Bolsonaro
Eliane Cantanhêde: ‘Engodo liberal’
Persio Arida alertou que o liberalismo de Bolsonaro era uma farsa e Guedes não mandaria nada
Não foi por falta de aviso. Desde a campanha eleitoral, em 2018, as vozes mais brilhantes da economia, com grandes serviços prestados ao Brasil, já alertavam para o autoengano do mercado com o liberalismo improvisado do corporativista Jair Bolsonaro, que usou o “Chicago Boy” Paulo Guedes para “enganar um bobo, na casca do ovo”.
Foi assim que Bolsonaro venceu e, presidente, joga pela janela a “nova política”, a Lava Jato, Sérgio Moro, as reformas, as privatizações e as regras de mercado. Só falta jogar o próprio Guedes e... a democracia. Quanto ao ministro, é considerado questão de tempo. Quanto à democracia, é melhor prevenir agora do que (tentar) remediar depois.
Persio Arida, um dos pais do Plano Real e assessor da campanha do tucano Geraldo Alckmin, não grita, não é histriônico, nem sequer é político, mas alertou o tempo todo para exatamente tudo o que está acontecendo agora. Banqueiros, empresários, economistas e metidos a entendidos, não venham dizer que não sabiam e estão perplexos. O passado condena. O passado de Bolsonaro já dava todas as pistas do que viria por aí.
Em entrevista inesquecível à repórter Renata Agostini, no Estadão, Arida disse que o capitão Bolsonaro era um “engodo liberal”, como o coronel Hugo Chávez na Venezuela, e alertou para a esquizofrenia da campanha bolsonarista: um candidato estatizante e corporativista escudando-se num “Posto Ipiranga” privatizante e reformista. Sua aposta: o “mitômano” Guedes não ia mandar nada. Afinal, “quem tem a caneta manda”.
Foi um momento “Mãe Dinah” de Persio Arida? Não, ele apenas disse o óbvio, mas o capital e grandes parcelas da população estavam cegos pelo ódio ao PT e foram facilmente manipulados por uma profecia autorrealizável: só Bolsonaro venceria o ex-presidente Lula ou o candidato dele. As pesquisas diziam o contrário, mas as redes sociais tanto martelaram isso que virou verdade. A facada fez o resto e veio “o mito”.
Cadê o R$ 1 trilhão de Guedes com a venda de estatais? Bolsonaro é contra privatizações e o gato comeu. Cadê a promessa de Guedes de zerar o déficit público em um ano? Bolsonaro nunca quis cortar nada e, quanto mais 2022 se aproxima, menos ele quer. A reforma administrativa? Bolsonaro trancou na gaveta, em favor do corporativismo e do populismo. E a tributária? Ele não entendeu nada, mas não gostou. Dá muito trabalho. E não rende voto...
Teimoso, obtuso, o capital segue com Bolsonaro contra tudo e contra o bom senso, mas seus argumentos, ou melhor, pretextos, vão lhes escorrendo pelos dedos. Quando já não sobrava quase nada a dizer, muitos ainda tentavam manter a pose: “Ah! Deixa o Bolsonaro para lá, o importante é deixar o Guedes trabalhar”. Ainda tentam?
Gurus e “gabinete do ódio” estão tendo um trabalhão para providenciar algum discurso para o capital e as tropas bolsonaristas da internet, depois de Bolsonaro entrar de sola na Petrobrás e rasgar o que restava dos seus compromissos de campanha. Desta vez, a um altíssimo custo: a mais simbólica companhia brasileira derreteu R$ 100 bilhões até esta segunda-feira, 22.
A bomba na Petrobrás enterra o “engodo liberal”, humilha o “mitômano” Guedes, chacoalha o cinismo do mercado, deixa o Banco do Brasil e as estatais de barbas de molho e obriga os bolsonaristas renitentes a dar um salto mortal: de endeusadores da Lava Jato, viraram algozes de Sérgio Moro; de adeptos de Guedes, terão de virar inimigos do liberalismo. O bolsonarismo segue os passos do petismo.
Como efeito colateral, Bolsonaro vai cooptando um general atrás do outro e, assim, embaçando a visão estratégica das Forças Armadas. Aliás, outro alerta certeiro de Persio Arida parece cada vez mais atual: “Bolsonaro é um risco à democracia”, já dizia em 2018.
Alon Feuerwerker: Cabo de guerra
O mercado reagiu como esperado, e como previsto, ao anúncio da troca no comando da Petrobras. A queda nas ações da companhia estendeu-se a outras estatais e impactou o desempenho do mercado de capitais.
Um temor do mercado é quanto as pressões do governo para a suavização dos reajustes dos preços dos combustíveis vão refletir nos resultados da empresa, e portanto também nos dividendos distribuídos aos acionistas. Outra dúvida é sobre a continuidade dos planos de desinvestimento, especialmente das refinarias.
Aparentemente, ao precisar decidir entre um cabo de guerra com o mercado e o risco de uma greve de caminhoneiros em plena pandemia, o presidente da República preferiu a primeira alternativa. Agora que conseguiu estabilizar a relação com o Congresso, especialmente com a Câmara, Jair Bolsonaro parece querer fugir do risco da queda abrupta de apoio social.
Recorde-se, por exemplo, o mergulho de popularidade de Dilma Rousseff causado pelas manifestações de junho de 2013, e que foram apenas isso, manifestações. Qual seria o efeito, para o apoio ao presidente na população, de um colapso do abastecimento em plena pandemia e com a economia projetando recuo neste primeiro trimestre?
Ontem, a pesquisa CNT/MDA mostra ótimo+bom presidencial algo estável na ordem de grandeza de um terço do eleitorado (leia). Sem base orgânica de apoio no Legislativo, Jair Bolsonaro certamente não deseja sofrer uma corrosão de popularidade como a de Dilma na largada do segundo mandato. Seria a senha para uma crise política grave.
Michel Temer também viu o apoio popular mergulhar num certo momento, mas ao contrário de Dilma e de Bolsonaro mantinha base congressual sólida . Sem isso, um presidente impopular ou vira pato manco, como dizem os norte-americanos, ou cai.
Mas não convém tampouco apostar numa radicalização sem limites. Mais provável é o novo presidente da Petrobras procurar um caminho de conciliação, intermediário, entre os objetivos dos acionistas minoritários e os do majoritário. Resta acompanhar como será essa operação.
*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação
Bruno Carazza: Chicago losers
Paulo Guedes errou a estratégia e a cada dia se torna menor
No discurso de posse, em 1949, o presidente americano Harry Truman anunciou que uma das prioridades de seu segundo mandato seria o apoio a países em desenvolvimento, como forma de compensar a preferência dada à reconstrução da Europa no pós-guerra, com o Plano Marshall.
O chamado “Ponto Quatro” do seu programa de governo previa empréstimos e assistência técnica. No caso do Brasil, a parceria resultou na criação da Comissão Mista Brasil-Estados Unidos, que entre 1951 e 1953 realizou um amplo diagnóstico das carências e oportunidades do país e acabou resultando na fundação do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (o “Social” só apareceria na década de 1980) e, anos depois, no Plano de Metas de JK.
Uma das linhas de ação escolhidas pelo Chile foi oferecer bolsas de estudos para que estudantes de economia fizessem mestrado e doutorado na Universidade de Chicago, desde então a cidadela do pensamento neoclássico e da defesa do livre mercado.
Com o golpe de Augusto Pinochet em 1973, muitos desses jovens foram convidados a retornar e elaborar o programa econômico do seu governo. Ganharam assim o apelido de Chicago boys, e deram as cartas até o fim da ditadura, em 1990.
40 anos depois de defender sua tese de doutorado na Universidade de Chicago, Paulo Guedes foi escolhido para ser o xerife da economia pelo ainda candidato Jair Bolsonaro. Determinado a dar um choque liberal, o novo ministro decidiu convocar três amigos também egressos da escola celebrizada por Friedman, Coase, Stigler, Becker, Lucas e tantos outros vencedores do Prêmio Nobel.
Assim, Rubem Novaes, Roberto Castello Branco e Joaquim Levy assumiram, respectivamente, as presidências do Banco do Brasil, da Petrobras e do BNDES. Num feliz trocadilho, Guedes e seus amigos se autoproclamavam os Chicago oldies.
No fim da tarde da última sexta-feira (19/02), o presidente demitiu Castello Branco da Petrobras e pôs um fim precoce à experiência dos “garotões” de Chicago no governo. Antes dele, Joaquim Levy havia caído em junho de 2019, e Rubem Novaes saído do BB em setembro de 2020. Agora só resta Paulo Guedes.
Neste final de semana muito se falou sobre o intervencionismo de Bolsonaro, bem como do populismo que o impede de implementar a pauta liberal do ministro da Economia. Para quem passou quase três décadas no Congresso defendendo uma agenda corporativista e sem se envolver em qualquer debate relevante para o futuro do país, nada disso deveria surpreender.
O que precisamos discutir, contudo, são os erros estratégicos de Paulo Guedes.
Ao aceitar o convite de Bolsonaro, Guedes não se contentou simplesmente em ser a principal referência econômica do governo; ele exigiu superpoderes, colocando sob a sua guarda nada menos do que quatro antigos ministérios: Fazenda, Indústria e Comércio, Planejamento e Trabalho.
