Bolsonaro

César Felício: O grande eleitor e o fator de ruptura

Bolsonaro tem a sorte de poder contar com a oposição

A pandemia e a dificuldade do presidente Jair Bolsonaro em lidar com ela superaram as expectativas mais negativas do mais delirante pessimista. Tudo que pôde dar errado deu, desde escolhas equivocadas na definição das vacinas a serem usadas até o surgimento no país de uma variante especialmente maligna, pouco antes do início da imunização.

O próprio presidente também foi muito além do que se podia imaginar para quem esperava dele um papel de liderança. No dia em que a Nação começava uma escalada rumo ao abismo, à vertigem de mais de um morto por minuto, essa foi a palavra do chefe de Estado: “Nós temos que enfrentar os nossos problemas. Chega de frescura, de mimimi. Vão ficar chorando até quando?”.

Na sequência, quem começou o mimimi foi ele: “Fui eleito para comandar o Brasil, espero que este poder me seja restabelecido. eu sou um democrata, criticam decisões que tomam contra mim e eu não reajo”, argumentou.

Soma-se a esse desastre verbal a circunstância econômica. O auxílio emergencial virá, menor do que o do ano passado. Compensações para a redução de jornada e salário serão feitas, também, mas inferiores O espaço fiscal para crédito a empresas em dificuldades tende a ser mais reduzido. Estas três variáveis significam que a economia ficará muito mais exposta à devastação da pandemia neste primeiro semestre do que ficou em 2020.

Tudo isso desgasta o presidente, cuja popularidade encolhe na pobreza sem auxílio e cuja rejeição cresce nos segmentos urbanos desesperados com a lentidão da vacinação. O normal, nessas circunstâncias, seria considerar as perspectivas políticas de Bolsonaro sombrias. Foi um combo parecido com esse que terminou por derrotar Donald Trump. Mas aqui não é assim.

Nada, por agora, retira a dianteira de Jair Bolsonaro nas eleições presidenciais de 2022, mas antes a condiciona. O presidente torna-se mais dependente de variáveis que não controla.

“O Bolsonaro presidente não tem muito o que entregar para o Bolsonaro candidato”, comentou Antonio Lavareda, presidente do conselho científico do Ipespe, experiente em pesquisas de opinião. O grande eleitor de Bolsonaro, mais decisivo do que o eleitor evangélico e conservador, é a oposição, mais precisamente o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O antipetismo ainda é mais relevante que o antibolsonarismo. Se Lula estiver no segundo turno contra Bolsonaro, a eleição presidencial parece resolvida a favor do presidente.

“Percebemos nas simulações que fazemos que, quando Lula é colocado na lista de candidatos, Bolsonaro cresce. Lula tem rejeição absolutamente cristalizada e acirra a polarização”, diz Lavareda.

O ex-presidente por ora está inelegível, dado que tem condenação por órgão colegiado, o que o enquadra na Ficha Limpa. A reversão desta restrição pelo Judiciário, contudo, está longe de ser improvável. A candidatura de Lula, mesmo fadada à derrota, é atraente para o PT. O partido talvez se preocupe mais em manter sua gorda fatia do fundo partidário e uma bancada expressiva no Legislativo do que tirar Bolsonaro do poder.

Se em vez de Lula o candidato petista for Fernando Haddad, o panorama fica um pouco menos risonho para a reeleição de Bolsonaro. “A personalidade política de Haddad está menos sedimentada para o eleitor. Embora ele tenha disputado em 2018, não ficou em evidência ao longo dos últimos anos e o eleitorado vai se modificando”, diz Márcia Cavallari, da Inteligência em Pesquisa e Consultoria (Ipec), a empresa para onde migrou boa parte do corpo técnico do antigo Ibope.

As opções contra a polarização patinam. O governador de São Paulo, João Doria (PSDB), antagoniza Bolsonaro com todas as pontes com o eleitor de esquerda rompidas, depois das campanhas de 2016 e 2018. Também briga dentro do seu próprio partido. “Ele não tem a direita, não tem a esquerda e não tem o centro”, comenta Lavareda. O ex-governador cearense Ciro Gomes (PDT) faz muito sucesso nas redes sociais, mas não sai do lugar. Essencialmente dialoga com um público fiel.

Para barrar o Fla X Flu entre Bolsonaro e PT, o mais factível seria o surgimento de uma novidade desestruturante, um fator de ruptura. Para Maurício Moura, do Instituto Ideia Big Data, que está permanentemente testando cenários para a eleição de 2022, a empresária Luiza Trajano tem potencial para exercer este papel. “Ela dá um passo além de ser uma simples novidade. É uma empresária, conhecida por ter lojas no Brasil inteiro com seu nome, que dificilmente se enquadra em um cenário de polarização”, comenta.

Em relação ao fator potencialmente disruptivo mais comentado, que seria uma candidatura do apresentador Luciano Huck, ela teria a vantagem de poder navegar em faixas do eleitorado nas quais ele tem dificuldades. Huck vai bem no eleitorado feminino, mais pobre, menos instruído, mais jovem, do Nordeste. É um eleitor semelhante à sua audiência. Luiza transita nesta faixa por inteiro, mas é capaz de entrar em um segmento de renda mais alta no Sudeste que não assiste o Caldeirão.

O ponto fraco de Luiza Trajano, caso ela se anime a se apresentar, é o fato de talvez chegar tarde demais. Tanto Lavareda, quanto Moura e Márcia Cavallari veem um cenário em 2022 adverso a entrantes de última hora.

