Bolsonaro
Viagens de Bolsonaro e Lula ao exterior antecipam 'queda de braço' eleitoral
Jair Bolsonaro e Lula miram tanto o público externo quanto o eleitorado brasileiro nas viagens, segundo análise de especialistas
Leandro Prazeres / BBC News Brasil
Nesta semana, dois potenciais candidatos às eleições de 2022, o presidente Jair Bolsonaro, e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), estão cumprindo uma intensa agenda de viagens ao exterior.
Bolsonaro faz uma visita oficial a países árabes. Lula, por sua vez, está na Europa, onde foi recebido por lideranças de centro-esquerda. Especialistas em relações internacionais ouvidos pela BBC News Brasil afirmam que as duas viagens, ainda que de forma não intencional, servem para "medir as forças" de cada um na arena internacional.
Bolsonaro embarcou na sexta-feira (12/11) para uma viagem de uma semana a três países do mundo árabe: Emirados Árabes Unidos, Catar e Bahrein. Na sua agenda, Bolsonaro participou da Expo Dubai 2020, uma feira internacional onde o Brasil tem um pavilhão, encontros com empresários, políticos e com o rei do Bahrein, Hamad bin Isa Al Khalifa.
Já o ex-presidente Lula começou sua viagem na quinta-feira (11/11) com destino a quatro países da Europa: Alemanha, Bélgica, França e Espanha. Durante o tour, o ex-presidente se encontrou com líderes da centro-esquerda europeia como o provável novo chanceler alemão, Olaf Scholz, que é líder do Partido Social-Democrata, com a prefeita de Paris, Anne Hidalgo, que é do Partido Socialista, e, em Bruxelas, Lula discursou no Parlamento Europeu.
Os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil afirmam que as viagens revelam diferenças gritantes como as imagens que ambos tentam passar, mas também mostram uma preocupação com o público interno, especialmente a pouco mais de um ano das eleições de 2022.
Duelo de imagens
Para o professor de Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas (FGV) Guilherme Casarões, Bolsonaro e Lula travam um duelo na esfera internacional e tentam projetar duas bastante distintas.
"Essa viagens são uma medição de forças, sim. De um lado, o atual presidente vai ao Oriente Médio e adota o discurso de que está em busca de investimentos para o país. É a imagem do presidente mercador. Do outro, Lula volta à Europa com um discurso de estadista, tentando mostrar ao exterior que o Brasil tem alternativas seguras para um futuro pós-Bolsonaro", afirmou.
A professora do Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional da Universidade Federal de Minas Gerais (Cedeplar/UFMG) Fernanda Cimini, também vê diferenças nas imagens que Bolsonaro e Lula tentam passar durante suas viagens.
Ela explica que Bolsonaro aproveita a viagem para vender a narrativa de que, apesar das críticas que vem recebendo nesta área, sua política externa estaria conseguindo atingir seus objetivos.
"As imagens são muito simbólicas. Quando Bolsonaro aparece sendo recebido por líderes do mundo árabe, com seus trajes típicos, tenta vender a imagem um presidente que consegue o respeito de líderes fortes com quem ele pode se sentir mais alinhado. Do outro lado, Lula tenta se posicionar como alguém com quem a comunidade internacional pode dialogar", explicou.
Reconstruir pontes versus Isolamento
Nas últimas semanas, o atual presidente foi duramente criticado por sua atuação tímida na reunião do G20, em Roma, e por sua ausência à COP 26, em Glasgow, no Reino Unido.
A decisão de não ir à conferência do clima contrastou com a tradição que o Brasil vinha tendo nos últimos anos de se posicionar como uma potência verde. Analistas afirmam que a política externa do Brasil vem conduzindo o país a um isolamento.
O governo, por outro lado, se defende afirmando que o país continua relevante na esfera internacional.
Mais uma vez, as viagens de Bolsonaro e Lula, segundo os especialistas, evidenciam as diferenças entre os dois em relação à política externa. Enquanto Lula estaria tentando "reconstruir pontes" de olho em 2023, Bolsonaro estaria refém da agenda adotada nos últimos anos.
Para o professor de Relações Internacionais da UFMG, Dawisson Belém Lopes, os destinos e a agenda de Bolsonaro refletem o seu isolamento diplomático.
"Essa viagem é, em certa medida, expressão de um certo estreitamento de possibilidades diplomáticas do Brasil neste momento. Brasil não tem relações de nível e fluídas nem com os Estados Unidos e nem com a China. Com os europeus, há problemas que se arrastam desde o início dessa gestão presidencial. O Brasil de hoje tem poucas opções", disse o professor.
Ao analisar o roteiro de Lula, o professor diz que a viagem pode ser vista como uma tentativa de "reconstruir pontes" do ex-presidente com a comunidade internacional.
"O que Lula está fazendo é uma tentativa de reconstruir pontes, de pavimentar o seu caminho para janeiro de 2023. Ele sabe que precisa de pontes com o exterior e começa por onde deveria começar, que é pela Europa, porque é lá que ele encontra um terreno mais fértil, especialmente entre líderes da centro-esquerda", explicou.
A pesquisadora do Wilson Center em Washington e professora da FGV, Daniela Campello, enfatiza o contraste entre as opções de Bolsonaro e de Lula.
"A ida de Bolsonaro ao Oriente Médio é reflexo claro da falta de espaço do Brasil na esfera internacional. Apesar de o presidente afirmar defender a democracia, ele obviamente não se manifesta sobre os regimes políticos dos países que está visitando. Por outro lado, Lula está discursando no Parlamento Europeu, está falando com prêmio Nobel de economia (Joseph Stiglitz)", disse Daniela.
Foco nas eleições
Apesar de esse "duelo" estar ocorrendo no cenário internacional, o centro da disputa entre Bolsonaro e Lula é, obviamente, as eleições de 2022. Nenhum dos dois confirmou oficialmente que será candidato, mas pesquisas de intenção de voto mais recentes colocam os dois na liderança do pleito do ano que vem. Nesse contexto, os especialistas afirmam que os movimentos feitos lá fora deverão refletir internamente.
Fernanda Cimini, da UFMG, diz que, a partir de agora, tudo o que os dois fizerem pode ou será usado como material para as eventuais campanhas de 2022.
"A política internacional também é um campo onde sobre o qual se dá a disputa eleitoral. Então, a partir de agora, viagem pra Europa, pro Golfo Pérsico, pro Nordeste, tudo será usado na disputa. A percepção de sucesso dessas viagens vai ser material de campanha, com certeza", afirmou.
Para Guilherme Casarões, a principal demonstração de que essa batalha no exterior tem foco doméstico é a forma como as militâncias tanto de Lula quanto de Bolsonaro estão abordando as viagens em seus grupos.
"De um lado, os petistas estão exaltando a forma como Lula está sendo recebido por lideranças europeias. Seria uma demonstração de que o Brasil pode voltar a ser respeitado internacionalmente. Do outro, os bolsonaristas estão enfatizando como o presidente estaria buscando investimentos ao Brasil", disse o professor.
Fonte: Correio Braziliense
https://www.correiobraziliense.com.br/politica/2021/11/4963674-como-viagens-de-bolsonaro-e-lula-ao-exterior-antecipam-queda-de-braco-eleitoral.html
Luiz Carlos Azedo: Viagem de Bolsonaro agrada eleitores e mira em investidores
O presidente aproveitou o périplo para reforçar sua agenda interna e agradar sua base com declarações polêmicas
Luiz Carlos Azedo / Nas Entrelinhas / Correio Braziliense
A viagem das Arábias do presidente Jair Bolsonaro para atrair investidores mirou tanto a sua base eleitoral quanto os petrodólares com os quais o ministro da Economia, Paulo Guedes, imagina financiar a retomada do crescimento da economia no próximo ano, diante de previsões catastróficas dos analistas internacionais, inclusive os da prestigiada revista The Economist, que “erra todas”, segundo o nosso Posto Ipiranga.
No domingo e na segunda-feira, Bolsonaro participou do fórum Invest In Brasil, em Dubai, promovido pela Apex-Brasil, e visitou o pavilhão da Embraer na Dubai Airshow, evento do setor aeroespacial, e o pavilhão do Brasil na Expo 2020, onde a numerosa delegação brasileira festejou a viagem, com a primeira-dama Michele roubando a cena. Dubai é um emirado novo-rico, aberto para o mundo para não depender de uma atividade econômica sem futuro, o petróleo, e criar uma economia baseada no comércio internacional e no turismo, atividades que respondem hoje por 95% da sua economia.
Com o dinheiro do óleo, descoberto na região em 1966, voou do século 18 para o século 21 em apenas uma geração, nas asas da melhor companhia aérea da atualidade. Com um dos mais importantes hubs aeronáuticos do Oriente Médio, tornou-se um centro financeiro e de negócios que atrai executivos e milionários de todo o mundo, devido à segurança e às atrações turísticas de altíssimo luxo. É uma cidade-estado de população global (83% são estrangeiros), com um único dono, Sua Alteza Shaikh Mohammed bin Rashid Al Maktoum, conhecido como Shaikh Mo.
Ontem, a comitiva presidencial viajou para o Bahrein, onde Bolsonaro participou da inauguração da embaixada brasileira na capital do país, Manama, ao lado do rei Hamad bin Isa al-Khalifa, cujo clã Bani Utbah capturou o Bahrein de Nasr Al-Madhkur, em 1778, e desde então governa o arquipélago do Golfo Pérsico. O Brasil deve se tornar o seu principal fornecedor de minério de ferro, superando a China e os Estados Unidos. Somos o quarto destino das exportações brasileiras no Oriente Médio, atrás de Arábia Saudita, Turquia e dos Emirados Árabes Unidos. No meio do Golfo Pérsico, suas 33 ilhas, juntas, não chegam à metade da cidade de São Paulo.
Foi a primeira nação a descobrir e explorar petróleo no Oriente Médio, na década de 1960. Sua exploração é responsável por 60% das exportações do Bahrein e por 18% do Produto Interno Bruto nacional. O país também investe na diversificação da economia, com a promoção da atividade industrial e de serviços financeiros, sendo o segundo produtor de alumínio do mundo, responsável por 16% das exportações do Reino no ano passado. O país também se destaca na produção de aço. Já foi colônia portuguesa, persa e britânica, famosa por seus pescadores de pérolas. Hoje é um “case” da economia pós-petróleo. Dos seus 1,5 milhão de habitantes, 25% são paquistaneses, afegãos, indianos, norte-americanos e britânicos.
Sem constrangimentos
Hoje, Bolsonaro chega ao Catar, um emirado absolutista e hereditário comandado pela Casa de Thani desde meados do século XIX. O xeque Hamad bin Khalifa Al Thani destituiu seu pai, Khalifa bin Hamad al Thani, em 1995, com um golpe de Estado. O presidente fará um passeio de moto em Doha, cuja arquitetura futurista é de tirar o fôlego. A agenda oficial inclui uma visita ao estádio Lusail, construído para a Copa de 2022. Os jornalistas, por mudanças nas regras sanitárias de véspera, foram proibidos de entrar no emirado.
