Bolsonaro
Correio Braziliense: Descontrole do novo coronavírus no Brasil ameaça o mundo, alerta OMS
País chegou, ontem, ao segundo maior número de mortes pela covid-19 em 24h: 1.800, segundo o Conass. Número reforça a preocupação manifestada pelo diretor-geral da entidade, Tedros Adhanom, que recomenda medidas "agressivas" para tentar conter o avanço do vírus
Sarah Teófilo e Maria Eduarda Cardim, Correio Braziliense
O descontrole na transmissão do novo coronavírus no Brasil já é motivo de preocupação da Organização Mundial da Saúde (OMS). Ontem, o diretor-geral do organismo das Nações Unidas, Tedros Adhanom, afirmou, em resposta à pegunta feita pelo Correio, que a situação do país é uma ameaça para a América Latina e para o mundo. Para reforçar as afirmações do dirigente, de acordo com o Painel Conass Covid-19, elaborado pelo Conselho Nacional de Secretários de Saúde –– cujos números são reproduzidos pelo Ministério da Saúde ––, o país chegou ontem às 1.800 mortes em apenas 24h, o segundo maior registro de óbitos de um dia para outro. O total de vidas perdidas é de 262.770 e o de casos da doença, 10.869.227.
De acordo com Adhanom, o Brasil precisa adotar medidas “agressivas” para a contenção do avanço do novo coronavírus, enquanto distribui a vacina à população. “Nós estamos preocupados, mas a preocupação não é apenas com o Brasil. Têm os vizinhos, quase toda América Latina, muitos países. Isso significa que, se o Brasil não for sério, vai continuar afetando todos os vizinhos, e além. Então, isso não é apenas sobre o Brasil, mas também sobre toda a América Latina e além”, explicou.
O diretor-geral da OMS ressaltou que, enquanto em muitos países observou-se uma redução de casos nas últimas seis semanas, no Brasil a tendência foi de aumento. “Acho que o Brasil precisa levar isso muito a sério”, reforçou. Adhanom acrescentou que “a adoção de medidas públicas de saúde em todo o país, de forma agressiva, seria crucial. Sem fazer nada para impactar na transmissão ou suprimir o vírus, não acho que, no Brasil, conseguiremos uma queda. Quero enfatizar isso: a situação é muito séria e estamos muito preocupados. E as medidas públicas que o Brasil adotar precisam ser muito agressivas, enquanto distribui vacinas”, afirmou.
A variante que surgiu no Amazonas é alvo de preocupação da OMS, já que tem mutações que dão ao novo coronavírus vantagens na transmissão. “Nós estamos preocupados sobre a P.1. Ela tem mutações específicas que dão ao vírus vantagens, particularmente na transmissão. Não há dúvida de que ela adicionou à complexidade da situação que o Brasil vive”, salientou o diretor-executivo do Programa de Emergências em Saúde da organização, Mike Ryan.
Já a líder técnica de resposta à covid-19, Maria Van Kerkhove, pontuou que, entre as três variantes que estão sendo rastreadas pela OMS, está a amazonense, que, como ressaltou, é associada ao aumento de transmissibilidade. “Se você tem aumento de transmissibilidade, você terá aumento de casos, aumento de pacientes que vão precisar de hospitalizações e aumento daqueles que desenvolvem casos graves. Isso pode ter impacto no sistema de saúde, o que pode ocasionar no aumento de mortes. Vimos isso em outros países”, afirmou.
Sentido oposto
Enquanto a OMS alertava que o Brasil tornou-se uma ameaça ao mundo por causa do descontrole da pandemia e da nova cepa do vírus originária do Amazonas, o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, comentou que “podemos estar a duas ou três semanas de redução de casos de covid após forte vacinação”. Em evento promovido pela American Society/Council of the Americas, ele destacou que o ritmo da imunização no país não segue a velocidade dos EUA, pois o Brasil contemplou, até o momento, “4% da população”.
“O sistema de saúde está sob stress, mas, no geral, está bem. As pessoas querem vacinação, mas não querem o fechamento da economia”, disse Araújo, alfinetando os governadores que estão adotando restrições de circulação de pessoas e de funcionamento do comércio.
Enquanto o governo nega problemas no processo de vacinação e de esgotamento das UTIs dos sistemas de saúde público e privado dos estados, um total de 1.703 municípios, dentre os quais 23 capitais estaduais, formalizou interesse em compor o consórcio público a ser constituído pela Frente Nacional de Prefeitos (FNP) para comprar diretamente vacinas contra a covid-19. Segundo a entidade, o grupo de cidades interessadas soma mais de 125 milhões de habitantes, o que corresponde a cerca de 60% da população brasileira. As três capitais que, por ora, ficariam ausentes do consórcio são Macapá, Vitória e Natal.
