Bolsonaro
Alon Feuerwerker: Na balbúrdia, ordens ao vento
Em nenhum momento antes nesta pandemia viu-se uma descoordenação de tais dimensões. Um exemplo? Enquanto secretários de Saúde por todo o país pressionam por lockdowns (leia), secretários de Educação manifestam-se contra a suspensão das aulas presenciais (leia).
Sendo que em cada estado, ambos, o titular da Saúde e o da Educação, têm o mesmo chefe.
Entrementes, autoridades vão cedendo aos lobbies para afrouxar o isolamento social no mesmo momento em que os números são unânimes ao apontar o extremo stress do sistema hospitalar. E enquanto essas mesmas autoridades dão entrevistas para alertar sobre a gravidade do quadro.
As notícias correm em trilhos paralelos. Num, as péssimas estatísticas. Noutro, a disfuncionalidade do sistema político. Agora crescentemente invadido e apropriado pelo sistema judicial. Ele próprio crescentemente disfuncional.
O potencial destrutivo da descoordenação já vinha diagnosticado desde um ano atrás (leia este texto de março de 2020). Não chega a ser atenuante, mas precisa ser constatado. Com um agravante: em meio à balbúrdia, parte da população decide simplesmente não seguir ordem nenhuma, se puder.
Sobre o stress hospitalar, aparentemente a força da segunda onda pegou o sistema político-sanitário no contrapé. Mas esse fenômeno não chega a ser original. Na Gripe Espanhola, a onda mais mortífera das três foi exatamente a segunda (leia).
De volta à política, o foco das autoridades do momento é que os adversários levem a culpa pelo problema.
Esse é o estado da guerra.
*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação
Igor Gielow: Levante de governadores pressiona Bolsonaro no auge da crise da Covid-19
Mundo político acorda para a tragédia em curso no país, mas Congresso ainda não embarcou
O apocalipse sanitário à espreita do Brasil provocou um levante de governadores contra o presidente Jair Bolsonaro (sem partido).
Tal clima de indignação pela falta de rumo e sabotagem intencional de ações coordenadas por parte do Planalto já havia sido registrado em abril do ano passado, mas agora a situação é muito mais grave.
Quase um ano se passou e, sem o devido preparo, o país se depara com variantes novas do Sars-CoV-2 mais transmissíveis e talvez mais letais para pessoas mais jovens, segundo a observação empírica nos hospitais.
As cenas de revolta se repetem. Aliados de Bolsonaro, como Ratinho Jr. (PSD-PR) e Ronaldo Caiado (DEM-GO), coassinam carta de 19 mandatários estaduais rebatendo a campanha de desinformação promovida por Bolsonaro.
O presidente, acentuando o que já havia feito em outros momentos, resolveu culpar os governadores pela a ameaça de o Brasil virar uma grande Manaus, do ponto de vista epidemiológico. Em vez de dizer que "o Supremo me tirou o poder", agora questiona "onde está o dinheiro que enviei?" a estados e municípios.
Pegou mal. A aliados, Ratinho Jr. se disse inconformado com o tratamento dispensado pelo presidente, que mentiu ao listar repasses federais obrigatórios como parte de um "pacote contra a pandemia", além de ignorar os R$ 1,48 trilhão de impostos recolhidos nos estados que param na mão da União.
O governador baiano, Rui Costa (PT), chorou ao comentar a dificuldade de implementar medidas de restrição de circulação de pessoas em seu estado. Ações que são bombardeadas dia sim, dia sim por Bolsonaro e por seu entorno em redes sociais.
Candidato a maior protagonismo no cenário nacional, o gaúcho Eduardo Leite (PSDB) disse que Bolsonaro "despreza sua gente" e a está "matando".
Algo bem diferente do que há menos de um mês, quando ele ponderava em entrevista que seu partido não teria como fazer oposição sistemática a Bolsonaro porque buscava diferenciar-se de João Doria, o tucano paulista que é o maior antagonista do presidente na crise.
A questão do controle da transmissão do vírus é cultural, alguns alegam, mas quem enalteceu a revolta de brasilienses na frente da casa do governador Ibaneis Rocha (MDB) devido ao seu ensaio de lockdown no domingo (28) foi o presidente da República.
O questionamento do uso de máscaras e a empáfia ao dizer que "não errou nenhuma" acerca da pandemia, quando a realidade está à sua volta, causaram revolta no grupo de WhatsApp do Fórum dos Governadores.
Cientes de que a fatura sempre cai no colo de quem está na ponta primeiro, especialmente no momento em que há um crescimento de demanda por vacinas ainda inexistentes, os governadores se reorganizaram.
Estados voltaram a pressionar pela compra avulsa de vacinas, como a russa Sputnik V, de forma a não contar com os cronogramas fantasmas do Ministério da Saúde. E houve o embate das verbas, provocado por Bolsonaro.
Leite teve papel de protagonismo na elaboração da nota, com apoio de outros chefes estaduais que querem moderar o destaque de Doria.
As nuances do embate político subjacente à tragédia em curso no país se mostraram também na dura carta do Conselho Nacional dos Secretários de Saúde na segunda, na qual era pregado o toque de recolher e eventual lockdown em locais mais afetados do país
Jean Gorinchteyn, o secretário de Doria, não apoiou o texto por considerar lockdown inviável agora —em entrevista à rádio CBN, falou que pessoas irão "morrer de fome" caso a medida ocorra sem contrapartidas de natureza financeira.
Em São Paulo, Doria está sob ataque de bolsonaristas a cada movimento que faz para tentar controlar o vírus, e busca consenso com prefeitos. Há pressão interna, também. O Centro de Contingência da Covid-19, montado por Doria como um marco na transparência e no cientificismo no trato da pandemia, costuma sugerir medidas mais duras.
