Bolsonaro
Benito Salomão: A armadilha do baixo crescimento - Uma Avaliação entre 1998 e 2020
A economia brasileira conheceu o seu Produto Interno Bruto (PIB) referente ao quarto trimestre e o acumulado do ano de 2020. O resultado mostra uma visível recuperação no 4° tri que seria animadora se não fosse o turbilhão de problemas que o Brasil se encontra enfrentando nos primeiros meses de 2021 e que parecem deixar claro que a recuperação ficará para o 2° semestre ou para 2022. Mas não é o curto prazo que pretendo dissertar hoje, é preciso ler o resultado das contas nacionais de 2020 à luz de uma perspectiva mais longa e tentar extrair algumas lições e soluções para o futuro.
Em 2020 a queda acumulada da atividade foi de 4,1%, se não a maior, talvez uma das maiores da série histórica que tem início em 1901. Recortando o período histórico recente da economia brasileira entre 1998 e 2020, período que compreende os governos FHC II, Lula I e II, Dilma I e II, Temer e Bolsonaro, a variação trimestral do PIB[1] neste período teve média igual a 1,97%. Quando se repete o mesmo exercício, no entanto, para a década 2011 – 2020, a média do PIB cai para 0,29% ao trimestre (e ao ano). Tem-se, portanto, uma primeira evidência de que a economia brasileira se encontra em uma armadilha do baixo crescimento. Se a população cresceu em termos anuais a uma taxa média de 0,83% nesta década, o leitor já deve ter se convencido que o PIB per capita brasileiro diminuiu nesta década.
Em termos de crescimento econômico o Brasil está em seu pior momento dos últimos 120 anos. No período mais recente, o país foi acometido por três graves crises econômicas conforme é possível ver no Gráfico 1. A primeira crise importada do colapso financeiro americano após o subprime teve início no 3° tri de 2008, vale no 1° tri de 2009 de forma que no 1° tri de 2010 a economia brasileira já havia superado o período crítico e apresentava um crescimento de 9,2% naquele trimestre. Isto é o que os economistas chamam de recuperação é V.
A segunda crise não teve influência externa, erodiu no país no 1° trimestre de 2014, apresentou um longo período consecutivo de quedas até seu vale no 4° tri de 2015 de forma que a economia nunca mais voltou a apresentar taxas de crescimento semelhantes ao pré-crise, tendo o seu melhor momento a partir do 4° trimestre de 2017 quando o produto crescia a uma modesta taxa de 2,1% ao ano frente aos 3,4% verificados no trimestre imediatamente anterior desta crise. Finalmente, o terceiro ciclo recessivo da economia brasileira neste período é o do Coronavírus que teve início, segundo o Gráfico 1 no 4° trimestre de 2019, atingindo o seu vale no 2° tri de 2020 e, rodando a uma taxa de -1,9% no 4° tri de 2020, último período da amostra para o qual ainda se tem dados.
Em outras palavras, a análise dos ciclos econômicos mostra que a economia brasileira ainda não havia se recuperado da última crise, que havia sido demasiadamente longa e profunda, quando foi acometido pela nova crise. Isto traz impactos profundos sobre inúmeras variáveis como emprego, bem-estar social, desenvolvimento humano, desigualdades sociais, entre outros fatores. Para agravar a situação, as políticas tradicionais de controle de demanda de curto prazo estão praticamente esterilizadas. A política monetária pelo vetor da taxa de juros que atingiu o seu mínimo histórico no período recente, já a política fiscal segue sofrendo do crescimento compulsório do gasto e da dívida pública que inviabiliza qualquer intenção de construir uma nova política de investimentos.
Mas o elemento mais grave, está contemplado na linha vermelha do Gráfico 1, em que apliquei um Filtro de Hodrick Prescott para separar nos dados do PIB, o que é a sua variação trimestral e o que é a sua tendência de longo prazo. E o que se vê é uma redução da capacidade de crescer a longo prazo da economia brasileira que apresentava uma média de 4% no final da década de 2000 despencando para próximo de 0% no final da década de 2010. Isto significa que, na ausência de choques novos e positivos, o Brasil está condenado a uma trajetória medíocre de crescimento nesta década que se inicia em 2021.
PIB Brasil (Variação % Trimestral frente a igual período do ano anterior) e Tendência de Longo Prazo
Reverter uma tendência de longo prazo requer um esforço em termos de coordenação, planejamento e liderança. É preciso salientar que isto vai muito além da mera agenda de equilíbrio das contas públicas. No Longo prazo, a economia se comporta de acordo com sua capacidade de acumular, de forma agregada, capital físico e humano. A acumulação de capital físico depende de segurança jurídica, marco regulatório adequado, manutenção das taxas de juros em níveis civilizados e de bons projetos. A acumulação de capital humano depende de um esforço, em todos os níveis de governo e também da iniciativa privada de aumentarem a escolaridade média dos brasileiros e também sua qualidade. Isto, no entanto, não produz efeitos de curto prazo, quando a tendência de baixo crescimento da economia brasileira está condenada à mediocridade. Porém, se um esforço neste sentido tiver início já, é possível terminar a década que acaba de começar em condições muito melhores.
*Benito Salomão é doutorando em Economia pela Universidade Federal de Uberlândia.
Alon Feuerwerker: Dias difíceis
E o Brasil vai escalando a segunda onda da Covid-19, com uma diferença essencial em relação à primeira. Enquanto a anterior espalhou-se pelo país em diferentes tempos, desta vez todas as regiões, ou quase todas, escalam aparentemente ao mesmo tempo.
Outro detalhe: o stress sobre o sistema hospitalar está maior que na primeira onda. O ruído da guerra política por enquanto impede saber quanto disso se deve à maior gravidade dos casos recentes ou à possível redução no número de leitos desde o pico de 2020.
Sempre lembrando que o isolamento social do ano passado alcançou sim um achatamento das curvas, e serviu, ou deveria ter servido, para melhor preparar o sistema hospitalar.
Há muitos pontos a debater, se se quiser agir e reduzir os danos causados pela pandemia. Mas as autoridades parecem ter descoberto um jeito de fugir das questões mais difíceis, uma boa rota de fuga especialmente em dias de números complicados: basta falarem mal umas das outras.
Aí ocupam as manchetes e as mentes dos gladiadores de redes sociais. E vão atravessando a corredeira das graves estatísticas, relativamente incólumes. E o público se divide. A maioria cuida da sobrevivência. Esperando pelo dia de ser vacinado.
Dias difíceis.
*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação
Augusto de Franco: Sinais de envenenamento da democracia
Uma das descobertas mais importantes dos estudos (de pesquisadores do V-Dem, da Universidade de Gotemburgo) sobre a terceira onda de autocratização em curso é que 70% dos esforços de autocratização são feitos por meios legais (1).
Desde que a terceira onda de autocratização começou em 1994, 75 episódios de aumento de governos autocráticos – períodos de declínio democrático substancial – ocorreram em todo o mundo. A maioria não envolveu violência física. Ou seja, em mais de 52 países os processos de autocratização (ou de assassinato lento da democracia) não rasgaram as constituições (e, pode-se acrescentar, deixaram as instituições funcionando).
As democracias agora são mortas lentamente, como por envenenamento (por arsênico, por exemplo). Isso pode ser feito sem violar as leis, rasgar a Constituição, fechar as instituições (e empastelar a imprensa).
Tanques nas ruas? Nem pensar. Direitos políticos e liberdades civis formais podem permanecer vigendo. Além disso, eleições multipartidárias podem continuar ocorrendo normalmente.
Ah!… mas se tudo isso está funcionando, por que se diz então que as democracias estão sendo mortas? Pois é. Para dar uma resposta a esta pergunta é preciso entender o que é a democracia. Pela visão minimalista de democracia – como troca (eleitoral) de governo sem derramamento de sangue – a democracia não está ameaçada nesta terceira onda de autocratização. O que, por si só, revela que essa visão – que reduz a democracia ao processo eleitoral – é absurda. E é absurda, antes de qualquer coisa, porque não percebe que as principais ameaças atuais à democracia vêm dos populismos – que amam de paixão as eleições (2).
Todavia, mais de 80% dos nossos representantes políticos e uma parte considerável de nossos analistas, também não conseguem entender como a democracia pode estar sendo derruída sem violação das leis. É a isso que nos referimos quando falamos do nosso déficit de democratas.
Para onde devemos olhar para perceber os sinais de envenenamento que estão matando as democracias lentamente? E que sinais são esses?
Recolocando a questão. Onde estão os sinais de envenenamento (da democracia) quando o corpo (as instituições) ainda acha que está sadio? Ou seja, nos estágios iniciais da “doença”, as instituições não percebem que estão sendo envenenadas.
O Estado de direito não dá conta de identificar os ataques contemporâneos à democracia e de se defender desses ataques. Como eles (esses ataques, que são contínuos ou intermitentes – e não se parecem nada com um putsch de cervejaria) não violam abertamente as leis, então são considerados parte da dinâmica normal da democracia. É como colocar o vigia noturno de uma manufatura para cuidar da segurança da Microsoft.
É por isso que não existem leis contra a falsificação da opinião pública via manipulação das mídias sociais. E não é porque isso seja uma novidade contemporânea (do século 21). Bem antes, já não existiam leis contra o discurso inverídico, contra o uso da democracia (notadamente das eleições) contra a própria democracia e nem contra a destruição das normas não escritas que estão abaixo do sistema legal-institucional e lhe dão suporte.
É justamente nessas falhas estruturais da democracia que devemos procurar os sinais de envenenamento (ou de desconsolidação) da democracia (3).
Apenas com os indicadores atuais de direitos políticos e liberdades civis (usados, por exemplo, pela Freedom House, pela The Economist Intelligence Unit ou mesmo pelo V-Dem) não se consegue captar esses sinais. Até porque eles são fracos nos estágios iniciais do envenenamento. E além de fracos, eles não são visíveis diretamente. As mudanças que vão matar lentamente a democracia são subterrâneas (4).
Alguns sinais de envenenamento da democracia
Se houvesse um número suficiente de democratas, alguns sinais de avanço do autoritarismo e de desconsolidação da democracia teriam sido percebidos por uma parcela maior de pessoas e teriam alertado a sociedade sobre os perigos que está correndo.
Quais seriam esses sinais? Vão abaixo alguns exemplos. O primeiro deles – o marco zero de qualquer processo de desconsolidação da democracia – é o crescimento de uma retórica autoritária por parte de líderes emergentes que conseguem infectar a esfera pública; e o último, que resume tudo, é a dilapidação progressiva do estoque de capital social.
Tirando os itens mais óbvios, como os ataques à imprensa profissional, o surgimento de propostas de armamentismo da população (não apenas para defesa pessoal ou como política de segurança pública e sim como preparação para combater algum inimigo interno) e o florescimento de seitas fundamentalistas que misturam religião com política, cabe examinar aqui o que é menos óbvio ou menos percebido pelas análises políticas.