O Catar foca os investimentos em setores não energéticos, porém, o petróleo e o gás ainda representam mais de 50% do PIB do país, cerca de 85% das receitas de exportação e 70% das receitas do governo. Suas reservas de petróleo, estimadas em 15 bilhões de barris, podem durar mais 37 anos. As de gás natural, cerca de 26 trilhões de metros cúbicos, representam 14% das reservas totais do mundo, a terceira maior reserva do planeta. O país exporta petróleo e derivados para China, Coreia do Sul, Japão e Índia. Importa aviões, carros, helicópteros e turbinas a gás de Reino Unido, França, Alemanha e China.
Ao contrário do que aconteceu na viagem à Itália, onde enfrentou protestos populares, Bolsonaro não passou por constrangimentos nesses emirados, que reprimem duramente a população, mas são “cases” de modernização autoritária. Aproveitou a viagem para reforçar sua agenda interna e agradar sua base conservadora, com declarações polêmicas sobre a situação da economia brasileira, o desmatamento da Amazônia, as provas do Enem e o aumento dos servidores, anunciado para legitimar a aprovação da PEC dos Precatórios no Senado. A estratégia serviu de contraponto à viagem do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva à Europa, cujo ponto alto foi seu discurso no Parlamento Europeu, onde foi aplaudido de pé.
Elio Gaspari: A China jogou pesado
Pequim aderiu à diplomacia de segunda
Elio Gaspari / O Globo
A revelação veio do repórter Marcelo Ninio. Depois que a China suspendeu a importação de carne bovina brasileira, a ministra da Agricultura, Tereza Cristina, pediu hora para falar ao telefone com seu equivalente, e Pequim respondeu que ele estava sem espaço na agenda. No pedido, não se havia especificado dia nem hora. A resposta esfarrapada foi grosseria inédita para uma diplomacia experimentada como a do Império do Meio.
De um lado, ela mostra como a China é capaz de jogar bruto quando acha que está numa posição de força. De outro, ensina que o governo do capitão cultiva malcriações delirantes, mas é, acima de tudo, disfuncional.
A China embargou as importações de carne bovina no início de setembro, acompanhando uma iniciativa pontual do governo. Suspendeu as vendas por causa da ocorrência de dois casos da doença da vaca louca. Desde então, foram remetidas informações às autoridades sanitárias chinesas, mostrando a natureza isolada dos episódios. Passaram-se mais de dois meses, e o embargo continua. Se o ano terminar sem que a barreira seja levantada, a pecuária brasileira poderá perder até R$ 10 bilhões em negócios.
O recurso a embargos comerciais como forma de pressão diplomática é coisa velha. O pelotão palaciano acredita em mulas sem cabeça e cultivou a crença segundo a qual os chineses precisam das proteínas brasileiras. Os fornecedores da Europa e do Cazaquistão agradecem, pois estão ocupando o espaço aberto no mercado chinês.
A disfuncionalidade do governo brasileiro tem de tudo. Já houve um chanceler que dizia ser um pária orgulhoso, e o presidente diz o que lhe vem à cabeça. O Itamaraty perdeu a relevância nas negociações internacionais. Foi substituído por uma diplomacia de compadrio de maus resultados. Joe Biden está na Casa Branca, e Steve Bannon, guru de Trump e de Bolsonaro, está sem o passaporte. O embaixador do Planalto para a África do Sul (Marcelo Crivella) está no sereno, sem agrément. O telefonema do capitão ao presidente Cyril Ramaphosa resultou num desprestígio inútil. O caso do embargo ilustra quanto custa desprezar a máquina institucional do Estado.
A funcionalidade exigiria que o assunto, apesar da natureza comercial, fosse coordenado pelo Itamaraty. Ministros de outras pastas ajudam, orientam, mas não devem tomar iniciativas. Quando a ministra Tereza Cristina anunciou, em meados de outubro, que estava disposta a ir a Pequim para negociar o fim do embargo, foi para a chuva. Ao pedir agenda para um telefonema a seu colega chinês, molhou-se. É verdade que não lhe restavam outros caminhos, pois a embaixada do Brasil em Pequim ficou sem canais para cuidar de um assunto como o embargo, já que o Planalto já fez sucessivas malcriações com a embaixada chinesa em Brasília. A reciprocidade, como o hábito de escovar os dentes, faz parte do cotidiano da diplomacia.
O tranco chinês era coisa previsível, questão de quando e como. O silêncio numa questão que envolve o agronegócio e o Ministério da Agricultura indica que há um certo método do jogo bruto. Deram um joelhaço nos aliados potenciais numa negociação racional. Foi o recado de uma diplomacia de segunda classe, recíproco, porém de má qualidade.
Fonte: O Globo
https://oglobo.globo.com/opiniao/a-china-jogou-pesado-25279360
Andrea Jubé: Sobre tirar as meias com o sapato nos pés
Valdemar disse a Lula que não punirá quem optar pelo PT
Andrea Jubé / Valor Econômico
Um presidente de partido, que está em campo desde os tempos dos acordos firmados e cumpridos no fio do bigode, disse à coluna estar perplexo diante de tantas patacoadas protagonizadas pelos principais atores da política nacional.
Um exemplo de amadorismo para este decano da política são os apupos entre o presidente Jair Bolsonaro e o presidente do PL, Valdemar Costa Neto, depois que o mandatário anunciou o “casamento” com legenda.
Outro fato digno de reprimenda seria a negociação à luz do dia para levar o tucano Geraldo Alckmin para o PSB, e torná-lo companheiro de chapa do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em uma das mais inusitadas acrobacias políticas da história recente.
Para este dirigente partidário, de tão sensíveis, esses movimentos deveriam ser conduzidos detrás das coxias. Aumentariam as chances de serem bem sucedidos se alinhavados na surdina.
“Publicar passo a passo nos jornais gera ruídos e atrapalha”, criticou este veterano. Ele pondera que as atuais lideranças políticas deveriam seguir a cartilha das velhas raposas.
Um dos exemplos mais ilustrativos é o ex-presidente Getúlio Vargas. Então governador do Rio Grande do Sul, havia chegado a hora de Getúlio comunicar ao presidente Washington Luís que se lançaria candidato à sucessão presidencial em 1930. Era preciso cautela, porque a notícia abalaria os pilares da política nacional.
Os mineiros resistiam ao nome imposto pelo presidente para sucedê-lo, o governador paulista Júlio Prestes. Por isso, o presidente contava com o apoio do Rio Grande do Sul, terceira força eleitoral do país, como fiel da balança contra Minas Gerais.
Nos bastidores, havia meses, o deputado federal João Neves da Fontoura, aliado de primeira hora de Getúlio, costurava com aliados a colocação do nome do caudilho. Em maio de 1929, quando Getúlio foi pressionado a se posicionar, escolheu as palavras exatas para redigir uma carta a Washington Luís informando sua decisão.
O mensageiro seria o deputado Flores da Cunha, liderança gaúcha com livre trânsito junto ao Palácio do Catete. Ele tomaria o vapor em Porto Alegre rumo ao Rio de Janeiro, mas faria uma escala em Santos, onde poderia se encontrar com o governador Júlio Prestes.
O risco do encontro alarmou Getúlio, que mandou uma mensagem pelo rádio do navio orientando o mensageiro a suspender a encomenda. Flores da Cunha não se encontrou com Prestes, mas eles se falaram por telefone no intervalo da viagem.
Somente após instalado em seu hotel no Rio, Flores da Cunha foi autorizado a levar a mensagem ao destinatário. Quando leu a carta, Washington Luís ficou estarrecido. Mas receber a notícia interceptada por Júlio Prestes deixaria sequelas ainda piores.
Artífice da Revolução de 30, João Neves da Fontoura, que seria chanceler de Getúlio no mandato democrático de 1951-1954 _, gostava de dizer que o caudilho era tão ladino que tirava as meias sem descalçar os sapatos.
Se vivo fosse, João Neves talvez observasse que no jogo atual, Bolsonaro tira as meias e acaba descalço. Há dois anos, desde que rompeu com o PSL do deputado Luciano Bivar (PE), o mandatário, que já passou por oito partidos, continua sem destino.
A tentativa de fundar o Aliança pelo Brasil naufragou. Depois ele divulgou que cerraria fileiras com o Patriota, mas o movimento deu em água.
O mundo político sempre soube que o casamento entre Bolsonaro e o PL seria uma união de fachada. Há cerca de dois meses, Valdemar disse a Lula em um encontro reservado em São Paulo que não poderia estar ao lado do PT em 2022 porque estava “enterrado até o pescoço” no governo Bolsonaro, com cargos e emendas. O cargo principal é a Secretaria de Governo, comandada pela ministra Flávia Arruda, com gabinete no quarto andar do Palácio do Planalto.
No entanto, segundo fontes do PT e do PL, Valdemar ponderou a Lula que não impediria os deputados do PL de caminhar com o petista em seus Estados, principalmente no Nordeste.
Um dos motivos do impasse com o PL é o palanque em São Paulo e o controle do diretório paulista, que Bolsonaro confiaria ao deputado Eduardo Bolsonaro, hoje no PSL. Mas por que anunciar publicamente o enlace, se uma das principais cláusulas do contrato nupcial não estava ajustada?
Quando combinou a filiação com o PSL, no começo de 2018, Bolsonaro exigiu o controle de 25 dos 27 diretórios estaduais da legenda. Só ficaram de fora os diretórios de Pernambuco, porque estava sob a direção direta de Luciano Bivar, e do Maranhão, porque era o único em que o dirigente havia sido eleito pelos filiados.
Na conversa com a coluna, este decano da política nacional criticou a articulação às claras para filiar Geraldo Alckmin no PSB, e transformá-lo em vice de Lula. O movimento é encabeçado pelo ex-governador Márcio França (PSB) e pelo ex-prefeito Fernando Haddad (PT).
A costura nunca foi desautorizada pelos envolvidos. Ontem Lula disse na Bélgica que “não há nada que aconteceu entre eu e o Alckmin que não possa ser reconciliado”. Poucos dias antes, o tucano afirmou que se sentia “honrado” pela lembrança de seu nome, e que Lula é um democrata.
Quem conhece Alckmin bem, não descarta que se o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, vencer as prévias tucanas, ele permaneça na legenda.
Para um cacique do PSB, a publicidade da articulação para atrair Alckmin conturba a estratégia. Mas, a despeito desse revés, uma condição é imperiosa para o desfecho favorável: o PT tem que retirar o nome de Haddad, e comprometer-se com o apoio a Márcio França na disputa pelo Palácio dos Bandeirantes.
Ontem Lula disse que a política é como o futebol: “você dá uma botinada no cara, ele cai chorando, mas depois que termina o jogo, eles se encontram, se abraçam, vão tomar uma cerveja e discutir o próximo jogo”. O craque da política, entretanto, seria aquele que, antes da cerveja, ainda no vestiário, tirasse as meias sem descalçar as chuteiras.
Fonte: Valor Econômico
Eliane Catanhede: Depois da ONU e das lives, Bolsonaro agora mente em Dubai
Presidente brasileiro disse que a Amazônia é uma floresta úmida que não pega fogo e está igualzinha desde 1500
Eliane Catanhede / O Estado de S. Paulo
Não bastassem os vexames na Europa, com ausência na COP 26, inutilidade no G-20 e agressão a manifestantes na Itália, o presidente Jair Bolsonaro mente, com um sorriso sem graça, em Dubai, numa viagem de uma semana aos Emirados Árabes.