Na última quarta-feira, o presidente da FNP, Jonas Donizette, afirmou que o anúncio do governo federal de que comprará as vacinas da Pfizer e da Janssen não conflita com a construção do consórcio de municípios, já que, segundo ele, o propósito da iniciativa sempre foi estruturar uma ação complementar à do Ministério da Saúde.
“Talvez a adesão maciça dos prefeitos tenha até ajudado o governo a tomar essa decisão. Jamais saberemos se o empurrão foi nosso, mas isso pouco importa”, escreveu o ex-prefeito de Campinas no Twitter. “O que nos interessa, mesmo, é que a vacinação dos brasileiros seja um fato, não uma promessa”.
Donizette relatou, ainda, que, mesmo que o governo federal compre todas as vacinas, o consórcio liderado pela FNP continuará sendo necessário para adquirir medicamentos, insumos e equipamentos “com possibilidade de negociação de preços melhores, poupando recursos públicos”.
O Estado de S. Paulo: Cartório oculta dados de Flávio Bolsonaro em escritura pública da casa de R$ 6 milhões
Titular do estabelecimento admite ao ‘Estadão’ ser a primeira vez que esconde informações que deveriam ser públicas; advogada afirma que ato descumpre a lei
Breno Pires e Rafael Moraes Moura, O Estado de S.Paulo
BRASÍLIA – O cartório onde o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ) registrou a compra de uma casa de R$ 6 milhões em Brasília escondeu informações da escritura pública do imóvel, documento com os dados do negócio que deveria ser acessível a qualquer pessoa que o solicitar. O ato, do 4.º Ofício de Notas do Distrito Federal, contraria a prática adotada em todo o País e representa tratamento diferenciado ao filho do presidente Jair Bolsonaro, segundo especialistas consultados pelo Estadão. As leis que tratam da atividade cartorial não preveem o sigilo.
Na cópia da escritura obtida pela reportagem no cartório, que fica em Brazlândia, região administrativa a 45 km de Brasília, há 18 trechos com tarjas na cor preta. Foram omitidas informações como os números dos documentos de identidade, CPF e CNPJ de partes envolvidas, bem como a renda de Flávio e da mulher, a dentista Fernanda Antunes Figueira Bolsonaro.
Para comprar o imóvel, o filho “01” de Bolsonaro financiou R$ 3,1 milhões no Banco de Brasília (BRB), com parcelas mensais de R$ 18,7 mil. Como revelou o Estadão, as prestações representam 70% do salário líquido de Flávio como senador – R$ 24,7 mil. Outras duas escrituras de imóveis em nome da família Bolsonaro obtidas pela reportagem no mesmo dia, mas em cartórios distintos, foram fornecidas sem qualquer tarja. Uma delas do próprio presidente da República.
Procurado, o titular do cartório, Allan Guerra Nunes, disse ao Estadão que tomou a medida para preservar dados pessoais do casal. Em um primeiro contato, ele não soube explicar em qual norma embasou sua decisão. Mais tarde, em nota, Nunes afirmou que as informações são protegidas pela Lei 105/2001, que dispõe sobre o sigilo das operações de instituições financeiras. A regra, porém, não se aplica a cartórios de notas. “Ele (Flávio) não me pediu nada. Quem decidiu colocar a tarja fui eu. Quando eu fui analisar o conteúdo da escritura, acidentalmente tem essa informação da renda”, disse Nunes.
Ele não explicou a razão de também ter omitido números de documentos de identificação pessoal. “Se hoje me pedirem cópia de escritura com financiamento bancário eu vou omitir os dados da pessoa”, afirmou o cartorário, que admitiu nunca ter incluído tarja em escrituras públicas antes. “Não há nenhum tratamento privilegiado, de maneira alguma.”
Nos 299 artigos da Lei de Registro Público, não há previsão de sigilo de informação, seja pessoal, bancária ou fiscal. A advogada Ana Carolina Osório, especialista em direito imobiliário, vê tratamento privilegiado a Flávio neste caso. “Não existe embasamento para se colocar tarja nessas informações. A publicidade é um dos princípios basilares do direito registral. O cartório tem o objetivo claro de proteger, digamos assim, os dados do Flávio Bolsonaro, porque é um documento público e as informações ali são de interesse de quaisquer interessados”, avaliou. “Diferente seria se estivéssemos divulgando a informação de renda prevista no Imposto de Renda, por exemplo.”