Mas ele é uma instância sem poder decisório, e as recomendações são filtradas em inúmeras reuniões com integrantes de outras áreas do governo, onde a palavra lockdown é um palavrão, para ficar num exemplo.
Saindo de São Paulo e das pretensões presidenciais de Doria e, como gostariam alguns tucanos, de Leite, a questão é que atores do mundo político parecem ter acordado para o tamanho do problema.
Dois presidentes de partidos do centrão que celebravam há pouco tempo o apoio de Bolsonaro à eleição de Arthur Lira (PP-AL) para a presidência da Câmara disseram, sob reserva, que Bolsonaro "está maluco" na condução da crise.
Para eles, o ministro Eduardo Pazuello (Saúde) deveria ser substituído já. Noves fora o interesse específico do grupo em retomar as polpudas verbas da pasta, é um termômetro da fervura em Brasília.
Lira, que passou as duas últimas semanas preocupado cozinhando medidas para aumentar a impunidade de parlamentares, também teve seu momento de lucidez e buscou pegar carona no levante dos governadores, convocando um almoço nesta terça para discutir medidas contra o caos.
Não foi exatamente um embarque, mas uma sinalização.
Não se vê tal disposição ainda no pacato Rodrigo Pacheco (DEM-MG), que assumiu o Senado neste ano. Enquanto alguns membros da Casa pedem uma CPI sobre a crise, ele não conseguiu fazer críticas objetivas a Bolsonaro nas entrevistas que concedeu ao desfilar por São Paulo na segunda.
Mas um correligionário dele afirma que é uma questão de tempo, lembrando que até Romeu Zema (Novo-MG), um dos governadores mais amigáveis em relação ao Planalto, foi a Brasília discutir a crise com Lira.
Confira o vídeo do webinar Impacto da pandemia no sistema internacional
Evento online contou com participação de Eduardo Viola, Vinícius Müller e Cezar Vasquez
Cleomar Almeida (assessoria de comunicação da FAP)
Especialistas debateram, nesta sexta-feira (5/3), o impacto da pandemia no sistema internacional, durante webinar realizado pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira) e que foi transmitido ao vivo no site e na página da entidade no Facebook. O evento teve início às 19 horas.
Confira o vídeo!
O assunto foi debatido pelos professores Eduardo Viola e Vinícius Müller, com mediação de Cezar Vasquez. O público também pôde enviar perguntas por meio das redes sociais diretamente aos debatedores.
Viola é professor titular do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da UnB (Universidade de Brasília) e pesquisador associado sênior do Instituto de Estudos Avançados da USP (Universidade de São Paulo).
Müller, por sua vez, é doutor em história econômica, mestre em economia e bacharel em história. Além disso, é professor do Insper (Instituto de Ensino Superior), da Fecap (Fundação Escola de Comércio Álvares Penteado) e do CLP.
Já Vasquez é engenheiro de produção pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e mestre em engenharia de produção pela mesma instituição de ensino. Tem, ainda, MBA em finanças, liderança e gestão pública e experiência no setor público como dirigente do Sebrae.
O conteúdo da videoconferência ficará disponível no site da FAP e, também, no canal da entidade no youtube, para o público ver, gratuitamente, sempre que tiver interesse.
Merval Pereira: Caindo pelas tabelas
Por onde quer que se pegue, o Brasil está literalmente descendo a ladeira, caindo pelas tabelas das principais estatísticas internacionais. A começar pelo combate à pandemia da Covid-19, passando por questões internas que nos afastam assustadoramente do mundo ocidental civilizado. Em números absolutos, temos o desonroso segundo lugar no mundo, com mais de 255 mil mortes por Covid-19.
Mesmo quando colocado em termos proporcionais, o número no Brasil fica entre os 30 países mais atingidos dos 178 com mais mortes por Covid-19 para cada 100 mil habitantes. Também na comparação proporcional, houve mais mortos no Brasil do que na Argentina, Alemanha e Rússia. Com relação à vacinação em massa, a estimativa é de que só será alcançada em meados de 2022, segundo a Economist Intelligence Unit.
A plataforma Our World in Data, da Universidade de Oxford, indica que o Brasil aplicou, até o momento, 3,97 doses para cada 100 habitantes. O país com a maior taxa de vacinação no mundo é Israel, com 93,5 vacinados para cada 100 habitantes. Não por acaso, o primeiro-ministro de Israel, Binyamin Netanyahu, faz propaganda na televisão para estimular a vacinação, e o presidente brasileiro usa suas lives na internet para propagar o negacionismo, falar contra o uso de máscaras e sobre os pretensos perigos da vacinação.
Essa calamidade do combate à pandemia no Brasil se refletirá certamente na medição do Índice de Desenvolvimento Humano feito pelo Programa das Nações Unidas para Desenvolvimento (Pnud), que avalia a saúde, a educação e o padrão de vida dos países. O Brasil perdeu cinco posições no ranking mundial na última medição, passou do 79º para o 84º lugar entre 189 países. Perdemos também duas posições na América Latina, ficando atrás de Chile, Argentina, Uruguai, Peru e Colômbia.
Com relação à educação, o Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa, em inglês) registrou em 2019 ligeiro avanço dos estudantes brasileiros, que seguem, no entanto, entre os 20 piores colocados entre as 80 nações avaliadas em Ciências, Matemática e Leitura. Com todos esses resultados, ainda acrescentamos à nossa desdita um Congresso que propõe acabar com a verba obrigatória no Orçamento para Educação e Saúde, e um governo que, ao mesmo tempo que tenta ser admitido na Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), desdenha medidas de boa governança exigidas de seus membros, como valorização da democracia e dos direitos humanos, até regras de proteção ao meio ambiente e no combate à corrupção.