Para espanto geral, o presidente brasileiro disse que a Amazônia é uma floresta úmida que não pega fogo e está igualzinha desde 1500. Para piorar, o ministro da Economia, Paulo Guedes, disse na maior cara dura que o Brasil “cresce acima da média”.
Peguem os dados do Inpe, um instituto público, e do Observatório do Clima, que é independente, e a verdade está toda lá: as queimadas e o desmatamento da Amazônia (e não só) são os piores em muitos anos.
Se tiverem paciência e estômago, também vão ver que as multas ambientais despencaram com Bolsonaro, para alegria de grileiros e criminosos e profunda tristeza de quem se preocupa com Amazônia, florestas, ambiente e planeta.
E a fala de Guedes, num horizonte de recessão, inflação e juros disparando, desemprego renitente, sem planos e estratégia de recuperação econômica e social?
É tudo tão inacreditável que a gente não sabe se é piada de mau gosto ou só cara de pau, até dissipar a dúvida revendo as manifestações do presidente em variados momentos e ambientes. Aí, tudo faz sentido.
Bolsonaro já usou a ONU, sem tomar a vacina, para defender medicamentos comprovadamente ineficazes contra a covid-19, combinando dois erros fatais que cometeu durante toda a pandemia: ataque às vacinas e propaganda de remédio inútil, até perigoso.
E as lives do presidente? 1) atribuindo ao TCU um estudo falso negando metade das mortes por covid; 2) inventando uma “pesquisa” alemã dizendo que máscaras fazem mal às crianças; 3) atribuindo casos de aids à segunda dose de vacina contra covid na Inglaterra.
Sem contar que ele questionou os dados do desmatamento, mandou demitir o presidente do Inpe e refazer a metodologia. Pois ela foi refeita e os dados continuaram os mesmos. A retórica negacionista de Bolsonaro também.
E temos a longa live em que ele usou relatório vazado ilegalmente da Polícia Federal para “comprovar” uma outra fake news: as urnas eletrônicas são fraudadas, logo, é preciso cédula de papel.
É ótimo buscar investimentos estrangeiros, apesar dos regimes ditatoriais, mas mentindo, violentando os fatos e batendo bumbo para uma realidade paralela? Bolsonaro é sem noção e sem limite.
Fonte: O Estado de S. Paulo
https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,depois-da-onu-das-lives-e-do-cercadinho-bolsonaro-agora-mente-em-dubai,70003899638
RPD || Entrevista Especial - Bernard Appy: "Tributação do consumo no Brasil só tem exceção, não tem regra"
Reforma tributária precisa trazer mais simplicidade, racionalidade e equilíbrio para o Brasil ganhar competitividade, avalia Bernard Appy
Caetano Araújo e André Amado / RPD Online
Um dos maiores especialistas no complicado sistema tributário brasileiro, o economista Bernard Appy, do Centro de Cidadania Fiscal – um think thank independente, cujo objetivo é contribuir para melhorar a qualidade do sistema tributário no Brasil e para o sistema de gestão fiscal brasileiro – é o entrevistado especial desta 37a edição da Revista Política Democrática Online.
Appy, que se dedica a desatar o injusto e complexo sistema tributário brasileiro desde a década passada, quando atuou como secretário executivo e de política econômica do Ministério da Fazenda, foi um dos mentores do estudo que deu base para a criação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 45, do deputado federal Baleia Rossi (MDB-SP). Por decisão do atual presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), a comissão especial da Casa que analisava o mérito da reforma tributária foi sustada em maio passado.
O projeto da PEC 45 teve como principal ponto a unificação de tributos federais (PIS, Cofins e IPI), estaduais (ICMS) e municipais (ISS). Batizado de Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), o novo tributo seguiria o modelo do Imposto sobre Valor Agregado (IVA), aplicado em outros países.
Atualmente a reforma tributária está em discussão no Senado Federal por meio da PEC 110/2019, que prevê a substituição de nove tributos, o IPI, IOF, PIS, Pasep, Cofins, CIDE-Combustíveis, Salário-Educação, ICMS, ISS, pelo IBS. A diferença entre as propostas é essencialmente de prazo: 2 anos de teste e 8 de transição na PEC 45 e 1 ano de teste e 5 de transição na PEC 110.
Na entrevista à Revista Política Democrática Online, ele explica a importância de uma reforma tributária ampla, que simplifique o pagamento de tributos no Brasil e que foque, sobretudo, no aumento de produtividade. Appy também comenta o PL 2337, que trata do Imposto de Renda, que é de autoria do Poder Executivo e que tem sido alvo de críticas de todos os setores. Confira a entrevista a seguir:
Revista Política Democrática Online (RPD): Há algum tempo, costuma-se discutir as possíveis reformas tributárias a partir de eixos como a centralização, a descentralização, complexidade versus simplicidade, opacidade versus transparência, e progressividade versus regressividade. Em que medida essas questões expressam problemas reais brasileiros, e quais seriam as consequências negativas desses problemas para o país?
Bernard Appy (BA): De fato, um bom sistema tributário tem algumas características: ser simples para o contribuinte; ser transparente, ou seja, as pessoas têm de saber quanto estão pagando de imposto; tem de ser neutro, isto é, o sistema tem de distorcer o mínimo possível a forma de organização da produção, porque, ao distorcer a forma de organização da produção, o sistema geralmente resulta em ineficiência e menor crescimento da economia; e ele tem de ser progressivo, ou seja, quem tem mais capacidade contributiva tem que pagar mais do que tem menos capacidade contributiva. E isso tem de valer para todas as categorias de tributos.
Nós temos cinco categorias principais de tributos: (1) tributos sobre o consumo, que são tributos sobre a produção e a comercialização de bens de serviço, mas que, quando bem desenhados, são tributos sobre o consumo; (2) tributos sobre a renda; (3) tributos sobre o patrimônio, ou a transferência de patrimônio; (4) tributos sobre a folha de salários, que geralmente estão vinculados ao financiamento de benefícios da seguridade social; e (5) tributos regulatórios, desde tributos sobre o comércio exterior, como imposto de importação, até tributos ambientais, que têm ganhado destaque na discussão internacional, mas que é um tema ainda pouco explorado no Brasil.
O sistema tributário brasileiro não tem nenhuma das características desejáveis de um bom modelo de tributação – simplicidade, transparência, neutralidade e progressividade. Temos um sistema que é extremamente complexo - na área de tributações de bem de serviços, provavelmente o mais complexo do mundo. Temos um sistema que é extremamente opaco – quando se está comprando uma mercadoria, ou um serviço, não se tem a menor ideia de quanto de imposto está sendo pago. Temos um sistema que é tudo, menos neutro, pois no Brasil, ao menos na tributação do consumo só tem exceção, não tem regra.
Na tributação do consumo, a maior parte dos países tem um único imposto, que é o imposto sobre valor adicionado, o IVA. O Brasil tem cinco tributos gerais sobre o consumo – o PIS e a COFINS, contribuições federais que têm uma legislação semelhante, mas duas formas de incidência, cumulativa e não cumulativa, o imposto sobre produtos industrializados (IPI), que é federal, o ICMS que é estadual, e o ISS municipal. E cada um desses tributos tem uma quantidade enorme de alíquotas, de benefícios fiscais e de regimes especiais. Não é exagero, portanto, dizer que a gente tem um sistema tributário, que, pelo menos na tributação do consumo, só tem exceção e não tem regra. Ou seja, quando você só tem exceção, todo mundo vai se organizar para tentar se beneficiar da melhor forma possível das exceções, e isso acaba destorcendo completamente a forma de organização da economia e prejudicando o crescimento do país.
Por fim, temos problemas extremamente sérios do ponto de vista da progressividade do sistema tributário, porque, no Brasil, temos falhas no sistema de tributação da renda que fazem com que uma parcela extremamente relevante das pessoas de alta renda seja muito pouco tributada.
Isso decorre de uma série de falhas, como, por exemplo, o modelo brasileiro de tributar exclusivamente na empresa e isentar na distribuição de lucros. Em si, a tributação na empresa e a isenção na distribuição não é um problema distributivo, se o lucro for efetivamente tributado na empresa a 34% – que é a soma da alíquota do Imposto de Renda das Pessoas Jurídicas (IRPJ) com a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL). Só que, no Brasil, por uma série de fatores, em muitos casos o imposto pago na empresa é muito menor do que 34%. Isso acontece no caso de grandes empresas, porque tem uma série de mecanismos que permitem que o lucro fiscal, ou seja, o lucro tributável, seja muito menor do que o lucro contábil. E acontece também, no caso dos regimes simplificados de tributação, como lucro presumido ou simples.
A título de exemplo, tome-se um profissional liberal, que trabalha por conta própria, cujo faturamento mensal é de R$ 125 mil e que tem despesas da ordem de R$ 25 mil com aluguel de escritório, secretária, outros tributos, exceto tributos sobre o lucro. Esse profissional liberal, que tem uma renda bruta de R$ 100 mil, vai pagar de tributos sobre o lucro apenas 11,9% desses R$ 100 mil pelo regime de lucro presumido, e depois vai distribuir o restante para a pessoa física com isenção.
Já um empregado formal, que tem uma renda de 100 mil reais paga não só 27,5% de imposto de renda de pessoa física (IRPF), mas a empresa ainda paga cerca de 27% de contribuição sobre folha desse empregado, sem contar o FGTS. Como o os benefícios previdenciários do empregado formal são limitados a R$ 6,4 mil, na prática a contribuição sobre a folha da empresa acima desse valor é equivalente a um imposto sobre a renda do empregado. Quando se faz a conta somando o IRPF com a contribuição sobre folha da empresa e deduzindo o valor presente dos benefícios recebidos pelo empregado, chega-se a uma alíquota sobre a sua renda de quase 38% (com proporção do custo para a empresa).
Ou seja, a alíquota incidente sobre a renda mensal de R$ 100 mil de um profissional liberal que atua como sócio de uma empresa de lucro presumido é de 11,9%, enquanto a alíquota incidente sobre um empregado formal de mesma renda é mais do que o triplo. Esse é um exemplo claro do nível de distorção na tributação da renda a que chegamos no Brasil. Enquanto o profissional “pejotizado” é tributado a uma alíquota absurdamente baixa, o empregado formal é tributado a uma alíquota excessivamente alta.
O que acontece, portanto, no Brasil? Por conta dessas múltiplas falhas no sistema tributário, temos problemas seríssimos de progressividade na tributação da renda e temos distorções que prejudicam muito o crescimento – especialmente no âmbito da tributação do consumo. Vou explicar melhor esse ponto.
A multiplicidade de tributos sobre o consumo e sua enorme complexidade, geram efeitos muito negativos para o crescimento da economia. Em primeiro lugar, o custo burocrático de pagar imposto, relativamente a padrões internacionais é extremamente elevado no Brasil. Um estudo de uma universidade alemã que compara 100 países situa o Brasil em último lugar, como o país com maior complexidade para pagar tributos.