“A atividade política hoje ganhou uma dinâmica inversa à que vínhamos tendo. Antes podia ser estratégico um candidato novo mas relativamente conhecido ter a menor campanha possível. Hoje a campanha precisa ser longa, para que dê tempo inclusive de se reagir a toda maré de informações negativas que podem surgir”, disse Moura.

“Não basta ser simpática e ter empatia, como Luiza Trajano tem. É necessário também ser vista como presidenciável. Huck faz este esforço há cinco anos e ainda não terminou este processo de construção”, comentou Lavareda.

Sem fato novo que surja a galope e com a improvável sociedade estabelecida com o PT, Bolsonaro parece livre para fazer qualquer bobagem e ainda assim ser reeleito. Da parte que cabe a si, e não à ajuda involuntária dos adversários, precisa ter atenção a dois limites: sua popularidade não pode baixar o patamar de 20% de aprovação e o mercado precisa seguir vendo-o como o mal menor. Do contrário até a conclusão do mandato está em risco.


Ruth de Aquino: Sem lockdown nacional, teremos 3 mil mortos por dia

Quem diz isso é o médico, neurocientista e professor catedrático Miguel Nicolelis. Sem 21 dias de lockdown nacional, o Brasil entrará numa “guerra explícita”, “um prejuízo épico, incalculável, bíblico”. E será já neste março. A pneumologista Margareth Dalcolmo receia que o mês seja lembrado como “o mais triste de nossas vidas”. A saída é lockdown ao estilo europeu: “Duas semanas ao menos. Zero circulação. Sem shopping, sem restaurante, sem BRT. A não ser serviços essenciais. Para reduzir a transmissão e desafogar hospitais, enquanto se produzem mais vacinas”.

Parece radical. Mas o Brasil é um dos poucos que jamais recorreram ao lockdown. Só jeitinho, embromação, apelo à consciência cívica. Países civilizados sabiam que não bastava pedir empatia a uma população instruída. Fecharam. A única forma de salvar milhares de vidas era o lockdown temporário, com auxílio emergencial aos mais pobres para ficar em casa. Toque de recolher, agora, é uma medida cosmética, porque o vírus circula muito mais durante o dia. O BRT lotado é um viveiro de Covid. 

No desespero, enfermos são transferidos para outras cidades em busca de ar. Jovens caem doentes. As novas variantes do vírus são mais contagiosas e mais letais. Os anticorpos de alguém que já teve Covid são nove vezes menos eficientes para combater a nova variante amazônica. Governadores choram diante dos frigoríficos da morte. Não adianta ter mais leitos apenas. Não tem mais médico nem enfermeiro. 

Em julho, Nicolelis previu 200 mil mortos até o fim do ano, se não fizéssemos testagem e isolamento social. Alarmista? Atingimos essa marca na primeira semana de 2021. Nicolelis deixa muito claras as opções para o Brasil. Lockdown. Lockdown. Lockdown. E, claro, vacinação em massa. No ritmo atual, ditado pela incompetência política, diplomática e logística do governo, só em dois anos e meio todos os adultos estariam imunizados. 

Em fevereiro, capitais como o Rio pararam de vacinar. Por falta de imunizante. Foram sete meses de conversa de Pazuello com a Pfizer. Agora, o ministro se confunde com datas e até de estado. A história das negociações de vacinas no governo Bolsonaro será enquadrada um dia como crime de guerra. Fomos vítimas de barganhas de preço, atritos diplomáticos e burocracias.

Nicolelis disse à edição brasileira do El País: “John Barry, o maior historiador norte-americano de pandemias, escreveu que, mesmo com a ciência moderna, o que decide o destino de uma sociedade na pandemia é a decisão política, a opção política dos líderes de defender a população. Por isso você é eleito, para liderar mesmo nos momentos em que a coisa correta a ser feita é impopular”.

Temos um simulacro de presidente que despreza máscaras e vacinas. Derrama palavrões, cloroquina e armas. Um líder covarde que culpa governadores, prefeitos e a mídia. “Criaram pânico, né? O problema está aí, lamentamos”. Diante dos atuais 260 mil mortos, mais uma ofensa hoje às famílias que perderam : “Chega de frescura, de mimimi. Vão ficar chorando até quando?” Até que o senhor seja deposto.

O Congresso, cúmplice, festejava sem máscara há dias e agora encena um minuto de silêncio. O Supremo age por espasmos. E por isso a população jamais entendeu a gravidade da pandemia. Só os cientistas alertam, mas são persona non grata no governo. O alerta da Fiocruz esta semana é dramático. Não há mais tempo.

Mas o Brasil tem estrutura para imunizar 1 milhão de pessoas por dia. Usando drive-thrus, escolas, ginásios, postos. Apelando para as Forças Armadas. Vejo jovens militares de farda camuflada vacinando civis nos Estados Unidos. Entendem de guerra. Essa é uma guerra biológica. Não sejam, aqui, soldados de Bolsonaro nessa matança. 

Engajem-se na vacinação. Se o mundo nos ajudar mandando vacinas, poderemos imunizar 2 milhões por dia. A palavra de 2021 é “colapso”. Colapso da vida e de uma nação. Se Bolsonaro temia um Brasil vermelho, agora o mapa está ficando roxo. Roxo de vergonha e luto. 


Bernardo Mello Franco: Chega de mimimi

Nem a morte de 261 mil brasileiros é capaz de extrair alguma humanidade de Jair Bolsonaro. No pior momento da pandemia, o capitão voltou a ostentar desprezo pelo sofrimento alheio. “Chega de frescura e de mimimi. Vão ficar chorando até quando?”, debochou ontem, em Goiás.