Registre-se que o caso brasileiro tem uma singularidade em relação a outros processos de autocratização da democracia que estão ocorrendo no mundo atual. Aqui há, historicamente, a permanência da tutela militar sobre o poder civil e a presença de forças armadas (ou policiais) possuídas pela ideologia do “inimigo interno”. É alto o grau de aparelhamento do governo por oficiais das forças armadas (sendo altíssima a porcentagem de militares da ativa ou da reserva que ocupam cargos de primeiro, segundo e terceiro escalões). Além disso, oficiais das forças armadas, da ativa ou da reserva, emitem declarações políticas tentando intimidar ou pressionar as instituições civis (como os tribunais superiores e o parlamento). Não vamos tratar agora, porém, dessa particularidade.
Mas estes – ataques à imprensa, armas e munições para abastecer milícias, tutela militar e militarização – não são sinais de envenenamento lento da democracia. Já são ofensivas abertas e declaradas à democracia. Vamos examinar aqui apenas sete sinais, portanto:
1 – O crescimento de uma retórica autoritária, inicialmente antissistema e, em seguida, anti-democracia.
2 – O aumento da relevância de forças políticas populistas (i-liberais e majoritaristas, ditas “de direita” ou “de esquerda”) e o recrudescimento da polarização (“nós” contra “eles”) com a consequente degeneração da política como guerra.
3 – A subversão da democracia por meios democráticos (ou o uso da democracia – notadamente das eleições – contra a própria democracia).
4 – A replicação do discurso antipolítico (associado – mas nem sempre – ao combate à corrupção) e a ascensão de movimentos de opinião que pregam a realização de cruzadas de limpeza (étnica, ética, religiosa ou nacional).
5 – A proliferação de milícias digitais que falsificam a opinião pública por meio da manipulação das mídias sociais.
6 – A violação das normas não-escritas que estão abaixo do sistema legal-institucional e lhe dão sustentação.
7 – Para resumir (ou sintetizar) tudo, a dilapidação do estoque (ou a interrupção do fluxo) de capital social.
Vamos examinar a seguir cada um desses sinais.
1 – O crescimento de uma retórica autoritária, inicialmente antissistema e, em seguida, anti-democracia
Como já foi dito, tudo começa com a retórica. É sempre o primeiro sinal. Se candidatos, governantes ou representantes das forças políticas que o apoiam, têm a coragem de vir à esfera pública proferir ideias autoritárias (ainda que sejam só ideias), então isso – se não for um ato isolado, episódico, marginal, mas uma prática sistemática – é um indício de que um processo de autocratização está em curso.
“Ah! Mas é pura retórica” – argumentam as pollyannas que sempre pontificam nessas horas. Nada disso. Retórica é política. Se há a presença de uma retórica autoritária é porque já há uma política autoritária (às vezes em embrião).
O discurso intolerante é um sintoma de que uma guerra (contra a democracia: e a guerra, qualquer guerra, até mesmo a política praticada como continuação da guerra por outros meios, já é contra a democracia) está chegando. Quando as palavras começam a ser usadas como armas para atingir as instituições e os procedimentos democráticos, alguma coisa muito ruim está vindo. Tudo começa com a fala.
Se Jair Bolsonaro, quando era deputado, ao fazer apologia da ditadura e da tortura e falar em matar adversários políticos – tudo “pura retórica” – tivesse sido punido, talvez hoje não estivesse capitaneando, como presidente da República, a depredação da democracia no Brasil. Isso nos remete diretamente ao Paradoxo da Tolerância, de Karl Popper (1945): “A tolerância ilimitada pode levar ao desaparecimento da tolerância. Se estendermos a tolerância ilimitada até àqueles que são intolerantes; se não estivermos preparados para defender uma sociedade tolerante contra os ataques dos intolerantes, o resultado será a destruição dos tolerantes e, com eles, da tolerância” (5).
Diz-se que a democracia é o tipo de regime onde é lícito discordar publicamente do próprio regime. E que atos ilícitos em uma democracia são aqueles que levem a ações concretas que ponham a democracia em risco real e iminente. Este é um erro muito comum, sobretudo sob a terceira onda de autocratização em que vivemos. Pois como definir “risco real e iminente” numa época em que as democracias não caem mais por golpes armados, mas são derruídas lentamente, em alguns casos até sem violar explicitamente as leis e rasgar as constituições. Numa época como esta, quando os regimes democráticos são vítimas de um envenenamento diário, baseado – antes de qualquer coisa – em retórica autoritária e propaganda da intolerância, não vale mais o velho argumento principista de que vale tudo “se for só retórica”.
Argumentar, em termos teóricos, contra a democracia, é lícito, por certo, em democracias. Mas não fazer propaganda da ditadura, do fechamento do parlamento, da prisão dos membros dos tribunais, da volta de leis de exceção. Isso não é liberdade de opinião e sim apologia da ditadura. Apologia de ditadura não é liberdade de opinião: é crime. Pergunte-se a qualquer um na Alemanha se fazer apologia do nazismo é liberdade de opinião. Apologia do fim da liberdade de opinião não pode ser encarada como liberdade de opinião. Por isso a pregação da intolerância não pode ser tolerada.
O discurso intolerante pode ser detectado por perguntas simples. No caso brasileiro atual elas chegam a ser óbvias (6). Não é por falta delas que não se detecta precocemente a autocratização do regime e sim porque não há uma visão clara das condições para que uma democracia não se desconsolide. E não há, entre muitas outras razões, porque os populismos tomaram de assalto a esfera pública de opiniões.
O fato é que todos os populismos, digam-se “de esquerda” ou “de direita”, usam e abusam da retórica antissistema. Querem jogar o povo (quer dizer, seus seguidores) contra o sistema (o establishment, representado pelas elites). O problema é quando o sistema que denunciam é o sistema democrático. Aí é necessário acender o alerta amarelo no nosso sistema de detecção precoce de desconsolidação da democracia.
2 – O aumento da relevância de forças políticas populistas (i-liberais e majoritaristas, ditas “de direita” ou “de esquerda”) e o recrudescimento da polarização (“nós” contra “eles”) com a consequente degeneração da política como guerra.
Antes de qualquer coisa é necessário entender o que são os populismos contemporâneos. Não é a velha demagogia, que raramente ameaça de morte à democracia. Se a democracia não pudesse metabolizar os demagogos, fisiológicos e corruptos que sempre aparecem, então nunca teria havido democracia. O que a democracia não consegue metabolizar é um grande aumento de populistas antidemocratas, i-liberais e majoritaristas – que são uma forma contemporânea e maligna de populismo.
Populistas contemporâneos caracterizam-se por esposar as seguintes crenças: 1 – A sociedade está dividida por uma única clivagem, separando a vasta maioria (o povo) do establishment (as elites); 2 – A polarização (elites x povo) deve ser encorajada. Os representantes do povo (que são os atores legítimos ou mais legítimos) não devem fazer acordos (a não ser táticos) ou construir consensos (idem) com os representantes das elites (posto que estes são ilegítimos ou menos legítimos) e sim buscar sempre suplantá-los, fazendo maioria em todo lugar (majoritarismo); 3 – As minorias políticas (antipopulares) não devem ser toleradas (e devem ser deslegitimadas) quando impedem a realização das políticas populares e a legalidade institucional (erigida para servir às elites) não deve ser respeitada quando se contrapõe aos interesses do povo.
Definitivamente, daí sai não política, mas guerra. Ora, a guerra é o contrário da democracia (que é um modo pazeante, ou não-guerreiro, de regulação de conflitos): seja a guerra quente, seja a guerra fria, seja a política como continuação da guerra por outros meios (na fórmule-inverse de Clausewitz-Lenin). A predominância ou a incidência relevante de uma política como guerra do “nós” contra “eles” é um sinal de desconsolidação da democracia.
Quando uma força política populista (dita de esquerda, de direita ou de extrema-direita) consegue alcançar, digamos, uns 20% de adesão, já é sinal de que a democracia foi envenenada (e pode vir a se desconsolidar).
Mas se houver dois populismos (ditos “de esquerda” x “de direita”) polarizando o cenário político, então é sinal de que a democracia foi seriamente comprometida. Porque a polarização tende a marginalizar quem não está em um dos polos. Ela deforma o campo de tal maneira que uma partícula qualquer não pode ter uma trajetória livre nesse campo: escorrerá por creodos, por sulcos já cavados, indo parar em um dos polos, excluindo os democratas e, no limite, defenestrando-os da cena pública.
Quando um conjunto de forças democráticas não funciona mais como centro de gravidade da política, é sinal de que a democracia já começou a se desconsolidar. Cabe registrar que o conceito de ‘centro’, aqui mencionado, não é o geométrico, evocando uma equidistância entre esquerda e direita. Centro é o centro de gravidade da política. Então, repetindo, é possível afirmar que quando um conjunto de forças democráticas não funciona mais como centro de gravidade da política, é sinal de que a democracia já começou a se desconsolidar.
Não raro, populismos ditos “de esquerda” preparam o terreno para o surgimento de populismos ditos “de direita”. No Brasil deste século, o neopopulismo lulopetista começou a envenenar a democracia com a insistência no “nós” contra “eles” e a degeneração da política como guerra. Isso tornou o ambiente propício à reação extremada e surgiu então um populismo-autoritário bolsonarista, muito pior do que o anterior. Mas o inverso também pode acontecer. Ou re-acontecer.
Uma vez a esfera pública esteja vincada pela polarização entre dois populismos, dificilmente a democracia conseguirá se recuperar. Alerta vermelho, portanto, no nosso sistema de detecção precoce de desconsolidação da democracia.
3 – A subversão da democracia por meios democráticos (ou o uso da democracia – notadamente das eleições – contra a própria democracia).
Esta é uma falha genética da democracia dos modernos. Na democracia representativa, um dos critérios da legitimidade democrática (a eletividade) acabou se sobrepondo aos outros cinco critérios (a liberdade, a publicidade ou transparência, a rotatividade ou alternância, a legalidade e a institucionalidade). Os populistas então encontraram uma falha no arranjo representativo (e resolveram explorá-la): descobriram que é possível usar as eleições contra a democracia.
Para falar a verdade, os oligarcas atenienses – membros da aristocracia fundiária que se contrapunham à democracia, já haviam descoberto que é possível ganhar votações (7).
O fato é que a democracia virou, para todos os efeitos práticos, sinônimo de regime eleitoral. Surgiram até visões teóricas minimalistas da democracia como troca (eleitoral) de governo sem derramamento de sangue. Se essa é a visão de democracia então pode-se fazer qualquer coisa para desconstituí-la, desde que se mantenha o processo eleitoral.
Ocorre que os regimes não-eleitorais, na atualidade, são muito poucos e estão em extinção. Os adversários atuais da democracia, salvo um outro caso exótico (como Myanmar), não querem acabar com a democracia para instaurar ditaduras de manual como a Coréia do Norte ou Cuba. Os processos de desconstituição de democracia avançam hoje para transformar democracias liberais em democracias (apenas) eleitorais e para transformar democracias eleitorais em autocracias eleitorais.
As ditaduras clássicas ou autocracias fechadas (não-eleitorais), até muito recentemente, estavam presentes em apenas 27 países. Pela classificação do V-Dem (Varieties of Democracy da Universidade de Gotemburgo), em dados de 2017 (que não se alteraram significativamente), tínhamos apenas 39 democracias liberais, 55 democracias eleitorais e 56 autocracias eleitorais (que tendem, estas últimas, a crescer).