O tabelião Ivanildo Figueiredo, titular do 8º Tabelionato de Notas do Recife e professor de Direito Notarial na Faculdade de Direito do Recife, disse ao Estadão que a Lei nº 6.015, de 1973, que trata dos registros públicos, prevê a publicidade de todos os atos, como escrituras. "O tabelião não tem nenhuma função de censura", afirmou Figueiredo ao Estadão.
"Se a parte vai ao cartório e faz um ato público, esse ato é público. Qualquer pessoa pode pedir cópia desse documento. Qualquer pessoa pode ter acesso ao conteúdo desses atos. O dever é entregar a certidão como está no livro, não pode censurar", disse ao Estadão. "O único ato que tem alguma restrição são testamentos", ressalvou. Ainda segundo o tabelião, deixar de prestar as informações integrais pode configurar violação aos deveres funcionais dos notários e dos oficiais de registro. Pela lei, entre as punições para violação ao dever funcional estão a aplicação de multa, suspensão, e até a perda da delegação, nos casos mais graves.
Em outra medida que contraria a norma vigente, o 4.º Ofício de Notas ainda requisitou que o pedido da cópia da escritura fosse formalizado por e-mail com a informação sobre o motivo da solicitação do documento. Pela Lei de Registros Públicos, isso não é necessário. “Qualquer pessoa pode requerer certidão do registro sem informar ao oficial ou ao funcionário o motivo ou interesse do pedido”, diz o trecho da lei.
Questionado sobre a omissão das informações, a corregedoria do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, a quem cabe fiscalizar a atividade dos cartórios, não se manifestou. Em nota, a Associação dos Notários e Registradores do Brasil afirmou ser “responsabilidade do notário/registrador avaliar no caso concreto os preceitos legais de acesso à informação”.
Nesta semana, Flávio disse que o negócio foi “transparente” e que usou “recursos próprios” e um financiamento para comprar a casa.
Miguel Reale Júnior: Presidente de cemitério
O Ministério Público, a Câmara e o Senado precisam cumprir o dever de salvar o País
Em que momento a considerável parcela da população que ainda acorre às aglomerações ilícitas provocadas pelo presidente vai se dar conta de estar, em crença fanática, a louvar um perverso para quem o medo da morte por asfixia é “mimimi”? Até quando o Brasil será conduzido pelo quarto cavaleiro do apocalipse?
Bolsonaro não é presidente para administrar o País, mas tão só para se reeleger em 2022, seu único interesse, mesmo que venha a ser apenas presidente do cemitério. Jamais assumiu a liderança do enfrentamento da covid-19, preocupado só em atribuir a crise econômica e a perda de empregos a governadores e prefeitos, para se livrar dessa responsabilidade e angariar votos.
Bolsonaro, absolutamente indiferente ao crescente número de mortos, muitos sem oxigênio ou nos corredores por falta de leitos em UTIs, passeia pelo País sem máscara, promovendo aglomerações, nunca se compungindo diante da dor ou visitando algum hospital. Somente mandou sequazes invadir hospitais para flagrar ser mentira sua superlotação!
Continuamente conspirou contra a importância da vacina, cuja pressa em obtê-la ridicularizou, proclamando mentirosamente haver efeitos colaterais nocivos, desorientando a população.
Os obstáculos ao combate ao vírus não se limitaram aos maus exemplos. Deixou de adquirir, em julho, vacinas Coronavac e da Pfizer, impôs vetos de verbas e ignorou a cooperação com Estados e municípios na precaução e reação contra a doença, como ressalta estudo realizado pela Universidade de São Paulo, por meio do Centro de Pesquisas e Estudos de Direito Sanitário (Cepedisa) da Faculdade de Saúde Pública, em conjunto com a Conectas Direitos Humanos (Direitos na Pandemia – Mapeamento e Análise das Normas Jurídicas de Resposta à Covid-19 no Brasil, em https://www.conectas.org/publicacoes/download/boletim-direitos-na-pandemia-no-3).
Esse estudo revelou a existência de uma “estratégia institucional de propagação do vírus”, entendendo ser “razoável afirmar que muitas pessoas teriam hoje” a mãe, o pai, irmãos e filhos vivos “caso não houvesse esse projeto institucional”. Conclui-se, então, não haver tão só incompetência e negligência, mas “empenho em prol da ampla disseminação do vírus no território nacional, declaradamente com o objetivo de retomar a atividade econômica o mais rápido possível e a qualquer custo”.
A comprovar tal conclusão, verifica-se que, de R$ 24 bilhões disponíveis no Orçamento para compra de vacinas, apenas R$ 2 bilhões foram gastos em 2020 (Folha de S.Paulo, 1.º/3, pág. A13). Tão grave quanto isso foi o corte de financiamento de leitos de UTI nos Estados para atendimento a pacientes com covid-19, que o STF acaba de mandar seja realizado (Estado, 1.º/3, A12).