Na questão ambiental, retrocedemos 20 anos em dois no governo Bolsonaro. O Brasil, que já sediou congressos fundamentais e teve protagonismo internacional na discussão da proteção ambiental, hoje tornou-se um pária. A batalha contra a corrupção vai sendo gradualmente perdida por decisões jurídicas e parlamentares. Já não há pudor em debater mudanças em temas como nepotismo, improbidade administrativa ou impunidade parlamentar. Ou em defender alterações na Lei de Ficha Limpa.
O presidente da Câmara, Arthur Lira, anuncia agora uma reforma política “profunda”, que pretende amenizar a legislação de cláusulas de barreira para atuação plena no Congresso dos partidos, acabar com a proibição de coligações nas eleições proporcionais e certamente amenizar as barreiras a candidatos condenados, como estava na versão original da PEC da Impunidade.
Os partidos que não conseguirem atingir as metas em 2022 para a eleição da Câmara perderão pela primeira vez o direito de ter financiamento público, tempo no rádio e televisão de propaganda eleitoral e até mesmo estrutura de gabinete e presença em comissões e na Mesa da Câmara.
Essa é uma tentativa de repetir uma experiência já vivida. As cláusulas de barreira foram aprovadas em 1995, para vigorar dez anos depois. Teoricamente, os partidos teriam tempo suficiente para se organizar. Em 2006, esses mesmos partidos entraram no Supremo Tribunal Federal contra as novas regras, e os ministros acataram os apelos em nome de “defender as minorias”. Chegamos aonde chegamos.
Míriam Leitão: Vida mais curta e outros recuos
Em 2030 ainda se sentirá o efeito da pandemia nas estatísticas brasileiras. As projeções refeitas da população podem registrar de um milhão e meio a três milhões menos brasileiros do que haveria se não tivesse ocorrido a pandemia. A crise sanitária reduziu a expectativa de vida dos brasileiros em 2,2 anos, segundo cálculos atualizados da demógrafa Ana Amélia Camarano, e isso mexe com todas as outras projeções. Há vários efeitos da pandemia na vida das pessoas. A participação da mulher no mercado de trabalho caiu aos níveis dos anos 1990. A morte dos mais velhos pode impactar fortemente a renda de milhões de famílias.
Há muito tempo os demógrafos calculam o momento em que o número de habitantes do país passará a diminuir anualmente, em vez de aumentar. Cada demógrafo ou instituto faz um cálculo diferente, dependendo das premissas. Mas uma coisa é certa: o encolhimento vai acontecer mais cedo e de forma mais intensa por causa da redução da expectativa de vida que está ocorrendo agora.
— Comparando a projeção que eu fiz em 2018 para a população brasileira com a que faço diante da diminuição da expectativa de vida, concluo que haverá um milhão e meio de brasileiros a menos na população. Na projeção do IBGE, o número pode ser de três milhões de brasileiros a menos. Alguns dados ainda nem se conhece, como a queda da taxa de fecundidade — diz a pesquisadora do Ipea.
Ana Amélia vinha chamando a atenção nos seus artigos e entrevistas para o fenômeno do prolongamento da vida no Brasil, e todas as mudanças decorrentes disso. Os brasileiros vivendo mais mudavam os seus hábitos e isso tem impacto na economia. A demógrafa costuma usar a expressão “os novos velhos” para se referir a pessoas com mais de 60 anos que estão mudando o conceito do que é ser velho:
— A recomendação médica era para a pessoa sair de casa, fazer exercício, encontrar os amigos para ter uma velhice saudável. O mercado de trabalho começava a rever seus conceitos, aceitando pessoas mais velhas. Um mercado de consumo de viagens, turismo e entretenimento se voltava para esse segmento. A pandemia mudou tudo isso.
As pessoas com mais de 60 anos são o alvo principal de um vírus que tem matado no Brasil numa intensidade alarmante. Para permanecer vivos, eles precisam abandonar os bons hábitos:
— Os idosos precisam mesmo se proteger porque 77,6% das mortes ocorrem na faixa com 60 anos ou mais. É justamente o grupo que tem um impacto crescente no consumo de lazer, turismo. Quem ainda estava no mercado de trabalho saiu pelo medo de se contaminar ou foi demitido porque aumentou o preconceito contra os idosos. A pessoa saiu da ideia da “melhor idade” para a do “grupo de risco”.
A população idosa continua sendo a que mais cresce, porque no passado nasceu muita gente, mas ela vai crescer menos. Aumentou para quase oito anos a diferença de expectativa de vida entre homens e mulheres. A desigualdade de expectativa de vida entre negros e brancos deve aumentar.
— E é a população preta e parda que está mantendo o Brasil funcionando, mesmo no isolamento social — lembra a pesquisadora.
São muitas as consequências e as sequelas desta pandemia. Há a mortalidade indireta. Muitas pessoas não puderam ser tratadas de outras doenças porque os hospitais estavam lotados pela Covid ou porque adiaram exames preventivos. O número de mamografias no SUS, segundo o alerta feito pelo ex-ministro Luiz Henrique Mandetta, na Globonews, foi menos de 50% em 2020 comparado a 2019.
— O câncer de mama é o que mais mata mulher no Brasil — lembra Ana Amélia.
Existem outras consequências. Há 21 milhões de domicílios nos quais a renda dos idosos é mais da metade da renda da família:
— Nesses domicílios há seis milhões de crianças com menos de 15 anos. Quando morre o idoso, a família não fica apenas órfã, ela fica mais pobre.
