Bolsonaro
Marco temporal: STF ouve representantes das partes envolvidas e AGU
O julgamento prossegue nesta quinta (2), a partir das 14h, com a continuação das manifestações das partes admitidas no processo e da PGR
SCO/STF
Com manifestações das partes e de terceiros interessados, o Supremo Tribunal Federal (STF) deu prosseguimento, nesta quarta-feira (1), ao julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 1017365, com repercussão geral reconhecida (Tema 1.031). A questão em discussão é a definição do estatuto jurídico-constitucional das relações de posse das áreas de tradicional ocupação indígena e desde quando essa ocupação deverá prevalecer, o chamado marco temporal. Na quinta-feira (2), o julgamento será retomado com as manifestações restantes e o voto do relator, ministro Edson Fachin.
O caso
A controvérsia em julgamento é o cabimento de uma reintegração de posse requerida pela Fundação do Meio Ambiente do Estado de Santa Catarina (Fatma), atual Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina (IMA), de área localizada em parte da Reserva Biológica do Sassafrás (SC), ocupada pela Comunidade Indígena Xokleng. A terra foi declarada pela Fundação Nacional do Índio (Funai) como sendo de tradicional ocupação indígena. No recurso ao STF, a Funai sustenta que o caso trata de direito imprescritível da comunidade indígena, cujas terras são inalienáveis e indisponíveis.
Analisando a questão, o Tribunal Regional da 4ª Região (TRF-4) entendeu não haver elementos demonstrando que as terras seriam tradicionalmente ocupadas pelos indígenas, como previsto na Constituição Federal (artigo 231), e confirmou a sentença que havia determinado a reintegração de posse ao órgão ambiental.
Demarcação não concluída
O representante do IMA, Alisson de Bom de Souza, sustentou que o processo de ampliação da Terra Indígena (TI) Ibirama-La Klanõ não foi concluído, pois o procedimento administrativo foi interrompido após a edição da portaria pela Funai, sem a homologação pelo presidente da República. Ele defendeu que só podem ser consideradas como terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas as que estavam ocupadas por eles em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal.
Disse, ainda, que esse marco temporal já foi admitido pelo STF no julgamento sobre a Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Em nome dos princípios da segurança jurídica, do direito à propriedade e do ato jurídico perfeito, Souza pediu o desprovimento do recurso. Em seu entendimento, a reforma da decisão do TRF-4 representaria considerar que o direito fundamental indígena é superior aos demais.
Direito à organização
Em nome da Comunidade Indígena Xokleng, que ocupa a TI Ibirama-La Klanõ, Rafael Modesto dos Santos afirmou que o marco temporal legalizaria os ilícitos ocorridos até o fim do regime tutelar indígena, que prevaleceu até a promulgação da Constituição de 1988. Na sua avaliação, se esse critério tivesse sido utilizado no caso Raposa Serra do Sol, a demarcação teria sido feita em ilhas, e não de forma contínua.
Segundo ele, as condicionantes estabelecidas naquele caso foram necessárias para dar operacionalidade à decisão do STF. Observou, ainda, que o marco temporal é uma forma de negacionismo, pois nega a ciência antropológica, única capaz de definir os limites de um direito territorial indígena, com base na Constituição.
Também em nome do povo Xokleng, o professor Carlos Marés lembrou que, após longo debate, prevaleceu na Assembleia Constituinte a tese de que os povos indígenas têm direito à sua própria organização, em detrimento do estímulo à assimilação, que prevalecia até então. Essa opção derruba a tese do marco temporal, pois adota o conceito de ocupação tradicional.
Para o professor, dentro desse conceito constitucional, as terras de ocupação tradicional são as habitadas, usadas para atividades produtivas e imprescindíveis para a manutenção das condições ambientais e a reprodução física e cultural das sociedades indígenas. Para Marés, negar o território é negar a organização social, e estabelecer um marco temporal equivale a dizer que os indígenas serão integrados e que suas sociedades deixarão de existir.
Segurança jurídica
Com fundamento no princípio da segurança jurídica, o advogado-geral da União, Bruno Bianco, pediu que o STF reafirme as condicionantes aplicadas na demarcação da TI Raposa Serra do Sol para que sejam reconhecidas, como terras indígenas, apenas as tradicionalmente ocupadas na data de promulgação da Constituição de 1988. Segundo ele, naquele julgamento, o Supremo fixou balizas e salvaguardas para a promoção dos direitos indígenas e a garantia da regularidade da demarcação de suas terras.
De acordo com Bianco, desde então, foram adotados, como regra geral, o marco temporal e o marco tradicional, exceto quando verificado o esbulho renitente por não indígenas. O advogado-geral defendeu a necessidade de preservação da segurança jurídica em razão da tramitação na Câmara dos Deputados do Projeto de Lei (PL) 490/2007, que trata do marco temporal.
Bianco pediu também a revogação da tutela provisória incidental que suspendeu o parecer 01/2017 da AGU, que, segundo ele, buscou uniformizar a interpretação a ser aplicada pela administração pública federal e garantir isonomia aos processos demarcatórios nos moldes do que foi decidido pelo STF no julgamento de Raposa Serra do Sol. A tutela incidental, deferida pelo ministro Fachin, suspendeu, também, a tramitação de todos os processos e recursos judiciais que tratem de demarcação de áreas indígenas até o final da pandemia da Covid-19 ou o julgamento final do RE 1017365.
PR//CF
Fonte: SCO/STF
http://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=472244&ori=1
Bolsonaro veta punição para quem divulgar fake news
O presidente sancionou PL que revoga Lei de Segurança Nacional, mas vetou crime para quem praticar "comunicação enganosa em massa"
Thaís Paranhos / Metrópoles
O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) sancionou, com vetos, nessa quarta-feira (1º/9), projeto de lei que revoga a Lei de Segurança Nacional, criada durante a ditadura militar.
Entre os vetos do mandatário da República, está o trecho que prevê punição para quem praticar “comunicação enganosa em massa”. O PL determinava reclusão de 1 a 5 anos mais multa para quem “promover ou financiar, pessoalmente ou por interposta pessoa, mediante uso de expediente não fornecido diretamente pelo provedor de aplicação de mensagem privada, campanha ou iniciativa para disseminar fatos que sabe inverídicos, e que sejam capazes de comprometer a higidez do processo eleitoral”.
No veto, o chefe do Executivo diz que “a proposição legislativa contraria o interesse público por não deixar claro qual conduta seria objetivo da criminalização, se a conduta daquele que gerou a notícia ou daquele que compartilhou”. O presidente questiona também se “haveria um ‘tribunal da verdade’ para definir o que viria a ser entendido por inverídico”.
Por fim, o presidente alega que a proposta tem “o efeito de afastar o eleitor do debate político, o que reduziria a sua capacidade de definir as suas escolhas eleitorais”.
Inquérito das Fake News
Bolsonaro é investigado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no âmbito do Inquérito das Fake News, que apura a disseminação de notícias falsas. O relator do inquérito, ministro Alexandre de Moraes, incluiu o mandatário do país na investigação no último dia 4 de agosto, a pedido do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
O STF vai apurar se o presidente cometeu crimes durante a tradicional live de quinta-feira, na qual afirmou, sem provas, que houve fraude nas eleições presidenciais de 2018.
Outros vetos
O titular do Planalto também vetou trecho do PL que determinava punição para quem impedisse “o livre e pacífico exercício de manifestação” sob o argumento de que haveria dificuldade para definir “o que viria a ser manifestação pacífica”.
Fonte: Metrópoles
https://www.metropoles.com/brasil/politica-brasil/bolsonaro-veta-punicao-para-quem-divulgar-fake-news
Conrado Hübner Mendes: O que a Constituição queria do STF era coragem
Tribunal deveria cumprir seu próprio 'marco temporal' para julgar
Conrado Hübner Mendes / Folha de S. Paulo
A democracia brasileira precisa de um marco temporal. Não a tese jurídica que estabeleceu dia certo para atribuir direito territorial de povos originários, tese estranha à Constituição de 1988 e aos debates constituintes.
Falta à democracia brasileira um marco temporal para o STF tomar decisões. Não só um prazo razoável, mas a certeza de que, anunciada a pauta, não promoverá adiamentos contados em números de meses ou anos, como de costume. O STF não pode dizer que aprecia segurança jurídica se não oferece nem isso e se acomoda ao "devo, não nego, julgo quando quiser".
Nesta quarta-feira (1º) a corte começou a julgar mais um de seus casos históricos. Terá a chance de orientar a promessa constitucional de demarcação de terras indígenas, que acumula 28 anos de atraso (Constituição pedia que se encerrasse em cinco anos).
O caso chegou ao STF em 2016 e questiona aplicação, a outras demarcações territoriais, de critério construído no caso Raposa Serra do Sol, de 2009. Pautado para 2020, foi adiado sem maiores explicações.
Agora, corre risco de novo adiamento em função das ameaças de um presidente que comete crimes comuns e de responsabilidade. Basta um pedido de vista, e o tribunal jogará o tema para um futuro incerto enquanto a violência aumenta no campo.
A Constituição pede ao STF muitas virtudes institucionais. Duas para começar: primeiro, a coragem de decidir; segundo, a coragem de decidir certo.
Precisa saber que sua demora tem custos altos. Em torno de 1 milhão de pessoas estão hoje enredadas em conflitos por terra, invasões de territórios e assassinatos (relatório “Conflitos no Campo Brasil – 2020”, da Comissão Pastoral da Terra). A incerteza jurídica e um Congresso que busca legislar a toque de caixa contra direitos indígenas e socioambientais gera expectativa de leniência à delinquência e incentivos para desmatamentos e invasões.
Adiar e "deixar para o Congresso", como se ouviu, trairia a missão de uma corte constitucional, cuja razão de existir é impedir que o legislador viole a Constituição. Essa divisão de funções está presente em quase todas as democracias do mundo. Não significa usurpar, esvaziar ou se sobrepor ao Congresso, apenas lhe fazer contrapeso e proteger a ordem constitucional.
Em outros tempos, quando não havia presidente apontando canhão para o tribunal e ameaçando fechá-lo, o STF repetia essa ideia com muito orgulho e altivez retórica. Tempos sem riscos. A coragem de um tribunal constitucional se mede em tempos como hoje.
