiz Fux, mandou divulgar um vídeo no qual parafraseou o chefe de propaganda do regime nazista de Adolf Hitler, Joseph Goebbels: “Uma mentira repetida mil vezes vira verdade? Não. É falso que o Supremo tenha tirado poderes do presidente da República de atuar na pandemia. É verdadeiro que o STF decidiu que União, estados e prefeituras tinham que atuar juntos, com medidas para proteger a população. Não espalhe fake news! Compartilhe as #Verdades-doSTF”. Goebbels dizia que uma mentira repetida mil vezes vira verdade, o que parece ser uma máxima da política de comunicação de Bolsonaro nas redes sociais.
Bolsonaro terceira via é cálculo político frio, brutal e cínico, mas arriscadíssimo
O Centrão tem a chave do cofre, do palácio e do destino de um candidato
William Waack / O Estado de S. Paulo
A terceira via está aí: é Bolsonaro como candidato do Centrão. Os caciques dessa massa amorfa fisiológica, oportunista e que vive (desde sempre) mamando nas tetas do Estado jamais tiveram tanto poder. Possuíam a chave do cofre desde as emendas do relator. Agora obtiveram também a chave do palácio e um nome no qual parte importante dos caciques partidários confia para manter o atual continuísmo.
Bolsonaro vai continuar vociferando impropriedades, estupidezes e bravatas para manter seu núcleo duro de apoio (que diminuiu consideravelmente nos últimos dois anos). É da natureza dele e fútil esperar qualquer alteração – no máximo uma moderação de estilo dependendo do momento de maior ou menor desequilíbrio pessoal. Trata-se de um irrecuperável personagem político.
Para o Centrão não é Lula que surge como peso “contrário” a ser oferecido contra Bolsonaro. Mas, sim, um Bolsonaro domado, controlado e dedicado a atender as plateias do clientelismo por meio do qual sobrevive o Centrão (entendido como as forças políticas sempre próximas aos cofres e máquinas públicas). Em outras palavras, a alternativa entre o Bolsonaro que se conhece e o Lula que se conhece é o Bolsonaro do Centrão.
As principais agendas de Bolsonaro – se é que existiram de forma articulada – foram diluídas em pontos de interesse do Centrão. Uma das mais destacadas, a política econômica de Guedes, que os mercados já não ouvem (foi substituído pelo presidente do Banco Central), tem como eixo central hoje montar programas assistenciais e emergenciais que atendem ,obviamente, a necessidades humanitárias – mas de natureza claramente eleitoreira.
Com o Centrão agora dono do palácio via Casa Civil, completou-se a eliminação das três âncoras de Bolsonaro do começo do mandato – anticorrupção, agenda econômica “liberal” e eficiência administrativa e sentido estratégico através de oficiais-generais das Forças Armadas. É importante notar que Bolsonaro contribuiu ele mesmo para derrotar, dissolver e desmoralizar o que teriam sido “núcleos” de direção, e o Centrão está aí para demonstrar, mais uma vez, que não existem vácuos de poder em política.
A bem-sucedida operação do Centrão em tomar espaço dos militares é relevante também por evidenciar o blefe bolsonarista ao flertar com golpe contra o STF e o TSE, assumindo que o “mito” teria apoio de instâncias como o Alto Comando do Exército. Em conversas entre si, mas também com interlocutores de fora da instituição, oficiais em posições de comando referem-se a Bolsonaro com desprezo intelectual, repulsa pessoal e não enxergam qualquer espaço para um golpe – embora também reiterem fortíssimas críticas aos integrantes do STF e ao desequilíbrio entre os poderes, deformação atribuída por eles ao Judiciário.
Há entre os principais comandantes uma noção difusa, mas que está ganhando corpo, no sentido de reconhecer que o envolvimento em política teria começado de forma meramente “pontual” (como bloquear ações do STF em favor de Lula em 2018), mas, sob Bolsonaro, chegou ao ponto do intolerável. Eles também (os comandantes) se ressentem da ausência de “lideranças” entre seus quadros, uma qualidade que não reconhecem na figura do general Braga Netto, o ministro da Defesa e seu “chefe” direto.
No episódio da bravata de Braga Netto sobre impedir eleições, “note que ele falou sozinho e, embora acompanhado dos três comandantes militares, eles nada disseram”, ressalta um oficial que detém comando relevante. Seja como for, outro “sentimento” (ainda difuso) entre o generalato é o de que está chegando a hora de “lavar as mãos”, e considera-se vantajosa nesse sentido a oportunidade oferecida pelo Centrão ao apadrinhar Bolsonaro. “É ridículo general distribuindo verba para deputado fisiológico”, arrematou a mesma fonte.
Até aqui Bolsonaro desmentiu todos os cálculos políticos que apontavam para o que seria “racionalmente” mais vantajoso para ele – nem governou, nem juntou os elementos decisivos para qualquer tipo de golpe. Ou seja, é o maior inimigo de si mesmo. Deve-se reconhecer que os profissionais da política no Centrão são mestres em sobrevivência e a aposta em Bolsonaro terceira via resulta de cálculo político frio, brutal e cínico. Mas é arriscadíssima.
'Confio na Justiça Eleitoral, confio no sistema', diz Arthur Lira
Presidente da Câmara dos Deputados defende manutenção do calendário eleitoral
Raphael Di Cunto / Valor Econômico
BRASÍLIA - O presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), afirmou ontem que é completamente comprometido com a democracia no país e que o ministro da Defesa, Walter Braga Netto, já desmentiu qualquer ameaça à realização das eleições em 2022 se não for aprovada a proposta de emenda constitucional (PEC) do voto impresso.
“[Eu] Não precisava ser claro [ao negar o caso nas redes sociais] porque o próprio ministro, em nota oficial, desmentiu o acontecido. Eu não participei da conversa”, disse Lira, em entrevista à GloboNews. “O ministro deixou claro que não fez e, naquele momento, a mim, de maneira muito coerente, não cabia tocar fogo num momento de recesso. Cabe, sim, tratar do que interessa: teremos sempre a eleição como forma de escolher nossos dirigentes no Brasil”, reforçou.