Ao pôr a ambição política acima da proteção da saúde de seu povo, Bolsonaro revela egocentrismo incompatível com a permanência como primeiro mandatário, pois brasileiros foram lançados, por sua insensibilidade, na tragédia que a OMS reconhece estar instalada entre nós.
Quatro ex-ministros da Saúde clamam por um governo de salvação nacional ou pela criação de um gabinete de crise que dirija e coordene o enfrentamento da pandemia, sob o risco de afundarmos definitivamente na desgraça. Como fazer?
Há meio breve, justo e correto, já aventado antes por vários juristas. Ao Ministério Público, que tem por missão a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos direitos sociais, entre eles o da saúde, cumpre promover, em face desses fatos, ação penal por crimes contra a saúde pública e contra a paz pública, o primeiro previsto no artigo 268 do Código Penal: “Infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa”.
Ademais, ao estimular a população a se aglomerar, não usar máscara e não se vacinar, o presidente incita-a a praticar o crime acima mencionado, configurando-se, então, o delito do artigo 286 do Código Penal: “Incitar, publicamente, a prática de crime”. Ou seja, compele a se infringir determinação do poder público destinada a impedir a propagação de doença contagiosa.
Há, evidentemente, dois desafios: 1) fazer o procurador Aras sair de seu imobilismo, sendo essencial a pressão da sociedade e de colegas procuradores; e 2) a Câmara dos Deputados, ciente da gravidade do momento, aceitar a denúncia, afastando o presidente, para o vice, em governo de união nacional, atuar em prol da salvação de nossa gente.
Outra forma seria a assunção da condução da área da Saúde pelo Congresso Nacional, via CPI ou promovendo o impeachment do ministro (artigo 14 da Lei n.º 1.079/50), cabendo ao novo titular da pasta atuar em conjugação com secretários de Saúde dos Estados.
A sociedade civil organizada, hoje silente, deve se manifestar por via de suas inúmeras entidades, exigindo que Ministério Público (competente, sim, para processar o presidente, como o fez contra Temer), Câmara dos Deputados e Senado cumpram o dever de salvar o País. Mexa-se, Brasil!
*Advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras, foi ministro da Justiça
Bolívar Lamounier: Temos um governo genocida?
Bolsonaro não tem estatura para isso. Sinais de insanidade já dá – e não são poucos
Disseminar um vocábulo raramente usado no Brasil, como genocídio, é uma proeza. Jair Bolsonaro conseguiu, hoje tal vocábulo aparece nas redes sociais praticamente todo dia.
É certo que o termo é empregado para xingar o próprio Bolsonaro. Muita gente se vale dele para afirmar que o Brasil tem atualmente um presidente genocida. Dito assim, mesmo reconhecendo que algo há de verdade, devemos convir que se trata de um enorme exagero. Bolsonaro não tem estatura para carregar um peso desses. O que ele tem feito, dia sim e outro também, é sabotar o trabalho dos agentes de saúde no combate à covid-19, atrapalhando ação dos governadores e prefeitos, formando aglomerações e até criticando o uso de máscaras.
Lá atrás, em sua fase mais cômica, aventurou-se na charlatanice médica, receitando remédios que liquidariam o coronavírus num abrir e fechar de olhos. Hoje, parece-me inegável que ele é culpado por uma parcela dos 260 mil óbitos já registrados, mas não tenho, e penso que ninguém tem, como estimar a quanto monta tal parcela. Cabe, portanto, a suposição de que ele tem responsabilidade por certo número de mortes, mas daí a designá-lo como genocida vai uma longa distância.
Onde tem fumaça, tem fogo. A questão é séria e deve ser debatida, mas sem partir de cara para o exagero. Genocídio, como já sugeri, é uma coisa muito maior. Briga de cachorro grande. Se nossa intenção é compreendê-la e chegar a uma avaliação plausível do papel de Jair Bolsonaro, é indispensável começar pelo começo. Pelo conceito e por alguns exemplos históricos.
O termo baseia-se em dois componentes fundamentais. O primeiro, uma matança em larga escala, a intenção de exterminar todo um povo ou toda uma etnia, não necessariamente porque ela tenha feito alguma coisa, mas pelo simples fato de que ela existe, extermínio a ser conduzido com o máximo concebível de atrocidade. Segundo, tal matança compõe-se de ações conscientes, uma ordem premeditada e levada a cabo por um governo, um partido ou um órgão qualquer que tenha poder para tanto.