As duas frases sintetizam a visão do presidente sobre a tragédia. Nas palavras dele, os esforços para conter a doença não passam de “frescura”. Quem usa máscara tem “medinho do vírus”. Quem respeita as regras de distanciamento é “frouxo” e “covarde”.

Obcecado por afirmar sua masculinidade, o capitão diz que é preciso enfrentar o vírus “como homem, não como moleque”. “Tem que deixar de ser um país de maricas!”, esbravejou, em outro comício contra o isolamento social.

Com o termo “mimimi”, o presidente tenta desmerecer as críticas a seu comportamento irresponsável. A gíria foi adotada pela militância bolsonarista para ironizar minorias e grupos oprimidos. Quem protesta contra o racismo é “vitimista”. Quem contesta a homofobia é “mimizento”.

Por essa lógica, também é “mimimi” reclamar de um governo que ignora a ciência, deixa pacientes sem oxigênio e sabota a negociação de vacinas. Ontem o capitão chamou de “idiota” quem reivindica a compra de imunizantes para todos. “Só se for na casa da tua mãe!”, acrescentou.

A pergunta “Vão ficar chorando até quando?” expõe Bolsonaro em estado puro: um político que despreza a vida e celebra a morte.

Em 28 anos no Congresso, ele se notabilizou por exaltar torturadores e dizer que a ditadura “matou pouco”. Quando a Justiça ordenou buscas por ossadas de desaparecidos no Araguaia, enfeitou o gabinete com um adesivo que dizia “Quem procura osso é cachorro”. Agora, ele achincalha os parentes das vítimas da Covid-19.

Bolsonaro não vai mudar. Enquanto permanecer no cargo, continuará a atentar contra a saúde pública e a desrespeitar as famílias enlutadas.

Hoje completa um mês o pedido de impeachment apresentado por médicos como Gonzalo Vecina e José Gomes Temporão. O documento lista dezenas de crimes de responsabilidade cometidos pelo presidente na pandemia. Pressionar a Câmara a aceitá-lo é uma forma de transformar a indignação em ação. 


O Estado de S. Paulo: Definição de grade de programação da Globo pode acelerar decisão de Huck sobre 2022

Apresentador se equilibra entre o calendário de longo prazo estabelecido pelo TSE e uma possível definição na esfera profissional, em meados deste ano

Pedro Venceslau, O Estado de S.Paulo

Em seu cálculo para uma possível candidatura à Presidência da República em 2022, o apresentador e empresário Luciano Huck se equilibra entre o calendário de longo prazo estabelecido pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e outro mais curto envolvendo uma decisão na esfera profissional. O apresentador da TV Globo tem dividido sua agenda entre a produção do Caldeirão do Huck, principal atração dos sábados da emissora, 'lives' na internet para debater o cenário nacional, encontros com líderes políticos e empresariais e artigos para a imprensa. 

Diante desta atuação em múltiplas frentes, dirigentes partidários e operadores do mercado publicitário aguardam sinais mais claros sobre as intenções do apresentador. Este sinal pode vir até junho deste ano, quando a TV Globo deve definir sua futura grade de programação. O prazo é o mesmo projetado por políticos que mantêm interlocução com Huck para que o apresentador comece a marcar posição no tabuleiro eleitoral. 

Com o anúncio do fim do Domingão do Faustão – em dezembro deste ano, quando vencer o contrato do apresentador Fausto Silva -, a indefinição sobre o futuro dos domingos na grade Globo é hoje o principal foco de debate entre os profissionais de mídia das agências, que são os responsáveis por definir a distribuição das verbas dos anunciantes. Huck é considerado um sucessor natural de Fausto Silva nas tardes de domingo. Publicitários ouvidos em caráter reservado pelo Estadão dizem que as pretensões´políticas de Huck estão causando um "rebuliço no mercado" porque a Globo tem poucas "pautas inéditas" para apresentar na grade de 2022 devido à pandemia. 

O principal patrocinador do programa Caldeirão do Huck é a rede Magazine Luiza, da empresária Luiza Trajano, que também vem sendo assediada por partidos para entrar na disputa presidencial em 2022. O patrocínio, porém, vale até junho deste ano. Se renovar o contrato, ele valerá até junho de 2022. Isso significa que, caso se filie a um partido em abril, no prazo estabelecido pelo TSE, Huck entraria na política no meio da vigência de um dos principais contratos da Globo e teria que deixar o comando do programa. 

Procurada, a assessoria de imprensa da Globo não se manifestou. Segundo fontes do mercado publicitário, as tabelas de preços de patrocínios e comerciais costumam mudar a partir de abril e os anunciantes encaram 2022 como uma grande incógnita.

Precoce

Na cena política, a leitura é que o processo eleitoral de 2022 foi antecipado pelo presidente Jair Bolsonaro, pelo PT, que colocou o "bloco na rua" com Fernando Haddad, por João Doria (PSDB) e Ciro Gomes (PDT) – que se movimenta para construir uma frente de centro esquerda alternativa ao PT com Rede, PSB e PV. "Está havendo uma aceleração do processo eleitoral. Ele (Huck) deve se decidir até o meio do ano e a grade da Globo é a antessala dessa decisão", disse o ex-deputado Roberto Freire, presidente do Cidadania, um dos partidos que cortejam o apresentador. 

O presidente do PSB, Carlos Siqueira, evita falar em nomes, mas afirma que o partido também busca um "outsider" para disputar o Palácio do Planalto ano que vem. "Estamos com o radar ligado na busca por um nome que unifique as forças sociais", afirmou. Sobre o processo de escolha do nome, o dirigente afirmou que o "ideal" é que ocorra até meados de 2021.  