O jornal “O Estado de S. Paulo” publicou na semana passada que um presidente de partido levou a Lira, no começo de julho, uma ameaça feita pelo ministro da Defesa, ao lado dos comandantes das Forças Armadas, de que não ocorreriam eleições em 2022 se a PEC que exige a impressão de um comprovante do voto para futura auditagem não fosse aprovada pelo Congresso. Braga Netto negou em nota a ameaça e disse que não se comunica com presidentes dos Poderes através de intermediários, mas defendeu o debate “legítimo” sobre a PEC. Lira respondeu a matéria nas redes sociais e não negou que tenha ouvido a ameaça, mas defendeu que o julgamento dos eleitores sobre os políticos ocorrerá nas urnas.
Ontem o presidente da Câmara não fez comentários específicos sobre a defesa de Braga Netto do voto impresso, mas, em outro trecho da entrevista, quando comentava sobre a reforma eleitoral e dizia que não influenciaria na decisão dos deputados sobre o tema, o presidente da Câmara afirmou que “muitas pessoas opinam muito sem poder opinar porque deveriam se restringir ao seu mister constitucional”.
“Não entro nessa briga de dizer que o sistema não é confiável, mas, por confiável que seja, não vejo nenhum problema em ter regras de auditagem se parte da população e dos parlamentares pede esse debate”, afirmou Lira. “Mas repito: confio na Justiça Eleitoral, confio no sistema pelo qual fui eleito oito vezes.”
A votação da PEC deve ocorrer na comissão especial no dia 5 de agosto e a tendência é pela rejeição após presidentes de 11 partidos se reunirem com ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) e defenderem a confiabilidade das urnas eletrônicas. Aliados do presidente Jair Bolsonaro marcaram manifestações no dia 1º de agosto a favor da PEC. Lira disse ontem que os partidos decidirão democraticamente e que, independentemente do resultado, “ocorrerão eleições em outubro de 2022, de 2024 e 2026”.
Ele afirmou que a nomeação do presidente do PP, senador Ciro Nogueira (PI), para ministro-chefe da Casa Civil “demonstra que o caminho” escolhido por Bolsonaro “é o do diálogo e não há nenhum risco à democracia”. Na opinião dele, o aliado conseguirá melhorar a articulação política do governo com o Congresso, o Judiciário e até internamente, com “mais firmeza nas proposições em que o governo tem que demonstrar unidade” e uma negociação mais efetiva no Senado.
O presidente da Câmara voltou a defender que não há condições políticas e sociais para abertura de processo de impeachment contra Bolsonaro e afirmou que as propostas da oposição que repassam ao plenário o poder de decidir sobre a instauração do processo são “casuísmo”. “Casuísmo é isso, é ficar discutindo situação de querer mudar uma regra quando já existe e persiste há vários anos”, afirmou, citando que presidentes da Câmara do PT e do PSDB seguraram processos contra seus governos.
Segundo Lira, a Câmara começará a analisar na primeira semana de agosto os projetos de reforma do Imposto de Renda, privatização dos Correios e reforma eleitoral. Se a PEC que muda o sistema de eleição para deputado for rejeitada, serão votados projetos para valorizar o voto em mulheres e reservar vagas para elas no Legislativo.
Barroso: ‘Discurso de que se eu perder houve fraude é de quem não aceita a democracia’
Presidente do Tribunal Superior Eleitoral criticou proposta de adoção do voto impresso durante evento no Acre
Weslley Galzo / Blog Fausto Macedo / O Estado de S. Paulo
O presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Luís Roberto Barroso, discursou na manhã desta quinta-feira, 29, no evento de inauguração da nova sede do Tribunal Regional Eleitoral do Acre (TRE-AC). O magistrado, que foi homenageado na cerimônia, fez duras críticas à proposta de adoção do voto impresso como mecanismo adicional de auditagem das urnas eletrônicas. As falas ocorrem no mesmo dia em que o presidente Jair Bolsonaro prometeu fornecer as provas de que as eleições de 2014 e 2018 foram fraudadas. Ao falar na celebração, Barroso afirmou que “o discurso de que se eu perder houve fraude, é um discurso de quem não aceita a democracia”.
‘’Este é um sistema que consagra a democracia, porque uma das características da democracia é a alternância de poder. É reconhecer a possibilidade que o outro que pense diferente de mim possa ganhar. É isso que é a democracia. Portanto, o discurso de que se eu perder houve fraude, é um discurso de quem não aceita a democracia”, afirmou. O presidente do TSE mencionou que as urnas eletrônicas elegeram tanto Jair Bolsonaro, quanto Fernando Henrique Cardoso, Luís Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, garantindo que diferentes espectros ideológicos governassem o País.
Sem mencionar nominalmente o presidente Jair Bolsonaro, principal defensor da impressão de comprovantes do voto, Barroso afirmou que “uma causa que precise de ódio, mentira, desinformação, agressividade e grosseria não pode ser uma causa boa”. O magistrado se tornou um dos alvos preferenciais dos ataques do político na tentativa de viabilizar o voto impresso.
No dia 9 deste mês, em conversa com apoiadores em frente ao Palácio do Alvorada, Bolsonaro chamou o presidente do TSE de “imbecil’ e “idiota”. Ele também ameaçou a realização das eleições no ano que vem caso o Congresso Nacional rejeite a Proposta de Emenda à Constituição, da deputada bolsonarista Bia Kicis (PSL-DF), que pretende incluir impressoras nas urnas eletrônicas.
“Eu não me distraio com miudezas, eu vivo para fazer o que é certo, justo é legítimo, sem ser o dono da verdade, porque numa democracia não tem donos da verdade. A democracia é o regime em que há muitas verdades possíveis, mas a mentira deliberada tem dono é essa precisa ser adequadamente denunciada”, disse Barroso em seu discurso. “Os países, assim como as pessoas, passam pelo que tem que passar para se aprimorarem e amuderecerem”.
O presidente do TSE elencou os pontos que, segundo ele, desabonam o projeto do voto impresso: a logística de transporte e armazenamento dos votos, o forte esquema de segurança necessário para garantir a lisura do processo eleitoral, a possibilidade de retorno de fraudes com o manuseio das cédulas e a eventual contestação judicial das apurações.