Mas não foi só: o superministro também fez questão de não trazer para sua equipe ninguém que pudesse lhe fazer sombra. Além dos amigos Chicago oldies, os postos-chave de seu ministério foram ocupados por jovens servidores de carreira (que embora competentes, não tinham peso político) ou seus antigos colaboradores do setor privado. A cada entrevista de Bolsonaro, Guedes parecia inflar ao ser chamado de “Posto Ipiranga” - aquele a quem todos recorrem em qualquer necessidade, como no comercial da TV.
Houve um tempo em que o brasileiro razoavelmente bem informado sabia recitar de cor a escalação da equipe econômica. Além dos ministros da Fazenda e do Planejamento, o presidente do Banco Central e os titulares das Secretarias do Tesouro e da Receita também assumiam publicamente o papel de guardiões da austeridade fiscal, transmitindo aos políticos, ao mercado e à população as diretrizes do governo.
Na época de ouro em que conseguimos manter anos seguidos de superávits acima de 3% do PIB, o time incluía, no segundo mandato de FHC, Pedro Malan (Fazenda), Martus Tavares (Planejamento), Armínio Fraga (Banco Central), Everardo Maciel (Receita) e Fábio Barbosa (Tesouro). No primeiro mandato de Lula, mesmo com um político à frente da Fazenda (Antonio Palocci) e um economista heterodoxo no Planejamento (Guido Mantega), as contas foram mantidas em dia com Henrique Meirelles no Banco Central, Joaquim Levy no Tesouro, Marcos Lisboa na Secretaria de Política Econômica e Jorge Rachid na Receita Federal.
Hoje em dia é raro encontrar quem saiba dizer, sem utilizar o Google, o nome dos secretários atuais do Tesouro ou da Receita Federal, pois seu superior não autoriza ninguém a falar em seu nome. Por não ser onipresente e onisciente, e sem contar com um time de peso que publicamente defenda suas propostas, Guedes acabou isolado.
Com um ministério tão grande nas mãos, os problemas de coordenação não tardaram a aparecer, como atestam as sucessivas promessas furadas de entrega de reformas e privatizações. Outros erros capitais foram desprezar a cultura política de Brasília, promovendo atritos desnecessários com o Congresso, e subestimar a complexidade do funcionamento da máquina pública federal - que o digam Salim Mattar e Paulo Uebel, que debandaram em agosto de 2020.
Mesmo antes da pandemia, a demora em entregar crescimento e desemprego baixo já incomodava Bolsonaro e seus ministros da ala militar e desenvolvimentista, todos de olho em 2022. Não chegam a ser surpresa, portanto, os rumores de uma iminente divisão do ministério da Economia. Quando as coisas começam a ir mal, uma pasta tão grande desperta a cobiça alheia, e o Centrão está à espreita.
Guedes desprezou os conselhos de Filipe II da Macedônia e do Homem Aranha. Sem entender que é preciso “dividir para governar” e que “grandes poderes exigem grandes responsabilidades”, a cada dia se torna menor e dispensável. Virou um Chicago loser.
*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.
Carlos Pereira: A improvável frente de oposição
Busca por protagonismo faz parte do DNA de partidos, e importa na escolha da trajetória política
Na ausência de blocos e troças carnavalescas nas ruas nesse carnaval da pandemia, o que predominou foi a melancolia de seus foliões. Por outro lado, para diminuir o vazio no coração dos seus brincantes, o que não tem faltado são partidos querendo cacifar seus candidatos a presidente para as eleições de 2022.
Insatisfeitos com o governo de Jair Bolsonaro têm defendido a necessidade de formação de uma frente suprapartidária de oposição ao presidente. O objetivo seria viabilizar uma candidatura única capaz de derrotá-lo. Acredita-se que se os partidos de oposição se apresentarem pulverizados, cada um com seu “bloco” (ops! candidato) à presidência, Bolsonaro teria maiores chances de se reeleger. Mas a viabilidade de uma frente única de oposição é improvável.
Partidos políticos em ambiente institucional que combina presidencialismo e multipartidarismo vivem um dilema de difícil resolução: seguir uma trajetória protagonista/majoritária, ao apresentar um candidato à Presidência; ou jogar o jogo de partido coadjuvante, tentando exercer o papel de pivô ou de mediano do Legislativo.
Se o partido for vencedor na trajetória majoritária certamente terá acesso aos maiores retornos políticos. Mas se perder, terá que estar preparado para comer “o pão que o diabo amassou” e amargar a condição de majoritário perdedor com os piores retornos pelos próximos quatro anos, nutrindo a expectativa de se tornar majoritário vencedor nas próximas eleições. Por outro lado, se o partido decidir seguir a trajetória de legislador mediano e ocupar a posição de âncora no Legislativo, pode auferir retornos intermediários entre os obtidos pelos majoritários vencedor e perdedor.
A escolha de uma determinada trajetória não é uma camisa de força. Partidos podem mudar de trajetória, mas estas mudanças geram custos não triviais.
Por exemplo, um partido pivô no Legislativo que decide mudar de trajetória para jogar o jogo majoritário corre o risco de perder a próxima eleição presidencial e assim obter uma recompensa menor do que obteria se tivesse continuado a jogar o jogo coadjuvante. Da mesma forma, se um partido trilha a trajetória majoritária e fracassa, pode mudar de trajetória e começar a jogar o jogo do partido coadjuvante. Mas, dependendo de quão amarga e competitiva foi a campanha presidencial, pode levar mais tempo para que o perdedor majoritário envergonhado construa pontes de confiança e de cooperação com o vencedor majoritário.
O racha ocorrido com o DEM na eleição do Presidente da Câmara expressa muito bem esse dilema. Rodrigo Maia tentou alçar o DEM a um voo rumo ao protagonismo, talvez com a candidatura de Luciano Huck à presidência. Mas a bagagem pesada — sua trajetória mediana — obrigou o partido a uma aterrissagem de emergência num descampado no interior da Bahia... A maioria do DEM, sob a liderança de ACM Neto, simplesmente preferiu continuar na sua trajetória coadjuvante. Os riscos e custos de mudança de trajetória seriam altos demais. O mesmo comportamento se espera do MDB, PSD, PTB, PSB, PC do B e aos partidos que compõem o Centrão.
Por outro lado, partidos como o PT e PSDB, que têm trilhado de forma consistente a trajetória majoritária desde o seu nascimento, seja na condição de perdedor ou de vencedor, fatalmente terão candidatos à presidência em 2022. Raciocínio semelhante a aplica a partidos como PDT, PSOL, Novo e Rede.
Partidos têm muita dificuldade de abrir mão de suas ambições individuais, ainda que legítimas, e se engajar em um projeto coletivo que, supostamente, beneficiaria a todos. A busca pelo protagonismo faz parte do DNA desses partidos, daí ser improvável a mudança de trajetória.
*Cientista Político e professor titular da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas (FGV EBAPE)
Celso Rocha de Barros: Folha foi palco de debates históricos
Que o jornal continue sendo espaço onde alternativas ao desastre sejam pensadas
No momento em que a Folha faz cem anos, é natural que todos se lembrem das grandes reportagens, que são, de fato, a alma do jornal. Mas eu, pessoalmente, sempre gostei da Folha também como espaço de debate de ideias. Por isso, resolvi fazer minha homenagem ao jornal lembrando de três discussões importantes publicadas aqui. Todas estão disponíveis no Acervo Folha.
Após a derrota para Collor em 1989, o Partido dos Trabalhadores formou um “governo paralelo”, um grupo de debates sobre políticas públicas que embasaria a atuação do partido na oposição.
Uma das ideias que circulavam amplamente era a da renda mínima, defendida nas páginas da Folha desde os anos 70 pelo então jovem economista Eduardo Suplicy. Em um debate do governo paralelo, o economista José Márcio Camargo elogiou a ideia de Suplicy, mas sugeriu que o foco inicial do programa fossem as crianças, não os idosos, como no projeto original do senador.
Tanto quanto sei, seu comentário ao projeto de Suplicy, publicado na Folha de 26 de dezembro de 1991, é a primeira formulação do Bolsa-Escola, “um programa que complementasse a renda de todos os trabalhadores, desde que eles coloquem seus filhos em escolas públicas”.
Em 1994, o Brasil elegeu como presidente um de seus grandes intelectuais, Fernando Henrique Cardoso. Quem esperava oito anos de grandes debates intelectuais com o presidente decepcionou-se: FHC presidente falava como político, como, aliás, tinha mesmo que fazer.
Porém, no meio da campanha eleitoral, provocado por dois intelectuais de esquerda —José Luis Fiori (no artigo “Os moedeiros falsos”) e Roberto Mangabeira Unger (na entrevista “O ideólogo da terceira via”)—, Cardoso publicou, em 10 de julho de 1994, “Reforma e imaginação”, sua defesa mais vigorosa contra a acusação de que havia “traído seus ideais” aliando-se à direita, um documento importante sobre o “neoliberalismo” brasileiro. É um texto de transição entre o intelectual e o presidente, que cada um julgará se para em pé diante dos resultados posteriores.