O STF também precisa saber que a decisão errada, sucumbindo às pressões do agronegócio (que investiu alto na desinformação e na compra de pareceres jurídicos), perpetuará efeitos dramáticos, tanto nos outros processos sobre o tema que hoje tramitam na corte, quanto nos processos administrativos hoje parados no Executivo.
E a generalização da tese do marco temporal é errada por muitas razões.
Ignora a literalidade do artigo 231 da Constituição (e o critério de "terras tradicionalmente ocupadas"). Ignora também a própria jurisprudência do STF sobre direitos dos povos indígenas. Em sucessivos casos, o tribunal estabeleceu que a "tradicionalidade" está relacionada ao modo de ocupação da terra, não ao tempo. A data marcada para reconhecimento de terra indígena é exigência desprovida, ironicamente, de "tradicionalidade jurisprudencial". Arbitrária, portanto.
Afirmar que a decisão do caso Raposa Serra do Sol firmou um precedente que deveria ser seguido esconde muita coisa: primeiro, a jurisprudência anterior; segundo, que esse caso isolado deixava explícito que sua tese não se aplicava a quaisquer outros; terceiro, que mesmo precedentes sólidos, mesmo em tradições jurídicas que se apegam a precedentes, devem ser revogados quando o erro para a situação presente se tornar evidente.
Pedimos ao STF, além de coragem, a dignidade do bom argumento e inteligência jurídica. Que seja um agente do rigor analítico, não da desinformação e do teatro retórico. Que não invoque números ou previsões sem citar fonte respeitável. Que não use analogias baratas ("Copacabana terá que voltar aos índios") ou dados espúrios, porque o assunto é sério demais.
*Professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e embaixador científico da Fundação Alexander von Humboldt.
Fonte: Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/conrado-hubner-mendes/2021/09/o-que-a-constituicao-queria-do-stf-era-coragem.shtml
Luiz Carlos Azedo: Estratégia do fracasso
A transformação do 7 de Setembro num Rubicão pode não ter sido uma boa ideia por parte de Bolsonaro, simplesmente porque as legiões não pretendem acompanhá-lo
Luiz Carlos Azedo / Nas Entrelinhas /
Em 8 de março do ano passado, a caminho de Washington, onde se encontraria com o então presidente Donald Trump, o presidente Jair Bolsonaro fez uma escala em Roraima e foi recepcionado por 400 apoiadores, ocasião em que anunciou a convocação de seus partidários para uma grande manifestação em 15 de março. Objetivo: pressionar o Congresso e o Supremo Tribunal Federal (STF). “É um movimento espontâneo, e o político que tem medo da rua não serve para ser político”, disse. Na verdade, nada era espontâneo, tudo estava sendo convocado pelas redes sociais, por um exército de robôs comandado pelo vereador Carlos Bolsonaro, o seu filho 02, que exerce o mesmo papel até hoje.
Pretendia pressionar o Congresso a votar seus projetos de regulamentação da execução de emendas parlamentares e politizar a pandemia da covid-19 e o fracasso da sua política econômica, que havia resultado num crescimento de apenas 1,1% do PIB em 2019. Uma retrospectiva do que veio depois mostra que deu tudo errado. A pandemia não era uma “gripezinha”, já se aproxima de 600 mil mortos e ainda nos ronda; a pressão sobre o Congresso fracassou, resultou num acordo com o Centrão, no qual boa parte dos investimentos do Orçamento da União ficou sob controle do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), o homem que tem na gaveta os pedidos de impeachment do presidente da República.
Mesmo assim, Bolsonaro insiste na estratégia fracassada. Ontem, chegou a Uberlândia montado num cavalo; depois, participou de uma motociata pelas ruas de cidade. “Vocês que devem dar o norte para todos nós que estamos em Brasília. E esse norte será dado com muito mais ênfase, com muito mais força no próximo dia 7”, disse o presidente da República, para quem os protestos do Dia da Independência, na semana que vem, serão um “momento ímpar”, no qual pretende dar “um recado para o Brasil e para o mundo, dizendo para onde este país irá”. O que será?
Cercado por apoiadores, com carros de som tocando jingles de campanha de 2018 (um crime eleitoral, que já custou os mandatos de muitos vereadores e prefeitos), disse que chegou a hora de “nos tornarmos independentes para valer”. Arrematou com a velha cantilena populista, que incendeia as manifestações, mas ignora o fato de que temos instituições políticas consolidadas e fortes, que atravessaram décadas e sobreviveram aos seus algozes eventuais: “Não aceitamos que uma ou outra pessoa em Brasília queira impor a sua vontade. A vontade que vale é a vontade de todos vocês”, afirmou. Obviamente, é uma alusão aos ministros Alexandre de Moraes e Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF).
Desmobilização
Após terminar o discurso em Uberlândia, seus apoiadores gritavam “eu autorizo”. Esse é o título de um abaixo-assinado que circula nas redes sociais, autorizando-o a fechar o Supremo e dar um golpe de Estado. Bolsonaro tem uma interpretação própria do artigo 142 da Constituição, na qual a atribuição de “comandante supremo das Forças Armadas” lhe daria o papel de suposto “Poder Moderador”. A ida a Uberlândia não foi por acaso: o Triângulo Mineiro é um importante centro de distribuição de mercadorias e grande mercado de carne bovina, para os quais convergem caminhoneiros de todas as regiões do país. A agenda de Uberlândia teve por objetivo convocar apoiadores para a manifestação que pretende realizar em Brasília no 7 de Setembro, que, desde ontem, dá sinais de desmobilização, segundo Polícia Rodoviária Federal (PRF), que monitora as estradas do país.
Não será surpresa outra incursão semelhante em São Paulo, onde enfrenta dois adversários figadais: o governador João Do- ria (PSDB) e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Em Brasília, o Congresso e o Supremo reagiram à mobilização, obrigando o presidente da República a reduzir a virulência de seu discurso. Em São Paulo, a tarefa coube aos agentes econômicos, principalmente à Fiesp, cujo prédio é um dos símbolos da Avenida Paulista, ao lado do Museu de Arte São Paulo (Masp), com seu espetacular vão central aberto ao público.
A transformação do 7 de Setembro num Rubicão pode não ter sido uma boa ideia por parte de Bolsonaro, simplesmente porque as legiões não pretendem acompanhá-lo nessa travessia, somente a extrema-direita, cujos líderes estão sendo investigados pela Polícia Federal no inquérito das “fake news”. Um deles, o ex- deputado Roberto Jefferson, presidente do PTB, teve sua prisão preventiva prorrogada. Quando fala em defesa da liberdade, Bolsonaro se refere exatamente a esses partidários que apostaram no golpe de Estado e, agora, estão enrolados com a Justiça.
A reação à transformação das comemorações do 7 de Setembro numa espécie de insurreição popular de direita foi muito forte não só nos meios políticos e econômicos, mas também nas Forças Armadas. O recado de que não tem apoio militar para dar um golpe de Estado chega por todos os canais, com o comentário de que as instituições são fortes e estão preparadas para garantir o Estado democrático de direito. Por isso, Bolsonaro faz um esforço danado para manter o ímpeto da mobilização.
Igor Gielow: Bolsonaro finge moderação e insufla atos golpistas no 7 de Setembro
Com filhos expostos, presidente modula discurso e tenta evitar ação contra bolsonaristas
Igor Gielow / Folha de S. Paulo
Uma nova jabuticaba brotou no Planalto Central: o ato em favor da liberdade e da democracia que prega contra as instituições e sonha com um golpe de Estado.
O autor da proeza botânico-política é, claro, Jair Bolsonaro. Afundado em uma crise entrópica que colhe elementos dos piores momentos de governos anteriores, o presidente tenta passar uma mão de verniz democrático nos atos que convocou em seu favor no feriado do 7 de Setembro.
Os sinais de deterioração do governo federal estão evidentes. Há risco de descontrole econômico como na época da Dilma Rousseff (PT), de apagão energético como no ocaso de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), turbulência política encarnada numa CPI como no primeiro governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Some-se a isso a contínua falta de coordenação no combate à pandemia e a crise institucional aguda, esta uma cortesia do próprio mandatário máximo, que já deixou claro o motivo da balbúrdia: não quer acabar preso e, se possível, ter condições competitivas na eleição de 2022.
Como se vê, entre o infortúnio e a incompetência dos pontos citados, há também cálculo intencional.
O presidente sabe que incorreu em vários atos que podem ser tipificados como crime de responsabilidade, e já até achou um modelo para se apoiar: o da ex-presidente boliviana Jeanine Añez.
Em mais de uma ocasião, Bolsonaro disse que o objetivo "deles", ou seja, dos seus adversários presumidos no Supremo Tribunal Federal, Congresso e sociedade, seria vê-lo na cadeia como a ex-colega, nas suas palavras presa "por atos antidemocráticos".
É uma senha para o acordo que gostaria de ver fechado, de anistia para si e para seus filhos políticos (4 de 5, até aqui). Como isso parece cada vez mais difícil, vide o cerco judicial à sua família e a crescente exposição do mais instável dos rebentos, o vereador Carlos, e do caçula Renan, só sobrou a Bolsonaro dobrar a aposta.
Com isso foi criado o sequestro do Dia da Independência pelo Bolsonarismo. Depois da bandeira brasileira e da camisa da seleção, o presidente orquestra a data como uma grande fanfarra golpista.
Só que isso se deu sob o olhar atento do Supremo. As prisões e ações cautelares envolvendo apoiadores do presidente o fizeram tentar corrigir o rumo, a partir da difusão de mensagens que sai da usina virtual da família.
Saíram os atos para pressionar, fechar ou demolir o Supremo e entraram convocações em nome da "liberdade", aspas compulsórias. Ninguém acreditou no mundo político, e com razão, ainda mais depois da batalha barulhenta pela derrotada aprovação do voto impresso, instrumento para contestação das eleições que está vendo cada vez mais difíceis em 2022.
O próprio Bolsonaro, incorrigível, não seguiu o plano. Usou um dia útil de trabalho que poderia ser dedicado a medidas contra a pandemia ou para amainar a crise energética à vista para ir fazer uma imagem a cavalo com a bandeira do Brasil em Uberlândia.
“A vida se faz de desafios. Sem desafios a vida não tem graça. As oportunidades aparecem. Nunca outra oportunidade para o povo brasileiro foi tão importante ou será importante quanto esse nosso próximo 7 de Setembro", disse.