E ainda encolheu o mercado de trabalho para a mulher:
— A participação da mulher no mercado de trabalho voltou aos níveis dos anos 1990. Muitas tiveram que deixar o emprego para cuidar dos filhos, outras foram demitidas, as mulheres trabalham muito nos serviços e no comércio. Houve queda forte também no número de vagas para empregadas domésticas.
Depois da pandemia haverá muito trabalho para combater todos os efeitos desta tragédia que vivemos.
Carlos Andreazza: Um modo de privatizar
O Parlamento esteve paralisado — por mais de semana — em decorrência do caso Daniel Silveira; escada para que Arthur Lira pusesse em marcha o trator que pretendeu alargar a câmara de blindagem que distingue a casta política brasileira. Afinal, a PEC da Impunidade não prosperaria. Mas foi a agenda legislativa do Brasil — ainda sem Orçamento para 2021, ainda sem solução para a volta do auxílio emergencial — na semana em que o país bateu o recorde de mortos pela peste em um só dia.
Nada mais se moveu no Congresso, desde a prisão do deputado, senão a tentativa corporativista de subverter o princípio da imunidade parlamentar para que crimes como o de Silveira — contra a ordem democrática — restassem autorizados. O Parlamento, à cata de escudar seus investigados por corrupção, quase aceitou dar guarida à fábrica de conflitos que ataca a própria democracia representativa. Exemplo perfeito do que produz a sociedade entre bolsonarismo e Centrão. Exemplo também de por que a natureza — para o golpismo — da base social que elegeu Bolsonaro contamina e interdita qualquer pauta reformista.
Avalie-se a constituição da persona do presidente e do fenômeno reacionário que encarna — exercício que mostra como sempre foi improvável crer que um seu governo pudesse reformar o Estado. Um sujeito cuja ignorância econômica forjou-se na segunda metade da década de 1970; péssimo militar cujos rudimentos sobre economia beberam do fetiche de um Brasil Grande induzido pelo governo central.
O apego ao tamanho da superfície estatal aumentaria com a chegada a Brasília. No curso de três décadas, Bolsonaro — aboletado nas bordas fartas (aquelas recheadas de catupiry) da pizza do establishment — se estabeleceria como bem-sucedido líder classista, agente contra qualquer esboço de diminuição do território em que ergueu frutífera (sim, laranjas) empresa familiar.
Um tipo que, para acrescentar complexidade ao reformismo impossível, tornou-se competitivo nacionalmente ao incorporar a demanda de ressentimentos variados contra o sistema de que sempre foi parte, eleito presidente associado a (e dependente de) um ímpeto por ruptura institucional, movimento desestabilizador em essência, que tem personificação em Daniel Silveira e efeito materializado na revolução dos caminhoneiros que travou o país em 2018.
Um presidente — com cabeça de sub-Geisel, que, agora desde o Planalto, orienta-se em função dos interesses dos mesmos grupos de pressão (armados, não raro amotinados) de quando era vereador — que é o próprio núcleo provedor da instabilidade avessa ao mais mínimo programa de reformas do Estado. Isso, claro, se houvesse projetos para reformar o Estado. Não há. Porque a Bolsonaro se juntou — para compor este raro espetáculo de estelionato eleitoral — um ministro da Economia incompetente como gestor público e que, politicamente autoritário, apaixonou-se pelo populista autocrata que o chefe é. Reformas?
Não se iluda mais, amigo liberal. Daqui até 2022, com algumas migalhas para as viúvas de um Guedes de fantasia, a parceria entre iguais — Bolsonaro e Lira — trabalhará por proteção e reeleição; o que significará mais Estado, contida na ideia de proteção a defesa das mamas em que os presidentes da República e da Câmara engordam há décadas. (Mas você pode acreditar que os estudos modais para a capitalização da Eletrobras avançarão celeremente até que a operação esteja pronta, a ser realizada à véspera ou no próprio ano eleitoral.)
Veja-se a maneira como vai humilhada a tal PEC Emergencial, prioridade de Paulo Palestra. Um projeto que se tentou requentar socado como contrapartida à retomada do auxílio; transformado, porém, numa frondosa árvore de jabutis perversos, a ponto de se haver condicionado a retomada urgente do auxílio ao fim dos pisos constitucionais para Saúde e Educação. Uma aberração. Que não prosperará — felizmente. Mas de cujo impasse se insinua, tocado pela pressa, o improviso. Tem método. O bolsonarismo depende de volubilidades.
O ciclo da fortuna bolsonarista, beneficiado e acelerado pela peste, consiste em prolongar — pela inação calculada — a circulação do vírus, provocar o caos (pela falta de vacinação em massa), atribuir responsabilidades a inimigos artificiais (governadores) e colher créditos extraordinários, para os gastos populistas que financiarão 2022, liberados pela urgência em enfrentar problemas deliberadamente gerados pelo governo Bolsonaro.
Porque o auxílio voltará — sempre se soube, mesmo quando se apregoava a mentira de que o vírus cedia, e a economia se recuperava em V. E a PEC Emergencial avançará, tudo indica, como síntese do liberalismo do amanhã de Guedes; minguando no Senado até resultar num corpo de compensações fiscais desprovidas de impacto imediato. Isso se o auxílio não regressar sem o estabelecimento de qualquer resposta fiscal — nem mesmo as empurradas ao futuro. A pandemia — que é sustentada no Brasil — desculpa e justifica. Reaja-se.