Quer dizer, a tendência aponta para o surgimento de regimes autoritários (autocracias) com a manutenção – não mais com a abolição – do processo eleitoral. Para lá caminharam Rússia e Turquia. Para lá caminham Hungria e Polônia. E para lá se tentou levar os Estados Unidos e ainda se tenta levar o Brasil.
O maior perigo hoje para os regimes democráticos é o uso da democracia contra a democracia. A subversão da democracia por meios legais, com a manutenção dos processos eleitorais. Quando populistas são eleitos é bom acender o alerta amarelo. Se eles são reeleitos, é caso para alerta vermelho no nosso sistema de detecção precoce de desconsolidação da democracia.
4 – A replicação do discurso antipolítico (associado – mas nem sempre – ao combate à corrupção) e a ascensão de movimentos de opinião que pregam a realização de cruzadas de limpeza (étnica, ética, religiosa ou nacional).
Este é outro indicador de depredação da política (democrática). É um ataque insidioso, uma vez que ninguém pode, em sã consciência, ser a favor da corrupção ou colocar-se contrário à luta para coibi-la.
Cruzadas de limpeza nunca resultam em mais-democracia. Cruzadas de limpeza da política – animadas por conclamações do tipo: “vamos caçar os corruptos” – nunca conferem à política a tarefa de consertar os erros da própria política. Querem reparar as mazelas da política por cima da política (e por fora da democracia) – muitas vezes a partir de estamentos corporativos do Estado. São, assim, antipolíticas.
Em geral as cruzadas de limpeza ética da política são tentativas de reeditar o jacobinismo, o terra-arrasadismo e o restauracionismo robespierriano. Exploram e instrumentalizam o moralismo da população, vendendo a ideia de que as pessoas estão nas péssimas condições de vida em que estão porque alguém está desviando e embolsando o dinheiro da saúde, da educação e de outros serviços sociais prestados pelo Estado. Investem no punitivismo, apoiando-se no ressentimento social, no desejo de vingança e na vontade de revanche (para “dar o troco”). Quando parte do público que acompanha a obra de limpeza entra em transe punitivista – vê uma cabeça rolar e só se satisfaz quando mais uma cabeça rola, e mais uma, e mais uma… – então é sinal de que a espiral da vingança já está instalada.
A grande inspiração para essas cruzadas – o jacobinismo da revolução francesa – não tinha qualquer compromisso com a democracia. Queria arrasar a terra para restaurar o mundo a partir do zero, de modo autocrático. O famoso discurso parlamentar de Robespierre, de 28 de dezembro de 1792, proferido na Convenção, dominada pelos jacobinos, deixa claro que se trata de instaurar processos de exceção, abrindo mão dos ritos jurídicos e do contraditório, apressando a condenação e a execução de Luís XVI: “Fundadores da República, segundo estes princípios, vocês podiam julgar, há muito tempo, na alma e na consciência, o tirano do povo francês. Qual a razão de um novo adiamento? Vocês gostariam de anexar novas provas contra o acusado? Vocês querem ouvir testemunhas? Esta ideia ainda não entrou na cabeça de nenhum de nós” (9). Um mês depois (em janeiro de 1793), Luís XVI seria executado na guilhotina. Logo em seguida, ainda no verão de 1793, o jacobino Marat seria assassinado pela aristocrata Marie-Anne Charlotte de Corday d’Armont. Robespierre então voltou a discursar: “Que o gládio da lei caia, que seus assassinos, que seus cúmplices, que todos os conspiradores pereçam. Que o sangue deles seja derramado para satisfazer a alma do mártir da liberdade. Nós o exigimos em nome da dignidade nacional ultrajada” (10). A partir daí instalou-se o Terror, e as cabeças começaram a rolar em julgamentos sumários sem provas.
As duas principais cruzadas contra a corrupção foram, nos últimos tempos, a operação Mani Pulite, na Itália dos anos 90 e a Operação Lava Jato, no Brasil a partir de 2014. Elas seguiram mais ou menos o seguinte roteiro: a) Deslegitimação do sistema político (que de tão apodrecido já não pode mais tomar medidas para sua própria restauração); b) Crítica à ineficiência ou excesso de liberalismo do sistema judicial e das leis (que seriam ineficazes para combater a corrupção); c) Prisões antes do julgamento e coação dos presos para forçar delações; d) Vazamentos para a imprensa (para conquistar a simpatia dos meios de comunicação e o seu apoio e formar uma opinião pública favorável aos seus procedimentos heterodoxos); e) Criação de movimentos sociais em apoio à cruzada de limpeza ética; e f) Constituição de uma força política com características jacobinas e restauracionistas após a terra-arrasada (de preferência com a cruzada lançando seus próprios candidatos nas próximas eleições: o que de fato aconteceu na Itália e pode acontecer no Brasil) para conquistar o poder de Estado (11).
Trata-se de um engano e de uma maneira de enganar a opinião pública. Nem a situação de penúria da população é consequência (a não ser em pequeníssima parte) do roubo dos corruptos, nem a corrupção destrói a democracia. Não há um só caso na história de um país democrático que tivesse virado uma ditadura em razão do aumento do número de corruptos por metro quadrado.
Como já foi dito anteriormente, a corrupção endêmica na política é metabolizável pela democracia: embora a enfraqueçam ou diminuam a sua qualidade, não a eliminam. Ao contrário, não raro, líderes honestos, verdadeiros Varões de Plutarco, podem acabar instaurando regimes autoritários: o exemplo mais eloquente são os autocratas espartanos que, aliás, financiaram, e operaram mesmo, em 411 e 404 a.C., dois golpes contra a democracia ateniense, que consideravam um regime de veadinhos e ladrões (sempre brandindo o espantalho do “corrupto” Péricles, não por acaso o principal expoente da democracia).
Mas as cruzadas de limpeza não ocorrem apenas contra a corrupção na política. Elas, às vezes, têm caráter de classe. As revoluções russa e chinesa promoveram verdadeiros massacres para limpar o país dos elementos capitalistas remanescentes. Também podem ocorrer por motivos étnicos ou nacionais, como na perseguição aos judeus na Alemanha nazista, na guerra da Bósnia e em vários genocídios africanos. Nestes casos são bem piores, considerando-se suas consequências anti-humanas. A origem de todas, entretanto, repousa na mesma ideia de pureza ou de purificação que seria necessária para preparar uma restauração do mundo. A matriz desse pensamento pode ser encontrada no pensamento totalitário de Platão que, por sua vez, deita raízes no tribalismo patriarcalista dório (Esparta, Creta e Siracusa) e nas urdiduras sacerdotais que inauguraram o modo próprio de pensar do patriarcado (12).
Em todo caso, quando aparece uma cruzada de limpeza, seja qual for seu pretexto, pode-se acender o alerta amarelo no nosso sistema de detecção precoce de desconsolidação da democracia. Coisa boa não virá na sequência.
5 – A proliferação de milícias digitais que falsificam a opinião pública por meio da manipulação das mídias sociais.
Como já foi dito no artigo As falhas genéticas da democracia (13), a democracia não tem proteção eficaz contra a falsificação da opinião pública a partir da manipulação das mídias sociais, que desabilita qualquer razão comunicativa, destruindo o espaço discursivo de interações de opiniões.
Esta falha só foi percebida muito recentemente (na última década). Os populistas, acionando suas facções, promovem ataques de enxame (swarm attacks, contra os quais não se conhece defesa) para inviabilizar a emergência de uma opinião pública, substituindo-a pela soma de opiniões privadas e, com isso, estilhaçam a esfera pública em miríades de esferas privadas, destruindo o processo de formação e de verificação da vontade política coletiva. Embora o problema seja recente, notadamente depois que mídias sociais e programas de mensagens apareceram e foram colonizados por facções populistas, já há vasta literatura sobre o fenômeno, mas não solução. Hoje este é o problema mais importante que a democracia enfrenta e que pode inviabilizá-la como modo de regulação de conflitos.
De qualquer modo, o assunto requer um tratamento mais aprofundado que extravasa o escopo (e o tamanho) deste artigo. Um texto resumo da problemática é A abolição da opinião pública pelos populismos, mas existem muitos outros (14).
Por ora, é suficiente ver que se há esses ataques sistemáticos, promovidos por alguns hubs (poucas centenas são suficientes) de uma rede descentralizada e tendo como correia de transmissão milhares de pessoas-bot (que, por sua vez, também usam bots), é sinal de que a democracia está indefesa. Alerta vermelho em nosso sistema de detecção precoce de desconsolidação da democracia.
6 – A violação das normas não-escritas que estão abaixo do sistema legal-institucional e lhe dão sustentação.
Em geral, presta-se pouca atenção a esse sinal. Mas ele é um dos mais importantes. Basicamente, a democracia não pode ser protegida apenas pelas leis (escritas). Por isso todo legalismo é insuficientemente democrático. Não, não basta não violar as leis para proteger a democracia. Sem um pacto social, mesmo que tácito, de respeito aos bons costumes políticos (as normas não escritas), a democracia fica indefesa quando se elege um tirano cujo programa é de destruição da democracia.
Existem regras não escritas que não devem ser violadas, nem mesmo em contendas acirradas. Alguns exemplos: √ Aceitar a derrota; √ Parabenizar o vencedor; √ Não tripudiar sobre o derrotado; √ Não mentir; √ Não acusar as regras (que foram aceitas antes da contenda) pela derrota; √ Não tentar mudar as regras do jogo durante o jogo; √ Não alegar falsamente que perdeu porque houve fraude; √ Não deslegitimar o adversário; √ Não encorajar a polarização (“nós” contra “eles”); √ Não transformar o adversário em inimigo (da pátria, do povo, da nação, do Estado, de Deus); √ Não levantar falso testemunho perante a justiça (nem praticar litigância de má-fé) contra um adversário; √ Tratar as divergências por meio de um debate aberto e tolerante, valorizando a moderação e a busca do consenso; √ Fazer oposição leal.
Se estas regras não escritas começarem a ser violadas – no todo ou em grande parte, como fez Trump nos Estados Unidos e Bolsonaro está repetindo no Brasil – então é sinal de que a democracia está em risco. Alerta amarelo no nosso sistema de detecção precoce de desconsolidação da democracia.
7 – Para resumir (ou sintetizar) tudo, a dilapidação do estoque (ou a interrupção do fluxo) de capital social.
A melhor maneira de detectar precocemente o avanço do autoritarismo é monitorar o fluxo de capital social. Se ocorrem instabilidades ou perturbações nesse fluxo é sinal de que há uma corrente subterrânea alterando profundamente a “produção” de capital social, antes que o seu estoque decaia perceptivelmente. Infelizmente, não temos ainda como fazer isso. Não há um consenso sobre quais seriam os indicadores de capital social e, muito menos, sobre os sinais que indicariam variações nos fluxos interativos da convivência social (pois é deste fluxo que se trata) quando o processo de autocratização ainda é subterrâneo (15).
Alguma coisa já se sabe, porém. Sabe-se, em primeiro lugar, que abaixo de certo nível de capital social nenhuma democracia pode perdurar. O livro pioneiro de Robert Putnam (1993) sobre as tradições cívicas na Itália moderna foi importante, além de tudo, pelo título: Making democracy work.