Historicamente, a ideia (mas não necessariamente o termo) genocídio remonta à Revolução Francesa e, especificamente, à guerra da Vendeia. Católica e monarquista, uma parte dos habitantes daquela província francesa reagiu violentamente à execução do rei Luís XVI, em fevereiro de 1793. No transcurso de dois anos, o confronto evoluiu para a guerra civil, levando os comandantes militares da revolução (o chamado Comitê de Salvação Pública, Robespierre à frente) a recorrer indiscriminadamente ao terror. Esse é o tempo das noyades (afogamentos coletivos, principalmente de mulheres e crianças, no rio Loire). O confisco de alimentos, a fim de sujeitar a população à morte pela fome.
Nesse quadro de absoluta insanidade, o nome que logo vem à mente é o de Jean-Baptiste Carrier, organizador do “trabalho de campo”, o mais demente dos dementes que chegaram ao poder com a revolução. A ideia passou a ser aniquilar toda a população daquela região. Gracchus Babeuf, autor da primeira narrativa circunstanciada dos fatos, deu-lhe o expressivo título de A guerra na Vendeia e o sistema de despopulação.
Stalin provavelmente não conhecia os detalhes do que ocorrera na França, mas levou a cabo com intensidade ainda maior o projeto de “matar por inanição”, vale dizer, de fome, como forma sistemática de terror, imposto à Ucrânia no inverno de 1932-33. Confisco geral de todos os alimentos, levando à morte pelo menos 3 milhões de indivíduos, muitos deles até a prática do canibalismo. Em ucraniano, o termo Homolodor significa exatamente isso, matar por inanição, e é o título de um magnífico filme ucraniano disponível no YouTube. Mas, como sabemos, a insanidade sempre pode aumentar.
A partir de 1942, trens lotados de judeus, ciganos e outras etnias começaram a ser descarregados na estação de Birkenau, na Polônia. Os passageiros (se assim os podemos chamar) passavam por uma triagem, sendo os mais fortes mandados para o trabalho forçado e os fracos, doentes, bem como as mulheres e crianças, para as câmaras de gás e os fornos crematórios. O saldo é bem conhecido: o Holocausto, no qual pereceram cerca de 6 milhões de judeus.
Carreguei bastante nas tintas para sublinhar o que afirmei no início: Bolsonaro é, se tanto, uma partícula minúscula na história dos genocídios. Dá-se, entretanto, que os conceitos precisam ser repensados à medida que as instituições humanas e a História avançam.
No século 18, bastava um salto para se passar de A a Z: de uma relativa normalidade para o terror. No século 21, com o País afundando numa pandemia terrível, um presidente que entretém seus convidados do almoço com gracejos e ataca a imprensa no preciso momento em que ela cumpre o seu dever, informando que chegamos aos 260 mil mortos, por certo não chegou ao Z, mas já saiu do A. Quando coloca seu interesse eleitoral a léguas do interesse público, deu mais alguns passos. Sinais de insanidade já está dando – e não são poucos.
*Sócio-Diretor da Augurium Consultoria, é membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências
El País: Na corrida contra o colapso da covid-19, abrir leitos é a única e precária arma dos Estados
Levantamento feito pelo EL PAÍS com as secretarias estaduais da Saúde indica que não há plano B para evitar sobrecarga no sistema. Já faltam equipes médicas em alguns locais. “As ampliações são finitas”, diz Paraná. “Vai ter paciente no corredor ”, diz secretário de São Paulo
Afonso Benites, Aiuri Rebello, Diogo Magri, Felipe Betim, Gil Alessi, Joana Oliveira, Naira Hofmeister, Steffanie Schmidtb, do El País
“Estamos em guerra”, definiu o secretário da Saúde de São Paulo, Jean Gorinchteyn, nesta sexta-feira na habitual coletiva de imprensa feita pelo Governo João Doria desde o início da pandemia de coronavírus há um ano. O tom de urgência poderia ser interpretado apenas como uma hipérbole política, mas o cenário do qual o Brasil se avizinha está próximo de uma batalha decisiva, na qual o vírus tem se saído vencedor. A situação do país é crítica em praticamente todos os Estados ao mesmo tempo, o que impõe uma dificuldade adicional, já que a possibilidade de socorro entre fronteiras se torna mais remota. Sem um comando unificado do Governo Federal, gerido por um presidente que classifica a emergência sanitária como “mimimi”, governos das 27 unidades federativas tentam implementar medidas de restrição de circulação vistas como ineficazes por especialistas, temendo o desgaste político e financeiro de um rígido lockdown, e apostam em uma arma que logo se tornará finita: a criação de novos leitos para acomodar cada vez mais doentes. Levantamento feito pelo EL PAÍS mostra que em ao menos 17 Estados, a taxa de ocupação de UTIs para covid-19 supera os 80%, como já havia indicado um boletim da Fiocruz desta semana. Em dez deles, já passa de 90%. E em dois, de 100%.