Finalmente, quando denúncias de corrupção abalaram o governo tucano, o filósofo José Arthur Giannotti, historicamente próximo de FHC, publicou, em 17 de maio de 2001, “O dedo em riste do jornalismo moral”, manifestando seu temor de que a política de denúncias morais esvaziasse a política, em que, apesar da importância indiscutível das regras, sempre haverá uma “zona cinzenta”.
A filósofa Marilena Chaui, historicamente próxima do PT, respondeu com o belo artigo “Acerca da moralidade pública”, em que defendeu que a imprensa e os partidos de oposição que faziam as denúncias também participavam, legitimamente do debate sobre a fronteira da “zona cinzenta”.
Não sei qual dos dois tinha razão, talvez os dois tivessem, mas hoje está claro que não soubemos gerir bem a convivência da política com a defesa da moral nos últimos anos.
No Brasil de hoje, a zona cinzenta da política é definida cada vez mais arbitrariamente, as críticas de Fiori e Unger parecem mais pertinentes do que foram na era FHC, e o auxílio emergencial, feito nos moldes do Bolsa Família, acabou. Espero que a Folha continue sendo um espaço onde alternativas a esse desastre sejam pensadas, pois, sem sombra de dúvida, elas são mais necessárias do que nunca.
Catarina Rochamonte: STF - Autoritarismo contra boçalidade
O deputado se excedeu em palavras e o ministro se excedeu em ato: tentou combater a boçalidade com autoritarismo.
A verborragia do deputado Daniel Silveira que deu azo ao mandado de prisão em flagrante expedido pelo ministro Alexandre de Moraes é de estarrecer pela sua vileza, violência, chulice e boçalidade. Essa boçalidade tem degradado a política brasileira, mas, convenhamos, ela não é exclusividade do deputado que serviu de boi de piranha para o Supremo mandar seu recado ao bolsonarismo.
Que a fala do deputado foi criminosa, parece consenso; todavia, a prisão em flagrante teve sua legalidade amplamente questionada no meio jurídico. O deputado se excedeu em palavras, e o ministro se excedeu em ato: tentou combater a boçalidade com autoritarismo e defender o Estado de Direito corroendo seus alicerces. A punição deveria ter sido pleiteada segundo o rigor das normas constitucionais.
O STF merece muitas críticas, que podem ser feitas sem excessos criminosos. Não apenas pode ser criticado como deve ser investigado, inclusive pela já de há muito proposta CPI da Lava Toga, que está barrada no Senado pelo acordo de impunidade entre os Três Poderes. CPI essa, aliás, que sofreu ativa resistência do senador Flávio Bolsonaro.
Mesmo sendo legalmente questionável, a prisão do deputado foi referendada pela unanimidade do STF e corroborada pela Câmara. O presidente Bolsonaro, por sua vez, silenciou, como já o fizera em relação às prisões de Sara Winter e Oswaldo Eustáquio. É que a turma radical não lhe é útil nesse momento: tornou-se um ruído a perturbar a paz que uniu Planalto, ala anti-Lava Jato do STF e políticos de rabo preso que não se podem indispor com o Supremo.
Se a Câmara optou por não oferecer resistência aos arroubos autoritários dos que se julgam intocáveis, cabe agora ao Senado fazê-lo, abrindo os processos de impeachment protocolados contra ministros do Supremo e instalando a CPI da Lava Toga. Se a independência e harmonia dos poderes é pilar do Estado de Direito, é preciso agora que o Senado exerça algum protagonismo republicano.
Ricardo Noblat: Pacheco dá tempo ao governo para barrar a CPI da pandemia
Depende do preço a ser pago
Depois de protocolado há mais de 10 dias, o requerimento de criação da CPI da Pandemia continua com o mesmo número de assinaturas, cinco a mais do que o necessário para que fosse instalada. Mas Rodrigo Pacheco (DEM-MG), presidente do Senado, que posa de independente do governo, só observa.
Por que será? Ora, porque ao governo tudo interessa, menos uma CPI que investigue a fundo sua responsabilidade na tragédia que já consumiu quase 250 mil vidas, deixando pouco mais de 10 milhões de brasileiros doentes. A situação tende a piorar porque falta vacina e sobre incompetência no Ministério da Saúde.
Pacheco está dando tempo ao governo para que consiga convencer pelo menos 6 senadores a retirarem suas assinaturas do requerimento. Não será impossível que isso aconteça dado o sortimento de cargos e outras sinecuras a serem oferecidas aos mais receptivos. Mas não será fácil.
Houve um senador que morreu contaminado pelo vírus. Senador que viu a mãe entubada. Além de senadores que perderam muitos amigos.
Bom dia, Venezuela! Ou bom dia, Brasil, um país sem sossego!
Perguntas à espera de respostas
Dê-se crédito ao presidente Jair Bolsonaro. Quando se sabe o que quer e não se perde o foco, demitir o presidente da maior empresa da América Latina, com ações negociadas nas principais bolsas de valores do mundo, é tão fácil como passear de jet-ski em qualquer parte do litoral do país para atrair devotos.
O economista Roberto Castelo Branco foi demitido por meio de um curto post nas redes sociais. No próximo mês, completaria dois anos à frente da Petrobras. Os acionistas estavam felizes com sua administração. Ele navegava em mar de almirante até que Bolsonaro acordou um dia e decidiu mandá-lo embora.
Simples assim. O preço do diesel havia sido reajustado porque variava de acordo com o câmbio e o preço do barril de petróleo. É assim nas chamadas economias de mercado. Quando não é, dá no que aconteceu com a Venezuela, onde o ex-presidente Hugo Chávez interveio na Petrobras de lá e depois disso ela quebrou.
Bolsonaro sempre se apresentou como o inverso de Chávez e do seu sucessor Nicolás Maduro. Serviu ao ex-presidente Donald Trump como uma espécie de posto avançado contra o chavismo por essas bandas. Na verdade, revela-se tanto ou mais populista do que Chávez e Maduro. E, como eles, conta com apoio militar.
A Petrobras perdeu em 24 horas R$ 28 bilhões de seu valor. Hoje, tão longo abra a Bolsa de Valores, perderá muito mais com a desvalorização do preço de suas ações. A levar-se a sério o que disse Bolsonaro quando demitiu Castelo Branco, “o mercado fica irritadinho com qualquer negocinho”, e ele pouco liga.
Na ocasião, saiu-se com a mais fina pérola da demagogia ao afirmar que os operadores financeiros não “sabem o que é passar fome”. Ele e seus filhos não sabem, todos criados com recursos da União. Como não querem abrir mão da vida boa que levam, a saída é perpetuar-se no poder enquanto der. Reeleição! Reeleição!
Os caminhoneiros ameaçavam com uma greve em protesto contra o reajuste do diesel? Adeus, Castelo Branco, que levava a sério a política de recuperação da Petrobras desde quando ela quase afundou no período dos governos do PT. Nomeie-se para o cargo mais um militar acostumado a bater continência ao chefe.
O general Joaquim Silva e Luna, ex-ministro da Defesa do presidente Michel Temer, será a voz do dono e não o dono da voz. Como é o general Eduardo Pazuello, notável especialista em logística, ministro da Saúde. Como são todos os militares que em troca de polpudos salários se tornaram serviçais do capitão.
Missão dada é missão cumprida. Manda quem pode, obedece quem tem juízo. Quem desobedece ou ensaia discutir ordens perde o emprego. Foi o caso do general Rego Barros, porta-voz de um presidente que não carece de quem porte sua voz. Foi também o caso do general Santos Cruz, vítima do gabinete do ódio.
A semana começa com uma série de perguntas nervosas. Se Luna, como garantem os apagadores de incêndio da presidência da República, não mudará a política realista de preços da Petrobras, ora, diabos, então por que Bolsonaro despachou Castelo Branco? Só para engabelar os caminhoneiros por mais algum tempo?
A troca de comando na Petrobras significa o rompimento definitivo de Bolsonaro com os fundamentos do liberalismo econômico ou mais uma vez ele recuará? Bolsonaro, agora, quer meter o dedo no setor de energia elétrica. Foi o que prometeu. E Paulo Guedes, ministro da Economia, até quando ficará onde está?
Bom dia, Venezuela! Ou bom dia, Brasil, de um presidente tresloucado que não concede ao país um só dia de calma!
Demétrio Magnoli: Bolsonaro 3.0
Quando Bolsonaro anunciou a troca do presidente da Petrobras, recordei as conversas que mantive com figurões do “mercado” no intervalo entre os dois turnos da eleição presidencial de 2018. A turma da alta finança deplorava as ideias políticas do candidato nostálgico pelo AI-5, mas confessava que ele teria seus votos: afinal, diziam, Paulo Guedes garantiria o triunfo de uma política econômica liberal. Pobres liberais ricos de miolo mole...
O governo Bolsonaro original exibia duas faces. Um lado do rosto era Olavo de Carvalho: o reacionarismo delirante de uma ultradireita mística, que almeja restaurar passados diversos, nossos e estrangeiros. O lado complementar era Guedes: um liberalismo econômico de ângulos retos, inculto e inconciliável, extraído de cartilhas de autoajuda para banqueiros de investimento.
Sob pressão do inquérito sem fim do STF, parte da mobília foi lançada fora do caminhão. A famiglia acima de todos! A espada erguida pelos juízes sobre a cabeça dos filhos do presidente dissolveu as lealdades frágeis. O espectro do impeachment fez o resto. Bolsonaro livrou-se, silenciosamente, do “núcleo ideológico”, ou seja, das camarilhas de idiotas e oportunistas que surfaram a onda da “nova política”.