Sabemos também, em segundo lugar, que o capital social diz respeito aos padrões de convivência social, quer dizer, à configuração da rede social existente e à fenomenologia da interação que nela se manifesta. Quando algum processo de autocratização está em curso, a rede social que suporta (a palavra não seria bem essa, mas vá lá) a democracia começa a se esgarçar – e a fenomenologia da interação que nela se manifesta se altera – antes que isso seja percebido como mudanças nas instituições. Um indicador perceptível disso é que há um decréscimo na inovação social: os inovadores desaparecem, os atalhos entre seus clusters se desfazem e coisas novas deixam de ocorrer no mesmo ritmo com que ocorriam. Outro indicador é o aumento dos graus de belicosidade (ou de comportamento inamistoso) na base da sociedade e no cotidiano dos cidadãos, com um clima de “guerra fria” instalando-se em localidades e setores. Este comportamento adversarial atravessa inclusive as famílias e outras formas primárias de sociabilidade (como os grupos de amigos e colegas de trabalho e as vizinhanças residenciais, como condomínios, ruas e bairros).
Em terceiro lugar, sabemos que o capital social pode ser dilapidado – ou mantido abaixo de certos níveis ótimos para a continuidade do processo de democratização – pela manutenção de políticas públicas de oferta estatal centralizada, assistencialistas, clientelistas. Ainda que isso não seja decisivo para autocratizar a democracia, seu resultado é o enfreamento do processo de democratização. Indiretamente a democracia perde credibilidade quando não consegue mais responder tempestivamente aos anseios das pessoas, parecendo algo atrasado, anacrônico e inútil (o que é sinal de desconexão e desconsolidação democráticas).
Infelizmente, porém, quando conseguimos detectar, mesmo indiretamente, sinais de avanço do autoritarismo e de desconsolidação da democracia, é porque um processo de autocratização já está em curso. Quando percebemos que a democracia poderá ser envenenada é porque ela já foi envenenada. Ou seja, não temos ainda um bom sistema de detecção precoce. Mas é necessário continuar trabalhando nisso.
*Augusto de Franco,escritor, palestrante e consultor, com várias dezenas de importantes obras
Notas
(1) Cf. Anna Lührmann & Staffan I. Lindberg (2019), Uma terceira onda de autocratização está aqui: o que há de novo sobre isso?, Democratization, DOI: 10.1080 / 13510347.2019.1582029.
(2) Um estudo empírico recente mostrou que das 47 vezes que um líder populista assumiu o poder (via eleições) entre 1990 e 2014, em apenas oito casos (17%) ele deixou o cargo depois de perder eleições livres e justas: em geral os líderes populistas deixam o cargo em circunstâncias dramáticas. Além disso, eles duram mais no cargo (duas vezes mais do que os líderes democraticamente eleitos que não são populistas e são quase cinco vezes mais propensos do que os não-populistas a sobreviver no cargo por mais de dez anos). Mas tem mais: no geral, 23% dos populistas causam um retrocesso democrático significativo, comparado com 6% dos líderes democraticamente eleitos não populistas. Em outras palavras, os governos populistas são cerca de quatro vezes mais propensos do que os não-populistas a prejudicar as instituições democráticas. E ainda: mais de 50% dos líderes populistas alteram ou reescrevem as constituições de seus países, e muitas dessas mudanças ampliam os limites dos mandatos ou enfraquecem os controles sobre o poder executivo. Por último, os populistas atacam os direitos individuais. Sob o domínio populista, a liberdade de imprensa cai em cerca de 7%, as liberdades civis em 8% e os direitos políticos em 13% – sem que nenhuma dessas três coisas deixe de existir. Confira Jordan Kyle e Yascha Mounk (2018), The Populist Harm to Democracy: An Empirical Assessment, Tony Blair Institut for Global Change, 26th December 2018.
(3) Foa e Mounk (2017) escreveram que “o fenômeno da desconsolidação democrática é conceitualmente distinto das avaliações sobre quão democraticamente um país está sendo governado em um dado momento. Uma importante linha de pesquisa na ciência política tenta medir o grau no qual um país permite eleições livres e justas ou oferece a seus cidadãos direitos básicos, como liberdade de expressão. Os dois trabalhos mais influentes nesse sentido são os índices Polity e o da Freedom House, que são muito bons para se medir o estado atual da democracia em determinado país. Mas a questão da consolidação ou desconsolidação democrática não diz respeito ao grau de democracia, mas à sua durabilidade”. Cf. Roberto Stefan Foa e Yascha Mounk (2017), The signs of deconsolidation, Journal of Democracy, Volume 28, Número 1, Janeiro de 2017 © 2017 National Endowment for Democracy and The Johns Hopkins.
(4) Com efeito, como escrevi no artigo Não é possível salvar a democracia, “por incrível que pareça o que mantém a democracia não é o que aparece e sim o que não aparece, o que não é tão tangível (como, por exemplo, a produção e o estoque de capital social). Como se sabe, abaixo de certo nível de capital social a democracia não pode funcionar. O problema é que a democracia pode continuar (aparentemente) funcionando enquanto o capital social está sendo erodido. Este é, precisamente, o problema das nossas democracias sob ataque dos populismos”. Cf. Franco, Augusto (2021). Não é possível salvar a democracia. Dagobah (25/01/2021).
(5) Em uma nota de rodapé, em O Feitiço de Platão, primeiro volume de A Sociedade Aberta e seus Inimigos, ele escreveu (segue a nota inteira): “A tolerância ilimitada pode levar ao desaparecimento da tolerância. Se estendermos a tolerância ilimitada até àqueles que são intolerantes; se não estivermos preparados para defender uma sociedade tolerante contra os ataques dos intolerantes, o resultado será a destruição dos tolerantes e, com eles, da tolerância. Nesta formulação, não quero implicar, por exemplo, que devamos sempre suprimir a manifestação de filosofias intolerantes; enquanto pudermos contrapor a elas a argumentação racional e mantê-las controladas pela opinião pública, a supressão seria por certo pouquíssimo sábia. Mas deveríamos proclamar o direito de suprimi-las, se necessário mesmo pela força, pois bem pode suceder que não estejam preparadas para se opor a nós no terreno dos argumentos racionais e sim que, ao contrário, comecem por denunciar qualquer argumentação; assim, podem proibir a seus adeptos, por exemplo, que deem ouvidos aos argumentos racionais por serem enganosos, ensinando-os a responder aos argumentos por meio de punhos e pistolas. Deveremos então reclamar, em nome da tolerância, o direito de não tolerar os intolerantes. Deveremos exigir que todo movimento que pregue a intolerância fique à margem da lei e que se considere criminosa qualquer incitação à intolerância e à perseguição, do mesmo modo que no caso da incitação ao homicídio, ao sequestro de crianças ou à revivescência do tráfego de escravos”. Popper, Karl (1945). A Sociedade Aberta e seus Inimigos, Vol. 1. Belo Horizonte: Itatiaia, 1974.
(6) As perguntas seguintes, sugeridas pelo caso brasileiro atual, também podem valer, mutatis mutandis, para outros países e regimes – conquanto se apliquem melhor a regimes democráticos parasitados por forças populistas-autoritárias. 1 – Existem e são significativas, por parte do governante ou das forças políticas que o apoiam, tentativas de demonizar os meios de comunicação não-alinhados ao governo, acusando-os de divulgarem fake news ou de serem “os inimigos” e estarem traindo a pátria? 2 – Há, por parte do candidato, do governante ou das forças políticas que o apoiam, tentativas de priorizar ou hierarquizar os sujeitos dos direitos humanos, como, por exemplo, as que afirmam que os direitos humanos devem ser destinados principalmente aos “humanos direitos” em detrimento dos “humanos tortos” ou dos “bandidos”? O candidato, o governante ou a forças políticas que o apoiam, difundem preconceitos contra os direitos humanos (por exemplo, os de que “bandido bom é bandido morto”)? 3 – Há tentativas de estabelecer uma associação automática – mesmo que feita somente através de discursos das forças políticas que apoiam um candidato ou governante – entre crime, corrupção e adesão a alguma ideologia considerada exótica? 4 – O candidato, ou governante ou as forças políticas que o apoiam, defendem que o combate às visões ideológicas julgadas perversas (por uma ideologia particular, tal como esposada pelo candidato ou pelo governo) será o mesmo (ou da mesma natureza) que o combate aos crimes? 5 – Há, por parte do candidato, do governante ou das forças políticas que o apoiam, tentativas de instalar uma guerra cultural (entre crenças, valores, costumes, cuja adesão cabe à decisão privada dos cidadãos)? 6 – O governante ou as forças políticas que o apoiam, qualificam como terroristas grupos sociais e forças políticas que se opõem ao governo? 7 – Há, por parte do candidato, do governo ou das forças políticas que o apoiam, manifestações de algum tipo de xenofobia e de fundamentalismo nacionalista (mesmo que disfarçado de patriotismo)? 8 – Há, por parte do candidato, do governante ou das forças políticas que o apoiam, a defesa de algum tipo de controle estatal da expressão artística, mesmo a pretexto de combater a zoofilia, a pedofilia, a sexualização precoce ou a indução ao gayzismo (que afetaria crianças e jovens)? E se não há, o candidato, o governante ou as forças políticas que o apoiam, emitem declarações ou organizam ações de propaganda a favor desse tipo de controle? 9 – O candidato, o governante ou as forças políticas que o apoiam, defendem algum tipo de intervenção estatal no ensino escolar a pretexto de coibir a doutrinação com alguma ideologia considerada exótica – ou com alguma ideologia com a qual não se identificam – em sala de aula? 10 – O candidato, o governante ou as forças políticas que o apoiam, estimulam a militarização da educação com a adoção de algum tipo de “religião patriótica”, que instaure um culto aos heróis da pátria? 11 – Há, por parte do candidato, do governante ou das forças políticas que o apoiam, tentativas de reescrever a história (e, sobretudo, de ensinar tais falsificações históricas nas escolas ou em cursos paralelos de deformação política), enaltecendo regimes autocráticos do passado ou promovendo antigos violadores de direitos humanos (por exemplo, conhecidos torturadores) como heróis da pátria? 12 – Há, por parte do candidato, do governante ou das forças políticas que o apoiam, alegações de que não faz sentido, em uma sociedade tradicionalmente cristã (ou hindu, ou islâmica, ou judaica), que o Estado seja laico? 13 – O candidato ou o governante se apresenta – e assim é visto pelas forças políticas que o apoiam – como escolhido ou guiado por deus para cumprir uma missão redentora? Apresenta-se como defensor da civilização contra algum inimigo universal que quer destruir os seus valores e instituições – a família, a religião, a pátria ou a nação (conferindo-lhe o status de entidade acima de tudo e colocando acima de todos um deus capaz de intervir na história ou na política) contra a qual haveria uma conspiração?