No cálculo para uma eventual candidatura ao Palácio do Planalto são levadas em conta por aliados de Huck fusões de legendas e um arranjo que sustente a proposta de um centro liberal e democrático, capaz de se contrapor à polarização entre bolsonaristas e petistas. Desde o ano passado, ao menos quatro partidos já sondaram o global. 

Com o DEM fragmentado e mais governista, uma opção que passou a ser avaliada com atenção extra por aliados do apresentador é o PSB. As conversas ocorrem desde o ano passado e têm sido estimuladas pelo prefeito do Recife, João Campos (PSB), e por sua namorada, a deputada federal Tabata Amaral (SP), que está rompida com seu partido, o PDT. Tabata tem relação próxima com Huck e foi a ponte entre ele e Campos. Os dois jovens políticos integram o RenovaBR, grupo de renovação e formação política que tem o apoio do apresentador. 

Huck tem subido vem subindo o tom contra o governo Boslonaro em suas falas. Na segunda-feira, 1, ele disse que é preciso tirar "um entulho do meio da sala", ao se referir à atuação do governo federal diante da pandemia do novo coronavírus. Na fala, o potencial candidato à Presidência em 2022 não citou o nome do atual ocupante do Planalto. 

Em outro evento promovido na quinta-feira, 04, pelo RenovaBr,  Huck criticou "o não diálogo" no Brasil ao formular uma pergunta ao governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, que é apontado como potencial candidato do PSDB ao Palácio do Planalto. "A sensação que eu tenho, Eduardo, é que falta o adulto na sala, sabe? E você a meu ver tem sido uma voz ouvida no cenário nacional hoje em dia, uma voz ponderada, uma voz defendendo a sensatez no trato da gestão pública. E acho que esse é o melhor caminho."

Procurada, a assessoria do apresentador não respondeu. 

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Rogério Werneck: Populismo explícito

Já entravada por um risco fiscal proibitivamente alto, equipe econômica terá de lidar com o risco de uma guinada populista inequívoca

Não é de hoje que o País anda sobressaltado com a possibilidade de Bolsonaro rasgar a fantasia e abandonar de vez seu suposto compromisso com uma agenda de política econômica liberal. 

Em janeiro, houve a tentativa de demissão do presidente do Banco do Brasil, por ter anunciado redução no quadro de funcionários da instituição. A escalada mais recente, da demissão do presidente da Petrobrás, por insensibilidade pelos interesses dos caminhoneiros, configurou episódio bem mais grave. 

Como interpretar a súbita disposição de Bolsonaro de se mostrar tão mais truculento no problemático cabo de guerra que, há tempos, vem travando com Paulo Guedes e sua equipe? Em que medida tudo isso levanta incerteza sobre a condução da política econômica no País?

Não há como se agarrar ao autoengano. O episódio deixa mais do que clara a extensão do esgarçamento na complexa relação de Bolsonaro com seu ministro. É inegável que houve constrangedora perda de face de Paulo Guedes e sério comprometimento de sua credibilidade. E, sobretudo, de sua capacidade de articulação, tanto dentro do governo como com o Congresso.

A demissão caiu como uma ducha de água fria no ambiente de negócios no País. Trouxe desestímulo a investimentos relacionados a privatizações e concessões, em que Guedes vinha fazendo muita fé. Um clima de desalento que se fará sentir tanto no timing como no vigor da tão aguardada retomada da economia. Já entravada por um risco fiscal proibitivamente alto, a economia terá de lidar agora com o risco cada vez mais palpável de uma guinada populista inequívoca.

O que terá feito Bolsonaro, de repente, partir para tamanha truculência, botando em risco sua relação com Guedes? Em se tratando de quem é, não se pode descartar, claro, a possibilidade de que tenha sido só mais uma decisão desajuizada da qual o presidente já esteja arrependido, mas, como sempre, incapaz de recuar.

Na verdade, o movimento parece ter tido motivação mais fundamentada. Por difícil que seja tentar racionalizar o comportamento de Jair Bolsonaro, vale a pena especular sobre o que o terá movido. A resposta mais óbvia tem a ver com sua crescente apreensão com a provável evolução de sua popularidade nos 19 meses de travessia que ainda tem pela frente, até a eleição presidencial de outubro de 2022.

Na esteira do recrudescimento da pandemia, do surgimento de novas cepas do vírus e da ineficácia das ações do governo na Saúde, o País parece fadado a continuar enredado no combate à covid-19 por muitos meses mais. O que deverá retardar a recuperação da economia para o segundo semestre, na melhor das hipóteses.

Sobram sinais de crescente indignação da população com o deplorável avanço da vacinação. Impactado pelas cenas macabras de Manaus, Bolsonaro, afinal, se deu conta de como o agravamento da pandemia, antes da vacinação, poderá lhe ser desastroso.

Ao continuar se gabando em público de jamais se ter equivocado quanto à pandemia – “não errei nenhuma” –, o presidente parece, de fato, alucinado. Mas a verdade é que Bolsonaro não cospe para cima nem rasga dinheiro. É perfeitamente capaz de perceber as reais proporções das barbaridades que se permitiu cometer diante do avanço da pandemia e teme, a cada dia, quão oneroso tudo isso ainda lhe poderá ser. Não sabe por quanto tempo poderá continuar a confiar no Centrão para se esquivar da conta que acabará lhe sendo apresentada.

Além dessa espada sobre sua cabeça, o que o presidente agora entrevê são muitos meses mais de pandemia e uma recuperação cada vez mais tardia e menos convincente da economia, fadada a deixar a taxa de desemprego ainda assustadoramente alta no seu último ano de mandato. 