Isso tudo em meio a frases quase diárias enaltecendo o caráter militarista de sua turma. Um dia emula um Hermann Göring tropical e diz que fuzis são mais úteis que feijões, noutro, encarna um Flávio Vegécio sem o latim ("Se vis pacem, para bellum”, Se queres a paz, prepara-te para a guerra).
Além disso, o presidente reagiu ao ensaio de manifesto em favor da democracia ameaçando tirar bancos oficiais da Febraban, e sacou um próprio papelucho da federação das indústrias de Minas para chamar de seu —no caso, cobrando do Supremo a tal liberdade.
A corte até aqui não se dobrou à pressão, agindo em quase uníssono como sempre faz quando é atacada, referendando até decisões que são vistas como arbitrárias em diversos setores.
O motivo único de Bolsonaro é manter a voltagem política alta, como no episódio do desfile vazio de tanques fumacentos em Brasília.
Se poucos no establishment acreditam que as Forças Armadas poderiam embarcar na canoa golpista de um presidente isolado e instável, muitos temem que confusões de rua envolvendo polícias estaduais possam tragar os fardados a algum tipo de impasse constitucional.
E há a percepção, talvez exagerada, talvez não, de que existe clima em algumas tropas para tanto. Se o preço da liberdade é a eterna vigilância, para ficar num clichê sempre lembrado em postagens bolsonaristas, o melhor que a classe política mais séria faz é ficar atenta.
O problema maior parece estar em Brasília, capital com uma das Polícias Militares mais explicitamente bolsonaristas do Brasil. Além de eventuais confrontos, a vulnerabilidade dos prédios na praça dos Três Poderes já gerou uma requisição de ação armada federal, em 2017, por parte da Câmara. Bolsonaro protegeria o Supremo a pedido de Luiz Fux?
Assim caminha para mais uma curva o trem fantasma da política brasileira. A avaliação nos governos paulista e do Distrito Federal é de que os atos do 7 de Setembro serão maiores do que as manifestações em favor de Bolsonaro mais recentes —o quanto, não se sabe.
Elas podem também fracassar, o que parece mais difícil, e aí Bolsonaro terá sentido o gostinho da fórmula Jânio Quadros de autogolpe, em uma escala obviamente reduzida.
A novidade da presença do próprio presidente nas duas capitais já garantirá um espetáculo de golpismo explícito, e é a prova mais cabal que qualquer moderação prometida inspira tanta confiança quanto aquela na palavra dos talibãs que tomaram Cabul e disseram que as mulheres nada tinham com que se preocupar.
Fonte: Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021/09/bolsonaro-finge-moderacao-e-insufla-atos-golpistas-no-7-de-setembro.shtml
Motoboy confirma que fazia saques e pagamentos em dinheiro para VTCLog
Marcos Tolentino, que tinha depoimento previsto para hoje, informou à comissão que está internado por causa da covid-19
Cássia Miranda, Daniel Weterman, Eduardo Gayer e Julia Affonso / O Estado de S. Paulo
O motoboy Ivanildo Gonçalves confirmou, em depoimento à Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid nesta quarta-feira, 1º, que fazia saques e pagamentos em dinheiro para a VTCLog, empresa suspeita de envolvimento em um esquema de corrupção no Ministério da Saúde. O nome do motoboy apareceu em um relatório do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), que identificou R$ 4 milhões em saques em espécie para a VTCLog. Informações citadas pelo relator da CPI, Renan Calheiros (MDB-AL), apontam diversos saques neste ano.
O maior valor individual retirado, conforme depoimento de Gonçalves, foi em torno de R$ 400 mil na agência da Caixa no aeroporto de Brasília. Ele relatou que, quando sobrava dinheiro após os pagamentos, ele devolvia à empresa. No início da sessão, o relator da CPI, anunciou a inclusão de nove nomes na lista de investigados pelo colegiado (veja abaixo). Entre os alvos, estão o ministro da Previdência e Trabalho, Onyx Lorenzoni (DEM-RS), e o deputado Osmar Terra (MDB-RS).
Acompanhe:
Com o depoimento do motoboy, a CPI espera confirmar uma parte do esquema de corrupção e identificar quem era responsável pelas operações suspeitas de irregularidades no Ministério da Saúde. A comissão apura se o ex-diretor de Logística da pasta Roberto Ferreira Dias foi beneficiado nas transções. Dias chegou a ser preso quando prestou depoimento na comissão.
De acordo com Gonçalves, a ordem dos saques e pagamentos vinham de Zenaide Sá Reis, responsável pelo setor financeiro da empresa. O motoboy trabalha na VTCLog desde 2009. "O financeiro da empresa me passava os cheques para mim fazer os saques e aí eu executava", disse o funcionário. "Era na boca do caixa." Ele relatou que, ultimamente, o volume de movimentações teria diminuído.
No início do depoimento, os senadores apontaram contradições na declaração e falta de informações precisas. O motoboy relatou que, após os saques em espécie, pagava boletos e fazia depósitos em contas indicadas em anotações. Ele negou ter entregado dinheiro na mão de outras pessoas ou ter feito transferências entre contas, contrariando uma informação da CPI de que ele entregaria recursos para fornecedores da empresa.
No início da sessão, o relator da CPI incluiu na lista de investigados outros integrantes do governo do presidente Jair Bolsonaro, o que aumenta o cerco da CPI contra Bolsonaro.
No total, a lista tem 29 investigados. Ao incluir esses alvos, a CPI passa a tratá-los como suspeitos de ter participado de um crime. Isso porque a comissão classifica como investigadas aquelas pessoas contra as quais há provas e indícios veementes. Segundo assessores do Congresso, a alteração do status desobriga o investigado a assinar um termo para falar somente a verdade. Como não está obrigado a produzir provas contra si mesmo, o investigado não precisa falar nem dizer a verdade.
Novos investigados
O relator pretende entregar o relatório final da CPI ainda em setembro. Novos desdobramentos da comissão, porém, podem estender o funcionamento para o prazo final, em novembro. Isso porque a comissão começa a aprofundar hoje a apuração de um suposto esquema de corrupção envolvendo a empresa VTCLog, que fechou contratos suspeitos com o Ministério da Saúde.
Veja a lista de novos investigados:
- Cristiano Carvalho, representante da Davati
- Emanuela Medrades, diretora da Precisa
- Helcio Bruno de Almeida, fundador do Instituto Força Brasil
- Luciano Hang, dono da Havan
- Luiz Paulo Dominghetti Pereira, representante da Davati
- Marcelo Bento Pires, ex-assessor do Ministério da Saúde
- Onyx Lorenzoni, ministro do Trabalho e Previdência
- Osmar Terra, deputado federal
- Regina Célia Oliveira, fiscal do contrato da Covaxin
Motoboy
Ivanildo depõe amparado por uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que o permite ficar calado e até mesmo não comparecer à sessão, como fez ontem. Contudo, de acordo com Aziz, o motoboy, que prestou serviços à VTCLog, empresa que firmou contratos suspeitos com o Ministério da Saúde, aceitou comparecer ao colegiado, sinalizando disposição em colaborar.
Na sessão de ontem, o relator da CPI da Covid, apresentou imagens que mostrariam o motoboy em uma agência do Bradesco, em Brasília, no mesmo momento em que cinco boletos atribuídos ao ex-diretor do Departamento de Logística do Ministério da Saúde Roberto Ferreira Dias eram pagos. Após entrar na mira da CPI, Dias foi demitido da pasta em no fim de junho.
Os boletos pagos em nome de Dias foram emitidos pela Voetur, grupo empresarial ao qual a VTCLog pertence. A CPI ainda busca entender por que o motoboy da VTCLog teria pago boletos do ex-diretor do ministério.
O nome do motoboy consta em um relatório do Coaf em posse da comissão que investiga a VTCLog, responsável por fazer a logística com contratos e transportar insumos para o Ministério da Saúde. Conforme o requerimento de convocação, de autoria do vice-presidente da CPI, senador Randolfe Randolfe (Rede-AP), Ivanildo é um “aparente intermediário em esquemas duvidosos da empresa VTCLog”.
O motoboy foi citado em relatório do Coaf, que identificou R$ 4 milhões em saques em espécie para a VTCLog, durante o período de janeiro a julho de 2018. A transportadora entrou na mira da comissão sob suspeita de novas irregularidades depois de relatórios da área técnica do Tribunal de Contas da União (TCU) apontarem o superfaturamento de R$ 16 milhões em contratos com o Ministério da Saúde.
No pedido de convocação, Randolfe argumenta que, apesar de ser “apenas um motoboy”, com salário em torno de R$ 2 mil, Ivanildo é responsável por cerca de 5% de toda a movimentação atípica feita pela VTCLog.
Tolentino
Até esta manhã, a pauta de hoje previa a inquirição do advogado e empresário Marcos Tolentino, sobre suposto esquema de favorecimento da Precisa Medicamentos no Ministério da Saúde. No requerimento de convocação de Tolentino, apresentado pelo vice-presidente da CPI, o empresário também é apontado como “sócio oculto” da FIB Bank. Tolentino, no entando, informou à comissão que está internado no Hospital Sírio Libanês, em São Paulo, por causa de sequelas da covid-19. O empresário foi infectado pela doença em março.
A FIB Bank, empresa, que não é um banco, ofereceu garantia financeira de R$ 80,7 milhões em um contrato firmado entre a Precisa e o Ministério da Saúde para a compra de 20 milhões de doses do imunizante indiano por R$ 1,6 bilhão.
Em depoimento cheio de contradições, em 25 de agosto, o diretor da FIB Bank, Roberto Pereira Ramos, disse que Tolentino é advogado de Ricardo Benetti, dono da empresa Pico do Juazeiro, uma das atuais sócias da FIB Bank.
“Amigo pessoal” de Barros
Dono da Rede Brasil de Televisão, Tolentino é amigo pessoal do líder do governo na Câmara, Ricardo Barros (Progressistas-PR). O deputado foi recentemente incluído na lista de investigados pela CPI. A comissão investiga se o parlamentar agiu em benefício de terceiros para levar o Ministério da Saúde a negociar com a Precisa Medicamentos e com a farmacêutica Belcher.
Antes do início da sessão de ontem, o relator do colegiado, senador Renan Calheiros, disse que Barros é comandante de um “dos maiores esquemas de roubalheiras” e merece ser “exemplarmente punido”. O deputado nega qualquer irregularidade.