(7) Se a reforma de Clístenes, em 509 a.C., em vez de instaurar uma centena de poleis (comunidades políticas, instaladas nos demoi), tivesse introduzido a eleição geral de governantes pelo voto majoritário de todos os habitantes de Atenas, jamais teríamos ouvido falar a palavra democracia. Clístenes é comumente considerado o inventor da democracia. Mas a democracia não é invenção de ninguém. Ele não tinha a menor noção das consequências da sua reforma que substituiu o genos (os clusters das grandes famílias da aristocracia fundiária) pelo demoi (os cerca de cem distritos onde se formaram poleis, comunidades políticas). Aliás, a reforma de Clístenes só vigorou mesmo cerca de meio século depois. Os oligarcas de Atenas continuaram dominando as assembleias e elegendo seus representantes. Somente com a reforma do Areópago, proposta por Efialtes (antecessor de Péricles) em 461 a.C., alterou-se a composição de forças políticas na condução dos assuntos da cidade. Mas, subterraneamente, um movimento democratizante estava em curso a partir de 509 a.C. Ninguém sabe ao certo como foi introduzido o sorteio para a escolha dos membros do Areópago. Mas o sorteio foi decisivo para impedir que os oligarcas – mais organizados do que os simpatizantes da democracia (que nem sabiam o que era ou seria a democracia) – continuassem controlando os processos eleitorais. Sim, os oligarcas usavam as eleições contra a democracia. Parece óbvio. Quem está organizado para vencer eleições tem mais condições de vencer eleições. Pode-se dizer que, nos primeiros cinquenta anos, as eleições para o arcontado em Atenas foram usadas contra a democracia. Explica-se. As eleições sempre podem ser usadas como variantes de uma guerra (a “política como continuação da guerra por outros meios”). E a guerra é a autocracia.
(8) Cf. Regimes of the world (ROW): Opening new avenues for the comparative study of political regimes, por Anna Lührmann V-Dem Institute, Department of Political Science, University of Gothenburg, Sweden | Marcus Tannenberg V-Dem Institute, Department of Political Science, University of Gothenburg, Sweden | Staffan I. Lindberg V-Dem Institute, Department of Political Science, University of Gothenburg, Sweden, 19/03/2018 in Politics and Governance (ISSN: 2183–2463), 2018, Volume 6, Issue 1, Pages 60–77 | DOI: 10.17645/pag.v6i1.1214.
(9) O trecho inteiro de Robespierre é o seguinte. “Fundadores da República, segundo estes princípios, vocês podiam julgar, há muito tempo, na alma e na consciência, o tirano do povo francês. Qual a razão de um novo adiamento? Vocês gostariam de anexar novas provas contra o acusado? Vocês querem ouvir testemunhas? Esta ideia ainda não entrou na cabeça de nenhum de nós. Vocês duvidariam daquilo que a nação acredita fortemente. Vocês seriam estrangeiros à nossa revolução e, em vez de punir o tirano, estariam punindo a própria nação… Cidadãos, trair a causa do povo e nossa própria consciência, abandonar a pátria a todas as desordens que a lentidão desse processo deve excitar, eis o único perigo que devemos temer. Está na hora de ultrapassarmos o obstáculo fatal que nos prende há tanto tempo no início de nossa carreira. Assim, sem dúvida, marcharemos juntos para o objetivo comum da felicidade pública. Assim, as paixões odiosas, que brandam muito frequentemente neste santuário da liberdade, darão lugar ao amor pelo bem público, à santa emulação dos amigos da pátria. Todos os projetos dos inimigos da ordem pública serão vexados”. Maximilien de Robespierre: discurso de 28 de dezembro de 1792, proferido na Convenção. Cf. Gumbrecht, Hans Ulrich. As funções da retórica parlamentar na Revolução Francesa – Estudos preliminares para uma pragmática histórica do texto. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003.
(10) Idem.
(11) Cf. Franco, Augusto (2020). O texto de Moro sobre a Mani Pulite com alguns comentários. Dagobah (29/10/2020): http://dagobah.com.br/o-texto-de-moro-sobre-a-mani-pulite-com-alguns-comentarios/
(12) Isso já foi mostrado no artigo de Franco, Augusto (2019): Fundamentos filosóficos das teorias da corrupção. Dagobah (28/04/2019): http://dagobah.com.br/fundamentos-filosoficos-das-teorias-da-corrupcao/
(13) Franco, Augusto (2020). As quatro falhas genéticas da democracia. Dagobah (09/11/2020). http://dagobah.com.br/as-quatro-falhas-geneticas-da-democracia/
(14) Franco, Augusto (2020). A abolição da opinião pública pelos populismos. Dagobah (02/03/2020) http://dagobah.com.br/a-abolicao-da-opiniao-publica-pelos-populismos/. Pode-se ler também os numerosos artigos encontrados na seguinte busca: http://dagobah.com.br/?s=midias+sociais
(15) O conceito de capital social, com o sentido que hoje lhe atribuímos, foi cunhado por Jane Jacobs (1961) em Morte e vida de grandes cidades. Em artigo de 2001 O conceito de capital social em Jane Jacobs já expus as razões dessa atribuição de autoria. As raízes da ideia devem ser buscadas, entretanto, em Alexis de Tocqueville (1835-1840) no seu A democracia na América. Mostrei, também em 2001, porque se trata de um conceito político no artigo O conceito de governo civil em Alexis de Tocqueville. Todavia, o conceito de capital social foi usado e ficou mais conhecido como uma noção metafórica, formulada em linguagem utilizada em teorias do desenvolvimento, para fazer referência a uma variável sistêmica que não é facilmente medida (ou sequer percebida) nas equações que tentam relacionar os diversos tipos de “capitais” tomados como fatores do desenvolvimento: os propriamente econômicos, como a renda e a riqueza (os capitais stricto sensu: capital financeiro e capital físico ou empresarial) e os demais “capitais” (lato sensu) tomados como externalidades e que se referem aos fatores humanos, ambientais e sociais (como o capital humano, o chamado capital natural e, finalmente, o capital social – que seria a tal variável sistêmica, que tem a ver com os índices de confiança e cooperação presentes em uma sociedade). No entanto, esse tipo de abordagem, que se tornou corrente quando o assunto passou a ser considerado no âmbito das teorias do desenvolvimento (ainda sob forte viés economicista e produtivista) a partir do célebre artigo de James Coleman (1988), Social Capital in the Creation of Human Capital – e em seguida no seu tratado Foundations of Social Theory (1990) – está defasado em relação às recentes descobertas da fenomenologia da interação (sobretudo nos Highly Connected Worlds em que já vivemos no dealbar do terceiro milênio).
Cora Rónai: Sem respostas para o futuro
Um dia o futuro vai olhar para nós e perguntar como foi que, a maior crise sanitária de todos os tempos, deixamos na presidência do país um homem que se aliou ao vírus e cortejou a morte
Ando sem estrutura emocional para enfrentar o Twitter. Cada vez que entro passo raiva. Esta semana, por exemplo:
“Onde houver consenso, Bolsonaro estará fora. Vacina salva vidas, Bolsonaro ataca. Máscara previne? Ele tripudia. Isolamento evita o contágio? Bolsonaro vai pra rua. SUS colapsado? Bolsonaro debocha. No curto prazo pode até funcionar para ele manter a base de radicais unida. No longo, é certeza de colapso.”
Isso foi no domingo.
“Bolsonaro inaugurou o governo do cada um por si. Estados e municípios que se virem e comprem vacina; doentes que se virem pra achar vaga em UTI; investidores que se virem com as intervenções do governo; o país que se vire para vencer a pandemia.”
Isso, anteontem.
Dois ótimos tuítes, que qualquer pessoa sensata compartilharia sem restrições... desde que não soubesse que foram assinados pelo único homem que, durante dois anos, teve o poder real de fazer alguma coisa para livrar o Brasil de Bolsonaro, mas não fez: Rodrigo Maia.
Descobrir quem é Bolsonaro agora é muito pouco e muito tarde, deputado. Há mais de 60 pedidos de impeachment fechados numa gaveta da sua biografia.
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A derrota política de um país não acontece só por causa dos seus governos, mas também (e talvez sobretudo) por causa das suas oposições, porque cabe a elas denunciar erros, cobrar competência e oferecer alternativas reais ao eleitor.
Uma oposição digna do nome enfrenta o poder; uma oposição responsável é comprometida com o país, e não com os seus eventuais líderes.
Ao definir Ciro como “candidato de direita”, o ex-prefeito Fernando Haddad mostra bem de que lado está.
A esquerda liderada pelo PT está ansiosa para repetir o catastrófico desempenho de 2018, jogando todo mundo que não é subserviente a Lula no mesmo monturo.
Bando de lemingues.
Não aprendem nada, nunca.
Que país desesperador.
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Eu escrevi lá no início que ando sem estrutura emocional para enfrentar o Twitter, mas a verdade é que ando sem estrutura emocional para enfrentar o Brasil.
Quando Flávio Bolsonaro gasta R$ 6 milhões numa mansão incompatível com os seus ganhos, no momento mais crítico da nossa História recente, não está apenas comprando uma casa. Está mandando um recado para a sociedade, mostrando como a sua família se julga inatingível e inimputável.
E, pelo que se viu até agora, é mesmo.
Daqui a dois dias ninguém mais vai falar no assunto, e mais um “gênio das finanças” seguirá sossegado em sua trajetória milionária.
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Um dia o futuro vai olhar para nós e perguntar como foi que, durante a maior crise sanitária de todos os tempos, deixamos na presidência do país um homem que se aliou ao vírus e cortejou a morte.
Como foi que aceitamos os seus disparates dia após dia, enquanto morríamos como moscas, e não fizemos nada?
Colapso no sistema de saúde, falta de vacinas, hospitais recorrendo a contêineres frigoríficos para receber mortos — e uma população sem reação diante das suas falas obtusas, da sua falta de compaixão, dos seus rompantes de asno perverso.
Os que estivermos vivos vamos olhar nos olhos do futuro e para dentro de nós mesmos, e não vamos encontrar resposta.
Míriam Leitão: O ano da queda que não terminou
O ano de 2020 terminou melhor do que se temia, o ano de 2021 começou pior do que o esperado. Esse é o resumo dos números de ontem do PIB que mostraram uma recessão de 4,1% no ano, e uma alta de 3,2% no último trimestre. Houve dados que foram aleatórios, como o crescimento de 20% no investimento, mas que subiu principalmente pela importação de plataformas da Petrobras. O cenário de 2021 começou muito mal. A economia do país entra em 21 caindo e se existe alguma esperança é de que melhore no segundo semestre. Dependendo da vacinação.
Há dados realmente positivos, como a força da agricultura, único setor a crescer. A MB Associados acha que o choque positivo do agro foi até pouco captado pelo IBGE. “O crescimento da renda real do setor foi de 9,3%”, diz um relatório da consultoria. Mas, ao mesmo tempo, os números, quando olhados em conjunto, mostram uma economia desencontrada. A indústria cresceu bastante no fim do ano, mas os serviços têm grupos fortemente negativos e são justamente os que empregam mais.
Foi um ano difícil marcado pela crise global do coronavírus, e os erros de uma liderança nefasta no país. O presidente da República foi o pior fator complicador da crise de saúde, e também da economia. Ontem estava de novo dizendo “criaram o pânico”. Mesmo com 1.840 mortos num dia, ele mantém a mesma atitude criminosa que tem tido desde o início.
O Brasil paga, em todas as frentes, o preço da péssima liderança que tem. A ideia da dicotomia entre saúde e economia, sustentada por Bolsonaro, agravou a situação econômica. Ao combater todos os esforços de distanciamento social, colocou um país num círculo vicioso de medidas de proteção tomadas pela metade, que criaram instabilidades e tiraram o horizonte da economia. Isso é o pior ambiente para qualquer investimento. Outro erro econômico, derivado do seu negacionismo, foi o atraso na compra de vacinas que nos deixa agora sem perspectivas para o PIB de 2021.