É o que querem Bolsonaro e seus parceiros do Centrão: um cheque especial, à margem do teto de gastos, para investir em popularidade e apaniguados — e que se dane a dívida pública. O minion Guedes topa. O presidente informa que as privatizações devem ficar para 2023. Não mente. A autocracia é um modo de privatizar. Guedes fica. Sabe bem ao que serve.
Andrea Jubé: A pandemia pela cartilha do coronel
Para Randolfe Rodrigues, últimos fatos precipitam CPI da covid
O Coronel Emílio é um chefe político de prestígio local, cujos domínios se estendem pelas fazendas de gado e metade da vila. Certo dia, ele recebe a notícia do assassinato de Bento Porfírio, um de seus capatazes, que estava de chamego com a prima De-Lourdes, casada com o Xandão Cabaça.
Quando o marido descobriu a traição, espreitou o detrator em uma pescaria, golpeou-o pelas costas com uma foice e fugiu sem deixar rastro.
Ao ser informado pelo sobrinho da tragédia envolvendo um de seus empregados mais antigos, Tio Emílio reagiu com fleuma: “Boi sonso, marrada certa”.
Perplexo, o sobrinho cobrou compaixão: “O senhor que é tão justiceiro e correto, e que gostava tanto do Bento Porfírio, vai deixar isto assim?”
De súbito, entretanto, o coronel bateu na testa, saltou da cadeira, e ordenou que os jagunços fossem ao encalço do fugitivo da lei.
O objetivo da ordem, entretanto, não era fazer justiça à vítima. O coronel estava preocupado em mitigar danos eleitorais. “Já perdi um voto, e, se o desgraçado fugir para longe, são dois que eu perco!”, desabafou com o sobrinho.
Pela cartilha do velho coronel político, retratado por Guimarães Rosa em “Sagarana” (1946), uma vida vale um voto. No Brasil da pandemia, a impressão que se tem é que a vida não vale nem isso mais. Se valer, os políticos já perderam pelo menos mais de 200 mil votos.
A diferença entre o Coronel Emílio e uma ala de políticos da vida real é que pelo menos o personagem se preocupava com a preservação da vida de seus eleitores, ainda que por razões pragmáticas.
No Brasil, a perda de centenas de milhares de vidas, vítimas da covid-19, não despertou empatia em segmentos da classe política nem em segmentos da população. As aglomerações em bares e outros locais públicos, e festas clandestinas, ocorrem à luz do dia. Políticos e populares ainda resistem à adesão aos cuidados mais comezinhos, como uso de máscaras e distanciamento social.
Um dos papéis das autoridades na pandemia deveria ser a conscientização dos brasileiros quanto à relevância de seguir os protocolos sanitários para coibir a disseminação do vírus.
A pandemia está em escalada galopante, mas os números não assustam. Um ano depois, chegamos ao pior momento da pandemia, com uma média móvel de 1.208 mortes diárias. São cinco Boeings caindo por dia, pela metáfora do neurocientista Miguel Nicolelis.
Contabilizamos mais de 10 milhões de contaminados, e mais de 255 mil óbitos. É como se enterrássemos de uma vez a população de uma cidade inteira do tamanho de São Carlos (SP), ou Foz do Iguaçu (PR), sem direito a velório. As UTIs estão lotadas em todos os Estados.
O comportamento dos políticos que se omitem, ou que propagam discurso negacionista, estimula a conduta de uma parcela de brasileiros que resiste a encarar a pandemia.
Ontem a doutora Ludhmila Hajjar, cardiologista e intensivista da Rede D’or, alertou em entrevista à “Globonews” que estamos à beira de um colapso nacional. Ela atribuiu o quadro dramático também a uma parcela de brasileiros que se esbaldou no carnaval em festas clandestinas, favorecendo o contágio.
Na quinta-feira, quando o Brasil atingiu um recorde de mortes por covid-19 (1.582), o presidente Jair Bolsonaro criticou, sem base científica, o uso de máscaras, em um comportamento que estimula seus seguidores a imitá-lo.
Ontem o correspondente no Brasil do “The Washington Post” alertou que a tragédia em curso no Brasil pode ter “implicações globais”. Ele afirmou que se o Brasil não controlar o vírus, vai se transformar no “maior laboratório aberto do mundo para o vírus sofrer mutação”, favorecendo a “disseminação de variantes mais letais e infecciosas”.
Em outra frente, governadores e políticos independentes, ou da oposição, buscam saídas para driblar a lentidão do Programa Nacional de Imunização, e também para cobrar responsabilidade das autoridades que podem ser acusadas de negligência.
Mais da metade dos governadores enfrentam a ira de empresários, de seus opositores e de segmentos da população por adotarem “lockdown” ou medidas restritivas, como toque de recolher, no esforço de conter o vírus. Ontem o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) defendeu imediato “lockdown” nos Estados com mais de 85% de ocupação de leitos, e de um toque de recolher nacional.
Sob ataque de Bolsonaro, hoje os governadores reúnem-se em Brasília com o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL). Na base eleitoral de Lira, em Arapiraca, segunda cidade mais importante de Alagoas, causou comoção na semana passada a morte de uma enfermeira vítima da covid-19. Ela se recusou a tomar a dose da Coronavac, a que tinha direito por ser profissional de saúde, por duvidar da comprovação científica do imunizante, embora autorizado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
Lira perdeu a oportunidade de se manifestar para condenar a disseminação de “fake news”, mazela que contribuiu, pelo menos lateralmente, para a morte de sua conterrânea, quiçá eleitora.
Diante dessa conjuntura, no Senado, alguns parlamentares voltam a carga contra o presidente da Casa, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), nesta semana para pressioná-lo a instalar a CPI da covid.
O senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) afirma que os fatos mais recentes sobre a pandemia “precipitam a instalação da CPI”. Ele cita, por exemplo, o depoimento modificado do ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, à Polícia Federal; o embate do presidente com os governadores; a persistência do discurso negacionista.
O Coronel Emílio e uma ala de políticos da vida real têm em comum a falta de empatia pelo semelhante, ou seja, a incapacidade de se colocar no lugar do outro, de compartilhar a dor do outro. Mas, ao contrário do personagem, também falta a alguns políticos uma dose de pragmatismo para que se movimentem para salvar seus eleitores. A Justiça Eleitoral não instala urnas no cemitério.
Ricardo Noblat: Quem desconhece o passado é incapaz de enxergar o futuro
Que país é o Brasil?
Que país é este onde a Independência foi proclamada por um estrangeiro e a República por um general monarquista? Onde um presidente se suicida para não ser deposto, outro renuncia na esperança de voltar nos braços do povo e não volta, e um terceiro baixa ao hospital 24 horas antes de tomar posse e morre?
Que país é este onde militares cancelam a democracia a pretexto de defendê-la, implantam uma ditadura que dura 21 anos, expulsam do Exército um capitão que planejara atentados a bomba a quartéis, e depois de marginalizá-lo por décadas o ajudam a se eleger presidente da República, a governar e a comandá-los?
Que país é este onde a maior parte do povo, ou parte expressiva dele, ameaçada de morte por um vírus há mais de ano, dá ouvidos e poderá em breve dar seus votos para reeleger um presidente que só faz mentir desde que assumiu o cargo, e que prefere sacrificar vidas a reconhecer e corrigir a tempo os erros que comete?
Que país é este onde a assaz louvada maior operação de combate à corrupção jamais vista no mundo desmorona à luz da descoberta de que seus condutores violaram princípios do Direito aprendidos nos bancos escolares e ultrapassaram limites impostos pelas leis que tinham a obrigação de respeitar com o máximo rigor?
Este país é o nosso, que se dizia antigamente o país do futuro, há séculos dividido entre os poucos ricos e os milhões de pobres, entre os brancos que ocupam os postos mais elevados na órbita dos poderes e os pretos contados que conseguem chegar lá, entre os que toleram o intolerável e os que a ele resistem a duras penas.
Joel Pinheiro da Fonseca: Cercear extremismos desonestos faz bem ao debate público
Sem um chão comum na verdade objetiva, discussão na sociedade perde sua razão de ser
As empresas de redes sociais, bem como os Estados nacionais, têm tomado medidas que na prática limitam o debate público. Negacionismo, cloroquina, desejo de matar ministros; tudo isso vem sendo cerceado. Devemos nos preocupar pela liberdade de expressões tolhida?
A ciência, e o pensamento humano de maneira geral, precisa do contraditório para progredir. A defesa de hipóteses minoritárias, teses ousadas e mesmo dissidentes é benéfica para o conhecimento. Por vezes, a posição minoritária pode estar certa. Mesmo quando errada, pode ter alguns elementos corretos, ter identificado falhas reais na tese dominante. E, mesmo quando a tese majoritária está correta, a necessidade de defendê-la fortalece os argumentos a seu favor.
Uma das características da real discussão de ideias é que ela se dá longe da pressão popular. Seu objetivo é a verdade (nunca plenamente alcançada), e não a popularidade, o dinheiro ou o poder. Ela se dá prioritariamente entre especialistas e outros interlocutores já familiarizados com a fronteira do conhecimento. Esses são sempre poucos, ao contrário do grande público, incapaz de acompanhar o estado atual da discussão.
Muito diferente dessa discussão abstrata é o debate público, que visa persuadir milhões. Aqui, a força da argumentação pura vale menos do que a habilidade retórica de tocar os sentimentos dos leitores e espectadores.E ele está quase sempre ligado às decisões práticas que a sociedade tomará e que trarão impactos reais.O debate público também ganha com a divergência. É no exercício da discussão que as pessoas aprendem a pensar melhor. E como vivemos numa democracia, é o entendimento imperfeito do público que balizará as decisões da gestão pública.
Ele não se presta, contudo, a resolver divergências intelectuais. A opinião da maioria é um péssimo juiz da verdade de qualquer tese minimamente complexa. Assim, trazer a esse público teses dissidentes incapazes de se sustentar perante especialistas, munidas apenas de artifícios retóricos para promover a adesão sentimental da maioria, é uma prática desonesta.
Não há problema nenhum em se fazer um estudo acadêmico sobre a eficácia da cloroquina ou do uso de máscaras no combate à Covid, caso algum pesquisador julgue-o relevante.
Agora, defender aguerridamente a cloroquina ou atacar as máscaras nas redes sociais e em jornais de grande circulação é desonesto e prejudicial.
Se os principais participantes do debate público não se comprometem a se pautar pelo estado atual da discussão entre especialistas, criam mundos paralelos de desinformação.
O único resultado possível é a polarização da sociedade em grupos cada vez mais incapazes de se comunicar. O conhecimento se perde em meio aos ruídos da política.
No plano do conhecimento, da discussão ideias, a liberdade deve ser total. E não há necessidade alguma de chegarmos a consenso; podemos passar a eternidade discordando, sempre com argumentos melhores, com enorme prazer nessa empreitada.
No plano do debate público, contudo, decisões concretas impactarão a todos nós.
A desonestidade é sempre ruim, mas em momentos de calamidade, nos quais uma crença equivocada pode levar a milhares de mortes, torna-se intolerável. O próprio debate público, sem um chão comum na verdade objetiva, perde sua razão de ser. O cerceamento do extremismo desonesto é bem-vindo.