Não chega a ser surpreendente que, alarmado com essa perspectiva, Bolsonaro tenha decidido, afinal, “entrar (para valer) na política econômica”. Já não esconde de ninguém que quer conduzir a seu modo sua difícil travessia até as eleições. “Se tiver de errar, quero pagar pelos meus erros.”

O que mais estará disposto a fazer, se sua queda de popularidade persistir?

*Economista, doutor pela Universidade Harvard, é professor titular do departamento de economia da PUC-RIO


Vinicius Torres Freire: Entenda a recaída do Brasil e por que os EUA afetam dólar e juros por aqui

Bolsonaro e seu desgoverno são o ruído de fundo do desastre, mas convém olhar para os EUA e na reação dos donos do dinheiro à inflação no Brasil

Em um país distante do Norte da Terra, que baniu o Ogro Laranja e vai distribuir poções medicinais para seu povo inteiro até maio, há um negócio em que os mercadores de dinheiro do mundo prestam a maior atenção. É a taxa de juros dos títulos de 10 anos do governo dos Estados Unidos.

Grosso modo, é o custo de o governo americano tomar empréstimos por dez anos. Define o custo do crédito para outros negócios, desde comprar casa no Texas a emprestar para o governo do Brasil. Pelo menos desde 25 de fevereiro, a alta dos juros de longo prazo americanos tumultua a finança mundial, em particular nos países “emergentes”.

O Brasil, um país submergente nas profundas dos infernos, padece em especial do remelexo americano. A gente precisa prestar atenção nisso. “Estruturalmente, a questão americana é a mais relevante, é central”, como diz em termos sóbrios Armando Castelar, pesquisador do IBRE/FGV, professor de economia da UFRJ.

A alta da taxa de juros nos EUA é motivo da alta do dólar pelo mundo. A economia americana se recupera com rapidez. Vai receber US$ 1,9 trilhão de impulso de gasto do governo (35% mais que o PIB brasileiro anual). Conta ainda com o estímulo do Banco Central deles, o Fed, que continua comprando mais de US$ 100 bilhões por mês em títulos públicos e privados. Para resumir uma conversa enrolada, na prática isso significa que o Fed reduz as taxas de juros pagas por governo, empresas e mesmo indivíduos: o Fed subsidia, banca, parte da conta dos juros. Até maio, a população americana deve estar vacinada. Parte da dinheirama do mundo corre, pois, para os EUA.

Considerada ainda a volta a alguma normalidade sanitária no segundo semestre, a economia americana tende a acelerar. Haveria perspectiva de volta da inflação e, assim, de alta das taxas de juros de curto prazo, se diz.

Jerome Powell, o presidente do Fed, disse nesta quinta-feira que não, sem convencer “o mercado”. Não seria neste ano que estariam satisfeitas condições para alta de juros: mercado de trabalho recuperado, inflação a 2% e expectativas de inflação que fiquem por aí, ou algo mais, por alguns anos.

O efeito mais imediato dos EUA por aqui é a alta do dólar e dos juros brasileiros de prazo mais longo. Mas dólar mais caro por mais tempo sedimenta expectativas de inflação mais alta. Além do mais, houve aumento grande do preço de commodities (petróleo, grãos) e pressão em preços de bens de consumo por causa dos auxílios emergenciais. O IPCA deve ficar na casa dos 6% entre abril e setembro. A renda do trabalho está sendo carcomida.

A fim de deter essa inflação, o BC brasileiro deve elevar a taxa de juros básica (Selic), ora em 2%, a partir de 17 de março, embora ainda exista controvérsia sobre a persistência dessa carestia. Para Castelar, a Selic tem de ir a 5,5% no final do ano. Para os economistas do Itaú, a 5%. Pela opinião visível no custo do dinheiro na praça financeira brasileira, para algo entre 5,5% e 6%.

Seria uma paulada. Um aperto na atividade econômica. Um aumento no custo de financiamento da dívida pública já enorme, custo extra que ficará notável em 2022. Vai para o vinagre a ideia de que poderíamos ficar com juros reais perto de zero até bem entrado o ano que vem.

morticínio crescente e o semiparadão também não estavam nas contas econômicas. As restrições oficiais e voluntárias a movimento e comércios não serão tão grandes como no início de 2020. Mas devem ter efeito por pelo menos até abril. É menos crescimento, se algum, até meados do ano. O PIB paulista caiu em janeiro, primeira baixa ante mês anterior desde abril de 2020 (no indicador PIB+30 do Seade). O indicador Cielo de vendas no varejo se recuperou bem até outubro, quando estava em queda de 7,7% ante igual mês do ano anterior. Em janeiro, estava em baixa de 12,6%.

O mundo de novembro de 2020, que deu um alento ao PIB do final do ano, se esfumaçou. Fevereiro foi fraco, março será pior. Sim, Jair Bolsonaro e seu desgoverno são o ruído de fundo do desastre. Mas convém prestar atenção nos EUA e na reação dos donos do dinheiro à inflação no Brasil.


Reinaldo Azevedo: No banquete de Bolsonaro, somos 210 milhões de leitões no espeto

 Parte do STF ajudou a pavimentar o caminho para a terra dos mortos. E agora? Como enfrentar a necropolítica?

Na terça (2), houve recorde de mortes por Covid-19 no país, já superado por outros. Jair Bolsonaro estava num almoço festivo no Alvorada com políticos mineiros. Peça de resistência do cardápio: brasileiro no espeto. Estávamos lá na forma de um leitão esturricado. Somos a carne barata do capitão tresloucado, cercado de generais por todos os lados.