Fonte:
O Estado de S. Paulo
https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/projeto-que-precise-de-odio-e-desinformacao-nao-pode-ser-uma-causa-boa-diz-barroso-sobre-voto-impresso/
Eleições no Brasil acumulam polêmicas e suspeitas de fraudes antes da urna eletrônica
Casos emblemáticos no Rio de Janeiro e em Alagoas envolveram cédulas de papel fraudadas e apuração irregular
Se as votações realizadas com urnas eletrônicas não possuem nenhuma comprovação de fraude desde que essa tecnologia passou a ser utilizada, há 25 anos, os pleitos anteriores acumulam polêmicas e suspeitas de fraudes em casos que remontam ao início da República no Brasil, em 1889.
Uma das situações emblemáticas ocorreu no Rio de Janeiro, na eleição de 1994, quando, após denúncias de fraudes, o TSE (Tribunal Superior Eleitoral) pediu auxílio do Exército para fiscalizar a apuração de zonas eleitorais.
Na época, segundo reportagem da Folha, uma facção criminosa chegou a ameaçar de morte Luiz Fux, então juiz eleitoral e hoje presidente do STF (Supremo Tribunal Federal).
Por decisão unânime, os sete juízes do TRE-RJ (Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro) decidiram anular as eleições no estado para deputados federais e estaduais e convocar novo pleito para novembro do mesmo ano.
A Polícia Federal indiciou cinco pessoas por formação de quadrilha, suspeitas de adulterar boletins eleitorais. Os votos de uma urna foram impugnados porque 45 votos apresentavam a mesma caligrafia.
Em 1996, porém, o TSE restabeleceu o resultado do primeiro pleito por entender que a maioria dos votos foi válida. Naquele mesmo ano, as urnas eletrônicas passaram a ser adotadas no país.
Nos últimos dias, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) reforçou seus ataques ao sistema eletrônico de votação e deu repetidas declarações golpistas de ameaças à realização das eleições de 2022 caso não seja implantado um modelo de voto impresso.
Embora argumente que as urnas eletrônicas seriam passíveis de fraude, Bolsonaro nunca apresentou provas —que vem prometendo há mais de um ano— para embasar a acusação.
Antes das urnas eletrônicas, entre os métodos citados para fraudar votações em papel estavam o depósito em branco de cédulas que poderiam, posteriormente, ser preenchidas de forma irregular; extravio de cédulas; e os boletins informativos das urnas que poderiam ser alterados após a apuração.
Outro caso que ficou famoso no país ocorreu em Alagoas. Após as eleições de 1990, o TRE do estado anulou os votos de 117 urnas de Maceió, apuradas pela 2ª Junta Eleitoral da capital alagoana. O tribunal também anulou os votos dos municípios de Campo Grande, Girau do Ponciano, Batalha, Jacaré dos Homens e Belo Monte.
A eleição suplementar ocorreu nesses locais no dia 16 de dezembro daquele ano e confirmou os nomes de Geraldo Bulhões (PSC) e Renan Calheiros (então no PRN) na disputa pelo Governo de Alagoas no segundo turno.
Em Maceió, as fraudes consistiram na transformação de votos brancos e nulos em votos válidos e na alteração dos boletins de apuração. No interior do estado, urnas chegaram aos locais de votação com votos previamente preenchidos, com caligrafias idênticas.
"A votação em cédula de papel era muitíssimo mais insegura", lembra João Fernando Lopes Carvalho, membro da Comissão de Direito Eleitoral da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) de São Paulo. Além de maiores possibilidades de fraude, ele afirma que existiam erros pertinentes ao próprio processo.
"O eleitor tinha que escrever na cédula para quem ele votava. Isso gerava uma dificuldade grande para identificar quem era o destinatário do voto. Às vezes o número de votos da urna não batia com o número de votos registrados em determinado local. É um processo bem mais complicado do que parece ficar contando cédula. E, às vezes, o apurador lançava o voto identificado de um candidato para outro concorrente."
Lopes Carvalho diz ainda que a apuração dos votos demorava um longo tempo. "Era um sofrimento. Se arrastava por dias, noites, as pessoas chegavam a passar mal no meio do processo de apuração. A eleição em papel é mais insegura do que a eleição eletrônica, sem dúvida nenhuma."
O especialista em direito eleitoral se recorda de atuar no caso de um deputado federal afetado por um episódio de mapismo, isto é, a inversão dos resultados lançados nos boletins de apuração. "Ele tinha uma votação constante em uma determinada cidade e, de repente, em algumas sessões ele deixava de ter votos e o candidato concorrente registrava votos iguais à média dele. Era uma coisa muito frequente no processo de apuração."
Em entrevista publicada pela Folha em novembro de 2020, o cientista político da UnB (Universidade de Brasília) David Fisher afirmou que o voto por meio de cédulas de papel “abre muito espaço para manipulação e falsificação”.
Como exemplo, ele citou sua experiência nas eleições de 1994 em São Paulo, quando atuou como observador da OEA (Organização dos Estados Americanos).
“Era complicado porque tinha que apurar votos para cargos majoritários e proporcionais. Teve uma mesária que foi ao banheiro quatro ou cinco vezes. O juiz desconfiou e mandou uma oficial ir atrás dela. A apuradora havia pego votos em branco sorrateiramente, colocado na calcinha e estava no banheiro preenchendo”, exemplificou.
“Naquela época, nas cidades menores, tinha o fenômeno que o cabo eleitoral guardava o título eleitoral dos eleitores e depois levava o eleitor para votar. Chegava lá, entregava o título e a chamada marmita [envelope com todas as cédulas de papel]”, contou Fisher.
Outro exemplo dado por ele é o de um juiz eleitoral que pediu a opinião dos fiscais para saber como contabilizar os votos. “Fernando Henrique Cardoso não era candidato, deveria ser voto nulo. Mas podia contar como voto partidário ao PSDB. Mesma coisa no caso do Lula e do Brizola: acabou contando como voto de legenda”, contou.