O governo Bolsonaro 2.0 foi inaugurado pelo abraço úmido do Centrão. No lugar da revolução reacionária, a “velha política” de resultados. As eleições ao comando da Câmara e do Senado — em especial, a derrota de Rodrigo Maia — mostraram que a geringonça poderia funcionar. Guedes, porém, continuava lá, no fundo do palco, encenando truques vulgares à luz pálida de um holofote com filtro.
A gestão responsável de Roberto Castello Branco à frente da Petrobras provocou a segunda ruptura. De olho no preço dos combustíveis e, principalmente, na chantagem perene dos aliados caminhoneiros, Bolsonaro vestiu a armadura de Dilma Rousseff. A empresa pública de capital aberto será convertida, uma vez mais, em loja de conveniência do Planalto. “Um manda, outro obedece”: um general de pijama transformará os piores instintos presidenciais em política de preços da estatal petrolífera.
O governo Bolsonaro 3.0 foi inaugurado na sexta-feira fatídica da confirmação parlamentar da prisão de Daniel Silveira e da defenestração presidencial de Castello Branco. No Congresso, o Centrão deu as costas ao que resta do “núcleo ideológico” e cantou as glórias eternas da democracia, ignorando o pedido de clemência de um valentão de araque que borrava as calças. No Planalto, o presidente bombardeou o castelo já arruinado de Guedes, humilhando publicamente o fiador de seu governo junto ao “mercado”.
Bolsonaro 3.0 consagra uma aliança nem tão excêntrica assim, entre o fisiologismo do Centrão e o corporativismo militar. Numa ponta, situa-se a base de parlamentares sem preferências ideológicas, mas extensa prática no esporte da captura dos fragmentos lucrativos da máquina estatal. Na ponta oposta, um “Partido Militar” que, simulando falar o idioma da ordem e progresso, busca obter privilégios pecuniários para os homens em armas e empregos públicos de prestígio para generais e coronéis da reserva. O retrato da aliança é o general Luiz Eduardo Ramos, chefe da Secretaria de Governo, plenipotenciário do presidente no balcão de negócios do Congresso.
A esta altura do jogo, a decisão que Guedes rumina só tem relevância simbólica. O amuleto eleitoral de Bolsonaro, falsamente exibido como czar da Economia, pode renunciar, para fingir que leva para casa o falso brilhante de sua dignidade, ou permanecer como vaso ornamental em meio aos destroços de um jardim clássico. Ninguém mais se importa.
O estelionato eleitoral de Dilma Rousseff foi um experimento na mentira. A presidente que trocou o “novo paradigma macroeconômico” pela ortodoxia de Joaquim Levy renunciava a suas convicções para tentar sobreviver à tempestade. O estelionato eleitoral de Bolsonaro é, pelo contrário, um exercício de restauração da verdade. O presidente fecha o círculo, retornando a suas raízes. Roberto Schwarz tinha razão: no Brasil, o liberalismo não passa de uma ideia fora de lugar.
Vera Magalhães: Militares acima de tudo, Centrão acima de todos
Os últimos meses causaram fissuras profundas na aprovação de que Jair Bolsonaro gozava junto a alguns dos grupos responsáveis por levá-lo ao Planalto em 2018. Ele perdeu completamente os lavajatistas, está com a relação abalada com os fanáticos ideológicos e, diante da intervenção na Petrobras, vê abalada também a confiança (que parecia inesgotável) da elite econômica, composta por integrantes do mercado financeiro e o empresariado industrial e do agro.
Hoje, o governo Bolsonaro é composto basicamente por uma aliança entre o Centrão e os militares (incluindo aqui as polícias militares), uma combinação bastante esdrúxula e preocupante no que pode oferecer de riscos à democracia, em primeiro lugar, e a qualquer ilusão de que se vá promover algum ajuste fiscal.
Paulo Guedes é uma espécie de estranho nesse ninho. No fim de semana, o ministro da Economia permaneceu em silêncio obsequioso diante da intervenção com mão grande de Bolsonaro na Petrobras e o anúncio de que pretende fazer o mesmo com as tarifas de energia elétrica (Dilma, é você?).
Coube a Bento Albuquerque, o ministro de Minas e Energia que Bolsonaro vira e mexe ameaça demitir, tentar colocar panos quentes com os integrantes do Conselho da Petrobras, e à dupla dinâmica da Comunicação, Fábio Faria e Fábio Wajngarten, ir para as redes sociais dizer que estava tudo bem e que o que o presidente fez na Petrobras é apenas um gesto normal numa economia de mercado. O que todo mundo sabe que não, não é.
A tentativa dos dois é evitar o esperado strike nas ações da empresa e nos demais indicadores na abertura dos mercados, nesta segunda-feira. Mas o fato de terem sido eles a sair em defesa do gesto de Bolsonaro mostra que sim, o Centrão ganha espaço mesmo em áreas que antes não se poderia supor. Afinal, o que Faria, um expoente do grupo e responsável por quebrar as barreiras que havia entre o capitão e esses partidos, tem a dizer sobre algo tão complexo quanto a gestão de uma empresa de economia mista?
O avanço do Centrão é tal que ninguém tenta mais nem disfarçar. Em entrevista ao GLOBO, o presidente da Câmara, Arthur Lira, não usou de meias palavras: o objetivo do grupo é ter o controle do Orçamento.
Diante disso, da militarização inclusive de postos-chave da área econômica e da evidência de que Bolsonaro descambou de vez para o populismo reeleitoreiro, resta a Paulo Guedes a pergunta que fiz aqui na sexta-feira: até quando, ministro?
A pergunta não se aplica só a ele. Sondagem da XP com investidores institucionais no fim de semana mostrou a esquizofrenia que reina no mercado: mesmo 80% dizendo que Bolsonaro voltará a intervir na economia, 76% esperam a continuidade da política fiscal, como se isso fosse um fator de permanência da confiança. Mas qual política fiscal quando o que se decide é uma nova cláusula de calamidade que permita pagar o auxílio emergencial (absolutamente necessário, mas que não se encaixa nesse discurso) e o Centrão se prepara para tomar conta do Orçamento?
Da mesma forma, outros agentes institucionais, inclusive o Conselho da Petrobras, assistem a cada avanço de Bolsonaro na supressão da democracia e ampliação de seus poderes e da presença de militares em lugares que nada têm a ver com sua missão constitucional e fazem o mesmo balé: se chocam, ameaçam reagir, mas cedem. Cedem sempre.
A cada concessão a fatos como a nomeação do general Joaquim Silva e Luna para a empresa é uma casa que Bolsonaro avança num tabuleiro que leva a 2022. Quando se tentar reagir a alguma dessas investidas, o presidente estará fortalecido demais e com o controle de áreas que poderão dar a ele o que nem mais esconde: a possibilidade de ao menos tentar "mudar o regime", como ele deixou claro que gostaria de fazer em mais uma fala sincericida neste fim de semana.
Fernando Gabeira: Que país é este?
Festas clandestinas, variante do corona, vacina em falta, vacina de vento, às vezes acho que o Brasil se deixa devastar pelo vírus
É importante compreender não só pela pandemia, mas também pela sensação de que somos muito vulneráveis diante de obstáculos futuros. O governo tem uma grande culpa na tragédia. Um estudo divulgado pela “Lancet” afirma que os erros de Trump contribuíram para 40% das mortes nos EUA.
Estudo semelhante no Brasil, certamente, mostraria que a política de Bolsonaro matou muito mais. Trump pelo menos financiou a vacina, Bolsonaro foi o único estadista no mundo a contestá-la.
Quanto ao governo, resta apenas denunciar seus erros, juntar documentos e esperar que os tribunais o julguem.
Mas há algo na própria sociedade brasileira que precisa de uma análise. Tanta gente nas festas de fim de ano, tanta gente nos bailes de carnaval clandestinos, tanta gente sem máscara, é um movimento inevitável. Por que valorizamos tanto a liberdade individual em contraste com um certo descuido pelo coletivo, pela sensação de pertencimento?
Se minha hipótese é verdadeira, não vão adiantar muito lições de moral, campanhas educativas. Elas apenas patinam na superfície do problema. No Brasil, as pessoas sentem que a cidadania traz poucas vantagens; logo, não merece nenhum tipo de sacrifício.
Ali em 2013, o grande movimento espontâneo já parecia indicar uma insatisfação com os serviços públicos que pouco devolviam aos impostos pagos.
No princípio da pandemia, que demandava tanta solidariedade, surgiram notícias de corrupção em diferentes estados. Respiradores comprados em casas de vinho, hospitais de campanha superfaturados; a sensação de que esses fatos transmitiram era que entre os governantes reinava o lema de cada um por si.
Quando surgiu a quarentena, era evidente para todos a impossibilidade de realizá-la no exíguo espaço de algumas moradias. A orientação moral era esta: façam quarentena, inclusive para proteger os outros. Mas fomos incapazes de oferecer uma rede de hotéis, pousadas e abrigos que pudessem ser usados para isso. Da mesma maneira, dizíamos: “Lavem as mãos”. Mas fomos incapazes de pensar um esquema de abastecimento emergencial nas comunidades onde a água é rara, às vezes inexistente.