Nesta quinta, com um novo marco de cadáveres, ele conclamou os brasileiros a cair na vida para entrar na morte. "Chega de mimimi", exortou. Afirmou que, na Bíblia, a expressão "não temas" aparece 365 vezes. Teve de consultar um papel. Não conseguiria reter na memória tanta informação. Disse o troço olhando estranhamente para o lado, como se fizesse o download de algo que não era deste mundo.

Vamos a uma indagação que fez história: "Nessa situação que vive o Brasil, resta perguntar às instituições e ao povo quem realmente está pensando no bem do País e das gerações futuras e quem está preocupado apenas com interesses pessoais?" É um dos tuítes golpistas que o general Eduardo Villas Bôas, então comandante do Exército, dirigiu ao STF no dia 3 de abril de 2018. Mais de 260 mil mortes depois, será que ele tem a resposta?

A intimidação tinha como alvos os ministros do STF. Queria que endossassem o voto de Edson Fachin, relator do HC de Lula, que mantinha o ex-presidente na cadeia contra a Constituição e contra o Código de Processo Penal. O resultado saiu ao gosto da caserna. Fachin não soltou nem Lula nem um pio. Três anos depois, o jacobino tardio anuncia que a democracia está sendo ameaçada por militarismo, intimidação aos Poderes, depreciação do voto, ataques à liberdade de imprensa, armamentismo, recusa antecipada ao resultado das eleições e, claro!, corrupção.

Os seis primeiros itens servem apenas para lavar o sétimo. O paladino do moralismo em que jaz a moral continua a fazer a defesa incondicional da Lava Jato e de seus métodos criminosos. Em offs nada sutis, o ministro tem especulado que a suspeição de Sergio Moro —e, pois, a anulação da condenação de Lula no caso do tríplex— pode ter um efeito cascata, atingindo outros casos. A sugestão implícita é clara e indecente: mantenha-se a sentença insustentável para salvar o sistema.

Fachin é o emblema de um tempo em que o Supremo, por sua maioria, faltou miseravelmente ao país, permitindo que o Estado de Direito se esboroasse no grau zero da legalidade, fragmentando-se em solipsismos de suposta vocação redentora, com o alegado propósito de excluir malfeitores da vida pública. Bolsonaro e os milicos souberam percorrer a trilha que unia a destruição do devido processo legal à terra dos, em breve, 300 mil mortos.

O tribunal que ajudou a promover —por sua maioria, não por unanimidade— a razia na política se queda inerme e perplexo diante da devastação produzida pelo presidente da República e por alguns de seus ministros. No que lhe tem sido dado arbitrar, é verdade, tem feito a coisa certa em relação à Covid-19. Ocorre que há pouca margem de manobra.

Como esquecer? Políticos se tornaram réus, alguns defenestrados da vida pública, porque a corte acolheu denúncias segundo as quais doações então legais a campanhas eram formas veladas de corrupção, bastando para tanto as delações premiadas arrancadas no cárcere por procuradores dispostos a fazer com que seus reféns "mijassem sangue". Mistificação, demagogia e truculência abriam a picada para os cemitérios.

O delírio punitivista em que se perdeu o Judiciário, em especial o STF —e Fachin continua caudatário desse desastre—, não protege, como se vê, os brasileiros da sanha homicida do Poder Executivo; de sua incompetência; da negação do saber científico; da distribuição de drogas sabidamente ineficazes no combate à Covid-19; da negligência no trato com as vacinas; da, para ser sintético, necropolítica.

O impeachment de Bolsonaro não está no horizonte. Pergunto-me: o que mais pode fazer o Estado legal, de que o STF é a expressão maior e o intérprete final, para impedir que o presidente da República trate 210 milhões de brasileiros como leitões no espeto?


Bruno Boghossian: Quantas mortes cabem num dia de trabalho de Bolsonaro?

Quantas mortes cabem num dia de trabalho de Bolsonaro?

Pela manhã, Jair Bolsonaro deixou o Palácio da Alvorada e foi até a Base Aérea de Brasília. Antes de decolar, repetiu nas redes sociais a propaganda de sua caçada pelo spray nasal israelense contra a Covid, que ainda não tem eficácia comprovada. Quando o avião presidencial deixou a pista, 600 pessoas já tinham morrido da doença no país, segundo a média dos últimos dias.

Às 9h15, o presidente pousou em Uberlândia (MG). Durante o voo, outros 55 brasileiros morreram. Antes de seguir para Goiás, Bolsonaro parou para conversar com apoiadores. A cidade tem 100% dos leitos de UTI ocupados, mas o governo montou um cercadinho no setor de cargas e causou aglomeração no aeroporto.

Ali, o presidente disse que quem cobra dele a compra de vacinas é "idiota". "Só se for na casa da tua mãe. Não tem para vender no mundo", completou. Ele deixou o aeroporto de helicóptero, por volta das 10h da manhã, 55 mortes depois.

Em meia hora, Bolsonaro chegou a São Simão (GO) para inaugurar um trecho da ferrovia Norte-Sul. Antes de subir no palanque, ele entrou numa locomotiva, sorriu para fotos e conversou com os convidados. Quando o hino nacional começou a tocar, a conta de vítimas da pandemia havia subido em 168. Quando soou o último acorde, eram mais quatro.