Durante depoimento à comissão, em 12 de agosto, Barros admitiu proximidade com o depoente de hoje. “Marcos Tolentino é um amigo meu pessoal, dono da Rede Brasil Televisão. Tenho rádio há 40 anos e sempre nos encontramos nos eventos de radiodifusão em todo o Brasil”, disse o deputado.
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Fonte: O Estado de S. Paulo
https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,cpi-da-covid-ouve-nesta-quarta-marcos-tolentino-citado-como-socio-oculto-da-fib-bank,70003827766
*Título do texto original alterado para publicação no portal da FAP
Onyx, Osmar Terra e Luciano Hang entram na lista de investigados da CPI
Relator da CPI da Covid-19 anunciou novos nomes antes do depoimento do motoboy Ivanildo Gonçalves, da VTCLog
Marcelo Montanini e Victor Fuzeira / Metrópoles
O relator da CPI da Covid-19, Renan Calheiros (MDB-AL), anunciou, nesta quarta-feira (1°/9), novos nomes de investigados pela comissão. O ministro do Trabalho e Previdência, Onyx Lorenzoni, o deputado Osmar Terra (MDB-RS) e o empresário bolsonarista Luciano Hang (foto em destaque) foram incluídos na lista do colegiado.
Constam também na relação de investigados os vendedores Cristiano Carvalho e Luiz Paulo Dominguetti, da Davati Medical Supply, a diretora da Precisa Medicamentos, Emanuela Medrades, o coronel Helcio Bruno, do Instituto Força Brasil, e o coronel Marcelo Pires.
Onyx e Hang foram os únicos deste rol que ainda não prestaram depoimento à comissão. Entretanto, o empresário bolsonarista ainda deve depor em meados de setembro.
A comissão ouve, nesta quarta-feira, o motoboy Ivanildo Gonçalves da Silva, da VTCLog, que teria sacado R$ 4,7 milhões para a empresa, parte desse montante em espécie.
Fonte: Metrópoles
https://www.metropoles.com/brasil/politica-brasil/onyx-osmar-terra-e-luciano-hang-entram-na-lista-de-investigados-da-cpi
O que está em jogo no Brasil é ruptura do pacto civilizatório de 1988
Constante deslegitimação das instituições democráticas colocam em xeque a possibilidade de um país menos desigual
Ricardo Machado / IHU Online
O clima de sucessão presidencial no Brasil está posto. Mas a tensão comum desses períodos, apesar de o debate estar bastante adiantado, com mais de um ano de antecedência em relação ao pleito, mostra que a escalada da violência política subiu mais alguns degraus. “Não há dúvida nenhuma de que temos uma combinação bastante perigosa, com uma militância extremista radicalizada e uma liderança disposta a tumultuar e melar o processo. Se não forem, desde já, tomadas medidas a fim de conter a campanha de Bolsonaro e seus principais aliados contra as eleições, nós corremos o sério risco de termos uma escalada de violência política, pior ainda do que aquela ocorrida durante a campanha das eleições de 2018”, pontua o professor e pesquisador Luis Felipe Miguel, em entrevista por telefone ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU.
Embora em várias pesquisas Lula apareça como líder das intenções de voto, as condições de um possível retorno e de governo do ex-presidente são bastante diferentes de 20 anos atrás. “Lula chegou à presidência nas eleições de 2002 com o compromisso de se manter em um programa de extrema moderação para não assustar a burguesia e a promessa de pacificar o país, por meio da inclusão social, sem afetar os privilégios dos grupos minoritários”, explica.
No entanto, explica o professor, a margem de manobra para que um hipotético governo Lula promova políticas compensatórias de combate à pobreza é bastante adversa. “O estado brasileiro foi severamente atingido pelas medidas de redução da sua capacidade de ação tomadas a partir do governo Michel Temer e porque existiu nesse período um processo de retirada brutal de direitos”. A instabilidade democrática não somente coloca em risco o futuro do Brasil, como compromete o pacto firmado com a Constituição de 1988, que, segundo o entrevistado, “apontava na direção de um Estado social, capaz de reduzir o padrão aberrante de desigualdade que impera no Brasil”.
Luis Felipe Miguel é doutor em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas - Unicamp, mestre em Ciência Política pela Universidade de Brasília - UnB e graduado em Comunicação Social pela Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC. Leciona no Instituto de Ciência Política da UnB, onde coordena o Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades (Demodê). Publicou, entre outros, os livros Democracia e representação: territórios em disputa (Editora Unesp, 2014), Consenso e conflito na democracia contemporânea (Editora Unesp, 2017) e Dominação e resistência (Boitempo, 2018).
Confira a entrevista.
IHU – Como o senhor avalia o atual cenário político brasileiro, com ameaças de golpe, tentativas de deslegitimação das urnas eletrônicas e um processo constante de questionamento e tensionamento entre as instituições?
Luis Felipe Miguel – Bolsonaro é um político de baixa competência, que não sabe negociar, que não tem capacidade de agregar e não sabe trabalhar coletivamente, como prova, aliás, sua incapacidade de formar um partido. Toda sua estratégia consiste em manter elevado o nível da tensão política. Graças a isso sua base fica mobilizada agressivamente e mantém os adversários na defensiva. No momento em que as chances eleitorais dele estão claramente se reduzindo para 2022, ele está optando por aumentar ainda mais o nível desta tensão que já foi mantida alta durante todo o mandato. Claramente está apostando em uma virada de mesa, ou seja, um novo golpe, a contestação do resultado das eleições de 2022 ou mesmo a tentativa de impedir a realização das próximas eleições. Ou está apostando em garantir que após a sua provável derrota nas urnas ele terá uma base militante minoritária, mas muito aguerrida, capaz de garantir que ele e seus familiares não sejam atingidos pelas medidas punitivas às quais certamente fazem jus, dadas todas as evidências recolhidas até aqui.
Se não forem, desde já, tomadas medidas a fim de conter a campanha de Bolsonaro e seus principais aliados contra as eleições, nós corremos o sério risco de termos uma escalada de violência política – Luis Felipe Miguel Tweet
IHU – Estando a mais de um ano das eleições, o que é possível projetar sobre o próximo pleito, senão do resultado, ao menos de suas condições de realização?
Luis Felipe Miguel – Sobre as eleições do próximo ano, creio que a única coisa que se pode dizer com algum grau de certeza é que, infelizmente, serão realizadas em um contexto de muita tensão. O bolsonarismo tem trabalhado para que não tenhamos uma campanha eleitoral com o mínimo de civilidade, de discussão sobre as alternativas para o país, sobre o significado das candidaturas. O que ele está fazendo é, deliberadamente, produzir suspeitas infundadas sobre o processo eleitoral, ao mesmo tempo que insufla sua base – composta por uma parte importante de homens armados – contra as candidaturas alternativas à dele, em particular aquela que é favorita neste momento, a do ex-presidente Lula.
Não há dúvida nenhuma de que temos uma combinação bastante perigosa, com uma militância extremista radicalizada e uma liderança disposta a tumultuar e melar o processo. Se não forem, desde já, tomadas medidas a fim de conter a campanha de Bolsonaro e seus principais aliados contra as eleições, nós corremos o sério risco de termos uma escalada de violência política, pior ainda do que aquela ocorrida durante a campanha das eleições de 2018.
Sobre as eleições do próximo ano, creio que a única coisa que se pode dizer com algum grau de certeza é que, infelizmente, serão realizadas em um contexto de muita tensão – Luis Felipe Miguel. Tweet
IHU – A pesquisa da XP/Ipespe divulgada no dia 17/8 indica que, no primeiro turno, Lula tem vantagem sobre todos candidatos e que, no segundo turno, tanto Lula quanto Ciro são capazes de vencer Bolsonaro. O que essa pesquisa sugere sobre o atual contexto político?
Luis Felipe Miguel – Este cenário tem reaparecido em todas as pesquisas mais recentes. Não há dúvidas de que há hoje um claro favoritismo do ex-presidente Lula, não apenas pontuando com larga vantagem sobre os adversários, particularmente sobre Bolsonaro no primeiro turno, ganhando com larga vantagem no segundo turno, como também existe uma tendência de queda da rejeição ao nome do ex-presidente Lula. Parece que o fantasma do antipetismo, que foi muito importante para garantir a vitória da extrema direita em 2018, e que ainda é apresentado por alguns candidatos que tentam se viabilizar como sendo um fator determinante na eleição, começa a ser superado.
Creio que vários fatores contribuíram para isso e gostaria de citar três em particular.
1) O primeiro, claro, é o desastre absoluto do governo resultante da campanha antipetista, que é o governo Bolsonaro. Um governo que trouxe ao país um rastro de destruição e demolição do Estado brasileiro, das instituições democráticas, além, é claro, da nossa contagem de centenas de milhares de mortos, em grande medida resultado da condução absolutamente irresponsável da pandemia.
2) O outro fator é a desmoralização da Operação Lava Jato. Desde sempre pesavam suspeitas mais do que sérias sobre a condução da Lava Jato por Sergio Moro e Deltan Dallagnol, além de outros participantes da força-tarefa. A partir sobretudo das revelações feitas pelo The Intercept Brasil, ficou mais do que evidente que a operação foi uma conspiração contra a democracia brasileira, e o ex-presidente Lula foi o principal alvo desta conspiração. Isso claramente pode reverter uma parte da antipatia construída contra ele.
3) O terceiro motivo se liga a quando Lula é finalmente solto de sua prisão política e arbitrária e, depois de recuperar os seus direitos políticos, consegue, rapidamente, se colocar diante do país como sendo a grande esperança de superação da situação em que nos encontramos. Naquele momento o Brasil testemunhava o pior momento da pandemia, e isso em uma situação em que as outras lideranças da oposição, particularmente as de direita, que o governador (João) Doria buscou encarnar em primeiro lugar, mostraram-se pouco capazes de conter o desastre que o bolsonarismo representava. Naquele momento Lula se tornou capaz de ser, tal como havia sido nas eleições de 2002, uma esperança de salvação para o país. Isso está se refletindo nas pesquisas de opinião.
Claramente é impossível fazer previsões faltando mais de um ano para o pleito de 2022, mas Lula entra na campanha eleitoral com essa bagagem de simpatia, novamente portador da esperança popular e isso, sem dúvida nenhuma, faz com que o favoritismo dele tenha um certo grau de solidez.