Não houve uma configuração especial no transporte público para oferecer alternativas para que circulasse mais vazio, com álcool disponível e até máscaras para quem não as tinha.
A educação e a cultura passaram a depender do mundo virtual. Mas não foi feito um grande esforço para estender a conexão de qualidade para que as crianças tivessem algumas aulas, e os adultos, alguma diversão e arte.
É nesse quadro que nossas campanhas se movem. Teríamos muito mais eficácia se houvesse mais proximidade, se as pessoas sentissem que os conselheiros também buscam soluções para atenuar a aspereza de suas vidas.
Tudo isso não impediu ações de solidariedade nos morros do Rio e uma atividade assistencial intensa em Paraisópolis, uma região que foi sacudida antes da pandemia por uma violenta ação da PM.
Mas, de um modo geral, creio, a raiz da nossa vulnerabilidade está na distância entre os dirigentes e as pessoas. Não há partidos, organizações intermediárias; os indivíduos se sentem sós e aprofundam a ilusão de uma existência isolada. Acreditam que estão arriscando apenas sua vida, mas, na verdade, levam muitas consigo.
Enquanto não nos livrarmos de um tipo de governo e buscarmos uma correção de rumos, o Brasil poderá até escapar do coronavírus, mas será sempre um país vulnerável, quase indefeso.
Talvez essas reflexões sejam mais adequadas para depois da pandemia, mas sinceramente ninguém sabe quando acabará: melhor é aceitar que o próximo desastre já começou, sem que nos déssemos conta.
Correio Braziliense: 'Não podemos deixar Bolsonaro sozinho na pista', diz Haddad
Ex-prefeito de São Paulo anuncia que o partido não vai esperar 2022 para pressionar pela vacinação, pela volta do auxílio emergencial e pela geração de empregos, áreas em que considera que o governo fracassou
Luiz Carlos Azedo e Denise Rothenburg, Correio Braziliense
Liberado pelo ex-presidente Lula para desfilar como pré-candidato do PT à presidência da República, o ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad, que representou o Partido dos Trabalhadores na última eleição presidencial, dá a largada à sua pré-campanha acusando o empresariado brasileiro de ter "contratado o caos" em 2018 ao apoiar Jair Bolsonaro em "troca de dinheiro miúdo" e alguns por "dinheiro graúdo", referindo-se à expectativa de privatização da Eletrobras e da Petrobras,que faziam parte dos planos de Paulo Guedes.
Nesta entrevista ao Correio, ele anuncia que o partido não vai esperar 2022 para pressionar pela vacinação, pela volta do auxílio emergencial e pela geração de empregos, áreas em que avalia que o governo fracassou. "Não podemos deixar Bolsonaro sozinho na pista", afirma Haddad, que considera Bolsonaro uma pessoa "perigosa". Quanto à rejeição ao PT, que levou o partido à derrota em 2018, ele considera que passou: "A rejeição ao Bolsonarismo já superou essa. Hoje, mais de 50% da população não quer a continuidade dessa loucura que virou o país, que é um país necrófilo, cultivando a morte, o desemprego, o desalento", diz. A seguir os principais pontos da entrevista.
O senhor já é o pré-candidato ou o PT pode apoiar outro partido?
Eu acredito que é natural que uma pessoa que tenha ido ao segundo turno de uma eleição presidencial seja lembrada pelo próprio partido. Mas nós sabemos que estamos lutando há muitos anos para provar a parcialidade do juiz Sergio Moro no julgamento do Lula. Entendemos que conseguimos recolher mais do que evidências. Recolhemos provas cabais de que o Moro agiu como chefe da acusação, o que é vedado por lei. Quero crer, até pela declaração de vários ministros, de que querem Justiça e não perseguição, que nós temos uma possibilidade de resgatar a democracia no Brasil. Não podemos abdicar da democracia. Não se trata de nomes, se trata de Justiça. Agora, o Lula, realmente, me pediu, conforme revelei, que não aguardemos isso. Não temos o mando dos prazos judiciais. Sabemos que a Justiça será feita, mas não sabemos quando. Temos que ter clareza que o Bolsonaro não pode ficar sozinho, em campanha, com um plano de ação atroz, que tem trazido tanta desgraça para o povo brasileiro. Esse é o sentido do meu afastamento da sala de aula para me colocar à disposição do PT até as eleições de 2022. Esse é o sentido, não deixar Bolsonaro só.
O senhor já deve ter uma proposta de programa esboçada. Quais seriam as três prioridades de debates nesta pré-campanha eleitoral?
Não podemos aguardar 2022 para pressionar o governo a vacinar as pessoas. Essa sabotagem que o governo Bolsonaro fez com a vacina e com o isolamento social, que trouxe tanto desemprego e sofrimento para as famílias brasileiras, será uma agenda das caravanas já em 2021, não vamos aguardar 2022 para discutir isso, emprego, renda e saúde pública. Não podemos deixar Bolsonaro sozinho na pista. Vamos discutir com a população a vacinação e o auxílio emergencial imediatamente. Agora, evidentemente, a economia brasileira está totalmente desorganizada e temos uma situação de queda brutal do investimento público, temos que encontrar espaço orçamentário para gerar emprego. É uma ilusão imaginar que vamos poder contar com o investimento privado em substituição ao público. Isso nunca aconteceu. Está aí o Joe Biden lançando um plano de US$ 2 trilhões para recuperar a economia americana, contrariando toda a cartilha neoliberal. Temos que ter clareza que precisamos gerar empregos no país e o PT é um partido que mais gerou empregos na história do Brasil. Foram 20 milhões em 12 anos, sabemos fazer isso. Obviamente, o Sistema Único de Saúde (SUS) tem que ser reforçado, porque provou que é o instrumento que temos de política pública na área da saúde. E, lamento dizer, vamos encontrar a educação, que pouco se fala no Brasil, em situação de extrema penúria.
Como assim?
O Bolsonaro destruiu o sistema educacional brasileiro. Até como ex-ministro da Educação, teremos uma tarefa enorme de reconstruir o sistema educacional brasileiro. O Ministério da Educação se negou a coordenar ações das secretarias estaduais e municipais. Cada um está dando um tiro para um lado. Provavelmente, vamos ter uma pandemia de crianças e professores, que estavam antes resguardados. Não houve planejamento para a volta às aulas presenciais. O Ministério da Educação não deu nenhuma entrevista coletiva organizando o país na área educacional. Bolsonaro tem nomeado interventores nas universidades e institutos federais ao arrepio da lei, está cortando verba de ciência e tecnologia. O corte já chega a 70% do pico do nosso investimento. E a cultura está destruída no país. Não há financiamento para geração de empregos na área da cultura. Então, temos um desafio enorme nessas áreas que dialogam com o futuro, ciência, educação, artes, cultura.
Não seria tarefa dos estados organizar a volta às aulas presenciais nas escolas de ensino médio e fundamental, uma vez que esses níveis são atribuição deles?
A Constituição não diz bem isso. A Constituição diz que a União tem o papel de coordenador em todas as ações federativas. E, no caso da educação e da saúde, isso é textual: o governo federal nunca pode lavar as mãos. Nunca. Em área nenhuma. Na educação e na saúde tem uma recomendação expressa na Constituição. Os apoios técnico e financeiro são obrigações constitucionais da União frente ao SUS e aos sistemas educacionais.O governo Bolsonaro não fez nem uma coisa, nem outra. Nem o Pazuello, nem o ministro da Educação. Estamos no quarto ministro da Educação. Jamais se dispuseram a coordenar as ações com equipes de sanitaristas, epidemiologistas que pudessem fazer uma programação coerente. Estamos falando de um quarto da população que está em sala de aula. Não estamos falando de pouca gente. Mais de 50 milhões de brasileiros são estudantes, professores e funcionários de escola. Se somarmos as universidades, estamos falando de quase um terço da população.
Para 2022, seu principal concorrente é o juiz Sergio Moro, o único que, nas simulações de segundo turno, ultrapassa Bolsonaro. Isso deixa evidente que essa variável da Lava-Jato ainda tem peso nas eleições. Como lidar com isso?
Há uma confusão proposital entre combate à corrupção e o que aconteceu em Curitiba. No meu ponto de vista, o que aconteceu em Curitiba também pode ser classificado como corrupção. Do sistema de Justiça. Você não pode simplesmente perseguir politicamente uma pessoa como projeto político, não pode fazer isso. Eu, se fosse juiz, não perseguiria Bolsonaro por crimes ficcionais. Ele tem que responder pelos crimes que cometeu porque tem prova. Por exemplo, quando a gente acusa Flávio Bolsonaro pelo desvio de verba pública em gabinete, não é uma acusação feita ao léu. Você tem lá a conta-corrente, o dinheiro sendo transferido de uma conta para outra, inclusive envolvendo a esposa do presidente da República. Você tem um acúmulo de patrimônio que jamais uma pessoa como Bolsonaro conseguiria amealhar, patrimônio imobiliário, loja de chocolate. Ou seja, está feito um nexo entre uma coisa e outra. Agora, você não pode usar, corromper o sistema, para fazer política. É isso que juristas do mundo inteiro e, não sou eu que estou dizendo isso, condenam a maneira como o juiz Sergio Moro se comportou. Agora, toda a legislação anticorrupção é do nosso governo, todo o fortalecimento da polícia, do Ministério Público, é do nosso governo. Esse governo está fazendo o contrário. Está enfraquecendo o combate à corrupção. Então, não vai ser o juiz Sergio Moro que vai me ensinar uma coisa que eu sei de cor. Passei pelo Ministério da Educação com R$ 100 bilhões de Orçamento, passei pela prefeitura de São Paulo, com R$ 60 bilhões de orçamento, e você nunca ouviu de ninguém que não foi feito um combate pesado contra a corrupção. Inclusive, em São Paulo, desbaratei uma máfia do INSS, recuperei quase meio bilhão de reais para a cidade. O Moro é que tem se explicar.