Nos discursos de empresários e autoridades, 74 vidas ficaram para trás, e mais uma se foi quando Bolsonaro descerrou placa comemorativa da obra. Foram mais quatro mortos até que o presidente dissesse: "Chega de frescura e de mimimi. Vão ficar chorando até quando?". Depois de 21 vítimas, ele voltou a incentivar o uso de cloroquina e, com outros quatro mortos, encerrou o evento.

O presidente pousou em Brasília às 15h30, quando o país somava quase 1.150 óbitos no dia. Ele apareceu de novo 260 mortes depois, em sua transmissão semanal nas redes. Repetiu dados falsos sobre máscaras e atacou medidas de restrição, enquanto o país contava mais 74 vítimas. Até o fim da quinta-feira, outros 300 brasileiros estariam mortos.


Hélio Schwartsman: Os sapatos de Bolsonaro

Bolsonaro se comprometeu com obrigações com as quais agora está se omitindo

Você deceparia seu dedo mindinho para curar a enxaqueca de 5 milhões de pessoas na Ásia? E se for para salvar a vida de cinco desconhecidos em sua cidade? E para salvar seu filho?

Essa incomensurabilidade das dores (e dos prazeres) é um dos problemas que assombram o utilitarismo em particular e as éticas consequencialistas em geral. O fato de a dificuldade ser real não implica que não existam situações concretas em que a solução é óbvia. Todos, afinal, reprovamos a atitude do campeão de natação que deixa de resgatar uma criança que se afoga apenas para não estragar seu par de sapatos novos.

Faço essas considerações a propósito da imposição/retirada de restrições na epidemia de Covid-19. Embora não chancele, compreendo a posição do dono de restaurante prestes a falir que se insurge contra um "lockdown". Ele está, "mutatis mutandis", na situação do sujeito que pode salvar desconhecidos cortando o próprio dedo. Fazê-lo é a coisa certa, mas não obrigatória.Bem diferente é o caso do indivíduo que se recusa a usar máscara. O incômodo de fazê-lo é real, mas mínimo.

A analogia cabível é com o campeão de natação devoto de Herodes. É com preocupação, portanto, que leio nos jornais que o Texas, onde ainda ocorrem 7.600 novas infecções e 270 óbitos por dia, revogou a obrigatoriedade das máscaras e que o presidente Jair Bolsonaro, não satisfeito em sabotar a vacinação e militar contra "lockdowns", resolveu espalhar "fake news" sobre esses equipamentos de proteção de eficácia comprovada.

Eu não sei se mandaria o nadador para a cadeia. O que esse indivíduo fez merece vívida condenação moral, mas ele em nenhum momento assumiu o compromisso de zelar pelos outros. Já Bolsonaro, quando aceitou a Presidência, se comprometeu com obrigações constitucionais e legais em relação às quais está agora se omitindo. E, pior, nem tem a desculpa de que não quer sujar os sapatos.


Alon Feuerwerker: Pax Legislativa?

O governo venceu facilmente a batalha no Senado pela PEC que permitirá o pagamento do auxílio emergencial, e traz também mecanismos compensatórios de controle de gastos. Como sinal da correlação de forças, o destaque que eliminava o teto de 44 bilhões para despesas com o auxílio perdeu por 55 a 17.

Quem assistiu à sessão notou também um clima político, por que não dizer?, ameno entre situação e oposição. A oposição chegou até a sugerir ao presidente da Casa que adiasse o segundo turno da votação quando viu risco de não dar quórum. Sugestão naturalmente aceita.

A oposição poderia, por exemplo, ter lutado para derrubar a PEC e daí trabalhar para uma alternativa "pura": dar o auxílio e só. Sem contrapartidas. Mas na prática ajudou o governo. Talvez por saber que não tinha força para impedir. Mas poderia ao menos ter aproveitado para desgastar o oficialismo. Fazer um pouco de teatro.

Vamos aguardar agora a Câmara dos Deputados. Se tudo correr bem para o Planalto, será um sinal, mais um, de que o cenário no Legislativo está neste momento sob controle. O "neste momento" é fundamental quando se discorre sobre a política brasileira, mas não deixa de ser uma variável.

E como anda a sustentação do governo na Câmara? Se depois de todo o auê a deputada Bia Kicis (PSL-DF) for mesmo eleita para presidir a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, a mais importante da Casa, e por onde passam todos os projetos, será um indicador.

Cada um que tire suas conclusões.

Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação


Jamil Chade: 'Presidente, vamos chorar para que nossos mortos sejam lembrados como suas vítimas'

Choramos para construir um futuro. E, evidentemente, são essas lágrimas que o senhor mais teme

Senhor presidente,

Uma vez mais, suas palavras sobre a pandemia ecoaram pelo mundo. Dos corredores da ONU às padarias de bairro onde sabem que sou brasileiro, vieram me comentar e, no fundo, me confortar.

Estou cada vez mais convencido de que existe um enorme risco de que, ao final desta pandemia, o Brasil se transforme no “misterioso país das lágrimas”. Acumuladas na alma de cada família, nas estatísticas dos jornais e no espírito de uma nação, as mortes registradas nos últimos meses tiraram um país de seu eixo, já frágil e já tão acostumado a enterrar seus filhos.

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O senhor bem sabe que nada disso era inevitável. O destino do vírus estava em nossas mãos, como mostraram vários países do mundo que, mesmo sem uma vacina, o sufocaram. Já vocês preferiram sufocar nossos sonhos.

Existe uma percepção de que somos filhos de uma pátria, uma noção complemente equivocada alimentada por perigosos nacionalistas que formam a base da ala mais radical de seu governo. Uma nação nasce de seus filhos, é determinada por sua coragem, moldada a partir de sua diversidade. Seu futuro depende daqueles que choram. Jamais daqueles que se acomodam.