Em segundo lugar, como já indiquei, quando se tem um sistema com muitas exceções, a tendência é sempre haver divergências de interpretação entre os contribuintes e o fisco, o que aumenta o grau de litígio tributário, que é monumental no Brasil. Um estudo do Insper indica que, hoje, o litígio tributário no país – federal, estadual e municipal, nas esferas administrativa e judicial – chega a mais de R$ 5 trilhões, o que corresponde a mais de 70% do PIB. Desse montante, talvez um trilhão e meio, dois trilhões de reais, sejam créditos podres, mas ainda sobra algo como três trilhões, três trilhões e meio de reais, de fato mais de 40% do PIB de litígio tributário ativo no Brasil.
É muito provável que o Brasil seja o campeão mundial em litígio tributário, e isso não só tem custo para as empresas e o governo – com advogados, contadores etc. –, mas também aumenta o custo do Poder Judiciário do Brasil, que dedica boa parte de sua energia à cobrança da dívida ativa. Outro efeito negativo é a própria absorção da energia da alta administração das empresas, que, ao invés de estar se ocupando em tornar a empresa mais competitiva, está preocupada em evitar que a empresa quebre, por conta de um litígio tributário que, às vezes, pode representar mais de 50% do seu patrimônio líquido. Não bastasse o custo elevado, esse sistema distorcido de tributação gera forte insegurança jurídica, o que compromete o investimento.
Em terceiro lugar, as distorções na tributação do consumo acabam onerando os investimentos e as exportações, reduzindo o potencial de crescimento do país. Um sistema bem desenhado de tributação do consumo, que é o imposto sobre valor adicionado, desonera completamente exportações, tributa as importações de forma equivalente à produção nacional, e desonera completamente investimentos. No Brasil, por conta da cumulatividade do sistema, e de falhas na desoneração dos investimentos e das exportações, estamos aumentando o custo dos investimentos, prejudicando a competitividade do país e reduzindo nosso potencial de crescimento.
Por último, a enorme complexidade da tributação do consumo acaba levando a economia brasileira a se organizar de forma muito ineficiente. Uma boa forma de entender essa distorção é imaginar um mundo sem imposto e pensar como ele se organizaria. A introdução do imposto não deveria mudar essa forma de organização. No caso do Brasil, pense que, nesse mundo sem imposto, uma empresa tivesse de montar um centro de distribuição. Onde montaria? Onde minimizasse o custo de logística, certo? Ou seja, minimizaria o custo de trabalho, que é a remuneração do caminhoneiro, e o custo de capital, que é o valor do caminhão e do combustível. No Brasil, por conta de benefícios fiscais, a maioria dos centros de distribuição são montados em locais distantes dos centros de consumo, aumentando o custo de logística para poder receber um benefício tributário.
Aquilo que do ponto de vista da empresa faz sentido, que é minimizar seu custo total, isto é, o custo econômico e o custo tributário, do ponto de vista do país não faz sentido, porque eleva o custo econômico. Ou seja, por conta de distorções no sistema tributário gastamos mais caminhões, mais trabalho de caminhoneiro, mais combustível, mais estrada, para levar a mesma mercadoria para o mesmo consumidor final. Isso, na verdade, é perda de produtividade, despende-se mais trabalho e capital para fazer uma determinada atividade econômica, do que seria preciso despender se não fosse a distorção introduzida pelo sistema de tributação.
Isso, na verdade, resulta em uma perda de produtividade que pode ser muito grande. Para vocês terem uma ideia, tem um estudo do economista Bráulio Borges, que está disponível no site do Centro de Cidadania Fiscal, que estima que a eliminação dessas distorções na tributação do consumo poderia elevar o PIB potencial do Brasil em 20 pontos percentuais em um horizonte de 15 anos. Esse maior crescimento beneficiaria todo mundo: beneficiaria obviamente as famílias, porque aumentaria o poder de consumo delas; beneficiaria as empresas, porque elevaria o volume de vendas; e beneficiaria o governo, porque, mantida a carga tributária, o maior crescimento da economia elevaria a arrecadação. Desde que esse aumento da arrecadação não virasse automaticamente gasto, o resultado seria uma trajetória sustentável para a dívida pública. A partir de certo momento, o ajuste fiscal abriria inclusive espaço para alguma ampliação do gasto público ou para uma redução da tributação.
RPD – Quais são as distorções que existem no sistema tributário brasileiro?
BA - As distorções que existem no sistema tributário são, portanto, de duas naturezas: distorções que prejudicam o crescimento, sobretudo na tributação do consumo, e distorções distributivas, sobretudo na tributação da renda. Podemos olhar a situação brasileira como um o copo meio cheio ou meio vazio. Olhar o copo como meio vazio é dizer: "O sistema tributário brasileiro é um horror: a quantidade de distorções é tão grande que, honestamente, não consigo enxergar nada parecido em outros países do mundo". Por outro lado, pode-se ver o copo meio cheio: "Tudo bem, essas distorções são tão grandes que, no Brasil, é possível fazer mudanças que tornem o sistema tributário simultaneamente mais progressivo e mais eficiente". É muito comum você encontrar na discussão sobre política tributária um trade off, um conflito, entre eficiência e progressividade. No Brasil, as distorções são tão grandes que é possível ter um sistema que seja ao mesmo tempo mais eficiente e mais progressivo. Claro que, para conseguir fazer isso, é preciso enfrentar interesses que estão consolidados dentro do sistema tributário atual. Não se trata de algo politicamente fácil, mas, tecnicamente, nossas distorções são tantas que dá para melhorar em todas as dimensões simultaneamente.
RPD: À medida que o processo de globalização avança, nossos problemas tornam-se cada vez mais problemas globais, e as soluções também precisam avançar um pouco nesse sentido da cooperação internacional, para dar conta desses problemas. No plano estritamente tributário, dois exemplos bastante claros disso seriam as tentativas de se fazerem acordos em torno da tributação dessas grandes empresas de tecnologia, tentativas recentes, e os esforços no sentido do combate aos paraísos fiscais. É possível avançar nessa direção, e a cooperação internacional pode ajudar?
BA: A cooperação internacional é fundamental em algumas áreas da tributação. Uma parte da tributação, que é a tributação do consumo, é essencialmente doméstica, e, portanto, neutra do ponto de vista do comércio internacional. Não importa se a mercadoria é produzida no país ou no exterior, se você tiver um bom sistema de tributação do consumo, a tributação vai ser a mesma, e isso não distorce o comércio internacional, nem a alocação de recursos internacionais. Uma parte da tributação sobre a propriedade também é essencialmente doméstica, como, por exemplo, a tributação sobre o patrimônio imobiliário – IPTU e ITR.
Mas tem uma área em que a cooperação e a coordenação internacional são absolutamente fundamentais – a tributação da renda. A renda é tributada no lugar onde a renda é gerada, e isso faz com que você tenha uma série de distorções internacionais que limitam a possibilidade de tributação de cada país, sobretudo na tributação do lucro de grandes empresas multinacionais. As empresas multinacionais acabam tendo possibilidade de redução da tributação de várias formas. Uma delas é alocando o lucro em jurisdições de baixa tributação. Por exemplo, muitas Big Techs têm sede na Irlanda, onde o lucro é tributado a uma alíquota de 12,5%, uma alíquota bastante baixa para padrões internacionais. Esse problema é especialmente relevante quando o lucro resulta de intangíveis, como ocorre na nova economia, pois é muito fácil realocar a propriedade intelectual entre jurisdições.
Outro método muito utilizado são operações entre estabelecimentos de uma mesma multinacional em dois países – um com alta tributação, o outro com baixa tributação. Para maximizar o lucro, a empresa busca exportar com preços abaixo do valor de mercado, do país de alta tributação para o de baixa tributação, e importar com preços acima do de mercado na situação inversa. Há uma série de medidas para tentar regular esse tipo de operação – conhecidas como legislação de preços de transferência – mas seu escopo é limitado e o controle complexo.
Por conta dessa situação, o mundo vem passando, desde meados dos anos 80, por um processo de race to the bottom, uma competição tributária mundial de redução de alíquotas na tributação da renda corporativa. Em meados dos anos 80, a alíquota média da tributação do lucro das grandes empresas nos países da OCDE era superior a 40%; hoje está em 23%. Recentemente, vem-se tentando conter esse movimento, por meio de duas iniciativas importantes. Uma delas, já com quase 10 anos, é a iniciativa BEPS (Base Erosion and Profit Shifting), da OCDE e do G20, que propõe medidas voltadas à coordenação entre os países e à limitação da transferência de lucro para localidades de baixa tributação. A outra iniciativa, mais recente, envolve um processo de tentativa de tributação das Big Techs através da atuação em dois pilares. Um dos pilares é a definição de uma alíquota mínima de tributação do lucro em todos os países, de 15%, que ainda é uma alíquota relativamente baixa, mas foi a politicamente possível de ser adotada. O segundo pilar é um critério de distribuição de parte do lucro gerado pelas subsidiárias de grandes empresas, sobretudo das Big Techs, entre o país sede da empresa e o país onde é consumido ou utilizado o bem ou serviço fornecido pela subsidiária.
Avanços existem, portanto, mas ainda é muito pouco para poder, realmente, permitir uma tributação adequada do lucro entre todos os países. A alíquota mínima proposta, de 15%, ainda é muito menor que a alíquota média incidente sobre o lucro distribuído na OCDE, que é de cerca de 42% – considerada a alíquota na empresa e na distribuição. Ou seja, o reinvestimento dos lucros nos países de baixa tributação seguirá sendo um bom negócio.
A coordenação internacional é, pois, um movimento importante, que complementa aquilo que os países têm de fazer domesticamente. Depois de um longo período de race to the bottom, de contínua redução da alíquota na tributação da renda coorporativa, já se pode ver o começo de uma reversão desse processo, embora muito aquém daquilo que seria necessário para que os países, de fato, venham a ter autonomia e liberdade, na definição das suas políticas de tributação do lucro. Mas, é um avanço importante; é uma mudança que se vem acelerando e que esperamos ande ainda mais rapidamente.
RPD: Voltando ao Brasil. O que são as PECs 45 e 110 e por que não avançaram?
BA: A PEC 45 é uma proposta de emenda constitucional apresentada pelo deputado Baleia Rossi, inspirada em um trabalho que desenvolvemos no Centro de Cidadania Fiscal; e a PEC 110 é uma proposta de reforma tributária do Senado Federal, que tomou por base um trabalho realizado pelo ex-deputado Luiz Carlos Hauly. As duas propostas têm, basicamente, o mesmo objetivo – reformar o sistema de tributação do consumo no Brasil. Apresentam algumas diferenças, mas, na essência, têm características muito semelhantes – buscam substituir os atuais tributos sobre o consumo por um único Imposto sobre Bens e serviços (IBS), compatível com o padrão mundial de um bom imposto sobre o valor adicionado, incidente sobre uma base ampla de bens e serviços.
As duas propostas também preveem duas transições. Uma transição para os contribuintes, ou seja, dos tributos atuais para os novos tributos. A transição se iniciaria por um período de teste em que o IBS seria cobrado com a alíquota de 1%, seguindo-se um período de transição, em que as alíquotas dos tributos atuais seria progressivamente reduzida, e a alíquota do IBS seria elevada, mantendo a carga tributária. A diferença entre as propostas é essencialmente de prazo: 2 anos de teste e 8 de transição na PEC 45 e 1 ano de teste e 5 de transição na PEC 110.