“Vamos continuar abrindo leitos e vagas dentro dos hospitais. Abriremos em qualquer local destes hospitais, sejam nos anfiteatros, nos ambulatórios, sejam nos corredores”, desabafou Gorinchteyn na coletiva desta sexta. “Vai ter paciente no corredor. O que nós não queremos é paciente desassistido”, afirmou ele. São Paulo nesta semana teve seu maior número de mortes por covid-19 desde o início da pandemia: 468, na última terça-feira. Há quase 1.000 pedidos de internação no Estado todos os dias, o que sobrecarregou a rede como nunca antes na crise. Mesmo com um acréscimo de 152% no número de leitos SUS (de 3.500, em 31 de março, para os atuais 8.839), a taxa de ocupação chega a 78,5% nas UTIs e a 60,9% nos leitos de enfermaria. E, apesar da relutância de Doria inicial, o Estado acabou voltando à fase mais rígida das restrições: apenas atividades essenciais poderão funcionar pelas próximas duas semanas, a partir deste sábado.
No Paraná, outro gestor também usou a coletiva de imprensa, na semana passada, para desabafar sobre a situação de seu Estado. “Nem se os leitos fossem infinitos” haveria capacidade de atendimento, disse Vinicius Filipak, diretor de Gestão em Saúde da Secretaria (Sesa). O Estado decretou toque de recolher, permitindo apenas serviços essenciais entre 20h e 5h, e chegou a dispersar com bombas de gás lacrimogêneo pessoas que desrespeitaram a ordem de deixar as ruas. Até esta quinta-feira, o Paraná mantinha 96% de suas UTIs de adultos para covid-19 ocupadas. Em janeiro, entre 40 e 45 pessoas esperavam diariamente por uma vaga de enfermaria ou de UTI em hospitais paranaenses. Na semana passada, este número passou para 500 pacientes. Na última terça-feira, 2 de março, chegou a 699. “Evidentemente todos os leitos estão além da capacidade máxima ofertada pelo Estado, mas os esforços estão sendo mantidos”, explicou ao EL PAÍS a pasta da Saúde, que em seguida falou sobre as limitações de seguir abrindo mais vagas em hospitais. “As ampliações de atendimento são finitas e não devem, de forma alguma, servir como argumento para deixar de se cuidar. As medidas de prevenção devem continuar sendo seguidas, estamos chegando cada vez mais no limite”, argumentou.
A região Sul é uma das afetadas atualmente pelo colapso hospitalar. Com mais de 96% de ocupação de seus leitos de UTI, Santa Catarina começou a transferir pacientes para o Espírito Santo na última quarta-feira, 3 de março, e prevê a ativação de mais 200 leitos. O Rio Grande do Sul, que possui uma taxa 101,9% de ocupação de leitos públicos e privados de UTI, prevê abrir mais 40 vagas de Unidades de Terapia Intensiva para covid-19 no Estado. Os postos de saúde do Estado passaram a funcionar em horários estendidos, inclusive aos finais de semana, para desafogar hospitais. O Estado também reativou um cadastro de voluntários, na tentativa de contratar mais profissionais de saúde, e determinou que todos os hospitais ofereçam 50% dos leitos clínicos a pacientes com covid-19.
Há Estados, entretanto, que sequer trabalham com a possibilidade de colapso em suas redes de saúde, como explicitou Pernambuco ao EL PAÍS. Na quarta-feira, quando 92% de suas UTIs para covid-19 do SUS estavam ocupadas, o Governo pernambucano afirmou que mitigaria a crise com a contratação “nas próximas semanas” de mais 300 leitos de enfermaria e 150 leitos de UTI. No Rio Grande do Norte a situação é igualmente grave, com uma taxa de ocupação também superior a 92%.
Em entrevista ao EL PAÍS na quarta-feira, o médico e neurocientista Miguel Nicolelis já havia alertado sobre os limites da estratégia de seguir abrindo mais leitos. Em primeiro lugar, existe uma escassez de médicos e de enfermeiros. Além disso, explicou, “a velocidade de crescimento do vírus é exponencialmente mais veloz que a capacidade de criar, equipar e por gente no leito de UTI”. Nos cálculos de Nicolelis, é possível que o número de mortes registradas diariamente chegue a 3.000 nas próximas semanas.