O próprio TSE admitiu que houve “várias denúncias de fraudes antes da adoção da urna eletrônica pela Justiça Eleitoral”.
Mas os problemas durante votações no Brasil já apareciam em eleições bem mais antigas. No período da República Velha, que vai da Proclamação em 1889 até a Revolução de 1930, os pleitos brasileiros foram marcados por irregularidades.
Prudente de Morais, eleito em 1894 como presidente da República, apoiava os candidatos indicados pelos governadores que, em troca, retribuíam o apoio. A ação dependia dos coronéis, grandes proprietários de terras que possuíam poder em relação aos eleitores, incentivavam que estes votassem nos candidatos indicados e fiscalizavam se as pessoas realmente votaram conforme determinado.
Nas eleições de março de 1930, Júlio Prestes venceu a disputa à Presidência. Entretanto existiram suspeitas de fraude. Nesta década, o país vivia um clima conturbado e a possibilidade de maniputação no pleito contribuiu para a eclosão de um conflito entre estados que culminou com a ascensão de Getúlio Vargas ao poder.
A partir de 1955, para tentar inibir fraudes, fixou-se o eleitor na mesma seção eleitoral. Outra alteração foi a adoção da cédula única de votação. Até então as cédulas eleitorais eram impressas e distribuídas pelos próprios candidatos.
Amigos de Israel se necessário, amigos do antissemitismo sempre que possível
A verdade é que, assim como o governo Bolsonaro, a AfD é prova de que é possível defender Israel e, ao mesmo tempo, ser absolutamente questionável em relação à postura diante do Holocausto e dos judeus, assim como tantas outras minorias
Rarael Kruchin e Sebastião Nascimento
Nos últimos dias, a sorridente recepção de Jair Bolsonaro, seu gabinete e deputados da base governista a Beatrix von Storch, representante do partido neonazista alemão AfD (Alternativa para a Alemanha), foi o “último suspiro” para aqueles que ainda achavam que Jair Bolsonaro e seus seguidores tinham qualquer apreço pelos judeus.
Mas não é de hoje que o governo Bolsonaro vem nos familiarizando com algo que se mostra cada vez mais comum nos círculos da extrema direita mundo afora: é possível defender simbolicamente Israel e, ao mesmo tempo, quando o assunto é a memória do Holocausto e as vidas e preocupações dos judeus de carne e osso, ter uma postura negacionista e próxima ao antissemitismo.
Observadores da política brasileira há muito destacam o uso sistemático de símbolos ligados ao Estado de Israel por parte do atual governo. Já durante a campanha eleitoral de 2018, a bandeira israelense tremulou em inúmeros comícios tanto do candidato à Presidência da República quanto de postulantes a cargos do Legislativo próximos a ele. E ainda tremula em manifestações pautadas pelo negacionismo da tragédia da pandemia e de ameaças renitentes ao processo democrático. O próprio Jair Bolsonaro e os chamados “bolsonaristas” têm utilizado estridentes declarações de um suposto apoio a Israel para se defenderem quando veem denunciada sua proximidade a ideias, figuras e expressões do nazifascismo europeu.
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Com a mesma profusão das bandeiras agitadas, avolumam-se os episódios de declarações de membros e aliados do governo que emulam, evocam ou aludem ao legado nazifascista. O Museu do Holocausto, em Curitiba, já se declarou estarrecido por não passar sequer uma semana sem que se veja obrigado a denunciar, reprovar ou repudiar um discurso antissemita, um símbolo nazista ou um ato supremacista.
Alguns desses momentos assustaram pela desfaçatez com que foram acolhidos e normalizados,
- como o slogan da campanha presidencial de 2018 (Brasil acima de tudo), paráfrase direta do slogan nazista Deutschland über alles;
- ou quando Ernesto Araújo em dezembro de 2018 afirmou que a cerimônia de posse de Bolsonaro representava o “triunfo da vontade” do povo, rigorosamente o mesmo slogan celebrizado no filme de propaganda nazista de 1934 Triumph des Willens, que retrata o grande comício de Nuremberg, considerada a cerimônia de entronização de Hitler como Führer da Grande Alemanha;
- ou a homenagem do Exército em julho de 2019 ao major nazista von Westernhagen;
- ou a difusão pela Secretaria de Comunicação Social da Presidência em maio de 2020 de uma versão local do infame bordão Arbeit macht frei,que adornava os portões de entrada de Auschwitz e de tantos outros campos nazistas de extermínio;
- ou quando, em janeiro deste ano, o vice-presidente Hamilton Mourão, após ter sido acusado de tramar para derrubar o presidente, renovou seu compromisso com Bolsonaro proclamando “minha honra está ligada à lealdade”, ligeira paráfrase do bordão hitlerista “Meine Ehre heißt Treue”, adotado como lema pela SS para se contrapor às hostes da SA acusadas de tramar contra a liderança do partido nazista.
Outros momentos, porém, assombraram o mundo, como o vídeo oficial de lançamento do Prêmio Nacional das Artes publicado em janeiro de 2020 pelo então secretário de cultura Roberto Alvim — no qual não só a estética nazista é celebrada como são solenemente reproduzidas passagens inteiras do discurso do ministro da propaganda nazista Joseph Goebbels — e mais recentemente a visita a Brasília de Beatrix von Storch, representante do partido alemão de extrema direita AfD, agremiação reconhecidamente racista e xenofóbica, que abriga grande número de destacadas figuras do neonazismo alemão e que é investigada em diversos processos pelo Estado alemão por conta de sua atuação para minar a ordem democrática do país.
Na Alemanha, provocações da extrema direita com o intuito de acolher ou normalizar o legado nazista e testar os limites da ordem constitucional democrática não foram recebidas com a mesma leniência que no Brasil. Vêm-se acumulando contra a AfD, desde sua fundação em 2013 e mais intensamente desde sua entrada no Parlamento Federal em 2017, investigações, processos e condenações judiciais, além de declarações formais de repúdio e chamados para o isolamento e o boicote ao partido da parte de todo o espectro da sociedade civil organizada na Alemanha. Praticamente todas as entidades representativas da comunidade judaica declararam formalmente a AfD como agrupamento antidemocrático, racista e antissemita, dedicado a reviver a ideologia nazista. Movimentos similares e com alcance igualmente amplo foram observados da parte das comunidades católicas, evangélicas e muçulmanas, das entidades atuantes na proteção de pessoas com necessidades especiais e psiquiatricamente vulneráveis, dos grupos de defesa da comunidade LGBTQIA+, das entidades representativas das comunidades sinti e roma e engajadas no combate ao anticiganismo, todos unidos na denúncia dos esforços do partido em promover a ideologia nazista e de sua incompatibilidade com o convívio numa sociedade plural e democrática.