Uma segunda transição diz respeito à distribuição da receita para os entes da Federação. Quando se migra de um sistema com a base fragmentada entre o ICMS e o ISS, que são cobrados dominantemente no Estado e no Município de origem, para um sistema de base ampla – que junta ICMS com ISS – e com a tributação no destino, isso afeta a distribuição da receita entre os entes da Federação. A PEC 45 prevê uma transição de 50 anos na distribuição federativa da receita, e a PEC 110, uma transição de 15 anos.
Mas há diferenças entre as duas propostas. A principal diz respeito ao número de alíquotas e à autonomia dos entes na fixação de suas alíquotas e, portanto, na gestão de sua receita. De um lado, a PEC 45 propõe que a alíquota para todos os bens e serviços seja uniforme, mas prevê que os Estados e os Municípios tenham autonomia para fixar suas alíquotas. Como o IBS é um imposto sobre o consumo, isso significa que a alíquota será a mesma para o consumo de bens e serviços, mas cada Estado e cada Município poderá decidir se tributa mais ou menos seus consumidores, que são também os eleitores. De outro lado, a PEC 110 prevê a possibilidade de múltiplas alíquotas, sem dar autonomia para Estados e Municípios quanto à definição da alíquota e, portanto, ao controle de sua arrecadação.
Outra diferença entre as duas propostas diz respeito ao escopo dos tributos substituídos pelo IBS. Na PEC 45, o IBS substituiria o PIS, a Cofins, o IPI, o ICMS e o ISS. Na PEC 110, o IBS substituiria ainda o IOF, a CIDE-Combustíveis e a contribuição para o salário-educação.
O grande problema para o avanço dessas propostas é o posicionamento do governo federal. Uma das resistências históricas ao avanço da reforma tributária, que era a posição dos Estados que não queriam perder a possibilidade de conceder benefícios fiscais, foi superada. Hoje todos os Estados da Federação, por intermédio de seus respectivos secretários de Fazenda apoiam uma reforma tributária ampla, nos moldes da PEC 45 e da PEC 110. O mesmo vale para os pequenos e médios municípios, representados pela Confederação Nacional dos Municípios.
Falta, ainda, contornar a resistência dos grandes municípios que não querem perder o poder de cobrar o ISS, mas o grande problema me parece ser o posicionamento do governo federal, que nunca apoiou a proposta. Inicialmente, como havia duas propostas – uma na Câmara e outra no Senado –, o governo dizia que não tinha como se posicionar. Por conta disso, foi criada uma Comissão Mista de deputados e senadores para compatibilizar as propostas, que começou a funcionar no início de 2020, mas teve seus trabalhos interrompidos pela pandemia. No início de 2021, o relator da Comissão Mista, Deputado Aguinaldo Ribeiro, apresentou seu parecer, mas a troca da presidência na Câmara dos Deputados passou a ser um obstáculo para a tramitação da reforma na Câmara, pois a PEC 45 era apoiada pelo grupo do ex-presidente, Rodrigo Maia, sofrendo resistência política por parte do novo presidente, Arthur Lira.
O que permanece hoje é a tramitação da PEC 110, no Senado Federal. O relator da PEC 110, Senador Roberto Rocha, aproveitou muito do trabalho da Comissão Mista e, ao mesmo tempo, fez um trabalho político junto ao governo federal, para mitigar as resistências do Ministério da Economia à reforma. A principal mudança feita pelo Senador para atender o governo federal foi substituir o modelo de um único IVA (o IBS) por um modelo com dois IVAs. Haveria um IVA subnacional – o IBS –, que substituiria o ICMS e o ISS e seria gerido conjuntamente por Estados e Municípios. Haveria também um IVA federal, que seria a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), que substituiria o PIS e a Cofins. A proposta também prevê a criação de um imposto seletivo, incidente sobre produtos prejudiciais à saúde e ao meio ambiente, que substituiria o IPI. Com as mudanças feitas pelo Senador, a proposta não enfrenta mais a oposição do Ministério da Economia, mas tampouco tem um apoio muito entusiasmado.
Por fim, há também algumas resistências setoriais à reforma tributária. A superação dessas resistências provavelmente exigirá o tratamento favorecido para alguns setores – como saúde, educação e transporte público urbano. O Senador Roberto Rocha, a meu ver corretamente, deixou a definição dos tratamentos favorecidos para a regulamentação do IBS e da CBS.
Mesmo com o bom trabalho de mitigação das resistências políticas feito pelo Senador Roberto Rocha, no entanto, é difícil saber como andará a reforma tributária. Aparentemente há um bom apoio no Senado Federal, mas, por se tratar de um tema amplo e complexo, seu avanço depende de uma clara priorização.
RPD: Prevê-se algum calendário para a aprovação?
BA: Não. Hoje não tem um calendário previsto. Está na Comissão de Constituição e Justiça, que não se reúne há meses, por conta da resistência em tratar da sabatina do indicado pelo presidente para o Supremo Tribunal Federal. Cogita-se de levar a proposta diretamente ao plenário do Senado, medida que conta com o apoio da indústria, que reconhece a contribuição da reforma tributária para o crescimento, não só da indústria, mas também dos demais setores.
Aliás, há outro estudo, dos economistas Edson Domingues e Débora Freire – também disponível no site do Centro de Cidadania Fiscal – que mostra que, mesmo com hipóteses conservadoras de impacto da reforma sobre o crescimento, todos os setores da economia serão beneficiados. É verdade que a indústria seria mais beneficiada, não porque a reforma crie uma distorção a favor da indústria, mas, ao contrário, porque as distorções do sistema atual prejudicam mais a indústria que os outros setores, seja pela oneração dos investimentos e das exportações, seja porque o consumo de produtos industriais é, hoje, mais tributado do que o consumo dos demais bens e serviços.
Embora o cenário não seja claro, acredito que há uma possibilidade de aprovação do substitutivo da PEC 110 pelo Senado. Além do apoio de vários senadores, o presidente Rodrigo Pacheco também é favorável à proposta. O parecer do Senador Roberto Rocha é bom. Pode não ser o ideal, que seria criar um único imposto sobre bens e serviços, mas é um projeto equilibrado politicamente e que atende bastante bem as necessidades do Brasil.
RPD: Está em tramitação no Congresso uma proposta sobre o Imposto de Renda que muitos qualificam como ruim. Qual sua opinião?
BA: É o PL 2337, que é o do poder Executivo e já foi aprovado na Câmara dos Deputados. O substitutivo tem alguns elementos positivos, como a correção da tabela do imposto de renda da pessoa física, que efetivamente está defasada, e algumas mudanças na tributação das aplicações financeiras. Os problemas do projeto estão, sobretudo, nas mudanças propostas para a tributação do lucro auferido pelas empresas.
O substitutivo aprovado na Câmara propõe reduzir a tributação das empresas, de 34% para 26% introduzindo, em contrapartida, uma tributação de 15% na distribuição de dividendos. Adicionalmente, o projeto elimina o atual regime de juros sobre o capital próprio, pelo qual uma parcela do lucro distribuído pelas empresas é dedutível como despesa (deixando de pagar 34%), sendo tributado exclusivamente na fonte a 15% quando da distribuição. Desse ponto de vista, o projeto até aproxima o modelo brasileiro do padrão internacional – que é a tributação na empresa e na distribuição. O problema é que o projeto prevê alguns casos em que não haveria a tributação na distribuição de dividendos, caso, principalmente, das empresas do SIMPLES e do regime de lucro presumido, com faturamento anual de até R$ 4,8 milhões, mas também da distribuição de dividendos para holdings.
Quais os problemas desse projeto? Eu diria: vários.
Para entender esse ponto, é preciso voltar ao que eu disso no início, ou seja, que um projeto que mude o sistema tributário brasileiro deveria aumentar a progressividade e contribuir para a economia se tornar mais eficiente e crescer mais. Adicionalmente, no Brasil temos duas bases tributárias que são excessivamente tributadas, que são consumo e folha de salários, e temos duas bases que que poderiam ser mais exploradas, que são renda e patrimônio. O que faz esse projeto aprovado na Câmara dos Deputados?
O primeiro problema tem a ver com a composição da carga tributária. Segundo a Instituição Fiscal Independente, o projeto reduz a tributação da renda em quase R$ 40 bilhões e aumenta a tributação do consumo, principalmente via eliminação de benefícios fiscais para medicamentos, em cerca de R$ 15 bilhões. Ou seja, o projeto vai na contramão daquilo que a precisamos fazer no Brasil, que é tributar mais renda e menos consumo. Já temos aí um problema estrutural.
Segundo, embora seja verdade que a tributação na distribuição de dividendos possa corrigir distorções distributivas, o projeto abre duas exceções que reduzem muito, ou mesmo revertem, esse efeito positivo. A primeira dessas exceções é exatamente a isenção na distribuição de lucro por empresas do SIMPLES e lucro presumido com faturamento até R$ 4,8 por ano, o que tende a ampliar distorções que já são relevantes na tributação de trabalhadores “pejotizados”. Tomando por base aquele exemplo que dei do profissional liberal, que hoje já paga uma alíquota baixíssima de 11,9% sobre sua renda de R$ 100 mil por ano, caso o projeto que passou na Câmara seja aprovado, essa alíquota cairia ainda mais, para 8,7%. Ou seja, aquele que deveria pagar mais imposto, se eu corrigisse as distorções do sistema tributário brasileiro, vai pagar ainda menos do que paga hoje, amplificando as distorções atuais.
Adicionalmente, os grandes acionistas de grandes empresas ou já têm ou irão criar holdings para receber seus dividendos. Isto significa que a maior parte da renda desses acionistas não sofrerá a tributação na distribuição de dividendos.
Não estou dizendo que está errado você não tributar o imposto que é reinvestido, mas é preciso entender que, na prática, é provável que o grande acionista da grande empresa pague menos imposto do que paga hoje, porque será beneficiado pela redução da alíquota na empresa, e, no grosso da distribuição, não será tributado. Quem é que, afinal, vai estar de fato sendo mais onerado por conta da tributação na distribuição? É o pequeno e médio acionista da grande empresa – aquele que está na bolsa de valores. Esse acionista não tem holding. Ele recebe direto na pessoa física e certamente será o grande prejudicado pela mudança.
O desenho final ficou muito desequilibrado. O profissional liberal de alta renda, que hoje já paga pouco imposto, vai pagar ainda menos. O grande acionista da grande empresa talvez pague até menos imposto do que paga hoje. E o pequeno acionista da grande empresa é quem de fato via pagar a conta com a mudança que está sendo proposta. Claro que acho que, do ponto de vista distributivo, não é uma boa solução. Em alguns casos agrava o problema e, em outros, certamente, não resolve de forma adequado o problema distributivo do modelo brasileiro de tributação da renda.
Por último, do ponto de vista do impacto sobre o crescimento, tudo indica que o projeto também está desequilibrado. É verdade que a redução da alíquota na empresa e a introdução da tributação na distribuição pode ter um efeito positivo sobre investimentos, principalmente para empresas menores, que têm mais dificuldade de acesso a crédito. Em contrapartida, várias características da proposta geram distorções que tendem a ter um impacto negativo sobre o crescimento.