Centro-Oeste
O Centro-Oeste se encontra em situação similar ao Sul, com seus quatro Estados com a ocupação de suas UTIs para covid-19 superior a 90% ou beirando esta taxa. Goiás, que já superou a marca de 96%, prevê ampliar a rede de atendimentos e suspender as chamadas cirurgias eletivas —medida também tomada pela Prefeitura de São Paulo nesta semana. O Distrito Federal, com uma de ocupação de 91,2%, avalia a abertura de dois hospitais de campanha com 200 leitos —o que o Estado de São Paulo também afirmou nesta sexta que fará. O Mato Grosso, com 88% de ocupação de UTIs do SUS, diz que não pode estimar até quando haverá vagas “pois o avanço da doença depende do comportamento da população em relação ao vírus”. A Secretaria da Saúde destacou a abertura de 90 vagas nos últimos 23 dias e o decreto de novas medidas de restrição à circulação. Por fim, o Mato Grosso do Sul não respondeu às tentativas de contato da reportagem. De acordo com o boletim epidemiológico do dia 4 de março, 94% das UTIs do SUS para covid-19 estavam ocupadas, enquanto na rede privada a cifra era de 89%.
Colapso no Norte
A situação segue bastante preocupante região Norte. Acre e Rondônia já atingiram 100% de ocupação de leitos de UTI. O Amapá, que tem 86% de ocupação, estima que em uma semana também não tenha mais vagas. No Amazonas, onde a falta de oxigênio chocou o mundo no mês de janeiro e que conseguiu transferir pacientes para outros Estados, a ocupação de UTIs voltada ao novo coronavírus ainda é alta: 80%. Já o Estado de Roraima registra 79% de lotação para esse tipo de leito e trabalha com a possibilidade utilização de 120 do Hospital Estadual de Retaguarda, além de requisitar os existentes na rede privada.
Em Rondônia, onde não há mais vagas em UTI e 86,3% dos leitos clínicos estão ocupados, o Estado tem registrado alta nos casos de contaminação pela covid-19 desde novembro de 2020. Desde janeiro, o número de óbitos aumentou 61,8% sendo que, no último mês, 630 pessoas morrem no Estado em decorrência do novo coronavírus. Desde o início da pandemia já são 2.944 óbitos registrados. Entre as medidas que vem sendo adotadas pelo Governo do Estado estão o “incentivo ao uso racional dos recursos e equipamentos para evitar a escassez”, incluindo o oxigênio e a transferência de pacientes para outros Estados.
No Acre, onde também não mais vagas para UTI Covid-19, já foram registrados 1.030 óbitos desde o início da pandemia. A marca de mais de 1.000 mortos, que foi atingida na segunda-feira, 1º de março, resultou em decreto de luto oficial por três dias pelo governador Gladson Cameli —que também foi diagnosticado com covid-19 na mesma data e faz acompanhamento médico em casa.
No Acre, embora os leitos clínicos para o coronavírus registrem uma taxa de 88,6% de ocupação e o Estado admita que não há possibilidade de transferência de pacientes, o funcionamento de setores não essenciais foi flexibilizado no dia 1 de março, liberando a abertura do comércio com 20% da capacidade. “Como outros Estados estão com o mesmo quadro de limite assistencial, só podemos recorrer ao Ministério da Saúde e/ou ajuda de outros países em melhor situação, que podem fazer doações. Não temos como transferir pacientes, pois nos demais Estados não existem vagas”, afirma o Governo em nota.
No extremo Norte do país, o Amapá prevê atingir capacidade máxima de vagas em leitos em sete dias, segundo divulgação do Governo do Estado. O Estado registrou aumento de 7,2% nas mortes nos últimos 30 dias: foram 77 óbitos em uma população de 861.773 habitantes.
Embora o número de internados com o coronavírus tenha apresentado queda de 47,8% no mês de fevereiro em relação a janeiro, quando o Amazonas registrou o colapso da rede pública e a falta de oxigênio, a taxa de ocupação de leitos UTI e clínicos para covid-19 ainda é alta: 88% e 70%, respectivamente. Mais de 2.500 pessoas morreram nos últimos 30 dias, mesmo período em que o Governo do Estado tem flexibilizado, paulatinamente, o funcionamento de serviços não essenciais no Estado. Atualmente há autorização para funcionamento de comércio e shoppings de 9h às 15h até sábado e da indústria por 24h, observada a restrição de circulação de pessoas de 19h às 06h.
No caso do Tocantins, a Secretaria da Saúde se limitou a dizer que “alguns pacientes” aguardam leitos de UTI em hospitais ou UPAs por causa do pico pandêmico. Também disse que não pode especificar a taxa de ocupação de leitos “visto que o número é flutuante e se altera a todo instante”. Na página web indicada pela pasta, constam apenas os números de pessoas hospitalizadas com covid-19 —um total de 430 na manhã desta sexta-feira— em hospitais públicos e privados. De acordo com o boletim da Fiocruz, a ocupação no Estado chegou a 86% no dia 1º de março. A pasta ainda garantiu, sem especificar cifras, que o Governo está contratando vagas em hospitais privados e abrindo mais leitos públicos.