Na Alemanha, nenhum outro partido no Parlamento Federal ou nos parlamentos estaduais admite negociar com a bancada da AfD, nenhuma figura pública alemã que preze a democracia e o humanismo se digna a ser fotografada ou sequer a apertar a mão de seus representantes. No Brasil, porém, foi com fraternos abraços e amplos sorrisos, que Beatrix von Storch e seu marido foram recebidos na semana passada pelo ministro da Ciência, Tecnologia e Inovação Marcos Pontes (que, diante da repercussão negativa, apressou-se em remover os registros do encontro), pelos deputados federais Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) e Bia Kicis (PSL-DF) e pelo próprio presidente.
Fora da Alemanha, são raríssimos os casos de autoridades de Estado que recebem representantes da AfD. Antes da calorosa recepção em Brasília, as poucas ocasiões em que seus emissários realizaram encontros oficiais com altos escalões governamentais mundo afora haviam sido ao visitar membros do regime genocida de Bashar al-Assad em Damasco em 2018 e 2019 e em viagens à Rússia em 2020 e 2021, no auge da reação internacional à repressão e eliminação física dos opositores, para demonstrar a prontidão que têm em emprestar seu apoio de duvidoso valor a regimes contestados e isolados.
Embora a AfD mobilize fortes e inegáveis elementos neonazistas, costuma também enaltecer Israel e o sionismo. Foi justamente essa a retórica que Bia Kicis utilizou para se defender das acusações de ter se encontrado com a representante de um partido racista, xenófobo e neonazista. Contrariando as críticas, ela disse que a AfD é, no fundo, um partido amigo de Israel. Mas a verdade é que, assim como o governo Bolsonaro, a AfD é prova de que é possível defender Israel e, ao mesmo tempo, ser absolutamente questionável em relação à postura diante do Holocausto e dos judeus, assim como tantas outras minorias. Até porque, a Israel que professam apoiar não condiz com a realidade local. Ao contrário, trata-se de uma construção quase ficcional, que ignora por completo a pluralidade e os elementos progressistas e seculares do Estado de Israel contemporâneo.
Uma pesquisa realizada em 2017, às vésperas da entrada da AfD no Parlamento Federal alemão, procurava avaliar o posicionamento dos candidatos mais viáveis de todos os partidos diante da relação entre Alemanha e Israel. Em todos os tópicos que diziam respeito à política israelense, a AfD se colocava como pró-Israel. Porém, quando o assunto era a situação dos cidadãos judeus na Alemanha, a migração, a responsabilidade alemã sobre o Holocausto e o imperativo da educação das novas gerações sobre o tema — tópicos estes que contavam com posição 100% favorável dos membros de todas as outras agremiações políticas —, ao chegar à AfD, esbarrava em uma posição dividida e ambígua. Ou seja, em meio a todo o espectro político-parlamentar alemão contemporâneo, há um só partido disposto a atentar contra um tema tão sensível na Alemanha, assumindo-se “reticente” em relação ao passado nazista, que foi o partido que o governo brasileiro abraçou.
É nesse sentido que os abraços trocados com Beatrix von Storch constituem o registro mais recente e palpável de que o suposto apoio a Israel, de ambos os lados, não representa apoio algum aos judeus ou à comunidade judaica. Isolados no cenário global, Storch e seu partido, tanto quanto Bolsonaro e seus seguidores, tentam se agarrar à simbologia de Israel como quem se agarra a uma bóia de salvação num abraço de afogados.
Rafael Kruchin é mestre em sociologia pela USP, coordenador executivo do Instituto Brasil-Israel e pesquisador colaborador do Centro de Estudos de Migrações Internacionais (CEMI) da Unicamp
Sebastião Nascimento é mestre em direito internacional pela USP, doutorando em ciências sociais pela Universität-Flensburg, na Alemanha, e pesquisador do CEMI-Unicamp
Ditaduras não começam com tanques nas ruas, mas com o estupro da linguagem
Eliane Brum / El País
“O que você acha? Vai ter golpe ou não?”. Esta é a pergunta recorrente, do sul ao norte do Brasil. Diferentes grupos têm marcado reuniões privadas pela Internet para debater o assunto. Encontros virtuais com a família, a versão pandêmica do famoso almoço de domingo, desde a eleição de 2014 mais perigoso do que um vidro inteiro de pimenta malagueta, foi tomado pelo tema. Eu mesma ouço essa pergunta várias vezes por dia. Há pessoas respondendo a convites internacionais com um texto padrão: “Atualmente, a média de mortes por covid-19 no Brasil é de mais de 1000 por dia, a variante Delta está se espalhando pelo país, a vacinação é lenta e Jair Bolsonaro pode dar um golpe a qualquer momento. Assim, torna-se difícil confirmar minha presença com tanta antecedência. O mais prudente seria confirmar o mais perto possível da data....”. Quando se torna corriqueiro falar sobre a possibilidade de um golpe de Estado e planejar os dias já incluindo essa “variável” é porque o golpe já está acontecendo —ou, em grande medida, já aconteceu. O golpe já está.
Já sabemos como morrem as democracias, é assunto exaustivamente esmiuçado nos últimos anos. Mas precisamos compreender melhor como nascem os golpes. A morte de uma e o nascimento do outro são parte da mesma gestação. Os golpes não acontecem mais como no século 20, ou não acontecem apenas como no século 20. Tenho trabalhado com o conceito de crise da palavra para analisar as duas primeiras décadas do século 21 no Brasil. Me parece claro que o estupro da linguagem é parte fundamental do método. Não apenas um capítulo do manual, mas uma estratégia que o atravessa inteiro.