Em primeiro lugar, a isenção na distribuição de lucros para empresas com faturamento até R$ 4,8 milhões, vai estimular as empresas a se fragmentarem artificialmente, ou, até pior, a reduzir seu faturamento ou a sonegar para ficar dentro do limite de faturamento.
Em segundo lugar, com a eliminação do regime de juros sobre capital próprio, amplia-se a distorção entre a tributação do capital próprio (capital aplicado em ações ou cotas da empresa) e o capital de terceiros (dívida). Ou seja, cria-se um incentivo para que as empresas se endividem mais, o que as torna mais frágeis em situações de alta volatilidade econômica.
Em terceiro lugar, e por fim, o projeto tende a tornar o sistema mais complexo, porque a tributação em duas etapas – na empresa e na distribuição – exige uma série de controles, para evitar a distribuição disfarçada de lucros. Esse pode ser um custo a pagar se os demais efeitos da mudança forem positivos, mas certamente não é o caso do projeto aprovado pela Câmara.
Em resumo, diria que o efeito final do projeto, do meu ponto de vista, é bastante ruim tanto do ponto de vista distributivo quanto do impacto sobre o crescimento. O que é engraçado é que o projeto faz isso reduzindo a arrecadação, ou seja, perdem-se recursos públicos para piorar o sistema tributário. Sem dúvida alguma, trata-se de um projeto muito mal desenhado.
RPD: O Senado tem tentado fazer avançar a questão?
BA: O projeto tem hoje a relatoria do senador Ângelo Coronel, na Comissão de Assuntos Econômicos do Senado. Ele tem dado declarações de que pretende aprovar apenas o reajuste da tabela do imposto de renda das pessoas físicas, deixando o resto do projeto para ser discutido com calma em um prazo mais longo – que provavelmente não se encerraria nesse governo. Mas na política nunca é possível ter certeza sobre o que irá acontecer.
É interessante notar que o projeto original do governo estava descalibrado, pois claramente aumentava a carga tributária, mas, pelo menos, estava mais equilibrado que o que foi aprovado pela Câmara, porque compensava a redução da alíquota na empresa com uma série de medidas antielisivas. Essas medidas elisivas foram quase todas tiradas do projeto pelo relator na Câmara do Deputados. O desenho das medidas antielisivas tinha problemas, que precisavam ser corrigidos, mas o conceito estava correto.
RPD: Depois do que foi dito hoje, pode-se concluir que os interesses setoriais têm muito mais medo de aumento de custos focados neles de forma direta do que de outros problemas até maiores, mas que sejam mais gerais e de médio prazo e longo prazo, o que dá um viés aos deputados que tentam interpretar esses interesses, um viés muito imediatista talvez, e muito particularista. Não sei se essa minha primeira avaliação bate com sua interpretação dessas tramitações tão desiguais entre as propostas, sobre as quais você falou antes, e o projeto do governo.
BA: De fato, uma boa reforma tributária não é uma reforma em que todo mundo ganha, principalmente na tributação da renda. Em uma proposta bem desenhada, quem paga muito pouco hoje por conta das distorções do sistema atual vai ter que pagar mais.
No caso da reforma da tributação do consumo, tem setores que vão passar a pagar proporcionalmente mais do que pagam hoje e outros que irão pagar proporcionalmente menos. Obviamente isso tende a gerar resistência daqueles que acham que serão prejudicados, mesmo que eles efetivamente sejam beneficiados, por conta do maior crescimento.
Estamos diante de uma daquelas reformas em que o benefício para a sociedade é muito grande. Mesmo que acarrete uma redistribuição setorial da carga tributária, o maior crescimento favorecerá a todos os setores. Essa é a compreensão que precisa haver, assim como foi no caso da reforma da previdência, que apesar de prejudicar algumas pessoas era justa e necessária para garantir a solvência do país.
No caso da reforma tributária, temos de entender que existem distorções no sistema atual que prejudicam o crescimento e prejudicam a progressividade do sistema, e que, para corrigir essas distorções, pelo menos em termos proporcionais, alguns setores e algumas pessoas vão ter de pagar mais imposto do que pagam hoje, para que o país se torne mais eficiente e mais justo. Essa é uma discussão difícil do ponto de vista político, mas é uma discussão que acredito possível de ser feita. Se os parlamentares entenderem o quanto a correção dessas distorções torna o país mais eficiente e mais justo, o quanto isso ajuda o país a crescer de uma forma mais inclusiva, acho que existe espaço sim para avançar com essa pauta.
Nunca disse que é uma pauta fácil. Não é. Tecnicamente, acho que nós amadurecemos muito na discussão da reforma da tributação do consumo. Acho que ainda precisamos amadurecer mais na discussão da reforma do Imposto de Renda – olhar as várias alternativas que existem e avaliar custos e benefícios de cada uma delas. Sem dúvida, é um daqueles temas que mais cedo ou mais tarde o Brasil vai acabar enfrentando e, espero eu, enfrentando de forma adequada. Isso vai acabar acontecendo, caso contrário vamos continuar sendo um país que não cresce; um país excessivamente desigual. Temos de enfrentar essas questões se pretendermos tornar o Brasil um país mais inclusivo, que ofereça perspectivas para as pessoas. Não adianta resolver o problema distributivo e não ter crescimento. É fundamental abrir oportunidades para as pessoas com o crescimento econômico. E a reforma tributária trata dessas questões centrais para o futuro do Brasil: a questão distributiva, a questão do crescimento e a questão da inclusão social.
Saiba mais sobre o entrevistado
Bernard Appy é diretor do Centro de Cidadania Fiscal (CCiF), uma organização voltada a análises econômicas que buscam a melhora na gestão pública, além disto Bernard é o mentor da proposta de reforma tributária que está em transitou no congresso em 2019. Appy ficou em evidência nas eleições presidências de 2018, quando se tornou referência de diversos candidatos à presidência no modelo de pensar novas alternativas de pensar a aplicação do imposto de renda.
Caetano Araújo é graduado em Sociologia pela Universidade de Brasília (1976), mestre (1980) e doutor (1992) em Sociologia pela mesma instituição de ensino. Atualmente, é diretor-geral da FAP e Consultor Legislativo do Senado Federal. Tem experiência na área de Sociologia, com ênfase em Teoria Sociológica e Sociologia Política.
André Amado é escritor, pesquisador, embaixador aposentado e diretor da revista Política Democrática On-line. É autor de diversos livros, entre eles, A História de Detetives e a Ficção de Luiz Alfredo Garcia-Roza.
RPD || José Luis Oreiro: O retorno do rentismo no Brasil
Tesouro Nacional terá um gasto adicional de R$ 270 bilhões com o pagamento de juros sobre a dívida pública caso a Selic chegue a 11% ao ano
José Luis Oreiro
A eliminação da alta inflação no Brasil a partir da implementação do Plano Real durante o governo Itamar Franco teve como efeito colateral a persistência de patamares extremamente elevados para a taxa real de juros de curto-prazo, a taxa Selic. Durante o primeiro mandato do Presidente Fernando Henrique Cardoso, creditava-se essa persistência à adoção de um regime de bandas cambiais deslizantes, no qual o Banco Central do Brasil definia um “teto” e um “piso” para a taxa nominal de câmbio, definindo ex-ante o ritmo de depreciação de ambos de maneira a produzir uma desvalorização controlada da taxa de câmbio, ao mesmo tempo que se permitia que, no intervalo da banda cambial, a taxa de câmbio pudesse flutuar “livremente” com base nas condições de oferta e demanda de moeda estrangeira.
Durante a vigência desse regime cambial, a taxa Selic real média oscilou em torno de 20% a.a, permitindo que aplicações financeiras livres de risco tivessem taxa de retorno muito superior ao que poderia ser obtido com qualquer tipo de empreendimento do lado real da economia. Nesse contexto, a justificativa que os economistas convencionais davam para o elevado patamar da taxa Selic era a de que o regime de câmbio administrado impedia o ajuste na conta de transações correntes do balanço de pagamentos – fortemente deficitária durante o primeiro mandato de FHC –, o que exigia a entrada de capitais externos para financiar o balanço de pagamentos e, dessa forma, a manutenção da Selic em patamares elevados para atrair a “poupança externa” necessária para “financiar” o crescimento da economia brasileira.
Se esse diagnóstico fosse correto, o abandono do regime de câmbio administrado em janeiro de 1999, no início do segundo mandato de FHC, deveria ter reduzido a taxa Selic para patamares mais civilizados. Não foi isso o que ocorreu. Embora a Selic real tenha se reduzido para um valor próximo a 10% a.a no ano 2000, ela permanecerá num patamar de quase 9% a.a até o início da crise financeira internacional de 2008. Se considerarmos o período 2003-2016, a taxa Selic real média foi de 6,25% a.a, um valor 2,57 p.b superior à estimativa da taxa de juros de equilíbrio da economia brasileira, ou seja, da soma entre a taxa de juros internacional e do prêmio de risco país. Apesar do elevado patamar da taxa Selic, a análise da variação acumulada do IPCA em 12 meses no período compreendido entre janeiro de 2003 e setembro de 2017 mostra que a inflação acumulada em 12 meses permaneceu a maior parte do tempo acima do centro do regime de metas de inflação, tendo estourado o teto desse regime em diversos momentos.
A experiência brasileira parece mostrar de maneira bastante clara que a política de juros altos é ineficaz no que se refere a manter a inflação dentro das metas definidas pelo Conselho Monetário Nacional.
Os efeitos combinados da grande recessão de 2014-2016, com a estagnação do crescimento no período 2017-2019 e a pandemia do covid-19 fizeram com que, pela primeira vez num período de 25 anos, a taxa Selic alcançasse um patamar de 2% a.a em termos nominais no segundo semestre de 2020. Finalmente, parecia que o país por fim havia obtido a “eutanásia do rentista”, obrigando os ricos a aplicar sua riqueza em atividades produtivas.
Contudo, essa expectativa se demonstrou incorreta. Em função de uma série de choques de oferta ocorridos no Brasil (pior regime de chuvas nos últimos 90 anos) e no resto do mundo (interrupção das cadeias mundiais de fornecimento de insumos devido ao covid-19), a inflação no Brasil e no resto do mundo começa a se acelerar a partir do início de 2021. Enquanto os Bancos Centrais dos países desenvolvidos (FED, BCE, BOE e BOJ) interpretaram a aceleração inflacionária como um fenômeno temporário num ambiente ainda marcado por elevadas taxas de desemprego, mantendo inalteradas suas taxas de juros; o BCB inicia um ciclo de elevação da Selic, levando-a ao patamar de 7,75% a.a em outubro de 2021.
Alguns analistas argumentam que, se a Selic chegar a 11% a.a ao final do atual ciclo de “normalização da política monetária”, o Tesouro Nacional terá um gasto adicional de R$ 270 bilhões com o pagamento de juros sobre a dívida pública. Trata-se do maior programa de transferência de renda da história do Brasil, um programa no qual se transfere dinheiro de todos os contribuintes para uma pequena elite de rentistas que se situa no 1% mais rico da pirâmide de distribuição de riqueza do país. Ao que parece a morte do rentismo no Brasil foi uma notícia bastante exagerada.