Embora o senhor diga que Sergio Moro extrapolou, há uma rejeição ao Partido dos Trabalhadores. Como o senhor vai lidar com isso?
Primeiro, acho que a rejeição ao bolsonarismo já superou essa. Hoje, mais de 50% da população não quer a continuidade dessa loucura que virou o país, que é um país necrófilo, cultivando a morte, o desemprego, o desalento. Então, acho que vai crescer esse sentimento na sociedade, de que nós não podemos continuar assim. Como vai crescer também a compreensão sobre o que de fato aconteceu. Do meu ponto de vista, houve, efetivamente, a partir de um cartel de empreiteiras, a captura da direção da Petrobras, e, diga-se de passagem, diretorias que eram ocupadas por pessoas de carreira, com mais de 30 anos de casa. Não foi gente de fora da Petrobras que organizou o cartel das empreiteiras. Agora, se foi possível desbaratar aquele cartel, só foi possível pelo fortalecimento das instituições promovido pelos nossos governos, que é o oposto do que está sendo feito hoje. Então, acho que a gente tem que falar com muita transparência. Não podemos cair no erro da criminalização generalizada. Às vezes ouço falar, ah, a imprensa brasileira é uma porcaria. De que jornalista está falando? De qual veículo. Sabe? Quando começa a generalizar…
O senhor é a favor do impeachment?
Não fui a favor do impeachment em 2019, não falava disso. Agora, fui a favor quando ele cometeu crime de responsabilidade, e dois muito graves: um, participar de atos antidemocráticos. O presidente da República não pode fazer isso. É expresso na lei do impeachment: não pode atentar contra o exercício dos outros Poderes. O presidente da República não pode constranger os outros Poderes na base da violência, tem que argumentar. Não pode intimidar os poderes da República. Isso é crime previsto em lei e ponto. Tem que afastar. Dois, o que fez na crise sanitária. Para mim, é crime de lesa-humanidade. Se nós tivéssemos um presidente decente, teríamos menos de um terço das mortes que tivemos, seguindo recomendações de qualquer epidemiologista, qualquer sanitarista. Então, ele é, sim, responsável pelas mortes.
Na hipótese de impeachment, assume Hamilton Mourão. Qual seria sua posição em relação a um governo dele, que, de certa maneira, assumiria com o seu apoio?
Não, veja bem: quando fomos a favor do impeachment do Collor, à época, todos os partidos votaram a favor. O PT não aderiu ao governo do Itamar, embora o Itamar fosse uma pessoa proba e responsável. Assumiu a Presidência legitimamente. Não aderimos ao governo, com exceção da Erundina, que foi um caso isolado e que contrariou a orientação partidária. Permanecemos na oposição, mas sempre a favor da democracia. O PT não faz toma lá dá cá com governos liberais, de direita. A gente respeita a direita. É uma força política que tem total condição de disputar hegemonia na sociedade. O PT é o maior partido de centro-esquerda e não de direita. A direita tem todo o direito de existir, como nós temos o direito de existir. O impeachment não pode ser negociado na base do toma lá dá cá, tem que ser aprovado ou não seguindo a regra constitucional: cometeu crime de responsabilidade? Está matando brasileiros? Se insurgiu contra a democracia? É crime previsto em lei. Teríamos poupado, pelo menos, 150 mil vidas, se Bolsonaro fosse afastado há um ano. Em primeiro lugar, falamos, esse senhor não tem condição de gerir essa crise, vai arrebentar esse país. E olha o que aconteceu. Tudo o que dissemos no começo do ano passado, demonstrou ser a mais pura verdade. Ele é um homem destrutivo. Tem prazer nisso. É impressionante.
A preços de hoje, Bolsonaro tem uma vaga no segundo turno em 2022. O que leva o senhor a crer que o resultado será diferente de 2018?
O Bolsonaro só ganhou com base numa mentira: de que eu era o extremista que ele era. Mentiram para a sociedade. Vocês me conhecem há muitos anos. Comparar a minha biografia de professor, democrata, lutei pelas diretas, lutei pela Constituinte, fui para a sala de aula estudar o Brasil, estudar o mundo. Fui ministro da Educação, fui prefeito de São Paulo.
E na esquerda, uma eventual candidatura de Guilherme Boulos lhe ajuda ou atrapalha?
É óbvio que se nós pudermos estar juntos no primeiro turno, estaremos. Não há dúvida de que faremos o esforço necessário para estarmos juntos, mas quero lembrar que, em 2018, tinham quatro candidatos até o dia da inscrição de chapa e nós só conseguimos fazer aliança com o PCdoB e mais ninguém. No domingo da inscrição de chapa, às 23h, faltando uma hora para o término do prazo. Obviamente, a situação hoje é melhor, porque temos mais tempo para sentarmos à mesa e discutir. A situação está mais clara sobre o que de fato acontece no Brasil do que estava em 2018. Muitas informações foram reveladas e a solidariedade a Lula é muito maior hoje por parte dos partidos de esquerda do que foi em 2018. O drama que estávamos vivendo. A compreensão desse drama por parte das forças políticas é maior. E, quando falo maior, falo da centro-direita, que acordou para as ameaças que estamos vivendo. Então, acho que o quadro é outro. E podemos fazer um grande entendimento de que o candidato que for ao segundo turno, terá o apoio dos demais. E aí, um leque mais amplo do que o de 2018. É o que eu espero que aconteça. As pessoas têm todo o direito de ter o seu projeto e apresentá-lo no primeiro turno. É um direito. É para isso que tem dois turnos, para a pessoa se apresentar da forma mais adequada que considera, mas com o compromisso de, no segundo turno, derrotar o governo de extrema-direita que está no Brasil.
O senhor vislumbra um cenário de muitos candidatos em 2022?
Em 2018, tivemos 13 candidatos. Imagino que, com um ano e meio pela frente, a gente consiga ter menos do que isso, se a gente conversar e se conseguir se entender sobre o que está em jogo no Brasil. Digamos que podemos cair para seis candidatos. Mas o acordo de segundo turno precisa ter mais atenção da imprensa. É a sugestão que eu faço: ou seja, aqueles que votaram no Bolsonaro no segundo turno, em 2018, fariam o mesmo em 2022? A gente acha que precisaria explorar isso melhor para saber quem é democrata e quem não é no Brasil. Na minha opinião, quem apoia Bolsonaro hoje não tem grande compromisso com a democracia. Em 2018, poderia alegar ignorância, mas hoje não dá para alegar ignorância de quem é o Bolsonaro.
Na disputa pelo Senado, o PT apoiou Rodrigo Pacheco. Na Câmara, a decisão de apoiar Baleia Rossi foi disputadíssima na bancada. Outros partidos se dividiram. Como lidar com essas forças que implodiram?
Não acho que implodiram. Rodrigo Maia estava de saída. Achamos que ele perdeu muitas oportunidades de liderar o processo de contenção do bolsonarismo. Acredito que ele tenha, realmente, desperdiçado essas oportunidades. E hoje entendo melhor o porquê. Seu próprio partido o rifou. Ele deve estar de saída do DEM no próximo período. E o PT, então, de forma bastante disputada internamente, resolveu fazer um gesto, de ter um presidente da Câmara que não fosse bolsonarista para conter os ímpetos autoritários e antiestado do Bolsonaro. Fizemos um gesto que, na minha opinião, foi pedagógico. O que esse gesto demonstrou? Que a direita, na hora H, vai para o lado do Bolsonaro. Não aceitaram nem um deles para presidir a Câmara. Preferiram correr para o colo do Bolsonaro. Ficou muito escancarado que a direita não tem esse compromisso com a democracia, que ela batia no peito em 2018 para justificar não votar em mim. No Senado, foi algo bem diferente. Rodrigo Pacheco é um advogado, garantista, um cara centrado, que era o melhor candidato. Não era o candidato do Bolsonaro, como falam. In pectore, jamais o Bolsonaro escolheria uma pessoa como ele para presidir o Senado, mas acabou se rendendo à articulação que foi feita pelo Davi Alcolumbre, em torno de uma pessoa que agregava mais do que um candidato bolsonarista agregaria. Não foi propriamente uma vitória do bolsonarismo, ao contrário da Câmara, onde o fenômeno foi outro: o PT fez o gesto e a direita correu para o lado do Bolsonaro. Mas isso foi pedagógico, porque a população vai enxergando quem de fato é oposição a esse governo. O maior partido de oposição a este governo é o PT, não tenho a menor dúvida. É um partido grande, com mais de 50 deputados, que ainda tem densidade para se insurgir contra o Bolsonaro.