Escrevo há mais de um ano que o golpe de Bolsonaro está em curso. O golpe de fundo começou antes de Bolsonaro assumir o poder no Brasil e se realiza e aprofunda a cada dia de Governo. Se o caso brasileiro é o mais explícito, a formulação atual dos golpes de Estado pode ser percebida em diferentes partes do globo, de Donald Trump, nos Estados Unidos, a Viktor Orbán, na Hungria. É importante perceber isso porque, se não o fizermos, não teremos como barrá-los.
No caso dos Estados Unidos, é verdade que, no último momento, as instituições, muito mais sólidas do que em qualquer outro país das Américas, mostraram-se capazes de impedir a tentativa de golpe de Trump. Mas também é verdade que, mesmo com Joe Biden no poder, o trumpismo cumpriu o objetivo de produzir um impacto profundo sobre a estrutura do país, impacto que segue ativo. Conseguiu, principalmente, produzir uma imagem, corrompendo a linguagem da democracia americana para sempre ao realizar o impensável, na cena da invasão do Capitólio. A porta agora está aberta.
No Brasil, o esgarçamento da linguagem é muito anterior à eleição de 2018, aquela que formalmente colocou a extrema direita no poder. É possível localizar pelo menos três momentos decisivos para o impeachment de Dilma Rousseff (PT), apontado por grande parte da esquerda como um golpe “branco” ou “não clássico”. Quando a presidenta é chamada de “vaca” e de “puta” em estádios de futebol, na Copa de 2014; quando, em 2015, um adesivo com sua imagem de pernas abertas se populariza nos tanques de combustível dos carros, de forma que a mangueira a penetre, simulando um estupro; e, finalmente, em 2016, durante a sessão que aprova a abertura do impeachment, em que Jair Bolsonaro, então deputado, dedica seu voto ao torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra, “o pavor de Dilma Rousseff”.
Ao evocar a tortura da presidenta durante a ditadura civil-militar (1964-1985), Bolsonaro a tortura mais uma vez, cometendo o crime (artigo 187 do Código Penal) de apologia à tortura, e conecta explicitamente os dois momentos históricos, o da ditadura e o do impeachment, expondo a ruptura democrática que os une. “Puta” e “vaca” na boca da massa espumando ódio (e também de algumas jornalistas), estuprada na traseira dos carros da classe média, torturada mais uma vez pelo elogio à sua tortura feito por Bolsonaro em pleno parlamento. Depois disso, qual seria a dificuldade de arrancar Rousseff do poder? Se tudo isso já tinha sido aceito como “normal”, qual seria o empecilho para aceitar o impeachment?
É isso que chamo de estupro, corrosão ou esgarçamento da linguagem. A preparação do golpe é primeiro um investimento nas subjetividades. Pela capacidade de viralização dos discursos nas redes sociais, assim como pela velocidade na produção e reprodução de imagens na Internet, a sociedade vai “aceitando” o inaceitável. Em seguida, passa a assimilá-lo —e finalmente a normalizá-lo e até mesmo a reproduzi-lo. Aquilo que até então era considerado regra básica de civilidade, fundamental para permitir a convivência, é convertido em “politicamente correto” —e o politicamente correto passa a ser maliciosamente tratado como “censura” ou “cerceamento da liberdade”. Quando o golpe formalmente se efetiva, o inaceitável já está aceito e internalizado.
O mesmo fenômeno permitiu a Bolsonaro executar seu plano de disseminação do coronavírus, espalhando mentiras para atacar primeiro as máscaras e o isolamento físico, depois as vacinas, resultando (até agora) em mais de 550.000 mortos. Afirmando publicamente, como figura pública máxima, o inconcebível, Bolsonaro tornou corriqueiro milhares de pessoas desaparecem da vida da família e do país a cada dia. Hoje, a média atual de mil mortes por dia, depois de já ter ultrapassado 4.000, é motivo de comemoração. Pelo mesmo esgarçamento da linguagem, Bolsonaro tornou possível a volta dos militares ao poder em um país ainda traumatizado pelos torturadores nas ruas, assim como a rearticulação da direita que sustentou a ditadura militar no passado. Ao romper os limites primeiro no discurso, ele abre espaço e prepara o terreno para o ato.
É também pela corrosão da linguagem que, aperfeiçoando o roteiro de Trump, Bolsonaro se prepara para 2022, atacando o sistema eleitoral para contestar a eleição em que poderá ser derrotado. Quando a eleição chegar, a repetição do discurso de fraude já terá corrompido a realidade. Nessa operação sobre a subjetividade coletiva, a fraude acontece antes, fazendo com que o que efetivamente acontecerá na eleição, o voto, não importe. É assim que o direito constitucional de eleger o presidente do país vai sendo roubado de mais de 200 milhões de brasileiros sem nenhum tanque na rua. A narrativa da fraude se infiltra e se realiza nas mentes antes de qualquer ato, descolando-se dos fatos. O que importa é a crença na fraude. Que ela não se comprove porque não aconteceu não faz a menor diferença. “Acreditar se tornou um verbo muito mais importante do que “provar” —e essa distorção é apresentada como virtude. O principal papel de figuras como Bolsonaro e outros, e antes deles Trump, é pronunciar o impronunciável, abrindo um caminho subjetivo para a concretização do assalto ao sistema democrático.
A corrosão da linguagem culmina com a corrosão da própria verdade. Este é o ataque final ao “comum”. Já vimos outros bens comuns essenciais para a vida da nossa e de outras espécies —como ar puro e água potável, por exemplo— serem privatizados, mercantilizados e reembalados para a minoria que pode pagar por eles. A estabilidade do clima, outro bem comum, foi destruída. Os novos velhos golpistas fizeram —e seguem fazendo— o mesmo com o conceito compartilhado de verdade. Assim como acontece com os teóricos da conspiração nos Estados Unidos e em suas versões brasileiras, a autoverdade —ou o poder auto-ortorgado de escolher a verdade que mais convém ao indivíduo ou ao grupo— se torna mais “real” do que os fatos. De certo modo, é um retorno a um tipo de teocracia. No caso, a “verdade” é corrompida e controlada pelos sacerdotes deste novo tipo de seita.