Saiba mais sobre o autor
José Luis Oreiro é professor do Departamento de Economia da Universidade de Brasília, Pesquisador Nível IB do CNPq e Lider do Grupo de Pesquisa "Macroeconomia Estruturalista do Desenvolvimento", cadastrado no CNPq. É autor do livro "Macroeconomia do Desenvolvimento: uma perspectiva Keynesiana", LTC: Rio de Janeiro (2016). E-mail: joreiro@unb.br.
RPD || Élida Graziane Pinto: Inadiável necessidade de revisão do teto
Como está hoje teto tem asfixiado fiscalmente as políticas públicas asseguradoras dos direitos fundamentais
Élida Graziane Pinto / RPD Online
O teto vintenário chega a cinco anos de vigência em 2021, com impasses que foram se acumulando desde sua criação. Enquanto foram congelados os pisos em saúde e educação, houve controversa capitalização de empresas militares, persiste cessão de margem fiscal do Executivo para os outros poderes e órgãos para além do prazo definido inicialmente, e têm sido usados créditos extraordinários para pagar despesas previsíveis no segundo ano da pandemia. Na prática, o teto tem constrangido o custeio de políticas públicas amplas, mas não conseguiu conter o trato balcanizado das emendas do Orçamento Secreto, tampouco enfrentou as renúncias fiscais.
O maior impasse no teto dado pela Emenda 95/2016, porém, é sua seletiva incidência apenas sobre as despesas primárias. Ora, não é democrática, tampouco equitativa a interdição do mais amplo e íntegro levantamento de alternativas para fins de avaliação da sustentabilidade intertemporal da dívida pública brasileira.
Obstar o debate que inclua o maior número possível de interessados sobre os desafios sociais da nação, a pretexto de uma impossível neutralidade fiscal, é literalmente frustrar qualquer chance consistente de pactuar o futuro comum do país no pós-pandemia. Sem tal horizonte de planejamento, a sociedade fica presa ao curto prazo decisório dos agentes mais fortes do ponto de vista político e econômico.
Urge rever o teto, nesse contexto, uma vez que ele limita desarrazoada e exclusivamente a capacidade estatal de cumprimento da Constituição de 1988. É iníquo asfixiar fiscalmente as políticas públicas asseguradoras dos direitos fundamentais, sem correlata preocupação com as opções de arrecadação tributária e de gestão das despesas financeiras que impactam a dívida pública de forma opaca e ilimitada.
Sob a falsa premissa de que o teto deve ser mantido a qualquer custo mesmo diante dos efeitos prolongados da pandemia da Covid-19, muitas outras regras fiscais brasileiras têm sido submetidas a um cenário de terra arrasada. Com isso, implodem-se, pouco a pouco, os pilares institucionais e civilizatórios do país para manter a aparência de sustentação de um teto evidentemente em ruínas. A título de exemplo, cabe destacar que foram preteridas a transparência e a aderência ao planejamento das emendas de relator (Orçamento Secreto) e das transferências especiais definidas pela Emenda 105/2019, o que propiciou a ampliação significativa do balcão fisiológico de negócios no ciclo orçamentário brasileiro.
Tais exemplos atestam, sem pretensão de exaustividade, que não houve maior racionalidade alocativa com a imposição do teto global de despesas primárias no nível federal. O diagnóstico enviesado de que a crise das finanças públicas brasileiras estaria centrada apenas em tais despesas que amparam direitos sociais e serviços públicos universais apenas acirrou a histórica desigualdade pátria em patamar ainda mais extrativista.
O prognóstico para a crise fiscal brasileira em 2016 era o de que se precisava reduzir o tamanho do Estado. Em 2021, há clareza de que os vieses na identificação do problema e na proposta aprovada para sua resolução a partir da Emenda 95 agravaram a realidade fiscal do país tão frágil, quanto suscetível à captura de curto prazo eleitoral e de compadrio nas relações do Estado com o mercado e com o terceiro setor.
Tem sido corroído o aprendizado de mais de duas décadas da Lei de Responsabilidade Fiscal, tanto quanto se vive uma espécie de efeito dominó na mitigação de diversas balizas normativas em que se assentam as contas e as políticas públicas do país.
O maior risco, contudo, é o de que a sobrevivência artificial do teto, tratado como um fim em si mesmo por alguns, imponha o próprio esfacelamento do Estado Democrático de Direito. Ajuste fiscal equitativo reclama debate amplo sobre todas as opções de receitas e sobre todas as despesas, até porque tanto o orçamento, como a dívida pública somente são legítimos à luz da Constituição de 1988.
Mais cedo ou mais tarde a sociedade brasileira se dará conta de que manter o teto a qualquer preço pode custar o próprio núcleo de identidade do pacto constitucional civilizatório erigido há trinta e três anos. Afinal, a fome primordial é de alguma civilidade, sobretudo porque não há futuro comum onde prepondera a pilhagem do mais forte em sua lógica de curtíssimo prazo.
Saiba mais sobre a autora
Élida Graziane Pinto é procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo e Professora de Finanças Públicas da FGV-SP
Jamil Chade: Mundo à espera de que o Brasil cumpra promessas da COP26
País endossou compromissos que os líderes mundiais agora esperam ver concretizados. Sem eles, acordos, como Mercosul UE, ficam estacionados
Jamil Chade / El País
Num dos longos saguões do centro onde ocorria a Conferência da ONU para Mudança Climáticas, em Glasgow, os seguranças do secretário-geral das Nações Unidas, Antonio Guterres, abriam espaço entre dezenas de delegados para que o chefe do organismo internacional passasse com seu cortejo. Mas quando o português viu a reportagem do EL PAÍS, ele reduziu o passo, permitiu a aproximação e perguntou ao pé do ouvido: “e o Brasil, está se comportando?”.
A dúvida, porém, não era apenas do comando da ONU. Ao longo das últimas duas semanas, delegações estrangeiras, ministros e negociadores tinham a mesma reação diante do posicionamento do Brasil nas negociações climáticas: até que ponto os anúncios eram sinceros e representavam uma mudança na postura do governo? A suspeita que pairava não era por acaso. Voluntárias, sem obrigações legais e sem forma de fiscalização, as iniciativas que foram apoiadas pelo Brasil preveem acabar com o desmatamento ilegal e reduzir as emissões de gases de efeito estufa. Politicamente, elas têm um peso significativo.
Entre os especialistas estrangeiros e representantes de governos, todos sabiam que os anúncios do governo não implicavam em nenhuma exigência imediata ao país. Nada muda a partir da próxima segunda-feira. De fato, os cálculos do Climate Action Tracker revelaram que as promessas estavam longe de serem ambiciosas. A entidade qualificou o anúncio brasileiro de “altamente insuficiente” no esforço internacional para limitar o aquecimento do planeta a 1,5 grau Celsius e colocou o país no grupo mais irresponsável, em sua avaliação.MAIS INFORMAÇÕESBrasil eleva metas ambientais na COP26, mas não convence
Mas o cálculo do governo foi outro: fazer os anúncios custaria pouco. Afinal, qualquer medida só teria de começar a ser implementada nos próximos anos. Mas, em contraposição, ficar de fora ampliaria a situação de pária. A estratégia funcionou para desmobilizar a pressão por alguns dias, na esperança de que o confete que foi jogado ao ar fosse suficiente para criar uma cortina de fumaça até o final da COP26.
Enquanto os anúncios faziam seus efeitos visuais, diplomatas brasileiros corriam de um lado ao outro pelos corredores da COP26 costurando acordos, blindando posições do Brasil e desarmando a bomba que poderia transformar o país no principal vilão de um eventual fracasso em Glasgow. O Brasil, assim, abriu mão de sua posição histórica em crédito de carbono e conseguiu chegar a uma equação considerada “equilibrada”. O país insistia em que os créditos do Protocolo de Kyoto continuassem a ser contabilizados no mercado. Mas países ricos exigiram o novo sistema criado em Paris, em 2015, fosse o único.
Nada disso era suficiente para que o país reconquistasse sua posição de ator central das negociações climáticas. Negociadores estrangeiros explicaram que a recuperação desse status dependerá, no fundo, de que o governo prove que existe um plano consistente para as promessas que apresentou. “Não é uma questão de confiança”, disse o enviado americano para o Clima, John Kerry, ao ser questionado se acreditava em Bolsonaro. Para ele, o Brasil terá de adotar “medidas concretas” se quiser voltar a ganhar espaço internacional. Franz Timmermans, vice-presidente da Comissão Europeia, repetiu a mesma constatação. Para ele, os anúncios eram “passos importantes”. Mas questionado se era suficiente, ele hesitou: “Veremos”.
Dias antes, num texto publicado nas páginas oficiais da UE, o chefe da diplomacia do bloco, Josep Borrell, deixou claro que cobrou do governo não apenas promessas, mas ações. “Salientei a importância de que estes compromissos sejam plenamente implementados no terreno”, disse. “Vários interlocutores não governamentais enfatizaram as dificuldades que poderiam surgir nesta área, particularmente na questão do desmatamento ilegal, devido à falta de recursos e a interesses profundos que se opõem a ações para combatê-lo eficazmente”, alertou. Ele admitiu que existe um espaço para que os novos compromissos ambientais do governo brasileiro ajudem a fazer avançar a ratificação do acordo comercial entre Mercosul e Europa. Mas colocou um condicionante. Isso só seria possível “se realmente forem seguidos”.
Enquanto as dúvidas prevaleciam, o governo brasileiro optou por se manter atrás de um pavilhão bancado pelo agronegócio em Glasgow e no qual a palavra ‘desmatamento não era pronunciada. Ali, em seminários que apenas alimentavam o próprio bolsonarismo, o ministro do Meio Ambiente, Joaquim Leite, insistia que estava apresentando o “Brasil real”. Izabella Teixeira, ex-ministra do Meio Ambiente no Brasil, ironizava. “Era o Brasil geneticamente modificado”, disse.
Em Glasgow, a sociedade civil brasileira não fez parte da delegação oficial, ocupada integralmente por empresários e ruralistas. Leite sequer atendeu a um pedido das entidades e ambientalistas para visitar o local criado pelas ONGs brasileiras na COP26. Mas não se pode enganar todo mundo o tempo todo. Um choque de realidade apareceu quando, no último dia, dados do desmatamento foram revelados e revelaram o pior índice para o mês de outubro em toda a série histórica, que começou em 2016.
Leite, porém, se recusou a explicar os números e, numa constrangedora caminhada de cinco minutos pela COP26, se manteve em um silêncio ensurdecedor enquanto era bombardeado por perguntas sobre o desmatamento recorde. Enquanto ele fugia de uma resposta, Espen Barth Eide, ministro do Meio Ambiente da Noruega, não hesitou em constatar a gravidade daquela informação. Dono do maior fundo soberano do mundo e o principal financiador do Fundo Amazônia, o governo da Noruega afirmou estar preocupado com os recentes números de desmatamento no Brasil. “É algo sobre o qual precisamos refletir certamente”, disse. “Estou muito preocupado com o desmatamento que já existe”, afirmou.
Para ele, os novos números brasileiros devem ser uma “lembrança” de como é importante a questão do compromisso de governos em reduzir o desmatamento. Eide afirma que países que não seguirem esse caminho terão sua credibilidade minada. Assim, no último dia da COP26 e apesar de todos os esforços para achar que enganava o mundo, a máscara do bolsonarismo caiu. E o Brasil real reapareceu, melancolicamente.