O Congresso está diante de dois fatos que vão balizar as duas Casas. Uma é a CPI da Saúde, que precisa ser instalada no Senado. E o outro é o caso Daniel Silveira. Qual sua opinião sobre essas duas questões?
A gente sempre testa as pessoas no cargo. A gente nunca sabe o que vai ser de alguém antes de a caneta estar na mão. Às vezes, o cara diz antes o que vai fazer, como o Bolsonaro disse. Mas é raro alguém dizer tudo o que vai fazer, infelizmente, porque as pessoas deveriam ser muito transparentes antes de assumir cargos de comando no país. Eu acredito que uma CPI da Saúde é necessária, porque a gente tem que estimar quantas pessoas morreram, quantas vidas foram ceifadas por absoluta responsabilidade do governo. Aí, vai se discutir a cadeia de responsabilização, se foi o Bolsonaro ou o Pazuello. Pelo menos, o ministro tinha que cair, porque ele é diretamente responsável pelo que fez. Comprar cloroquina, distribuir cloroquina, combater a vacina, não promover as encomendas necessárias para a gente estar em patamar de vacinação, não ter um gabinete de crise até hoje instalado, não coordenar as ações federais. Se isso não é improbidade, é melhor rasgar a lei, porque ninguém vai responder mais por improbidade nesse país, depois do governo Bolsonaro. Não existe improbidade mais. Ou a gente leva a sério o Brasil, ou vamos ladeira abaixo, como estamos indo. Por isso, acho a CPI da Saúde imprescindível e espero que ele (Rodrigo Pacheco) instale.
E em relação ao caso Daniel Silveira?
Prisão de parlamentar é sempre uma coisa delicada. É óbvio que esse deputado, em especial, está fustigando o Supremo talvez para provocar essa situação. Ele deu um palanque virtual bastante considerável, ele é uma pessoa das sombras, parece que já foi 90 vezes preso, segundo ele próprio. Se entendi bem o discurso dele, é uma pessoa que tem orgulho de ter sido presa 90 vezes. É uma pessoa das sombras que vem fustigando a Suprema Corte há muito tempo. Não sei se a medida mais correta é a prisão, mas, com certeza, a medida mais correta é a cassação do mandato. A quebra de decoro está caracterizada, de acordo com toda a legislação. Compreendo também que a decisão judicial da Suprema Corte tem que ser respeitada. Esse cidadão está nessa campanha, de promover ódio, de promover atentados contra a democracia, há muito tempo. Praticamente desde que tomou posse. Não sei o tipo de ameaça que os ministros vêm recebendo. Eu sei que vêm recebendo ameaças, contra a sua própria vida muitas vezes. Se amanhã se descobrir uma pessoa que está fomentando um atentado contra a vida do presidente da República, que é alguém que eu considero desprezível, sou a favor de que essa pessoa saia de circulação. Isso não é uma atitude de quem respeita a democracia. Existe lei e você não pode fomentar nenhum ato de violência contra uma autoridade constituída.
Como o senhor avalia o decreto das armas?
É outro caso que o Congresso tinha que sustar, via decreto legislativo. Onde vai parar isso? As pessoas precisam de vacina para salvar a economia. E a pessoa está preocupada em armar milicianos? Esse sujeito que foi preso, investiga a vida dele: deve ter algum parentesco ou ligação com o Adriano, que foi morto na Bahia; com o Queiroz, escritório do crime, essa turma. É muito sério o que está acontecendo. A gente precisa ler o livro do Bruno Paes Manso, sobre a república das milícias, para saber o que está acontecendo no Brasil. Temos na Presidência da República uma pessoa muito perturbada, que não tem nenhum compromisso com a democracia. Uma pessoa perigosa. Estamos falando de uma pessoa muito perigosa. Não sei se as pessoas estão atentas para isso, mas o perigo está à espreita. É muito grave.
Agora, ele tem dito que essas afirmações são feitas para tirá-lo da Presidência em 2022...
Semana passada falou em tirar de circulação os jornais. Ou seja, não tem dia que ele não atente contra a democracia. Foi passar o carnaval, com mais de mil mortos por dia, e passear em jet-ski em Santa Catarina. Que exemplo edificante ele dá sobre qualquer assunto? Está há dois anos e dois meses na Presidência da República. Não consigo ver um exemplo que se diga, aqui foi uma postura de presidente, aqui representa a alma do brasileiro. O que eu vejo é ameaça o tempo todo.
Como lidar com isso, num processo eleitoral que será tenso?
O empresariado brasileiro que apoia o Bolsonaro até hoje precisa botar a mão na consciência. Se o empresariado brasileiro não botar a mão na consciência e reconhecer que contratou o caos ao ocupar a Presidência da República com essa figura, a tensão vai aumentar. Eles precisam entender o que eles fizeram. Eles contrataram o caos. Contrataram o caos e por dinheiro miúdo. Alguns por dinheiro graúdo, Eletrobrás, Petrobras. Alguns estão de olho na compra na bacia das almas do patrimônio nacional. Mas eles contrataram o caos.
Além de ter que convencer o empresariado a pôr a mão na consciência, o PT também precisa convencer esse empresariado de que aquela situação que vivemos lá atrás, com petrolão e mensalão, não vai se repetir?
Vamos pegar o caso dos tucanos aqui de São Paulo, que governam o estado desde os anos 1990. Você tem Metrô, Rodoanel, Dersa, tudo capturado, todas essas empresas foram capturadas, você pode deduzir daí que uma figura que eu até defendi publicamente, o governador Geraldo Alckmin, estava envolvido com a captura dessas empresas? Se aparecer uma prova de que ele estava envolvido, prendam. Agora, você não pode supor que tudo o que aconteceu com aquele Paulo Preto foi sob o comando de uma liderança tucana, a não ser alguns que tinham contas no exterior. Esses precisam ser presos. Tem várias lideranças tucanas que precisam ser julgadas, porque há evidências absurdas, cartões de crédito e contas no exterior. É outro departamento. A questão do gabinete do Bolsonaro, estão lá as provas… Nada contra combater a corrupção. Mas vamos fazer isso de maneira adequada, de acordo com a lei, sem política, sem ideologia. Juízes imparciais, juízes honestos, não tem nenhum problema em avançar nessa agenda.
Em relação ao PT também?
Não tem nenhum problema, você tem milhões de filiados. Vamos pegar a igreja, um padre saiu da linha. Você defende a punição. Se você respeita a Igreja, sim. Eu respeito o meu partido, por isso defendo a punição. Tem prova contra um filiado do meu partido, paciência, eu lamento, mas eu não tenho compromisso com a coisa errada. Isso vale para a minha igreja, vale para o meu partido, vale para a minha família, vale pra todo mundo, pode ser meu filho, meu primo, meu sobrinho, errou, paga. Se eu defendo isso para a minha família, como é que eu não vou defender para a minha igreja e o meu partido? Essa coisa não existe comigo, essa questão não é partidária. Defendo que as pessoas do PSDB que não sejam culpadas, sejam absolvidas. Não posso desejar a punição para um adversário se ele não cometeu algum erro. Não quero isso para ninguém, seja de que partido for. Não quero saber, errou, paga; não errou, não paga. Tem uma lei, tem que cumprir a lei, ponto. Se você é contra a lei, lute para mudar a lei, mas enquanto a lei estiver em vigor, cumpra a lei.
E o ex-presidente Lula, qual será o papel dele daqui pra frente?
Lula nunca desrespeitou o Poder Judiciário, é bom que se diga isso. Ao contrário, ele isolava o que estava acontecendo em Curitiba do que estava acontecendo no resto do país. A briga do Lula é por justiça, não é contra A, B ou C. E o Lula, assim que estiver vacinado, está louco para se vacinar, ele já está com 75 anos, está esperando a vez dele, deve acontecer nas próximas semanas, ele se colocará à disposição do país, como sempre se colocou, para ajudar a construir uma saída.
Como fica a questão se o Lula for liberado pela Justiça para disputar as eleições?
Primeiro, vou seguir com as minhas ideias e o meu partido, independentemente da missão que me for dada. Segundo, se a Justiça chegar é muito justo que o PT reabra a discussão e o Lula possa ser candidato, que é o desejo de 100% da militância do PT. Por fim, não acho que vamos chegar ao que aconteceu em 2018. Eu estou saindo à rua, como todos os pré-candidatos, todo mundo está colocado. É um direito de cada cidadão se deslocar com segurança pelo país com uma mensagem, não sei no que isso pode prejudicar quem quer que seja, prejudicar as pessoas.
O senhor é considerado um petista light, o Lula não, é o Lula, é o PT raiz 100%, puro-sangue. Isso faz muita diferença numa disputa de segundo turno?