Obviamente, a verdade se afirma e acaba por se impor no plano da realidade, como a emergência climática acabou de demonstrar, colocando países como a Alemanha debaixo d’água e deixando o Canadá mais quente do que o deserto do Saara. Mas, enquanto isso, charlatões como Bolsonaro e outros provocam uma destruição acelerada do comum que, em grande parte, é irreversível, comprometendo não só o futuro das novas gerações, mas também o presente.
Bolsonaro é protagonista, sim, mas é também instrumento. Conhecido como uma metralhadora giratória de asneiras violentas e violências boçais durante seus sete mandatos no parlamento, seu “dom” foi instrumentalizado. A destruição do tecido social por uma operação na linguagem aposta nas chamadas “guerras culturais”. É na desumanização dos negros, das mulheres, dos LGBTQIA+ que começa o ataque. É na chamada “pauta dos costumes” que a violência vai sendo formulada como se fosse seu oposto. Quando Bolsonaro afirma preferir um filho morto em acidente de trânsito a um filho gay, por exemplo, ele coloca a abominação na homossexualidade, encobrindo a abominação que é sua afirmação. O inaceitável é ser gay —e não defender a morte de gays. O inaceitável é o aborto de um embrião —e não a morte de uma mulher com história e afetos por complicações em procedimentos sem cuidado. E assim por diante. A cada afirmação de extrema violência, Bolsonaro foi destruindo o conceito de inviolabilidade da vida e normalizando a destruição dos corpos. A principal função de figuras como Bolsonaro é tornar tudo possível —primeiro na linguagem, em seguida no ato.
Neste momento, Bolsonaro já cumpriu sua missão maior, o que pode eventualmente torná-lo descartável. Ele claramente vai se tornando um incômodo para os grupos que agora mais uma vez se rearticulam e que, com ele, conquistaram avanços inimagináveis até então, como os próprios militares, os representantes e lobistas do agronegócio, os evangélicos de mercado e o campo da direita. Assim como Fabrício Queiroz se tornou descartável e um incômodo para a quadrilha familiar dos Bolsonaro, ele mesmo se torna perigoso para os articuladores do projeto maior, que o reconhecem como uma peça importante do jogo, mas jamais como o dono do tabuleiro. Muito vai depender da capacidade de Bolsonaro se adequar, uma capacidade que nele parece inexistente. Suspeito que é esta parte de seu próprio fenômeno que Bolsonaro não compreende. Ao miliciarizar o Governo central, acreditou que estava no comando absoluto.
As democracias morrem por muitas razões, na minha opinião a mais importante delas é o fato de serem seletivas, em diferentes graus: só funcionam para determinada parcela da sociedade, deixando outras de fora. As democracias morreriam então pela corrosão provocada pela sua própria ausência. Ou morreriam pelo tanto de arbitrariedade com que são capazes de conviver. No Brasil, o nível de exceção que a minoria dominante da sociedade é capaz de tolerar é uma enormidade. Desde que as arbitrariedades sejam contra os pretos e contra os indígenas, contra as mulheres e contra os LGBTQIA+ está tudo “dentro da normalidade”. A possibilidade de as forças de segurança do Estado derrubarem portas, invadirem casas e executarem suspeitos e não suspeitos nas periferias e favelas urbanas durante todo o período democrático é, sem dúvida, o exemplo mais evidente do caso brasileiro.
As ditaduras nascem em diferentes tempos e espaços. Assim como as parcelas da sociedade beneficiadas pela democracia convenceram-se durante décadas de que viviam numa democracia, mesmo sabendo que grande parte da população era submetida a uma rotina diária de arbitrariedades, estas mesmas parcelas têm hoje dificuldade para enxergar que a ditadura já está consolidada em várias partes do Brasil, onde pessoas precisam abandonar suas casas para não morrer e as forças de segurança e o judiciário estão a serviço dos violadores. Hoje, nas áreas “nobres” das capitais e cidades, os ataques autoritários usam o judiciário e a Polícia Federal para se realizar, como nas recentes ofensivas a colunistas da imprensa tradicional, a mais recente delas contra Conrado Hübner Mendes, colunista da Folha de S. Paulo e professor da prestigiosa faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Há outras partes do Brasil em que os ataques são a fogo e bala, como na floresta amazônica, onde casas de indígenas como Maria Leusa Munduruku são queimadas e lideranças camponesas como Erasmo Alves Theofilo têm a cabeça a prêmio. Na floresta e nas periferias urbanas, corpos humanos tombam sem provocar alarde e as execuções pelas forças policiais explodem.
A percepção de golpe se alastra quando os que não costumam ser atacados passam a ser atacados, no Brasil a minoria branca e mais rica. É uma percepção legítima, porque é ela que mostra que o tecido social se rasgou em partes consideradas até então intocadas e intocáveis. A quebra destes limites sinaliza que outras forças se moveram, ameaçando o precário equilíbrio mesmo dos mais privilegiados. Em 2017, ao testemunhar a execução de um morador de rua pela polícia no bairro nobre de Pinheiros, a classe média se mobilizou para denunciar e protestar, celebrando uma missa na simbólica Catedral da Sé. Era ainda o Brasil de Michel Temer (MDB), mas a ditadura foi largamente lembrada. Ali, o “limite” estabelecido pela lei não escrita de que o Estado pode executar pessoas, mas apenas em bairros de periferia, havia sido rompido. A quebra demandava reação, pelas melhores razões e também para impedir que a violência policial rompesse outro limite e o próximo a tombar fosse alguém que habitasse não as ruas, mas os apartamentos e casas com um dos metros quadrados mais caros da cidade.