Acredito ser improvável que um terceiro nome alce voo, exceto na hipótese, infelizmente remota, do impedimento de Bolsonaro
Luis Felipe Miguel
IHU – Aliás, como o senhor avalia a possibilidade de uma terceira via? Quais são as condições hoje e quais as possibilidades de mudança até as eleições?
Luis Felipe Miguel – Acredito ser improvável que um terceiro nome alce voo, exceto na hipótese, infelizmente remota, do impedimento de Bolsonaro. Ou seja, de que ele não possa apresentar sua candidatura, quando, aí sim, há a possibilidade de um outro nome à direita se colocar. Mas, mantida a candidatura de Bolsonaro, parece pouco provável que a direita tradicional consiga colocar outro nome forte na disputa. Existem nomes que têm estrutura, que estão há muito tempo presentes e têm ativos a seu favor, como é o caso do governador Doria, que dirige o estado mais rico do Brasil, se projetou como o pai da vacina brasileira e tem a simpatia da mídia corporativa e de parte do empresariado, mas, apesar disso, continua patinando em torno dos 5% das intenções de voto. É muito improvável que um candidato como Doria aumente sua aceitação, pois mesmo com todos esses recursos não consegue ultrapassar a linha em que está.
Por outro lado, a tentativa de lançar um outsider como foi tentado com Luciano Huck, que acabou retirando sua candidatura da disputa – e, às vezes, aparecem nomes de outros apresentadores de televisão –, é um caminho muito mais difícil quando o país vive a ressaca da antipolítica. Quando os candidatos que procuravam representar um rechaço à classe política foram testados, deu no que deu. Desse ponto de vista, a possibilidade de que surja um nome surpresa me parece bem pouco auspiciosa.
Sobra o caso do candidato Ciro Gomes, que tenta se colocar como o nome da terceira via, inclusive se colocando de uma maneira bastante agressiva e buscando se distanciar da esquerda representada pelo PT e por Lula. A questão é que Ciro, além das dificuldades já conhecidas por quem acompanhou todas suas outras tentativas de chegar à presidência da República, enfrenta hoje o fato de que se descredenciou da esquerda, exatamente por não ter se engajado no segundo turno contra Jair Bolsonaro, como todos nós sabemos, e preferiu ir a Paris. Ao mesmo tempo a direita mantém uma desconfiança de que ele, embora tenha tido sua origem política na Arena, há muito tempo buscou se colocar como um político com perfil à esquerda. As pesquisas não indicam somente um movimento momentâneo, mas algo que está se cristalizando no cenário político eleitoral. Isso tudo nos leva a crer que a tendência é Ciro ficar abaixo do seu teto histórico que é de 12% dos votos, o que é insuficiente, portanto, para ele chegar ao segundo turno.
A questão é que Ciro, além das dificuldades já conhecidas por quem acompanhou todas suas outras tentativas de chegar à presidência da República, enfrenta hoje o fato de que se descredenciou da esquerda
Luis Felipe Miguel
IHU – Quais são as diferenças entre as atuais condições político-eleitorais de Lula para o pleito de 2022 em comparação com 2002? Em suma, qual o clima político que vivemos em relação a Lula?
Luis Felipe Miguel – Lula chegou à presidência nas eleições de 2002 com o compromisso de se manter em um programa de extrema moderação para não assustar a burguesia e a promessa de pacificar o país, por meio da inclusão social, sem afetar os privilégios dos grupos minoritários. Foi o que ele tentou fazer. Foi esse o grande programa do lulismo no poder. No entanto, apesar de toda essa prudência, com reformas tímidas, controladas, autolimitadas, que Lula e depois a Dilma introduziram, acabaram se desencadeando processos na sociedade brasileira que incomodaram os grupos dominantes.
A redução da vulnerabilidade dos mais pobres, dos trabalhadores, necessariamente aumenta a sua capacidade de barganha diante dos grupos sociais dominantes. Foi contra isso que foi desferido o golpe de 2016, que teve o claro sentido de devolver o país às condições ainda mais gritantes de desigualdade social que vigoravam antes dos governos petistas. No momento o presidente Lula recupera a interlocução com vários dos grupos que foram responsáveis pelo golpe que retirou o PT do poder. Ele parece querer reconstruir as condições de governabilidade que lhe permitiram exercer o mandato após a vitória em 2002.
A redução da vulnerabilidade dos mais pobres, dos trabalhadores, necessariamente aumenta a sua capacidade de barganha diante dos grupos sociais dominantes. Foi contra isso que foi desferido o golpe de 2016 – Luis Felipe Miguel Tweet
No entanto, a margem de manobra para que ele promova políticas compensatórias de combate à pobreza extrema está muito diminuída. O estado brasileiro foi severamente atingido pelas medidas de redução da sua capacidade de ação tomadas a partir do governo Michel Temer e também porque existiu nesse período um processo de retirada brutal de direitos. Em suma, o pacto que Lula fez em 2002, caso seja refeito agora, precisará ser feito em condições muito mais precárias. A estratégia de nenhum enfrentamento que o PT adotou nos governos Lula e Dilma parece, neste momento, estar fadada ao fracasso. As classes dominantes brasileiras mostraram que estão dispostas a aproveitar a correlação de forças favorável a elas e romper com os acordos que foram feitos com os representantes das classes dominadas. Tendo a acreditar que se um novo governo de centro-esquerda no Brasil não investir mais na mobilização de suas bases para garantir melhor correlação de forças para o progresso social, nós teremos uma reedição muito aviltada do lulismo que imperou a partir da vitória nas eleições de 2002.
IHU - Em seu texto publicado na FSP – Favorito em 2022, Lula pode normalizar desmonte do país se ceder demais – o senhor afirma que “Lula é a melhor promessa de pacificação do país”. Por quê?
Luis Felipe Miguel – Creio que são dois os motivos. Primeiro, por causa do perfil de Lula, que é um político voltado à negociação, à produção de consensos, um político que faz questão de manter abertas as portas do diálogo com todas as forças. Essa é uma característica que Lula traz desde o sindicalismo e que faz dele a pessoa, certamente, com as maiores condições e com a maior habilidade para conduzir o país a um cenário de disputa política mais civilizado. Mas, também, pelo fato de que Lula, como líder do PT e líder popular, que foi e é, foi o principal alvo dos retrocessos que o Brasil sofreu nos últimos tempos. Quer dizer, se quisermos simbolizar em uma pessoa a destruição da ordem regida pela Constituição de 88, essa pessoa é o Lula: foi ele quem se tornou um preso político por mais de um ano; ele foi o principal alvo da conspiração contra a democracia, representada pela Lava Jato; ele que foi impedido de disputar as eleições de 2018. Então, simbolicamente, Lula representa uma tentativa de retomada do caminho de construção democrática que foi interrompido com o golpe de 2016.
O pacto que permitiu os governos do PT, o pacto que Lula firmou ao longo de 2002, era um pacto de buscar um caminho de enfrentamento das premências dos mais pobres, mas que evitasse tocar nas vantagens dos privilegiados
Luis Felipe Miguel
IHU - Em contrapartida, o senhor adverte sobre os perigos de a esquerda ceder em nome da “governabilidade”. Quais são os riscos principais?
Luis Felipe Miguel – Creio que este é o risco principal embutido num eventual retorno de Lula à presidência. O pacto que permitiu os governos do PT, o pacto que Lula firmou ao longo de 2002, cujo maior emblema, certamente, é a Carta ao Povo Brasileiro, era um pacto de buscar um caminho de enfrentamento das premências dos mais pobres, mas que, ao mesmo tempo, evitasse tocar nas vantagens dos grupos privilegiados na sociedade. Nós vimos que, mesmo com toda essa prudência, esses mesmos grupos privilegiados se viram atingidos por mudanças que a melhoria das condições dos mais pobres gerou na dinâmica social, a tal ponto que optaram por romper com a ordem democrática, que ocorreu com o golpe de 2016, e esse rompimento foi aprofundado com as sucessivas manobras de exceção e apoio ao bolsonarismo.
No entanto, o pacto que foi feito no início do século não tem como ser recuperado agora; as condições mudaram. O espaço de manobra para um governo democrático, com manifestação popular, está muito reduzido porque o Estado brasileiro tem sido demolido. Todos os nossos instrumentos de intervenção no social, a fim de minorar as desigualdades, foram agredidos pelo subfinanciamento e pela campanha agressiva contra essas políticas, porque a Constituição está funcionando de uma maneira muito precária e porque muitos dos direitos conquistados pelo povo brasileiro foram retirados. Então, nessas circunstâncias, a possibilidade de um governo, por mais bem-intencionado que venha a ser, produzir políticas compensatórias se torna muito menor.
Se não for adotado algum tipo de estratégia que permita o enfrentamento das negociações políticas no Brasil, ou seja, que trabalhe para mudar a correlação de forças e permita que o campo popular se robusteça para os enfrentamentos que serão necessários, o caminho da retomada da democracia no Brasil será um caminho de acomodação a situações ainda piores de desigualdade social. A governabilidade pensada na maneira tradicional se limita à aceitação das barganhas impostas seja pela burguesia, seja pela elite política tradicional. É necessário buscar uma nova forma de ação que combine a busca da negociação nos espaços institucionais com a mobilização das forças sociais que estão interessadas na produção de um país menos desigual, menos injusto e menos violento.
O espaço de manobra para um governo democrático, com manifestação popular, está muito reduzido porque o Estado brasileiro tem sido demolido
Luis Felipe Miguel
IHU - Qual tipo de pacto civilizatório é possível fazer com as elites brasileiras que, sem cerimônias, romperam com o horizonte normativo estabelecido pela Constituição de 1988?
Luis Felipe Miguel – Qualquer pacto com as elites brasileiras tem que estar respaldado na capacidade de mobilização do campo popular. Se não houver capacidade de pressão, se não houver forças organizadas em defesa da igualdade, da democracia, qualquer avanço sempre será frágil e revogável a qualquer momento. É bom lembrar que a democracia não é simplesmente um sistema de regras que resume o sistema político a determinados espaços; é próprio da democracia que as diferentes forças sociais se mobilizem em defesa de seus projetos. A classe dominante nunca deixou de se mobilizar e utilizar recursos extrainstitucionais para fazer valer seus interesses. Ela usa o financiamento privado de campanha, a sua capacidade de definir o investimento. Acontece que o tipo de barganha que foi feito para permitir os governos de centro-esquerda a partir de 2003 contava com o silenciamento da pressão do campo popular. Ficou claro que não é possível aceitar esse silenciamento, porque os grupos dominantes no Brasil não têm nenhum tipo de compromisso com a ordem democrática, não têm nenhum tipo de projeto nacional de desenvolvimento, não têm nenhum tipo de solidariedade com as classes populares. Então, é um pacto que tem de ser baseado numa correlação de forças que seja, desta vez, ao menos, um pouco mais favorável ao campo popular.