Na equipe econômica, o primeiro trimestre deste ano já é dado como perdido. Ele será negativo, até pela retirada de todos os estímulos, como o auxílio emergencial, e pela piora da pandemia. Mas em centros de estudo, como a FGV, a previsão é de que o primeiro semestre inteiro será de queda. É o que projeta a economista Silvia Matos, por exemplo.
Como 2020 foi de recessão, pode haver um efeito estatístico que leve o número de 2021 a ser positivo. Mas na maior parte do ano o clima recessivo continuará, com alta taxa de desemprego, queda da renda e do consumo.
A intervenção na Petrobras, em momento em que o Brasil tem dívida alta e muito vencimento de títulos da dívida pública, concentrado no primeiro quadrimestre, aumentou a percepção de que o Brasil é um país arriscado. Isso vale tanto para o investidor internacional quanto para o interno. Um sinal disso é o mercado de câmbio, que está na tendência oposta do que deveria estar, explica Silvia Matos:
— Sempre que as commodities estão em alta, o dólar cai, porque o Brasil é grande exportador desses produtos. O real é o que eles chamam de commodity currency. Neste momento, as cotações do que exportamos sobem, mas o real, em vez de se valorizar, está em queda.
O Banco Central, como informado no blog, dobrou a venda de contratos futuros de dólar, de US$ 35 bi para US$ 70 bi para segurar o câmbio. Um dos pontos de incerteza é a situação fiscal brasileira e por isso os bancos amanheceram ontem de olho na PEC emergencial. O senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE) propôs tirar o Bolsa Família do gatilho que congelas despesas. Alguns parlamentares então propuseram tirar o programa do cálculo do teto. Isso deixaria quase R$ 75 bilhões no extrateto. As cotações oscilaram ao sabor desse entra e sai de gastos do teto. O relatório não abrigou essa proposta.
O dado de 2020 também marca, lembra o economista Sérgio Vale, o fim de uma década particularmente infeliz no país. De 2011 a 2020, o país cresceu apenas 2,7%, e o PIB per capita caiu 5,5%. “Foi de fato uma década perdida no Brasil”. Em 2021, infelizmente, o quadro econômico permanece nebuloso, porque o governo continua gerindo da pior forma a crise sanitária que tem produzido uma mortandade sem precedentes no país.
Adriana Fernandes: Bolsonaro foi o gatilho para movimento fura-teto na véspera da votação da PEC
Presidente deixou, mais uma vez, a equipe econômica isolada dentro do governo, ao pedir pela retirada do Bolsa Família do teto
O presidente Jair Bolsonaro foi um dos principais patrocinadores da proposta de exclusão do programa Bolsa Família do limite do teto de gastos na Proposta de Emenda Constitucional (PEC) do auxílio emergencial.
O chefe mandou. Essa foi a razão pela qual vários senadores governistas passaram a cravar entre terça-feira e ontem a aprovação da medida com a ajuda também de outros senadores, inclusive da oposição, que sempre foram contrários à regra que limita o crescimento das despesas à variação da inflação.
A coluna apurou que o presidente pressionou muito para que a proposta fosse incluída na PEC, enquanto a equipe do seu ministro da Economia, Paulo Guedes, e o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, se desdobravam na busca de apoio do mercado financeiro e de congressistas para enterrar a proposta.
A posição de Bolsonaro foi o gatilho que faltava para os senadores embarcarem nesse movimento fura-teto na véspera da votação da PEC.
A empolgação foi grande. Fontes relataram que as propostas para deixar o programa fora do teto variaram entre R$ 35 bilhões (o orçamento do programa previsto para 2021), R$ 60 bilhões até chegar em R$ 150 bilhões para 2021 e 2022.
A meta de déficit das contas do governo de R$ 247,1 bilhões para 2021 teria que subir no mínimo para R$ 282,1 bilhões. Como retratou o economista Caio Megale, da XP, o céu é o limite.
O movimento do presidente deixou mais uma vez a equipe econômica, incluindo também o BC, isolada dentro do governo. Por trás, a intenção política é abrir espaço no Orçamento para obras e os pedidos de ampliação de emendas.
O problema detectado de antemão é o que mostram números recentes obtidos pela reportagem do Estadão/Broadcast apontando um buraco de R$ 17 bilhões no limite do teto de gastos no Orçamento de 2021. Ou seja, seria preciso arrumar esse espaço no teto. Em relação à meta fiscal, as projeções apontam uma necessidade de arrumar R$ 20 bilhões.
O complicador é que o projeto de Orçamento foi enviado sem folga no teto, com as despesas batendo o limite previsto para este ano, de R$ 1,48 trilhão. Os parlamentares receberam esses números e viram a encrenca que será 2021 sem margem orçamentária para fazer quase nada.
O mercado entrou em polvorosa ao longo do dia com a Bolsa derretendo mais de 3% e o dólar perto de R$ 5,75 até que o presidente da Câmara, Arthur Lira, garantisse, pelo Twitter, que o teto seria respeitado, enquanto o ministro palaciano Luiz Eduardo Ramos, articulador político do governo, atribuía a articulação para tirar despesas do teto a uma mera especulação no mercado financeiro. Ninguém acreditou.
Em meio ao tumulto e desorganização, alguns senadores também começaram a ficar incomodados de ficarem expostos sozinhos no movimento fura-teto sem Bolsonaro botar as caras no carimbo da medida.
Diante da possibilidade de derrota no Senado, Guedes, que tem defendido com unhas e dentes a PEC com as medidas de controle de despesas, conhecidas como gatilhos, foi até o Tribunal de Contas da União se reunir com o ministro Bruno Dantas que alertara para o risco de a PEC desfigurar o teto de gastos e o texto constitucional com outras medidas aprovadas no afogadilho.
Dantas chegou a recomendar a edição de uma MP sem a necessidade da PEC para o pagamento do auxílio.
Ao insistir em acoplar o auxílio à aprovação de reformas que só terão efeitos entre 2024 e 2025, o ministro Paulo Guedes cometeu, na avaliação de muitos políticos experientes, um erro estratégico por conta da piora da pandemia, ampliando o seu desgaste depois da troca de comando da Petrobrás.
O episódio da Petrobrás não só enfraqueceu a posição de Guedes nas negociações da PEC como marcou um ponto de mudança de política do governo.
Bolsonaro tomou gosto de enfrentar o mercado. Só não colocou na conta até agora que, da véspera da demissão de Roberto Castello Branco até essa semana, o dólar já mudou de patamar: saltou de R$ 5,41 para um patamar em torno de R$ 5,70.
O irônico dessa crise é que o IBGE divulgou ontem uma queda do PIB de 4,1% em 2020, um dado positivo diante do estrago da pandemia no ano passado. Se não fosse a postura do presidente, muitos governadores e prefeitos, na condução da crise sanitária, a vacinação estaria a todo vapor e a economia em recuperação. O que vemos é mortes, colapso no sistema de saúde e desorganização na economia. Continuamos também sem auxílio e com milhões de pessoas esperando esse socorro que não chega.
Roberto Macedo: Prossegue a tragédia do PIB brasileiro
Quanto a políticas públicas em contrário, confesso meu pessimismo
O relatório do IBGE sobre o produto interno bruto (PIB) do quarto trimestre e do ano de 2020, divulgado ontem, é mais um amontoado de más notícias e outro retrato da tragédia por que passa o PIB brasileiro. Este caiu 4,1% em 2020, principalmente como resultado do impacto da covid-19.
Logo que a covid surgiu, houve previsões de queda próximas de 9% A política econômica governamental moveu-se em sentido contrário, como no auxílio emergencial e no crédito, mas uma queda de 4,1%, mesmo supondo que poderia ter sido pior, é por si mesma muito alta. E lamentável. Aliás, o relatório aponta que foi a pior taxa desde que a série dados foi iniciada em... 1996 (!). E mais: o PIB per capita, ou por habitante, caiu ainda mais, 4,8%, pois a população segue aumentando.
Em retrospecto, em 2020 as taxas trimestrais, relativamente ao trimestre imediatamente anterior, foram de -2,1% no primeiro, -9,2% no segundo, 7,7% no terceiro, e 3,2% no quarto. Esse movimento de descida e subida costuma ser chamado de recuperação em V, mas ele veio com sua haste direita sem voltar à mesma altura da haste esquerda. Assim, fazendo essa altura no último trimestre de 2019 igual a 100, em 2020 o PIB caiu para 89 no ponto mais baixo do V e alcançou 98,8% no alto de sua haste direita com as taxas positivas verificadas nos dois últimos trimestres do ano. Também se pode dizer que o PIB passou por uma recessão no primeiro semestre de 2020, que foi interrompida no segundo, mas sem voltar ao valor que tinha no final de 2019. Além disso, por conta desse V a média do PIB em 2020 ficou bem abaixo da média de 2019, o que levou a essa queda de 4,1%.
É importante colocar essa taxa no contexto mais amplo da tragédia do PIB brasileiro. Voltando à década passada, desde 2015 o PIB entrou num buraco do qual não saiu até hoje. No detalhe o relatório mostra isso, mas não há referência ao assunto na notícia do documento. Um dos gráficos do relatório apresenta um índice do PIB trimestral entre o primeiro trimestre de 1996 e o quarto de 2020, e percebe-se que o valor mais alto ficou lá atrás, no primeiro trimestre de... 2014! Ou seja, sete anos depois ainda não voltamos a ele. Em 2015 começa um movimento lembrando um U bem rebaixado e estendido, mas cuja haste direita não retornou ao mesmo nível marcado pela esquerda em sua ponta. Isso define uma depressão, algo mais longo do que as duas recessões ocorridas durante o mesmo movimento, a de 2015-2016 e a da covid-19.
Venho insistindo em apontar essa depressão ainda em curso, mas o noticiário, a classe política e mesmo vários economistas parecem ignorá-la, ou negligenciar a busca do seu enfrentamento. Aliás, influenciados pelo que se passa nos países desenvolvidos, muitos economistas brasileiros focados na economia como um todo concentram sua atenção na chamada macroeconomia, que foca principalmente em movimentos cíclicos ou de curto prazo. Questões de longo prazo são negligenciadas. Além da referida depressão, merece destaque o fato de que desde a década de 1980 a economia brasileira está em estagnação ou cresce abaixo do seu potencial, e muito pouco se fala disso.
Com dados do PIB desde 2014, incluídos os de 2020, estimei que ele precisaria crescer um total perto de 7% a partir de 2021 para voltar ao seu valor de 2014, o que tomaria cerca de três anos aumentando perto de 2,4% ao ano, e com muitas incertezas pelo caminho. Assim, para ao final voltar ao PIB de 2014, tomaria nove anos! Ou seja, quase uma década para voltar a um PIB que o Brasil já havia alcançado antes!
Passo agora a uma visão setorial do último ano. Um gráfico do relatório abrange 12 subsetores da economia, oito mostraram desempenho negativo em 2020, com destaque para o subsetor de outras atividades de serviços e o de transporte, comunicação e correio. O primeiro teve a maior queda, de 12,1%, e o segundo caiu 9,2%, resultados condizentes com o maior impacto da crise da covid-19 nesses subsetores. Entre os que cresceram, destacaram-se o de atividades financeiras, de seguros e serviços relacionados (4%) e o de atividades imobiliárias exceto construção (2,5%). Este último teve queda de 7,8%, a terceira entre as maiores.