Ao se infiltrar no imaginário coletivo, o debate do “será que vai ter golpe” cumpre ainda outra função estratégica: a de interditar e ocupar o espaço do debate urgente do impeachment de Bolsonaro. Sobre isso, há um flagrante assalto à linguagem, ao normalizar o fato de Arthur Lira (Progressistas), o corrupto presidente da Câmara de Deputados, ter seu traseiro esparramado sobre mais de 120 pedidos de impeachment ou sobre o superpedido de impeachment. Pela repetição, a crítica legítima a Lira vai se esvaziando e passa a se assimilar que assim é: a mobilização da sociedade pela democracia, traduzida em pedidos de impeachment mais do que legítimos, é pervertida e usada como instrumento de chantagem do Centrão para tomar os cofres públicos. Sempre que aceitamos o abuso de poder e de função como inevitável, acostumando-nos às arbitrariedades, o golpe avança.
Hoje, com Bolsonaro, vários limites foram ultrapassados. Limites que, mesmo para um país de marcos civilizatórios tão elásticos como o Brasil, até bem pouco tempo atrás seria impensável tê-los rompido. Quando o assunto principal é se haverá golpe ou não, tema abordado com a mesma naturalidade do aumento do preço do feijão, o último jogo do Corinthians ou a mais recente série da Netflix, o que resta de democracia? O golpe já pedalou a linguagem, infiltrou-se no cotidiano e está ativo. O golpe já foi dado. A dúvida é só até onde ele será capaz de chegar.
Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora de sete livros, entre eles Brasil, Construtor de Ruínas: um olhar sobre o país, de Lula a Bolsonaro (Arquipélago).
Site: elianebrum.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter, Instagram e Facebook: @brumelianebrum
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Política & Democracia / Coletivo Jornalistas Online
Incapaz de montar articulação política própria, Bolsonaro entrega ao Centrão a condução dos projetos do governo no Congresso Nacional. Na prática, o Planalto está agora totalmente nas mãos da velha política que Bolsonaro atacou para se eleger em 2018.
Mais informações em https://jornalistasonline.org/
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Crescimento cíclico ou retomada sustentada - parte 2
A última década foi terrivelmente frustrante em termos de crescimento econômico
José Roberto Mendonça de Barros / O Estado de S. Paulo
Foto: Agência Brasil
O crescimento econômico é uma construção de longo prazo. O Brasil tem crescido pouco desde 1980. Imaginamos que o controle da inflação, desde o Plano Real, pudesse abrir as portas para uma nova era. Entretanto, a última década foi terrivelmente frustrante. Paramos de vez.
Para sair de um buraco, primeiro é preciso parar de cavar. Por isso, para voltar a crescer, antes de tudo precisamos deixar de apostar em ações fracassadas.
Não é possível crescer com base em recursos derivados de atividades ilegais. O maior exemplo atual é o que ocorre na Amazônia: grilagem de terras, extração e exportação de madeira vinda de áreas públicas ou com documentos ilegais ou garimpos em áreas invadidas. A Região Norte não crescerá com essa base.
Transferências para segmentos e regiões mais pobres têm mesmo de ocorrer, mas têm de ter propósito: bolsa-escola, médico de família, desenvolvimento da bioeconomia, recuperação florestal, pagamentos por serviços ambientais, pagamentos por serviços comunitários e tantos outros.
Não é possível crescer com projetos inviáveis técnica e economicamente. A lista aqui é enorme. Um exemplo é a indústria naval. Outra é a obrigatoriedade de construir gasodutos e térmicas a gás em regiões sem o gás e sem grande consumo de energia (como está na atual lei sobre a Eletrobrás). Os experimentos fracassados de Ceitec e Unitec, que deveriam fabricar chips, são ilustrativos também.
Também é evidente que projetos decorrentes de voluntarismo político e corrupção emperram o crescimento. As refinarias Abreu e Lima e Comperj torraram mais de US$ 30 bilhões sem retorno. Ao mesmo tempo, o Tribunal de Contas da União apontou a existência de algumas milhares de obras públicas federais inacabadas. O atual sistema de “emendas do relator” é mais um passo para gastar recursos em projetos paroquiais, no mais das vezes sem contribuição relevante para o crescimento ou com retornos sociais modestos. O processo de construção de um Orçamento com propósitos sensatos foi totalmente destruído na atual gestão.
Não se cresce com instituições fracas e capturadas por lobbies e outros grupos de interesse, como é largamente comprovado na literatura econômica. O nome da Codevasf, que agora cuida até do Amapá, vem imediatamente à mente.
Na mesma direção, inúmeras representações empresariais acabaram por se transformar em instrumentos de obtenção de vantagens do governo federal e do Congresso, com pouca preocupação com a evolução da inovação, produtividade e competitividade das empresas.
Precisamos nos concentrar em desenvolvimento, reformas e ações que possam, de fato, trazer de volta o crescimento econômico.
Infelizmente, a política econômica atual pouco avança nesses quesitos, e é por isso que as projeções de crescimento para 2022 e adiante não passam de medíocres 2%.
A desarticulada proposta da atual reforma tributária é mais um exemplo do que não deve ser feito: foi jogada no Congresso, e é seguro que sairá algo desfigurado, mantendo nosso sistema tributário complexo, caro e confuso.
A competitividade e viabilidade da economia têm de ser construídas passo a passo, numa perspectiva de longo prazo, partindo da criação de conhecimento, instituições e desenvolvimento tecnológico. O exemplo do agronegócio é o mais evidente à mão. Já está largamente comprovado que o setor vai adiante com duas bases muito sólidas: constante desenvolvimento tecnológico, base de sua competitividade, e uma participação intensa nas cadeias internacionais de suprimento agrícola. O investimento em educação especializada, técnica e superior, a força do sistema cooperativo e do crédito especializado também têm sido fatores relevantes.
Por outro lado, nossa indústria está encolhendo, fechada em seu protecionismo e é cada vez menos competitiva. Ao mesmo tempo, é possível conhecer muitas empresas bem-sucedidas nestes últimos anos. Na maioria dos casos que conheço ocorreu algo muito semelhante ao já observado sobre o agronegócio: são empresas antes de tudo preocupadas com inovação e produtividade e, ao mesmo tempo, que buscam se colocar no mundo, participando das cadeias globais, criando músculos para superar as deficiências do custo Brasil.
Só voltaremos a crescer de forma sustentada se esses sucessos forem mais generalizados.
*Economista e sócio da MB Associados.
Fonte:
O Estado de S. Paulo