O único partido ao qual me filiei foi o PT e isso já tem bastante tempo. As pessoas conhecem o meu trabalho, sou a favor de que o homem público tenha sua vida passada a limpo, uma coisa é uma novidade, estou chegando agora; outra coisa é uma pessoa que tem 20 anos de vida pública. Não estou chegando agora, tenho 20 anos de experiência. Passei por cargos muito importantes, por um ministério que não era tão importante quando cheguei, mas deixei um dos maiores ministérios, mais importantes, senão o mais importante do país. Foram 8 anos só de MEC, mais quatro anos na maior cidade do país. Minha vida está aí para quem quiser virar do avesso, as decisões que eu tomei, polêmicas, não polêmicas, mas que eram polêmicas e deixaram de ser, porque se mostraram correta, a minha família, onde eu moro, os meus filhos, a educação que eu dei, tudo... O homem público tem que estar à disposição, com toda a transparência. Se eu sou mais light ou menos light, as decisões que eu tomei falam mais do que um discurso. Lula não saiu com 80% de aprovação por outra razão que não fosse a sua capacidade de diálogo, é um homem do diálogo, um homem que nunca se negou a sentar à mesa com quem quer que fosse para discutir o interesse nacional. Não me vejo dissociado disso. Não existe isso de o Haddad ser moderado, o Lula, não, como se pode inferir da pergunta. Ele é um homem de diálogo.
O senhor já tem uma experiência eleitoral em disputa com João Doria, no caso da Prefeitura de São Paulo, na qual o senhor foi derrotado. O que o senhor aprendeu com essa experiência e como o senhor lidaria com o Doria em 2022?
Em 2016, eu tive dois problemas muito graves: a situação em que estava o PT nacionalmente, que perdeu 60% dos votos no país, e na cidade de São Paulo, tinha duas concorrentes que foram prefeitas do PT, que deixaram o partido. A Luiza Erundina concorreu pelo PSol; e a Marta Suplicy, pelo MDB, que tomou o poder em 2016, a partir do afastamento da presidente Dilma Rousseff. Esse cenário foi único e as pessoas não conheciam o Doria, que se vendeu bem. Eu não acho que esse cenário vá se repetir, menos ainda no Brasil. Uma coisa é a cidade de São Paulo, outra coisa é o Brasil. E eu acredito que as pessoas tenham se dado conta também do que ele representa em termos de compromisso social e democrático, das dificuldades que sofre dentro do próprio partido. Não acho que esse cenário tenha qualquer plausibilidade em 2022.
E o Luciano Huck?
Há sempre aquela solução do bolso do colete. Olha, celebridade é celebridade, às vezes, tem o carinho da população por ser celebridade. Mas eu acho que a política, mais ainda a Presidência da República, falo isso com toda a fraqueza. Eu sempre recomendaria tranquilidade. Obviamente, uma pessoa ter popularidade em razão de um programa de auditório, ser da Rede Globo, é uma coisa; presidir o país é outra bem diferente. Mas, conhecendo a direita como eu conheço, eles são especialistas em embarcar em coisas que pra mim soam como uma aventura. As pessoas acham que para representar o Brasil num campo de futebol tem que saber jogar bola, mas pra ser presidente da República não precisa entender de economia, direito, filosofia, não precisa entender de nada disso. Eu acho o contrário, acho que as pessoas têm que se preparar. Eu acompanhei muito uma pessoa extraordinariamente inteligente, que se preparou muito para chegar à Presidência, conversou com as maiores intelectualidades do país. Lula se preparou décadas para poder ser o maior presidente da história do país, segundo todas as pesquisas. Não dá, sinceramente, não acho prudente.
E o Ciro Gomes, há conversas ou já se afastaram a um ponto que não tem mais diálogo?
Fiz um esforço enorme, no primeiro semestre de 2018, para que ele se aproximasse mais do Lula. Infelizmente, fiz quatro tentativas, duas com o próprio Ciro, uma com o Carlos Luppi e uma com o Mangabeira Unger. Não foi possível. Acho que foi um erro. Depois, no segundo turno, houve aquela atitude de sair do país e não houve mais contato. Recentemente, Camilo Santana, que é um grande governador do PT, conseguiu promover uma primeira conversa lá no Instituto Lula, tomara que as coisas mudem pra melhor.
Valdir Oliveira: A traição na política é uma roupa que não nos serve mais
Traição e fisiologismo sempre foram parte do jogo político. A ilusão dessa mudança não pode prosperar se a sociedade não mudar
Ninguém cantou a liberdade e a vontade de mudar como Belchior. Seu trabalho é permeado de questionamentos sobre o hoje e inspirado na construção do novo amanhã. Sua premonição o fez dizer que “você não sente e nem vê, mas eu não posso deixar de dizer, meu amigo, que uma nova mudança em breve vai acontecer”. O poeta insiste ainda, em outra canção, “mas é você que ama o passado e que não vê que o novo sempre vem”. Ele acredita no novo, mesmo sabendo que todos nos prendemos ao passado.
O mundo político brasileiro tem vivido em ebulição nos últimos dias. A eleição para as presidências da Câmara e do Senado Federal e as movimentações para a eleição de 2022 mostraram que, apesar da anunciada nova política, tudo continua como dantes no quartel de Abrantes, como diz o ditado popular.
A traição foi o prato principal dos eventos recentes e norteou as alianças e os resultados obtidos no cenário político nacional.
A frustração provocada pela traição, geralmente vem da decepção pelo abandono de uma pessoa especial, aquela que é parte da realização do sonho. Belchior, na música Divina Comédia Urbana, fala da expectativa gerada por essa pessoa, alguém que chega “como um sol no quintal” no momento angustiante da decisão, como “um goleiro na hora do gol”. E quando essa pessoa não corresponde às expectativas, a decepção transforma a derrota em abatimento e acaba por personalizar a mágoa pela promessa e expectativa não cumprida.
A traição, infelizmente, faz parte da disputa política, seja no campo do débito ou do crédito, e é sempre comemorada pelos que ganham e lamentada pelos que perdem, como se o julgamento fosse pelo resultado, e não pelo princípio.
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O ano de 2018 foi marcado por uma mudança no cenário político brasileiro que resultou no triunfo da chamada nova política. O anúncio era o fim do fisiologismo em acordos de governabilidade entre o Executivo e o Legislativo. Doce ilusão. Nosso modelo de governo não permite que o Executivo governe sem o Legislativo. A Constituição de 1988 obrigou esses dois poderes a uma relação simbiótica, na qual um não vive sem o outro. E essa simbiose coloca na pauta de negociações políticas o poder e as seduções que envolvem as imperfeições humanas.
O fisiologismo na política não é exclusividade de políticos no exercício de seus mandatos. O eleitor, na maioria dos casos, vê no processo eleitoral a chance de conseguir a solução para sua necessidade pontual. É nessa hora que o convencimento se transforma em negociata e o produto a ser negociado é a solução para o desejo individual do eleitor, seja ele um emprego, um remédio ou qualquer outra coisa que atenda ao seu anseio.
Se o político conquista o voto nessa negociação, como esperar que ele faça diferente quando tiver no exercício do seu mandato? Mas a sociedade continua a condenar o fisiologismo de seus representantes, apesar de utilizar dessa mesma arma quando tem oportunidade.
Em 1976, Belchior lançava a música Velha Roupa Colorida, imortalizada na voz de Elis Regina. A vontade de mudar era o grito de Belchior. Afinal, como dizia na canção, “o passado nunca mais”! A palavra de ordem desse hino da mudança era rejuvenescer, afinal “o passado era uma roupa que não nos serve mais!”. A mudança era tão imperativa na canção quanto no anseio popular que resultou na eleição de 2018. Se a canção trazia a necessidade de uma nova roupa para um novo momento, o povo pedia uma nova política para um novo Brasil, porque a dita velha política, do fisiologismo, da traição, da falta de transparência era uma roupa velha que não nos servia mais.
Em Como Nossos Pais, Belchior diz que “minha dor é perceber que apesar de termos feito tudo diferente, ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais”. Apesar de toda a mobilização popular, da resistência explícita à chamada velha forma de fazer política, descobrimos que ainda somos os mesmos e vivemos como o passado que tanto rejeitamos. Não adianta esperar por uma nova forma de fazer política, se não mudarmos a nossa própria forma de votar, de escolher nossos representantes.
Como diz Belchior em Coração Selvagem, “não quero o que a cabeça pensa, eu quero o que a alma deseja”. E é por aí que vamos evoluir, pelo desejo da alma, que será a mais pura vontade de mudar para um mundo melhor. Precisamos votar com a alma, sem permitir que a cabeça racionalize para o fisiologismo e as fragilidades humanas. Nem sempre “viver é melhor que sonhar”, como diz o poeta. Se acreditamos, precisamos deixar o sonho comandar para sermos felizes.
Se aquele rapaz latino-americano estivesse vivo hoje, certamente olharia para o eleitor e diria: “Se você vier me perguntar por onde eu andei, no tempo que você sonhava, de olhos abertos lhe direi, amigo eu me desesperava”. Traição e fisiologismo sempre foram parte do jogo político, muito usado tanto pelo eleitor quanto pelo político com mandato. A ilusão dessa mudança, propagada em 2018, não pode prosperar se a sociedade não mudar.
Assim como dito em Alucinação, mais uma pérola de Belchior, “eu não estou interessado em nenhuma teoria, em nenhuma fantasia, nem no algo mais…, amar e mudar as coisas me interessam mais”. Esse precisa ser o lema dos insatisfeitos, mudar as coisas me interessam mais, porque o passado é uma roupa que não nos serve mais!
* Valdir Oliveira é diretor-superintendente do Sebrae-DF