Enfim, esse é um quadro trágico do péssimo estado da economia brasileira. Quanto a políticas públicas em sentido contrário, confesso meu pessimismo com o cenário à frente. 2021 pode até mostrar um crescimento do PIB próximo de 3%, mas principalmente pelo fato de que 2020 teve média muito baixa, bastando a economia não cair mais este ano para mostrar algo até acima dos 2,4% citados. Bolsonaro não se interessa pelo assunto e até mesmo atrapalha com suas propostas, como ao interferir em estatais, gerar incertezas e desencorajar investidores. E a covid-19 voltou até com mais força, e sem um forte retrocesso também agravará a situação da economia. Mas, nesse mau contexto, pessoalmente hoje me sinto melhor, pois vou sair para tomar a vacina com que sonhava.
*Economista (UFMG, USP E HARVARD), professor sênior da USP. É Consultor Econômico e de Ensino Superior
Vinicius Torres Freire: PIB foi até melhor do que se esperava, mas Bolsonaro estraga surpresa
Investimento produtivo caiu pouco; mortes de Covid e os dedos do presidente são ameaça para 2021
O resultado do ano seria um desastre histórico certo e óbvio, “recorde”, por causa da epidemia. Mas a economia andou um pouquinho melhor do que o esperado no final do ano horrível de 2020. Um tanto mais impressionante, o investimento caiu pouco –trata-se aqui da despesa em novas construções, casas, instalações produtivas, máquinas, equipamentos etc.
Caso a economia mantivesse o ritmo de produção do último trimestre de 2020 ao longo de todo este 2021, o crescimento seria algo em torno de 3,7% ao final deste ano. Seria uma estagnação, trimestre ante trimestre. Mas, como o trimestre final de 2020 foi muito melhor do que o restante do ano desastroso, na média 2021 seria melhor.
Vai manter o ritmo?
Difícil saber, mas o ano começou fraco: a economia sentiu o fim do auxílio emergencial, mais do que o previsto pelos economistas. A nova onda de morticínio da epidemia já fez estragos no primeiro trimestre e terá efeitos também pelo menos ainda em abril –o setor mais danado da economia em 2020 foi o de serviços, que não vai se recuperar enquanto o vírus estiver livre para matar, com ou sem restrições de movimento. A vacinação é tardia. Se houvesse governo, pois, seria possível crescer mais do que 3,7% e quase recuperar pelo menos o que se perdeu em 2020.
O resultado mais notável do PIB do ano passado, vamos repetir, foi a queda até pequena do investimento (0,8%). No pior momento da recessão de 2016, por exemplo, o investimento chegou a cair 16,3% no primeiro trimestre daquele ano (na taxa acumulada em quatro trimestres). Por falar no terror de 2016, o crescimento da economia acumulado em quatro trimestres foi tão ruim ou pior do que o do 2021 em três trimestres (chegando a diminuir 4,5%).
Os auxílios emergenciais, o aumento da oferta de crédito, nos bancos e em parte facilitado pelo Banco Central, e a “reabertura” da economia a partir de outubro evitaram desastre ainda maior. Outra contribuição importante veio do comércio exterior (valor das exportações menos importações), que contribuiu positivamente com 1,2 ponto percentual para o PIB. As exportações não tinham tamanha peso no PIB pelo menos desde ao ano 2000.
Quais os problemas para 2021? Aqueles sabidos por qualquer pessoa adulta e sensata: o governo de Jair Bolsonaro deixa passar a boiada assassina do vírus e a vacinação ainda é lerda. De efeito menos visível para o observador comum, há a gestão entre incompetente e estúpida da economia. Se deixarem estourar as contas do governo e Bolsonaro continuar a “meter o dedo”, fazer intervenções demagógicas e contraproducentes, dólar e taxas de juros subirão ainda mais.
O choque de preços de commodities (grãos, petróleo) e de alimentos em geral, multiplicado ainda pela alta do dólar, chutou a inflação para cima. O IPCA acumulado em 12 meses deve chegar perto de 7% em meados do ano. Pode ser um choque temporário. Logo, o Banco Central não precisaria reagir de modo muito agressivo, elevando os juros rapidamente, embora no atacado de dinheiro do mercado as taxas tenham explodido.
Mas o choque de preços pode não ser temporário. A intervenções estúpidas do governo e a má gestão geral da política econômica podem fazer com que o dólar permaneça nas alturas (ainda mais se continuar a tendência de fortalecimento da economia americana e de altas de juros por lá). Os juros subiriam. A inflação comeria ainda mais poder de compra.
O medo da epidemia e de que o governo cometa mais tolices causa insegurança e desconfiança de consumidores e empresas. Seria mais um freio no PIB. O nome do risco é Bolsonaro.
Renda média do brasileiro regride a 2009
A renda do brasileiro regrediu ao nível de 2009. Quer dizer, o PIB (Produto Interno Bruto) per capita de 2020 foi similar ao daquele ano da década passada. PIB per capita: o valor da produção ou da renda dividido pela população. Na verdade, a situação socioeconômica é pior: há mais desemprego e pobreza.
No ano passado, o PIB per capita diminuiu 4,8%. Baixas piores do que essa haviam ocorrido apenas em 1983 (recessão final da ditadura militar) e 1990 (recessão do Plano Collor).
Vai demorar para que a renda média volte pelo menos ao nível registrado no ano de 2014 (anterior ao do início da grande recessão, último ano do primeiro mandato de Dilma Rousseff).
Se o Brasil crescer 3,5% neste 2021 e 2,5% nos anos seguintes, o PIB (renda) per capita volta ao valor de 2014 apenas em 2026. Mais do que uma década perdida em termos de PIB, sem contar os desastres sociais e a degradação da capacidade produtiva (crescimento mínimo da infraestrutura, desqualificação dos trabalhadores, atraso tecnológico etc.)
Por que apenas 2,5% de crescimento ao ano, no futuro visível? Seria mais ou menos a capacidade atual de a economia brasileira crescer. Para ser mais, teria de haver aumentos de eficiência e/ou capacidade de investimento. É um chute informado, digamos. Pode ser que a capacidade básica ou média de crescimento tenha diminuído nestes anos.
Ribamar Oliveira: É facultativo, pero no mucho
Estado ou município que não fizer ajuste não terá aval da União
Muitos analistas e mesmo parlamentares reclamaram de um artigo da PEC 186, em votação no Senado ontem, que torna facultativo o acionamento de medidas de ajuste quando as despesas de um Estado ou de um município superarem 95% de suas receitas correntes. A conclusão de muitos é que, se o ajuste é facultativo, nenhum governador ou prefeito vai disparar os gatilhos das medidas, todas impopulares. O artigo pode se tornar, portanto, letra morta.
Há, no entanto, um detalhe que pode ter passado despercebido. A PEC estabelece que, se um Estado ou município estiver com suas despesas correntes superiores a 95% de suas receitas correntes, não poderá receber garantias da União ou de outro ente da federação ou fazer operação de crédito com a União ou outro ente da federação. Estão ressalvados somente os financiamentos destinados a projetos específicos, celebrados na forma de operações típicas das agências financeiras oficiais de fomento.
A proibição vai durar até que todas as medidas de ajuste elencadas na PEC 186 tenham sido adotadas, de acordo com declaração do respectivo Tribunal de Contas. As medidas abrangem proibição de concessão de aumento, reajuste, vantagem ou adequação de remuneração de servidor, criação de cargo ou função, realização de concurso público, alteração de estrutura de carreira, criação de despesa obrigatória e adoção de medida que implique reajuste de despesa obrigatória acima da variação da inflação.
O governador ou o prefeito que estiver gerindo um Estado ou um município em situação pré-falimentar poderá até não adotar medidas de ajuste, como, aliás, tem sido uma prática usual no Brasil. Mas, a partir da aprovação da PEC 186, ele não terá mais garantia da União para fazer operação de crédito. E não existe investimento público sem financiamento.
O comando que está sendo colocado na Constituição obriga, de forma indireta, o governador ou prefeito a ajustar suas contas, sob pena de nunca mais ter direito a aval da União ou de outro ente da federação para obter financiamento. E, sem o aval, eles não conseguem crédito no mercado ou, quando o fazem, é com taxa de juros proibitiva. Assim, acionar os gatilhos é facultativo, pero no mucho - para usar uma expressão dos hermanos argentinos e uruguaios.
O Tesouro Nacional utiliza a relação entre despesa corrente e receita corrente, entre outros indicadores, para calcular a capacidade de pagamento de Estados e municípios. De acordo com a análise da capacidade de pagamento (Capag) realizada pelo Tesouro em 2019, apenas 11 Estados possuiam nota A ou B, as quais permitem que o ente receba garantia da União para novos empréstimos.
O Boletim de Finanças dos Entes Subnacionais, relativo a 2019, mostra que em 12 Estados as despesas correntes superavam 95% das receitas correntes. Ou seja, estes são os candidatos a acionarem os gatilhos das medidas de ajuste fiscal, caso a PEC 186 seja aprovada. Os Estados de Minas Gerais, Mato Grosso do Sul, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul tinham, em 2019, despesas correntes superiores a 100% de suas receitas correntes, de acordo com o Tesouro. Isto significa que os governadores não tinham receita suficiente para quitar suas contas e estavam atrasando pagamentos.
Ao inscrever no texto da Constituição a proibição de que Estados em situação pré-falimentar recebam aval da União, a PEC 186 evita o que ocorreu em passado recente, quando a ex-presidente Dilma Rousseff autorizou empréstimos para Estados com Capag indicando nota C e D. Na época, o governo disse que a intenção era permitir que os Estados aumentassem os seus investimentos. O resultado dessa política, no entanto, foi uma ampliação das despesas com os servidores.
Como a proibição estará no texto constitucional, os Estados não terão condições de pressionar o presidente da República, por meio de senadores e deputados, para obter aval para empréstimos ou financiamentos de bancos públicos, como aconteceu no passado. Esta mudança não é pequena. E poderá ser decisiva como estímulo para que governadores e prefeitos de Estados e municípios em situação pré-falimentar façam o dever de casa, ou seja, ajustem as contas.
Há na PEC um limite prudencial para os Estados e os municípios. Toda vez que as despesas correntes ultrapassarem 85% das receitas correntes, o governador ou o prefeito poderá adotar medidas de ajuste. Mas, para isso, terá que submetê-las ao Legislativo. Os deputados estaduais ou os vereadores terão um prazo de 180 dias para se pronunciar sobre as medidas. Se elas forem rejeitadas ou não apreciadas no período, elas perderão eficácia, mas os atos praticados terão validade durante o período em que vigoraram. Algo parecido com o que ocorre, atualmente, com as medidas provisórias, editadas pelo presidente a República.
Numerosas sugestões
A PEC 186 veda a vinculação de todas as receitas públicas a órgão, fundo ou despesa pública. Mas abre numerosas exceções. Foram excluídas as taxas, contribuições, doações, empréstimos compulsórios, repartição de receitas com Estados e municípios, receitas vinculadas ao Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) e ao Regime Geral de Previdência Social (RGPS), prestação de garantias na contratação de operações de crédito por antecipação de receita e receita destinada por legislação específica ao pagamento de dívida pública.