Qualquer pacto com as elites brasileiras tem que estar respaldado na capacidade de mobilização do campo popular – Luis Felipe Miguel Tweet
IHU - Aliás, uma eventual vitória de Lula poderia levar o país a um estado de convulsão social? O que é possível vislumbrar sobre uma possível reação dos setores armados da sociedade (polícias, forças armadas e sociedade civil)?
Luis Felipe Miguel – Até o momento, creio que os grupos armados operam muito mais no caminho da ameaça do que, de fato, na busca de um enfrentamento. As Forças Armadas, sobretudo, não têm liderança, não têm unidade para desferir o golpe que vem sendo anunciado ou insinuado há tanto tempo. São Forças Armadas que, por erros na condução da questão militar ao longo de todo o processo de democratização, continuam profundamente antidemocráticas e antipovo, mas elas não têm essa capacidade de ação coordenada, inclusive porque estão divididas em muitos grupos internos e também porque hoje são, em grande medida, motivadas pela vontade de ocupar espaços do Estado brasileiro e se apropriar de vantagens e benesses que a presença nesses cargos proporciona.
Não acredito, no momento, que uma eventual vitória eleitoral de Lula vá levar a esse tipo de reação. Isso é muito mais um fantasma que é utilizado com o objetivo de obter concessões, moderação e uma autocensura das forças populares na elaboração de seu programa, do que propriamente um risco efetivo. O que não quer dizer que as condições para essa ação golpista aberta não possam ser construídas. Então, é necessário, neste momento, muita inteligência por parte dos operadores políticos do campo popular, dos partidos políticos da esquerda e da centro-esquerda, porque é necessário não aceitar as chantagens que essas ameaças colocam e, ao mesmo tempo, não dar gás para que elas, de fato, se tornem uma operação golpista efetiva. A resposta está em organizar na sociedade mobilização suficiente e eficiente para que uma intentona golpista tenha custos elevados para aqueles que tentem deflagrá-la.
As Forças Armadas, sobretudo, não têm liderança, não têm unidade para desferir o golpe que vem sendo anunciado ou insinuado há tanto tempo
Luis Felipe Miguel
IHU - Por fim, de que ordem é o desafio de reverter os desmontes social e de políticas públicas – incluindo o teto de gastos – empreendidos nos últimos anos, desde o governo Temer, no Brasil?
Luis Felipe Miguel – Medidas como o teto de gastos foram uma tentativa dos golpistas vitoriosos de inibir qualquer ação de um eventual novo governo democrático no país. É absolutamente impossível que um governo no Brasil cumpra seus compromissos com a população se ele tem sua ação tão severamente contida por medidas arbitrárias como a Emenda Constitucional que liquidou a possibilidade do investimento público e que, na verdade, reduziu a quase zero a margem para a implementação de políticas sociais. Da mesma maneira, a destruição da estrutura do Estado brasileiro e a privatização irresponsável de muitos órgãos absolutamente estratégicos apresentam o mesmo resultado. Quer dizer, se inviabiliza a possibilidade de que um novo governo aja em favor de prioridades diferentes daquelas do golpismo triunfante que foram, como sabemos, a garantia dos ganhos dos especuladores financeiros em primeiro lugar. A chamada autonomia do Banco Central, a autonomia em relação à vontade popular, com uma submissão explícita ao sistema financeiro, é outra medida. E, por fim, a retirada dos direitos trabalhistas, que torna muito mais difícil para o Estado regular as relações capital-trabalho de uma maneira que proteja, minimamente, a classe trabalhadora. Então, é absolutamente imperativo desfazer esse conjunto de medidas a fim de retomar o caminho de construção de um Brasil mais democrático e menos injusto. Quando eu falo em retomada do pacto constitucional de 88, isso tudo está incluído, porque o pacto apontava na direção de um Estado social, capaz de reduzir o padrão aberrante de desigualdade que impera no Brasil.
Quando eu falo em retomada do pacto constitucional de 88, isso tudo está incluído, porque o pacto apontava na direção de um Estado social, capaz de reduzir o padrão aberrante de desigualdade que impera no Brasil – Luis Felipe Miguel Tweet
Agora, vemos, claramente, uma tentativa de blindar essas políticas, de retirar do debate público a necessidade de desfazê-las; elas são apresentadas sistematicamente como artigos da lei, quer dizer, algo que é um pecado até mesmo questionar. Vemos isso claramente em muitos formadores de opinião, nos editoriais e colunistas da imprensa burguesa: tudo bem ser oposição ao governo Bolsonaro, porque é difícil não ser oposição quando se tem o mínimo de racionalidade, mas essa oposição não pode ir ao ponto de questionar o desmonte do Estado, das políticas sociais, dos direitos. Então, a primeira coisa que tem de ser feita é recolocar no debate público essa questão e mostrar que existe uma relação necessária entre os ataques à democracia e os ataques aos direitos, que existe uma linha de continuidade entre impedir a expressão da vontade popular e impedir que os interesses populares sejam levados em conta no processo de tomada de decisão. É claro que não é uma tarefa fácil, mas um governo que chegue ao poder legitimado pela necessidade de superar o desastre do bolsonarismo, legitimado por uma vitória eleitoral, tem força para colocar isso na pauta, para exigir que esses malfeitos sejam revertidos.
É por isso que eu digo: neste momento, a centro-esquerda e, particularmente, o ex-presidente Lula, têm condições de negociar numa posição que é também uma posição de força, porque eles são necessários a fim de pacificar o país, retomar uma convivência minimamente civilizada no Brasil. No caminho que estamos indo, estamos vendo o colapso do Brasil como nação. É para isso que o projeto de Bolsonaro e Guedes aponta. Então, todos aqueles que não apostam no colapso, incluindo setores das classes dominantes e da elite política tradicional, têm interesse numa recomposição. Essa recomposição passa, necessariamente, pelo PT e por Lula. O que o PT e Lula podem exigir? O compromisso com a revogação da agenda de desmonte do Estado social que foi colocada em prática nos últimos cinco anos.
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Bolsonaro é aconselhado a deixar para 2022 definição do partido para reeleição
Popularidade em baixa é usada por Ciro Nogueira para adiamento. Interlocutores avaliam que ministro quer ganhar tempo no PP
Jussara Soares / O Globo
BRASÍLIA — O presidente Jair Bolsonaro tem sido aconselhado a deixar para o início do ano que vem a definição do partido pelo qual vai disputar a reeleição. O principal defensor do adiamento é o ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira, que chegou ao cargo há um mês com as missões de melhorar a articulação política em meio à crise institucional e organizar as bases para o projeto de um novo mandato.
O principal argumento é a popularidade em baixa do presidente: no início de julho, o Datafolha apontou que 51% dos brasileiros reprovavam a gestão, um recorde, e levantamentos internos recentes apontam um desgaste acentuado também fruto do discurso inflamado contra o Judiciário e a respeito de outros temas — na sexta, ele defendeu que todos os cidadãos comprassem um fuzil.
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A interlocutores, Nogueira também afirmou que o desempenho de Bolsonaro nas pesquisas de intenção de voto será crucial para a definição da chapa. Em um cenário de recuperação, ficará livre para escolher um nome de confiança; caso contrário, será obrigado a fazer uma composição em que o partido do vice terá um peso muito relevante.
Bolsonaro, que está sem legenda desde que deixou o PSL, em outubro de 2019, havia estabelecido março como limite para a definição. O presidente dizia não querer repetir o que ocorreu em 2018, quando ingressou no PSL a sete meses da eleição. O projeto de controlar o Patriota, no entanto, esbarrou em desavenças internas na sigla, que hoje tem o senador Flávio Bolsonaro (RJ) em seus quadros. Também há conversas com PL, PTB e PMB.
Estratégia para aliviar pressão
Para políticos que acompanham as movimentações partidárias para 2022, Nogueira age também para diminuir a pressão para que o PP, partido do qual é presidente licenciado, receba Bolsonaro e seu grupo. Embora a legenda esteja no comando da Casa Civil, internamente há resistências ao presidente em razão dos atritos que ele provoca e por questões políticas locais, casos de estados como Bahia Maranhão, Pernambuco e Bahia. Na viagem que fez pelo Nordeste, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva se reuniu com nomes do partido, casos do deputado federal Dudu da Fonte (PE) e o vice-governador da Bahia, João Leão.
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— A ida do presidente para o PP vai depender da retomada da economia e da recuperação dele nas pesquisas. O ministro Ciro Nogueira e boa parte do partido estão empenhados nisso, mas se não acontecer (a melhora econômica e a reviravolta nas pesquisas), o Ciro vai consultar os diretórios estaduais, e será decidido pela maioria — resume o deputado federal Fausto Pinato (PP-SP).
Fonte: O Globo
https://oglobo.globo.com/politica/bolsonaro-aconselhado-deixar-para-2022-definicao-do-partido-para-disputar-reeleicao-25177903
Blog do Noblat: Bolsonaro é um fio desencapado que tem chances de se reeleger
Ainda faltam 14 tumultuados meses para a eleição de 2022, e tudo pode acontecer, inclusive nada
Blog do Noblat / Metrópoles
É um coquetel mortífero. Misture insônia crônica com remédios para males próprios da idade, medo de morrer ou de ser morto, receio que um ou mais dos seus filhos seja preso de repente, perfeita inadequação ao cargo e que ninguém que o conhece há muito tempo imaginou que fosse capaz de ocupar um dia.
Adicione a memória dos erros cometidos ao longo de uma epidemia que matou mais de 579 mil pessoas, inflação em disparada, desemprego em alta, apagão de energia devido à falta de chuva, e o fantasma de uma possível derrota eleitoral próxima. Resultado: um presidente da República em surto.