*Joel Pinheiro da Fonseca, economista, mestre em filosofia pela USP.
Hélio Schwartsman: Judeus ultraortodoxos apostam na proteção de Deus contra o vírus
'Quantos funerais este funeral irá ocasionar?', pergunta-se uma 'haredi'
Deu no New York Times. Em Israel, religiosos ultraortodoxos representam 12,6% da população, mas respondem por 28% das infecções por Covid-19.
Não é difícil entender as razões físicas para o excesso de contágio. Os ultraortodoxos, também conhecidos como "haredim" (tementes), tendem a constituir famílias numerosas, que dividem habitações de poucos cômodos. Desconfiam profundamente de tudo o que venha do Estado, incluindo recomendações sanitárias. Alguns até usam máscaras, mas fazê-lo está longe de ser a regra.
Talvez mais importante, os "haredim" não renunciam à vida comunitária, cujas práticas frequentemente os colocam em aglomerações. Ironia perversa, dão grande valor aos ritos fúnebres, que exigem que cada fiel abra caminho na multidão para tocar o esquife do morto. "Quantos funerais este funeral irá ocasionar?", perguntou-se uma "haredi" chocada com as cenas de empurra-empurra em um enterro.
Menos sondáveis são as razões metafísicas para a despreocupação com a doença. Há lideranças que afirmam que Deus os protegerá do vírus. A essa altura, porém, a maioria dos fiéis já percebeu que isso não é verdade. Ainda assim, perseveram em seu comportamento.
O motivo tampouco é o desprezo para com a ciência. Ao contrário de muitos grupos religiosos tradicionalistas, "haredim" costumam aceitar a ciência e a tecnologia, que usam de domingo a quinta-feira. O ponto inegociável para eles é que quando ciência e fé se chocam, é sempre a fé que prepondera. E a fé, ao contrário da ciência, não precisa demonstrar suas razões.
O que me intriga é que a melhor hipótese científica para explicar o fenômeno da religiosidade é que ela atuaria como uma espécie de cola social, que favoreceria a sobrevivência de indivíduos que pertencem a grupos coesos. A Covid-19 e epidemias em geral, embora não falseiem a tese, mostram que existem situações em que a coesão pode ser letal.
Pedro Fernando Nery: Para onde vai o dinheiro que o governo gasta com os Estados?
A discussão sobre um novo benefício social é também uma discussão federativa
O valor recebido por habitante em pagamentos federais é três vezes maior no Rio de Janeiro do que no Pará. Os pagamentos do governo federal por pessoa são 50% maiores no Rio Grande do Sul do que no Rio Grande do Norte. O gasto com cada cidadão no Distrito Federal é 25 vezes maior do que no Amazonas.
Na última semana, defendi na coluna a necessidade de reformas que orientem os gastos públicos para os mais pobres. Um ponto de partida é examinar para onde vai o gasto no espaço. Façamos isso para o gasto direto do governo – deixando para a próxima oportunidade a discussão do gasto indireto, as renúncias de impostos.
A maior parte do gasto federal corresponde a algum tipo de transferência, isto é, um pagamento mensal diretamente na conta de uma pessoa física. São salários de servidores, benefícios de regimes de previdência (aposentadorias, pensões), benefícios trabalhistas do Fundo de Amparo ao Trabalhador (seguro-desemprego, abono salarial) e benefícios assistenciais (Bolsa Família, BPC). O grau de contrapartida desses pagamentos, portanto, varia.
Em 2019, somaram R$ 1 trilhão e 100 bilhões – algo como 80% da despesa primária total do governo federal. Por sua natureza, é mais fácil identificar a distribuição regional desses gastos. Por exemplo, quanto vai para cada Unidade da Federação (UF). Como elas possuem populações muito diferentes em tamanho, é pertinente dividir o gasto em cada UF pela sua população. Daí decorrem os dados do primeiro parágrafo, que apontam para como a União distribui seus recursos em termos per capita e como o dinheiro federal afeta as economias locais.
Se é de se esperar que o gasto federal em cada lugar seja diferente porque cada Estado tem um número de habitantes diferente, não é tão óbvio que o gasto por habitante seja divergente. E talvez seja surpresa para o leitor que, sim, ele é muito divergente. Isso ocorre por diversas razões, algumas mais legítimas (Estados mais envelhecidos possuem mais aposentados) outras nem tanto. É o caso da proteção social muito atrelada ao emprego formal, que resulta em pouco gasto justamente em regiões mais pobres.
É o caso também das despesas relacionadas ao funcionalismo, que geram dispersão nos dados pela desigualdade na distribuição espacial de órgãos federais – já que seus servidores são mais bem remunerados em termos relativos e há um contingente elevado de aposentados e pensionistas que se beneficiou de regras favorecidas de inatividade. Parece haver, por exemplo, uma desproporção de militares das Forças Armadas no Rio de Janeiro.
Assim, os pagamentos anuais por habitante vindos do governo federal são de R$ 65 mil no Distrito Federal (o maior), mas de R$ 2.500 no Amazonas (o menor). Fecham o top 5 Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Santa Catarina e São Paulo.
Estados mais desenvolvidos parecem ser mais bem servidos de órgãos federais e receber benefícios sociais de maior valor, como da previdência urbana e do FAT, associados ao emprego formal. Regiões menos industrializadas, com maior desemprego e informalidade, recebem pouco deles, se apoiando na assistência – o Bolsa Família é o mais recebido, e de valor bem baixo.