No fundo, as lágrimas mais sinceras são da parcela mais otimista da sociedade. Do grupo que acredita que o mundo pode ― e deve ser melhor.

Presidente,

Quando seu líder máximo manda uma sociedade engolir o choro, sua mensagem é clara: parem de lutar. Aceitem o que existe. As lágrimas sabem que exigir que elas cessem é, por si só, um gesto autoritário.

Provavelmente o senhor saiba que chorar não é um sinal de fraqueza. Mas sim de indignação, de recusa em aceitar um destino.

Escrevo essa carta apenas para informar que vamos chorar até construir algo novo. Vamos chorar para permitir que cada uma das pessoas amadas que nos deixou seja lembrada como uma vítima de suas escolhas políticas. E não apenas como vítima de um vírus.

Essas lágrimas não serão engolidas. Por seu arco-íris que formam, elas são expressões de uma determinação para colocar fim a uma noite escura.

Não choramos pelo passado. Não o resgataremos. Tampouco choramos por uma vontade de vingança.

Choramos para construir um futuro. E, evidentemente, são essas lágrimas que o senhor mais teme.

Saudações democráticas

*Jamil Chade é correspondente na Europa desde 2000, mestre em relações internacionais pelo Instituto de Altos Estudos Internacionais de Genebra e autor do romance O Caminho de Abraão (Planeta) e outros cinco livros.


Luiz Carlos Azedo: O Brasil está de luto

Nada disso, porém, importa para o presidente Bolsonaro. Seu comportamento é o que pode ser chamado de darwinismo social, segundo o qual os mais fortes sobrevivem

Com mais 1.699 mortes por covid-19 nas últimas 24 horas e 75.102 novos casos, o Brasil está de luto fechado. Já são 260 mil famílias que choram pela perda de entes queridos, mas o presidente Jair Bolsonaro conseguiu, ontem, bater o recorde da falta de respeito e empatia com as vítimas da pandemia do novo coronavírus, que já tem 10.793.732 de casos confirmados: “Chega de frescura, de mimimi. Vão ficar chorando até quando?”, disse, ao criticar medidas de restrição de circulação da população em meio a recorde de mortes pela doença.

Bolsonaro está irritado com governadores, que cobram mais empenho do governo na compra das vacinas, liberação de verbas para mais leitos e o endosso do Ministério da Saúde às recomendações dos seus sanitaristas. Os governadores, em documento encaminhado ao governo, alegam que estão no “limite” e que a vacinação em massa “é a alternativa que se afigura como a mais recomendável e, provavelmente, a única capaz de deter a pandemia”.

“Neste momento, há novas, reais e importantes justificativas para que o Brasil obtenha, com celeridade, novas remessas de imunizantes, a principal delas é a chegada e a rápida disseminação, já no estágio de transmissão comunitária, da nova variante P1, que tem se revelado ainda mais letal, prejudicando os esforços para proteger a vida de nossas cidadãs e cidadãos, bem como de suas famílias”, afirmam no documento.

Os governadores destacam que as preocupações das autoridades sanitárias de todo o mundo estão voltadas para o Brasil, por causa das nossas dimensões continentais e do grande número de casos, mas, sobretudo, devido à falta de controle sobre a expansão da pandemia e suas novas variantes, que podem pôr em risco todo o esforço feito para imunizar no mundo, se não houver igual empenho de vacinação no Brasil. “O mundo acompanha com preocupação o rápido avanço do contágio por essa variante no Brasil, o que torna o bloqueio da disseminação desse tipo de vírus matéria de interesse de diversas nações, inclusive porque outras variantes podem dela advir”, afirmam, com toda a razão.

Darwinismo social
O que está acontecendo no Brasil equivale à tragédia da Aids na África do Sul, que tem 5,7 milhões de infectados pela doença, ou seja, 11,8% dos 49,2 milhões de habitantes. A Aids virou uma endemia por causa do negativismo do ex-presidente Thabo Mvuyelwa Mbeki, que sustentava a tese de que era causada por falta de vitaminas e recomendava tratamento com ervas medicinais dos sacerdotes tribais. Não é uma interpretação muito diferente das ideias do presidente Jair Bolsonaro, que sabota todos os esforços feitos pelas demais autoridades para combater a pandemia.

O encontro de um vírus (que não é considerado um ser vivo) com uma bactéria é considerado pelos biólogos um dos fenômenos da criação. Esse encontro é que permite a reprodução do vírus e também possibilita mutações genéticas. A mutação E484K encontrada na variante brasileira P1 é uma das alterações já identificada no novo coronavírus: o Sars-Cov-2. Essa mutação também está presente em outras duas variantes que causam preocupação pelo mundo: a B.1.1.7, identificada no Reino Unido, e B.1.351, na África do Sul. Suspeita-se de que ela ajude a se tornar mais transmissível e enfraqueça os anticorpos humanos contra o vírus.

Pesquisadores da Fiocruz identificaram a E484K no Ceará, no Paraná, em Santa Catarina, no Rio de Janeiro, no Rio Grande do Sul, em Pernambuco, em Alagoas e em Minas Gerais. No Paraná e no Ceará, o índice de prevalência da mutação superou os 70% nas amostras, o que é muito grave. Nada disso, porém, importa para o presidente Bolsonaro. Seu comportamento é o que pode ser chamado de darwinismo social, segundo o qual, os menos aptos deixariam de existir, porque não são capazes de se adaptar e acompanhar a linha evolutiva. Assim, entrariam em extinção, acompanhando o princípio de seleção natural.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-o-brasil-esta-de-luto/