Com PP, PL e Republicanos, Bolsonaro terá verba de campanha 30 vezes maior
Adesão do Centrão garante R$ 376 milhões à campanha de reeleição do presidente
Jussara Soares, Daniel Gullino e Bernardo Mello / O Globo
BRASÍLIA E RIO - Com filiação ao PL prevista para o próximo dia 22 e uma aliança apalavrada com PP e Republicanos, o presidente Jair Bolsonaro vislumbra uma estrutura com capilaridade e dinheiro em caixa para tentar a reeleição, num cenário bem distinto ao de 2018. A tríade de partidos deve dispor de cerca de R$ 376 milhões de fundo eleitoral em 2022, segundo levantamento do GLOBO com base na lei orçamentária do ano que vem. O montante é 30 vezes maior do que somou na última campanha a coligação entre o então nanico PSL e o PRTB, partido do vice-presidente Hamilton Mourão.
Leia ainda: Pandemia derruba 26 secretários de Saúde no país
Estimado na proposta do governo em R$ 2,1 bilhões, o valor do fundo eleitoral ainda pode mudar durante a tramitação do Orçamento. O Congresso chegou a aprovar um fundo de R$ 5,7 bilhões, vetado por Bolsonaro. Considerando a estimativa atual, o PL deve contar com R$ 127 milhões. Já o PP e o Republicanos receberiam R$ 143 milhões e R$ 106 milhões, respectivamente. Em 2018, PSL e PRTB somavam R$ 12,8 milhões do fundo eleitoral, dos quais cerca de R$ 500 mil foram repassados para a campanha de Bolsonaro. Dentro dessa estrutura de campanha, o presidente atribui até hoje sua vitória ao trabalho nas redes sociais, liderado por um dos filhos, o vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ), com o suporte da agência AM4, acusada posteriormente de financiar disparos em massa.
Se antes Bolsonaro criticava o fundo eleitoral e dizia ter intenção de se filiar a um partido pequeno, para ter controle total da montagem de candidaturas em 2022, mais recentemente ele foi convencido por outro filho, o senador Flávio Bolsonaro (Patriota-RJ), a selar a aliança com o Centrão, que tem maiores recursos para bancar despesas de propaganda e viagens pelo país. Como presidente, Bolsonaro só pode viajar em voos da Força Aérea Brasileira e acompanhado por seguranças da Presidência, mesmo na campanha eleitoral — neste caso, os valores precisam ser ressarcidos ao erário.
Dallagnol e Moro x Eunício e Jucá: embates judiciais da Lava-Jato vão migrar para as urnas
Em meio ao desgaste na imagem do governo e de olho numa polarização com o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), Bolsonaro também busca maior exposição no horário eleitoral em 2022. Integrantes do Centrão que fazem parte do governo, como o ministro Fábio Faria (Comunicações), que costura se filiar ao PP, defendem que Bolsonaro precisa de tempo de TV porque “vai ter muita coisa o que mostrar”. Só o PL já deve garantir cerca de 51 segundos, em um bloco de 12,5 minutos. Caso a coligação com PP e Republicanos seja confirmada, esse número pode chegar a 2 minutos e 20 segundos.
A combinação de fundo partidário com tempo de TV pode ser musculatura política de que Bolsonaro precisa para compensar a queda de popularidade que vem sofrendo nos últimos meses e que o fez aderir ao Centrão, grupo criticado por ele durante a campanha de 2018 e no início de governo.
— Esse é um governo que tem que mudar de estratégia agora, porque se elegeu no contrapé da política. Ou seja, no “não à política”, e agora precisa mostrar o que fez por ela ou com ela — afirma o cientista político Humberto Dantas, gestor de Educação do Centro de Liderança Pública.
Veja também: Prefeitos usam digitalização para 'engordar' seus caixas
A tríade de partidos também oferecerá capilaridade política a Bolsonaro: juntas, as legendas somam 1.210 prefeituras, 116 deputados e 12 senadores. Pessoas envolvidas no projeto da reeleição dizem que os caciques de PL, PP e Republicanos tendem a organizar os palanques regionais, além de acompanhar a estratégia nacional, enquanto Bolsonaro e os filhos devem atrair para si as diretrizes e o tom da campanha.
Em 2018, as três siglas integraram a coligação de Geraldo Alckmin (PSDB), que contou ainda com partidos como PSD e DEM, e totalizou mais de cinco minutos de tempo de TV, cerca de metade da duração de cada bloco. Apesar da estrutura, Alckmin teve menos de 5% dos votos válidos.
Eleições 2022: Pré-candidatos à Presidência investem no marketing político para promoverem suas imagens
Do outro lado da disputa, Lula também costura alianças, mirando siglas como PSB e PCdoB, podendo somar um volume de recursos similar ao da chapa de Bolsonaro. Sem o presidente, o PSL encaminhou fusão com o DEM para gerar o novo União Brasil, responsável por cerca de R$ 335 milhões do fundo eleitoral. A nova sigla estuda lançar o ex-ministro Luiz Henrique Mandetta, mas também avalia alianças com partidos como Podemos, que apresentou o também ex-ministro Sergio Moro como pré-candidato, e PSDB.
— O alinhamento para alianças tem que estar conectado a princípios apresentados por Moro, como combater a corrupção como meio de viabilizar reformas — afirmou a presidente do Podemos, Renata Abreu.
Outras siglas da terceira via, como PSD e MDB, que pretendem lançar, respectivamente, os senadores Rodrigo Pacheco (MG) e Simone Tebet (MS), podem formar coligações nas quais agregariam, cada um, cerca de R$ 150 milhões de fundo.
Mais distante do PSB após a volta de Lula e com impasses, especialmente no plano econômico, para se coligar na terceira via, Ciro Gomes pode repetir 2018, quando firmou aliança apenas com o Avante, e sair em campanha basicamente com recursos do PDT.
Fonte: O Globo
https://oglobo.globo.com/politica/com-pp-pl-republicanos-bolsonaro-tera-verba-de-campanha-30-vezes-maior-que-de-2018-1-25276578
Baixa aprovação de Bolsonaro põe em risco projeto de reeleição
Série de pesquisas indica que Bolsonaro está aquém de índices que presidentes e governadores tinham 12 meses antes do pleito
Bernardo Mello / O Globo
RIO — Restando cerca de um ano para a eleição de 2022, e com a avaliação positiva num patamar de 20%, segundo a pesquisa Datafolha mais recente, o presidente Jair Bolsonaro disputará novo mandato diante de um histórico desfavorável para governantes com taxas de aprovação semelhantes. Levantamento da consultoria Ideia Big Data para o GLOBO mostra que, desde 1998, quando a reeleição passou a ser permitida, presidentes e governadores que foram reconduzidos costumavam ter taxas de ao menos 40% de aprovação numa janela que compreende os 12 meses antes da votação.
Leia: Alckmin não vê diferença instransponível com Lula e não descarta ser vice do petista: 'Vamos ouvir'
Em 2018, ano em que pela primeira vez o presidente, Michel Temer (MDB), declinou de tentar outro mandato mesmo podendo concorrer, Bolsonaro chegou ao segundo turno e elegeu-se numa campanha com condições adversas. Além de pouca estrutura partidária com o então nanico PSL, Bolsonaro era o candidato com maior taxa de rejeição, sempre próxima a 40%, durante todo o primeiro turno. Para 2022, em que pesem as avaliações negativas de sua gestão, o presidente aposta no lançamento do Auxílio Brasil, programa que ocupará o lugar do Bolsa Família, para melhorar seu patamar de aprovação.
Metodologia
O levantamento da Ideia Big Data considerou as medianas — isto é, o valor intermediário, dentro de um conjunto de pesquisas — das taxas de aprovação de governantes que tentaram a reeleição. No caso de governadores, considerando pesquisas realizadas entre 12 e 9 meses antes da eleição, a mediana de avaliação positiva dos reeleitos foi de 41%. Já os não reeleitos eram aprovados por 27% a 30% do eleitorado.
Leia: Cem dias de Nogueira na Casa Civil: dividido entre 'amortecedor' e político em campanha
Nas três reeleições presidenciais desde 1998, a aprovação dos ocupantes dos cargos ficou acima de 30% no período de um ano que antecedeu os pleitos — a de Bolsonaro, hoje, é de 23%. A exceção, de acordo com o levantamento, foi a reeleição em 2006 do então presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), aprovado por 29% no fim de 2005. Às vésperas da eleição, porém, o petista chegou a 44%.
O diretor-executivo da Ideia Big Data, Mauricio Moura, vê pontos em comum entre o salto de Lula e o efeito buscado por Bolsonaro com o Auxílio Brasil. Com a imagem do governo desgastada à época pelo mensalão, Lula experimentou uma guinada positiva em paralelo à expansão do Bolsa Família, implementado por seu governo em janeiro de 2004. O programa, que beneficiava 8 milhões de famílias ao fim de 2005, ampliou gradativamente seu alcance até chegar a 11,2 milhões de famílias em julho de 2006, sem mexer no valor do benefício.
Bolsonaro, por sua vez, aposta no aumento do benefício para R$ 400 por família até o fim de 2022, mas sem planos de expandir a base atendida, que será menor do que no auxílio emergencial. Hoje, o Bolsa Família atende 14,6 milhões de famílias. A expectativa é que o Auxílio Brasil chegue a 17 milhões; a diferença corresponde à fila já existente para cadastro no programa. O auxílio emergencial, que também inclui desempregados e trabalhadores informais, tem hoje 39,4 milhões de beneficiários.
Leia: Em debate das prévias, Doria e Leite trocam farpas sobre apoio tucano ao governo Bolsonaro
— Além de uma aprovação muito menor que seus antecessores, Bolsonaro tem um saldo muito negativo entre aprovação e rejeição. Se ele apenas voltar a um patamar de 30% de aprovação, como já esteve antes, não é o suficiente. Precisaria ampliar um pouco também a faixa de eleitores que o consideram regular — avalia Moura.
Em setembro, o Datafolha mostrou que a avaliação negativa do governo era de 53%, mais de 30 pontos percentuais acima do índice de aprovação (22%).
Outras variantes
Especialistas têm avaliado que apenas o incremento do novo Auxílio Brasil, em um cenário de alta de preços, pode não ser suficiente para aumentar a popularidade de Bolsonaro. Segundo o IBGE, a inflação acumulada de 12 meses chegou a 10,6% em outubro, que registrou sua maior variação mensal desde 2002.
O cientista político Jairo Pimentel Jr. lembra que, em 2020, Bolsonaro já teve queda na popularidade após a redução pela metade do auxílio emergencial, originalmente de R$ 600, e da queda de quase 30 milhões no número de pessoas atendidas.
— Ainda que o auxílio emergencial tenha trazido um pico de popularidade a Bolsonaro em 2020, hoje ele tem cinco pontos a menos de avaliação positiva em relação ao período que antecedeu os pagamentos — afirma.
A socióloga Esther Solano aponta ainda uma percepção de “insegurança” das famílias por conta da migração de programas sociais. Em meio à tentativa de aprovar a PEC dos Precatórios — agora no Senado —, que abrirá espaço fiscal para o programa, o governo adiou o reajuste de R$ 400 do Auxílio Brasil para dezembro.