A nota técnica 7/2021, da Consultoria de Orçamento da Câmara dos Deputados, explica que as taxas, contribuições e empréstimos compulsórios são vinculadas por sua natureza jurídica, assim como a repartição de receitas com entes federados. A nota, de autoria dos consultores José Cosentino Tavares, Eugênio Greggianin e Ricardo Volpe, estima que, após todas as exclusões, o governo vai poder liberar R$ 72,9 bilhões.
Esta desvinculação vai ser, certamente, de grande ajuda para o governo administrar a dívida pública neste ano. Os recursos desvinculados dos Fundos, que ficam no caixa único do Tesouro no Banco Central, poderão ser usados no pagamento da dívida pública.
Maria Cristina Fernandes: Calamidade Pública S.A.
Bolsonaro faz escola com propostas que se desviam da covid
A publicidade da nova transação imobiliária do senador Flávio Bolsonaro não estava no roteiro com o qual o presidente Jair Bolsonaro se preparava para enfrentar o momento mais dramático da pandemia.
A ideia era não mexer em time que está ganhando, o do presidente, claro, capaz de manter inertes as instituições contra seu desgoverno na pandemia. E repetir a estratégia do ano passado, no recrudescimento da covid-19, quando jogou o verbo e a Polícia Federal pra cima dos governadores.
Desta vez, parecia óbvio que a nova travessura do primogênito dificultaria sua tentativa de demonstrar que o desespero dos governadores vem do desvio de recursos. A nova morada do senador, no entanto, não foi capaz de baixar o tom do presidente. É assim que ele desvia do assunto. Puxando uma briga ruidosa com os governadores.
Encontrou em João Doria o parceiro ideal para a encenação. Sem espaço no seu próprio partido, o governador de São Paulo investe na polarização com o presidente, mimetizando-o. Endurece o isolamento para cativar os insatisfeitos com o bolsonarismo, mas excetua os cultos religiosos para cativar a mesma plateia do presidente.
A entrada dos presidentes da Câmara e do Senado na mediação com os governadores é útil para Bolsonaro porque canaliza parte das insatisfações. Na carona da mediação, amaciou-se a resistência à fila dupla na vacinação. No mesmo projeto do senador Rodrigo Pacheco (DEM-MG) com o qual foi reapresentada a prerrogativa de Estados e municípios de comprar vacina, abriga-se a aquisição pelo setor privado depois de esgotada a vacinação de grupos prioritários.
A mediação com os governadores também amplia os aliados com os quais o presidente da Câmara espera contar para forçar o teto de gastos para além do auxílio emergencial.
Bolsonaro faz escola. Se baixa decreto para ampliar a posse de armas, Lira cria grupo de trabalho para mudar a legislação eleitoral. Ambos têm em comum a capacidade de se valer de um país em choque pelas quase 2 mil mortes diárias para propor temas que nada têm a ver com a urgência do país.
As iniciativas de Lira obedecem a três grandes eixos: aumentar o controle parlamentar sobre o Orçamento, reduzir a competitividade eleitoral e mitigar o controle sobre a atividade parlamentar.
A investida tem método. A começar pelo próprio projeto pessoal de Lira. O deputado renovou seu mandato graças a liminar que o blindou da Lei da Ficha Limpa. Reeleito, trabalhou na adesão do seu bloco a Bolsonaro com o mesmo afinco dedicado ao desmonte do entulho lajavatista.
Avançou uma casa ao conseguir que Augusto Aras desfizesse a denúncia que o próprio procurador-geral da República havia feito. E andou mais duas com o arquivamento de uma das denúncias no STF. Mas a luta continua.
Ainda lhe resta mudar a Lei da Ficha Limpa e a da Improbidade. Para isso, ganham celeridade no Congresso tanto o grupo de trabalho que revisará a legislação eleitoral, comandado pelo PP, quanto o projeto de lei que suaviza a lei da improbidade administrativa, relatado pelo PT.
Uma das opções do deputado em 2022 é a disputa pelo governo de Alagoas. Para isso, precisa limpar seu nome. Se largar o mandato para disputar uma eleição majoritária, o foro dos crimes pelos quais hoje responde como deputado desce para a primeira instância em Brasília, onde subsistem juízes como Vallisney Oliveira.
A sorte de Lira é que ele não está só. Uma das missões do PL, por exemplo, aliado de primeira hora de Lira e partido do indefectível ex-deputado Valdemar Costa Neto, é recuperar a elegibilidade do ex-governador do Distrito Federal, José Roberto Arruda, condenado em duas instâncias por esquema de distribuição de propinas, e marido da nova presidente da Comissão Mista de Orçamento, Flávia Arruda (PL-DF).
O fracasso na PEC da Impunidade não desanimou Lira. Tem à mão uma pauta ecumênica, capaz de ampliar seu apoio na Casa. Basta ver o que está em curso com as tentativas de jogar o maior número de despesas possíveis para fora do teto de gastos. Ao tirá-las do teto, sobraria espaço para aumentar os valores das emendas com as quais os parlamentares esperam se reconduzir em 2022.
Se não for bem sucedido no aumento das dotações para emendas, Lira tem uma carta na manga para aumentar a execução daquelas que o Congresso conseguir aprovar. O presidente da Câmara investe no fim da intermediação das emendas pela Caixa Econômica Federal. É uma das demandas mais ecumênicas da Casa.
Até 2019, todas as emendas tinham a intermediação da CEF. No fim daquele ano, foi aprovada uma emenda constitucional que nasceu pelas mãos da então senadora Gleisi Hoffmann (PT-PR) em 2015 e foi relatada pelo deputado Aécio Neves (PSDB-MG) na Câmara.
Por esta mudança constitucional, o parlamentar pode optar por mandar os recursos de suas emendas individuais pela Caixa ou diretamente para os municípios. Mas os parlamentares querem mais. Pretendem estender a possibilidade de mandar diretamente para a prefeitura também para as emendas de bancada e de comissão.
A Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2021 foi aprovada com este dispositivo. O presidente o vetou e agora o Congresso se prepara para derrubá-lo. Os parlamentares alegam que a burocracia da CEF é gigantesca e retarda a liberação.
Como se trata do primeiro Orçamento pós-eleições municipais de 2020, os parlamentares estreitaram laços com prefeitos que ajudaram a eleger e que, agora, se arregimentarão para a renovação dos mandatos dos deputados e senadores em 2022. Por isso, quanto menos travas, melhor.
Nos cálculos da própria Associação dos Engenheiros e Arquitetos da CEF, leva seis anos entre a aprovação de uma emenda e total liberação pelo banco, o que ultrapassa o mandato parlamentar.
Quando o dinheiro vai diretamente para o município fica mais difícil mapear o destino da verba que hoje deixa rastros nas plataformas do Ministério da Economia ou do Senado. No lugar da tríade de instituições que fiscaliza a aplicação dos recursos (Tribunal de Contas da União, Ministério Público Federal e Controladoria-Geral da União) entrariam combalidos tribunais estaduais de contas.
É esse o pulo do gato da execução das emendas ao Orçamento em 2021, ano que será atravessado de cabo a rabo pela pandemia. É a sociedade anônima da calamidade pública que dá as cartas.
Bruno Boghossian: Versão original de Bolsonaro ficou mais perigosa na pandemia
Presidente continuará a fazer estragos enquanto estiver ali
No dia em que o Brasil registrou 1.840 mortes em 24 horas, o presidente da República começou a manhã com seu esporte favorito: dar de ombros para a pandemia. “Criaram pânico, né? O problema está aí, lamentamos. Mas você não pode viver em pânico”, disse a apoiadores, no Palácio da Alvorada.
O discurso é o mesmo do início da crise do coronavírus. Em março do ano passado, em seu primeiro pronunciamento na TV para falar da doença, Jair Bolsonaro disse que não havia “motivo para pânico”. Nas semanas seguintes, vieram a “gripezinha”, o “e daí?” e o “não sou coveiro”.
O Brasil descobriu cedo o tamanho do estrago que um presidente poderia fazer numa pandemia mortal. Desde o início, Bolsonaro incentivou aglomerações, fez campanhas de desobediência a medidas de proteção, divulgou informações falsas sobre a Covid-19, distribuiu remédios ineficazes contra a doença e atrapalhou a aquisição de vacinas.
Nada mudou no curso da tragédia. O vírus se espalhou, e o país conheceu uma nova onda de colapso dos sistemas de saúde, mas o presidente continuou o mesmo. A diferença é que a atitude desumana e a incompetência absoluta dos integrantes do governo tornaram o avanço da doença cada vez mais dramático.
O atraso na imunização e a constante sabotagem às medidas de restrição implantadas nos estados sufocaram as redes hospitalares e deixaram o ambiente livre para o surgimento de variantes que podem ser ainda mais perigosas do que a versão original do vírus.
Também ficou mais perigosa a versão primitiva de Bolsonaro, que insiste em propagar mentiras para desencorajar o uso de máscaras e investe contra governadores que tentam amenizar o desastre.
Ninguém deveria esperar outro comportamento do presidente. Por 12 meses, autoridades aceitaram suas delinquências e se limitaram a corrigir seus erros ou obrigar o governo a cumprir suas funções. Foi pouco. Enquanto estiver ali, Bolsonaro continuará a fazer estragos.
Mariliz Pereira Jorge: Impeachment ou morte
Bolsonaro segue seu roteiro de morte sem ser perturbado.
Bolsonaro segue seu roteiro de morte sem ser perturbado. Na terça (2), ofereceu um almoço no Palácio do Planalto a autoridades. Talvez para celebrar o recorde de óbitos em um dia pela Covid-19. "Estava alegre e descontraído", contou o deputado Fabio Ramalho (MDB-MG). Tirou foto do convescote. Só faltou soltar um "foda-se a vida", como já fez uma blogueira, e postar nas redes sociais.
O prato principal foi leitão, embora saibamos que o que Bolsonaro têm servido numa bandeja diariamente é o pescoço do brasileiro. Nesta quarta, o presidente voltou a debochar da catástrofe que vivemos. Disse a apoiadores que a imprensa o considera "o vírus", que os veículos de comunicação criaram "pânico".
O "pânico", eu digo a Bolsonaro, é este: vacinamos menos de 4% das pessoas, as filas nas UTIs, desastre no PIB, intervenção nas estatais, brasileiros mais pobres, ministros fantoches, 260 mil mortes, um país sequestrado por um delinquente.
O Brasil definha a cada dia que Bolsonaro permanece como líder. Uma bússola quebrada que nos jogou num precipício no qual não paramos de despencar. Parlamentares batem na tecla de que não há clima para o afastamento do presidente. Quantas vidas serão perdidas até que o Congresso sinta o cheiro de mortandade que assola o país?
Mudam os presidentes da Câmara e do Senado, renovam-se as notas de repúdio. Para o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), a conduta nefasta de Bolsonaro são "exageros retóricos", "comportamentos pessoais condenáveis". Para Arthur Lira, que comanda a Câmara, nem isso. Está mais preocupado em garantir imunidade para a classe.
Ou as instituições afastam Jair Bolsonaro da Presidência ou condenarão um país inteiro à morte: uma parte do país pela devastação que a Covid-19 deixará, mas uma parte ainda maior que herdará terra arrasada pela incompetência e arrogância de Jair Messias Bolsonaro.