Amazonas e Pará, que são os mais preteridos, destoam de outros Estados pobres por duas razões. Ao contrário de Estados do Nordeste, recebem pouco da previdência rural, que paga benefícios bem maiores que o Bolsa Família, de um salário mínimo. O fato pode se explicar por terem a Floresta Amazônica em seus limites, limitando a economia rural. Isso sem possuir uma vantagem de outros Estados amazônicos: o de serem ex-territórios federais, que contam com o custeio pela União de ex-servidores locais, com salários maiores – fonte relevante de entrada de recursos.
Já o caso do Distrito Federal parece em algum grau condizente com a prosperidade observada em outras localidades administrativas que lideram os indicadores de renda de suas regiões. É assim em condados da Virgínia vizinhos ao Distrito de Colúmbia (que sedia Washington), ou mesmo Bruxelas, base para órgãos decisórios da União Europeia. Pode-se discutir, porém, o tamanho do prêmio salarial do serviço público federal, assim como o nível das contribuições previdenciárias de aposentados e pensionistas (civis e militares).
Com os avanços da tecnologia da informação, poderia ser saudável uma desconcentração maior que a existente hoje de órgãos da administração indireta para Estados pobres, reduzindo a parcela da arrecadação consumida em Brasília e com efeitos positivos sobre essas economias locais, em arranjo mais próximo do europeu.
O experimento do auxílio emergencial questionou nosso modelo de gasto público. Com critérios de pobreza e baseado na ausência de emprego formal, as transferências per capita foram muitíssimo maiores no Nordeste e no Norte. A discussão sobre um novo benefício social é também uma discussão federativa.
*Doutor em economia
Eliane Cantanhêde: E daí, deixar pra lá?
Bolsonaro é contra isolamento, máscara e vacina, mas oferece o que contra a covid-19?
O presidente da Câmara, Arthur Lira, interditou definitivamente a palavra “impeachment” e o do Senado, Rodrigo Pacheco, engavetou indefinidamente a CPI da pandemia. O presidente Jair Bolsonaro, porém, precisa responder uma pergunta que o Brasil faz e a história ratificará: qual é a política dele para enfrentar a pandemia? Ninguém sabe, ninguém viu.
Sua ojeriza à ciência, à medicina, à pesquisa e às estatísticas é chocante e seu comportamento e suas declarações raiam o patológico. Ele é contra todas as medidas internacionalmente consensuais na pandemia, mas não contrapõe nada, não apresenta uma única proposta no lugar.
Quase um ano, 255 mil mortos e 10,5 milhões de contaminados depois, o presidente ainda trata a Covid-19 como “gripezinha”, anunciou que a doença estava no “finalzinho” exatamente quando ela disparava de novo e é capaz de levar a sério quem chama de “fraudemia” uma pandemia que matou 2,5 milhões de pessoas no planeta.
Todos os países sérios priorizaram o isolamento social, mas Bolsonaro não seguiu estudos do Exército e da Abin e não liderou o Brasil nessa direção. Ao contrário, trabalhou contra, promoveu aglomerações até diante do QG do Exército e ameaça os governadores: quem decretar lockdown que pague o auxílio emergencial. Sem vacinas suficientes, que alternativa eles têm? Lavar as mãos para as mortes?
No domingo, em pleno caos no País, ele postou imagens de um protesto contra medidas restritivas no DF, com 97% das UTIs lotadas. Assim como os bolsonaristas comemoraram o recuo das restrições no Amazonas, que deu no que deu, os filhos do presidente defendem o recuo do DF, que vai dar no mesmo.
E quem explica a guerra de Bolsonaro – ou dos Bolsonaros – até contra máscara? Ele continua abraçando incautos ou áulicos sem ela, no Planalto e em campanha pelo interior, implicou com Roberto Castello Branco, da Petrobrás, porque ele usava e quem vai ao Planalto é constrangido a tirar a sua. Por que isso incomoda tanto Bolsonaro, como as cadeirinhas nos carros? Mistério!
Depois de o presidente lançar fakenews contra máscaras, o ex-ministro Luiz Henrique Mandetta me enviou uma lista de links, em português e inglês, sobre a importância dessa proteção para conter o vírus e as mortes. E, no domingo, nada mais nada menos que 45 entidades médicas alertaram que desacreditar as máscaras só “agrava a situação do País”. Logo, o presidente agrava a tragédia brasileira.
Como esquecer o empenho obstinado de Bolsonaro contra as vacinas? Ele desautorizou o general Eduardo Pazuello ao cancelar a compra “dessa vacina chinesa do Dória” e, quando um voluntário dos testes se suicidou, acusou irresponsavelmente a vacina por “morte, invalidez e anomalia”. Mas o que seria do Brasil sem a Coronavac?
O governo pendurou-se num único fornecedor, a Oxford-Astrazeneca, desdenhou da Pfizer, ignorou a Sputnik, a Moderna, a Janssen... Segundo o presidente, quem quer vender que se mexa e, para mostrar que não é “maricas” e é “imbroxável”, anunciou: “Não vou tomar vacina e ponto final”. Incrível!
Logo, o Brasil sabe que Bolsonaro é contra isolamento, máscara e vacina. O que o Brasil não sabe é como, então, o presidente pretende combater a Covid-19. Essa resposta é fundamental para os brasileiros saberem que saída genial e original ele tem para salvar vidas, o sistema de saúde, a economia e os empregos. Andando de jet-ski?
É isso que 19 governadores, 45 entidades médicas, epidemiologistas e cidadãos querem, e precisam, saber. Aliás, um registro: na foto da reunião de domingo no Alvorada, o capitão e seus generais estão sem, mas Paulo Guedes, Pacheco e Lira estão de máscara. Que recado eles quiseram passar? Que, diferentemente do presidente, são a favor da vida?