Jair Bolsonaro é um fio desencapado que ocasiona curtos circuitos e faíscas e pode produzir pequenos ou grandes incêndios. Na maioria das vezes, os produz deliberadamente, como esse marcado por ele para o dia 7 de setembro com o propósito de agravar a crise institucional que o país atravessa por sua inteira culpa.
Quando a palavra impeachment não era tão popular como é hoje, a teoria política ensinava que o governante tinha três alternativas: conciliar, renunciar ou ser deposto. Tradução literal: ou acaba derrubado, ou cai fora espontaneamente, ou enfia o rabo entre as pernas e vai tocando da melhor maneira que pode.
O presidente João Goulart foi derrubado pelo golpe militar de 64. Seu antecessor, Jânio Quadros, renunciou com o plano de voltar ao poder carregado pelo povo e mais forte. Não deu certo. Getúlio Vargas conformou-se com o golpe que o derrubou em 1945, mas não com o de 1954, e por isso matou-se com um tiro.
Bolsonaro disse que o futuro lhe reserva três alternativas: ser morto, ser preso ou a vitória. A morte é o destino de quem vive. No caso dele, vítima de uma facada, talvez queira dizer que poderá outra vez ser alvo de um atentado. Está sujeito a isso, sim, como, por exemplo, Lula também está a crer-se nas ameaças que recebe.
Quanto a ser preso, Bolsonaro descartou a hipótese porque faz “a coisa certa” e “nenhum homem aqui na Terra” o amedronta. A coisa certa não faz, se fizesse não teria com o que se preocupar. A inexistência de homem que o amedronte é retórica pura – o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo, mete-lhe medo.
Entre as alternativas, Bolsonaro se esqueceu de citar a derrota. Deve ter sido aconselhado a não fazê-lo porque candidato algum, mesmo com grandes chances de ser derrotado, admite isso. “Ê, ê, Eymael, um democrata cristão” que disputou e perdeu quatro eleições presidenciais e será candidato de novo, nunca o fez.
De resto, Bolsonaro posa de mártir para não perder os votos que ainda tem e porque sabe que não está fora do jogo. Desde a redemocratização do país em 1985, duas variáveis se repetem e o favorecem: presidente da República, candidato à reeleição, sempre vence; e o PT tem lugar garantido no segundo turno.
Há uma terceira variável que poderá beneficiá-lo ou não: faltam 14 meses para a eleição. Em 1989, Fernando Collor só emergiu como favorito 5 meses antes do primeiro turno. Em 1984, o favorito era Lula a 5 meses no primeiro turno, e Fernando Henrique Cardoso se elegeu com folga e se reelegeu sem precisar de segundo turno.
Em 2005, a 1 ano da eleição, o presidente Lula foi dado como morto, atropelado pelo mensalão do PT. Ao impeachment, a oposição preferiu deixar que ele sangrasse até o fim, e Lula se reelegeu. A um ano da eleição de 2010, Dilma Rousseff era uma ilustre desconhecida, e se elegeu. E reelegeu-se. E foi derrubada.
Não sei se o acaso quer brincar ou se é a vida que escolhe, mas ele não pode ser desprezado.
O recado do STF via Lewandowski para os partidários do golpe
A quem interessar possa
O presidente Jair Bolsonaro detesta ler, gosta mais de figurinhas como já disse, mas alguém deve ler os jornais por ele, atento aos fatos mais importantes que possam despertar seu interesse.
Sendo assim, ele tomou conhecimento, quando nada por alto, do artigo publicado, ontem, na Folha de S. Paulo e assinado pelo ministro Ricardo Lewandowski, do Supremo Tribunal Federal.
O título do artigo diz tudo: “Intervenção armada: crime inafiançável e imprescritível”. Seu autor é professor titular de teoria do Estado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.
Lewandowski lembra que na Roma antiga, para segurança do governo, existia uma lei segundo a qual nenhum general poderia atravessar, acompanhado das respectivas tropas, o rio Rubicão.
Mas em 49 a.C., à frente das legiões que comandava, o general romano Júlio César atravessou o rio pronunciando a célebre frase: “A sorte está lançada”. Empalmou depois o poder político.
Em seguida, instaurou uma ditadura. Mas ao cabo de cinco anos foi assassinado “a punhaladas por adversários políticos, dentre os quais seu filho adotivo, Marco Júnio Bruto”.
Segundo o ministro, o episódio revela “que distintas civilizações sempre adotaram, com maior ou menor sucesso, regras preventivas para impedir a usurpação do poder legítimo pela força”.
A Constituição de 1988 estabeleceu que “constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis e militares, contra a ordem constitucional e o Estado democrático”.
Por sua parte, o projeto de lei há pouco aprovado pelo Congresso, que revogou a Lei de Segurança Nacional, desdobrou esse crime em vários delitos autônomos, inserindo-os no Código Penal.
É criminosa a conduta de subverter as instituições vigentes, “impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais”. Golpe de Estado para depor governo eleito é crime.
Ambos os ilícitos, como observa Lewandowski em seu artigo, “são sancionados com penas severas, agravadas se houver o emprego da violência”. E ele vai adiante:
“Cumpre registrar que não constitui excludente de culpabilidade a eventual convocação das Forças Armadas e tropas auxiliares, com fundamento no artigo 142 da [Constituição], para a ‘defesa da lei e da ordem’, quando realizada fora das hipóteses legais, cuja configuração, aliás, pode ser apreciada em momento posterior pelos órgãos competentes”.
Entendeu o recado, Bolsonaro? Ou prefere que o ministro desenhe?
Fonte: Blog do Noblat
https://www.metropoles.com/blog-do-noblat/ricardo-noblat/bolsonaro-e-um-fio-desencapado-que-tem-chances-de-se-reeleger
EUA: Militares não participariam de golpe, mas democracia no país preocupa
No governo americano, tanto no Executivo quanto no Congresso, percepção é de que Bolsonaro segue estritamente a cartilha de Trump
Mariana Sanches / BBC News Brasil em Washington
Quando o Conselheiro de Segurança Nacional dos Estados Unidos, Jake Sullivan, e o Assessor Especial do presidente americano Joe Biden, Juan González, entraram no gabinete de Jair Bolsonaro, no Palácio do Planalto, no último dia 5, não esperavam uma conversa de melhores amigos. Mas o que encontraram foi descrito à BBC News Brasil como "nonsense" e "tenso" por oficiais americanos.
Do encontro sobraram não só uma foto de um aperto de mão de Sullivan, de máscara, e Bolsonaro, sem máscara e oficialmente não vacinado, mas também uma preocupação dos americanos com a saúde da democracia brasileira, diante das alegações sem provas do presidente brasileiro de fraude eleitoral nas urnas eletrônicas.
Originalmente, a agenda dos enviados de Biden ao Brasil não teria a democracia brasileira como destaque principal.
A pauta deles incluía oferecer ao país o status de parceiro global da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte), condição que dará acesso ao Brasil à compra de equipamentos de guerra de última linha, além de sessões de treinamento militares com os americanos em bases nos EUA.
Por outro lado, a missão americana pretendia pressionar o Brasil a estabelecer — e cumprir — metas de redução de desmatamento ambiciosas e dissuadir o Brasil de usar equipamentos da gigante chinesa de telecomunicações Huawei em sua rede 5G — um dos argumentos dos americanos foi, inclusive, o de que a empresa poderia não entregar os materiais contratados pelo governo Bolsonaro por crise de matérias-primas.
A conversa, no entanto, saiu do script normal com insinuações de Bolsonaro de que o pleito americano de 2020 havia sido roubado — o que faria de Joe Biden um presidente ilegítimo.
A administração Biden sempre esteve ciente de que Bolsonaro defendia publicamente as falsas alegações de Trump sobre as eleições. O republicano fazia múltiplas acusações ao sistema eleitoral dos EUA, questionando tanto aos votos de papel quanto àqueles depositados em urna eletrônica, mesmo antes do dia da votação. Bolsonaro foi o último líder do G-20 a reconhecer a vitória de Biden.
O que os americanos não esperavam é que Bolsonaro dissesse tais coisas diante de Sullivan e Gonzalez, ambos altos representantes do governo a serviços dos democratas há anos.
Segundo autoridades com conhecimento dos fatos, ambos ouviram o suficiente para deixar o encontro preocupados com a democracia no Brasil. Sullivan foi às redes sociais enunciar que a "gestão Biden defende um hemisfério seguro e democrático".
Já Juan Gonzalez fez uma coletiva de imprensa sobre a viagem para Brasil e Argentina na qual falou, na maior parte do tempo, da democracia brasileira. "Fomos muito diretos em expressar nossa confiança na capacidade de as instituições brasileiras conduzirem uma eleição livre e limpa e enfatizamos a importância de não ser minada a confiança no processo de eleições, especialmente porque não há indício de fraude nas eleições passadas", disse Gonzalez, sobre o teor da conversa com Bolsonaro.
A Cartilha Trump
Dentro do governo americano, tanto no Executivo quanto no Congresso, tem ganhado força a percepção de que Bolsonaro segue estritamente a cartilha que Trump adotou ao tentar se perpetuar no poder: denunciar fraudes sem prova, antes mesmo do pleito ocorrer, e criar descrença em parte do eleitorado sobre o processo eleitoral, a ponto de levar a cenas como a invasão do Capitólio por apoiadores, em 6 de janeiro.
A diplomacia de Biden não deixou de notar, por exemplo, o interesse do ex-estrategista de Trump, Steve Bannon, nas eleições de 2022, no Brasil.
O próprio Gonzalez foi explícito sobre o assunto. "Fomos sinceros sobre nossa posição, especialmente em vista dos paralelos em relação à tentativa de invalidar as eleições antes do tempo, algo que, é óbvio, tem um paralelo com o que aconteceu nos Estados Unidos."
Em Washington, a percepção é de que a imagem de Bolsonaro sofreu um abalo significativo como um possível interlocutor após a visita.
"Acho que o governo Biden, especialmente depois dessa reunião em Brasília, vê Bolsonaro como uma figura errática, ou pelo menos como alguém que age de uma forma muito excêntrica e difícil de prever. Ele diz coisas que parecem ir contra seu próprio interesse nacional. Por que ele iria querer brigar com o novo governo dos EUA dizendo que a eleição (americana) foi fraudada? Dá pra entender o porquê Trump faz isso, já que ele quer disputar a presidência de novo e fazer disso um tema, mas para um líder estrangeiro dizer esse tipo de coisa é, no mínimo, estranho", afirma Melvyn Levitsky, ex-secretário executivo do Departamento de Estado e embaixador no Brasil entre 1994-1998.
Militares longe do golpe
Levitsky, que hoje é professor de políticas internacionais da Universidade de Michigan, afirma que nessa situação, os americanos vão jogar (quase) parados, sem qualquer ação que possa soar como interferência nas eleições brasileiras.
E isso também porque a diplomacia americana não vê como provável a possibilidade de que as Forças Armadas embarquem em uma eventual aventura golpista de Bolsonaro. Reservadamente, autoridades dos EUA citaram as ações recentes do ex-comandante do Exército, o general Edson Pujol, e de seu atual líder, o general Paulo Sérgio de Oliveira, como sinais de anteparos ao presidente no uso político das forças armadas. Em discurso no dia do soldado, Oliveira afirmou que o Exército quer ser respeitado "nacional e internacionalmente" e tem "compromisso com os valores mais nobres da Pátria e com a sociedade brasileira em seus anseios de tranquilidade, estabilidade e desenvolvimento".
"Eu conhecia muito bem os militares brasileiros. E embora faça algum tempo que não fale com eles, meu senso é de que os militares estavam muito subordinados ao governo civil e eu não acho que isso mudou. Não acho que os militares queiram entrar de vez na política. Seria devastador para eles fazer isso. E se isso acontecesse, seria devastador para as relações entre Brasil e Estados Unidos também", afirma Levitsky.
É essa percepção que explica, em parte, porque os americanos não viram problemas em oferecer ao Brasil uma posição como parceiro global na Otan que fortalece diretamente o Exército brasileiro. Se avaliasse haver tendência golpista nas forças, esse não teria sido um caminho para Biden, asseguram os diplomatas. Além disso, nem todos os parceiros globais da Otan são países de democracia perfeita — a Turquia, por exemplo, é tido como um deles.
Por fim, para os militares brasileiros a possibilidade de acessar contratos de vendas de armamento de ponta e participar em treinamentos com os americanos é algo de que eles provavelmente não estariam dispostos a abrir mão em troca da tentativa de um golpe ao lado de Bolsonaro. É o que argumenta Ryan Berg, cientista-político especialista em regimes autoritários na América Latina do Centro de Estratégias e Estudos Internacionais (CSIS, na sigla em inglês).
"A visão do governo dos EUA é que, embora os movimentos de Bolsonaro sejam muito preocupantes, com desfile de tanques pelas ruas de Brasília e atos para desacreditar as eleições, ainda assim o Congresso rejeitou o voto impresso e isso, para o governo dos Estados Unidos, indica que as instituições do Brasil são mais fortes do que algumas pessoas gostam de dizer. O governo dos EUA tem muita confiança que os militares brasileiros não ficariam do lado do Bolsonaro se ele tentasse cometer algum tipo de autogolpe, como vimos com Trump, na invasão do Capitólio em 6 de janeiro", afirma Ryan Berg.
O futuro das relações EUA-Brasil
É consenso entre diplomatas e especialistas internacionais americanos que os EUA não podem e nem querem virar as costas para o Brasil. Primeiro porque o país, com suas florestas tropicais, é visto como chave para avançar no combate ao aquecimento global, pauta prioritária do governo Biden.
Segundo, porque a China tenta ganhar espaço na América Latina a passos largos, e os americanos não estão dispostos a ceder, ao principal rival, espaço de influência na segunda maior democracia do continente — ainda mais com a disputa do 5G a pleno vapor.
E terceiro, porque, em que pesem as ações de Bolsonaro sobre a democracia brasileira ou sobre o meio ambiente, seu governo promoveu um alinhamento ideológico com os Estados Unidos no continente, adotando tom duro contra Venezuela e Cuba, algo bastante valorizado no Departamento de Estado.
No entanto, dada a percepção de que "Bolsonaro não é um líder plenamente confiável", como afirma Levitsky, os próximos movimentos na relação dependerão de seu governo. E a diplomacia americana diz que não vai se furtar da possibilidade de se engajar com outros atores políticos, em diferentes níveis de poder e sem a intermediação do Executivo federal, para fazer avançar sua agenda.
Foi exatamente o que fez, há um mês, o Enviado Climático de Biden, John Kerry. Diante de promessas não cumpridas e do mal-estar que representava a presença do então ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles, que os americanos veem como envolvido em um possível esquema de tráfico ilegal de madeira amazônica para os EUA, Kerry driblou Brasília e se reuniu por uma hora e meia com os governadores do Fórum de Governadores, que inclui quase todos os Estados.
Na semana seguinte, Jake Sullivan não esteve apenas no Palácio do Planalto, mas fez também uma reunião com governadores do Consórcio da Amazônia Legal.
"Há uma percepção dos EUA de que o governo federal infelizmente não vai avançar muito na questão do desmatamento. Então falar com os governadores não chega a ser uma exclusão do governo federal, mas uma forma de jogar nas duas vias", afirmou à BBC News Brasil o governador do Maranhão, Flávio Dino (PSB), que esteve no encontro com Kerry.
Depois de três meses sem encontros com a equipe de Kerry, na última semana, técnicos do Ministério do Meio Ambiente e representantes do Itamaraty retomaram conversas com os americanos. Isso acontece a menos de três meses da Conferência do Clima, em Glasgow, na Escócia, encarada pelos americanos como a última grande oportunidade para que o governo Bolsonaro mostre algum avanço na agenda ambiental.
Consultado pela BBC News Brasil, o Departamento de Estado afirmou, por meio de um porta-voz, que "esperamos ver progressos adicionais à medida que o Brasil avança para combater o desmatamento ilegal e reduzir suas emissões de gases do efeito estufa, em linha com os compromissos assumidos pelo presidente Bolsonaro na Cúpula dos Líderes sobre o Clima realizada em abril".
O Itamaraty defende que as metas de redução de desmatamento (que deve ser zerado até 2030) e de emissões (zero até 2050) são as mais ambiciosas entre os países em desenvolvimento. Reservadamente, no entanto, diplomatas envolvidos nas negociações com os americanos reconhecem "dificuldades internas do governo" para entregar reduções expressivas no desmatamento ainda em 2021. Dados do INPE mostram que o acumulado de desmatamento entre janeiro e julho deste ano é o maior desde 2016.
Para o embaixador Levitsky, até a eleição do próximo ano, EUA e Brasil devem levar uma relação "em banho-maria". De um lado, os americanos não demonstram grandes expectativas de novos compromissos de Bolsonaro, a quem veem majoritariamente voltado à agenda eleitoral doméstica.
Por outro, preferem ver quem assumirá o país pelos quatro anos seguintes para tentar implementar qualquer ação fora das relações rotineiras. E já avisaram a Bolsonaro que reconhecerão como presidente quem quer que a Justiça Eleitoral aponte como vencedor do pleito em outubro de 2022.
Fonte: BBC Brasil
Carolina Ricardo e Beatriz Graeff: Supremo precisa decidir sobre as armas
Enquanto ações aguardam julgamento, essa boiada também está passando
Carolina Ricardo e Beatriz Graeff / Folha de S. Paulo
Em consonância com sua agenda eleitoral e em diálogo direto com o grupo de apoiadores para quem o acesso às armas é visto como direito absoluto à liberdade de se armar, o governo Bolsonaro vem alterando normas que, entre outros impactos, aumentam o número de equipamentos que podem ser adquiridos por cada cidadão, autorizam a obtenção de exemplares que antes eram de uso exclusivo das forças de segurança e possibilitam a fabricação de munição sem nenhum tipo de controle por parte dos órgãos competentes.
Como resultado, desde 2019 verifica-se um crescimento exponencial no número de armas em circulação, tendo o ano de 2020 registrado um aumento de 65% —ou seja, mais de um milhão de novas armas nas mãos de civis ante 2018 e sem nenhuma ação correspondente para fortalecer os mecanismos de fiscalização e controle desse arsenal.
Em ações judiciais movidas contra os decretos de flexibilização do acesso a armas, os ministros Rosa Weber e Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal, já registraram seus votos apontando a inconstitucionalidade dessas medidas, que violam os princípios constitucionais do direito à vida e à segurança pública e usurpam a competência exclusiva do Congresso Nacional ao afrontar mecanismos de controle definidos em lei.
Em decisão liminar, a ministra Rosa Weber suspendeu a eficácia de alguns dispositivos dos decretos editados na véspera do Carnaval de 2021. Embora a decisão tenha sustado provisoriamente parte das medidas de desmantelamento da política de controle de armas, muitos outros dispositivos permanecem vigentes, desde os decretos de 2019. A estratégia de fracionamento das normas adotada pelo governo, editando alterações sobre alterações, promove um ambiente de alta insegurança jurídica, deixando até mesmo os operadores que lidam cotidianamente com esse regramento em dúvida quanto ao que está ou não vigente.
É urgente que o ministro Alexandre de Moraes dê andamento às ações diretas de inconstitucionalidade que tramitam no STF, dando a oportunidade para que os outros ministros se manifestem sobre o desmonte da política de controle de armas. Enquanto as ações aguardam julgamento, a boiada das armas, infelizmente, segue passando. A estimativa é de que a cada dia cerca de 378 novas armas sejam registradas no sistema da Polícia Federal. Desde o pedido de vista das ações, mais de 45 mil novas armas já entraram em circulação.
Além disso, as mortes violentas voltaram a subir em 2020, tendo aumentado para 78% a proporção das cometidas com uso de armas de fogo. Paralelamente, arroubos antidemocráticos continuam se fortalecendo com o ingrediente das armas de fogo, e o crime organizado segue abastecendo seus arsenais.
O julgamento definitivo desse conjunto de ações é fundamental para barrar a explosão na circulação de armas. E, mais do que isso, a manifestação do Supremo a respeito dos decretos de descontrole das armas, à luz do direito à vida e à segurança pública, representará também um importante marco de proteção ao Estatuto do Desarmamento contra os constantes ataques que ameaçam os mecanismos de controle responsável de armas de fogo que ele consolida.
*Carolina Ricardo, advogada e socióloga, é diretora executiva do Instituto Sou da Paz
**Beatriz Graeff é antropóloga e pesquisadora na área de segurança pública e sistema de Justiça criminal
Fonte: Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2021/08/supremo-precisa-decidir-sobre-as-armas.shtml