Medidas de restrição pouco eficazes
Nenhum dos Estados consultados pelo EL PAÍS fez referência a novas medidas de restrição mais duras. Especialistas consultados são unânimes em dizer que a contenção da crise passa por um lockdown nacional, que também reduziria viagens interestaduais, por exemplo, e que as medidas até agora apresentadas são insuficientes. Além da falta de colaboração do presidente Jair Bolsonaro, que faz chacota das medidas de isolamento, o Brasil ainda enfrenta um cenário com vacinação lenta e incerta e a circulação de novas variantes do vírus potencialmente mais contagiosas e fatais.
No Estado do Rio, a ocupação das UTIs para covid-19 está em 66% e é uma das baixas do Sudeste. Na capital Rio de Janeiro, porém, a ocupação de toda a rede SUS já ultrapassou os 75% —nas unidades próprias do município chega a 88%. Ainda assim, o prefeito Eduardo Paes foi pouco duro nas medidas decretadas na quinta-feira, 4 de março. Entre elas, está a proibição de permanência de pessoas em vias e áreas públicas das 23h às 5h. Também foi decretado que bares, lanchonetes e restaurantes devem fechar, para atendimento presencial, a partir das 17h. Esses estabelecimentos só poderão funcionar das 6h às 17h, podendo atender a um número máximo de clientes correspondente a 40% de sua capacidade instalada.
Medidas similares a um toque de recolher tem sido a solução encontrada por governadores para evitar o lockdown. O Estado de São Paulo chegou a decretar o chamado “toque de restrições” entre 23h e 5h e ignorou a recomendação dos especialistas por medidas mais duras. Mas, na prática, o que mudou foi a adoção de um aumento na fiscalização de festas e aglomerações. Durou poucos dias. Na quarta-feira, o governador voltou a colocar o Estado em fase vermelha, o que significa que somente comércios e serviços essenciais poderão seguir funcionando a partir de sábado.
Na Bahia, onde a taxa de ocupação de leitos de UTI para covid-19 já superou 84%, o governador Rui Costa (PT) decretou um toque de recolher mais rígido até o dia 31 de março, de 20h às 5h. Durante esse período só será permitida a circulação nas vias públicas de pessoas procurando serviços de saúde ou farmácia. A urgência deverá ser comprovada. Na região metropolitana de Salvador, onde a situação é mais grave, somente os serviços essenciais estão autorizados a funcionar. A circulação de transporte público também foi suspensa entre 20h30 e 5h, até pelo menos 8 de março.
Na colapso já instalado ou que se avizinha, o pesadelo do gestores é que a falta de leitos afetará todos os atendimentos, não apenas o de pacientes com covid-19. “Em um cenário catastrófico, uma pessoa que precisar de um hospital não será atendida. No Sírio-Libanês, estamos batalhando para manter os leitos destinados aos pacientes cardiopatas e oncológicos”, conta Felipe Duarte, gerente de práticas médicas do Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo, um dos principais da rede privada brasileira.
Monica de Bolle: O colapso
Estamos prestes a viver outra ruptura, essa muito pior do que a primeira. Da ruptura iminente talvez tenhamos convulsões sociais e políticas. Viveremos a tragédia em outro patamar
A economia brasileira colapsou em 2020, já me apresso a dizer. O PIB não reflete as mortes, o sofrimento de quem teve sequelas de Covid-19, que talvez tenha ficado debilitado e não possa retornar ao mercado de trabalho. O PIB não reflete as marcas que permanecerão depois de tantos óbitos, apesar de um sistema de saúde que, mesmo subfinanciado, tentou dar conta da crise humanitária a que ações e omissões intencionais do governo federal deram uma dimensão que não imaginaríamos um ano atrás. O PIB reflete o apoio à economia que o auxílio emergencial representou. Ele mostra que o auxílio foi um dinheiro da sociedade empregado em seu próprio proveito, apesar do atual governo antibrasileiro. Sem ele, o “tombo”, como alguns se referem à recessão brutal, teria sido muito maior. Esse é o passado que se desdobra no presente. Mas e agora?
No presente estamos explorando as profundezas do colapso. De acordo com estudos já publicados e outro prestes a ser publicado em formato preprint pelo Observatório Covid-19 — rede multidisciplinar de cientistas a qual integro —, a variante P1, que surgiu em Manaus ao final de 2020, é cerca de duas vezes e meia mais transmissível que as anteriores. Isso tem ao menos dois significados: a curva exponencial de contágios é muito mais agressiva e a disseminação é de magnitude mais elevada. Para que se tenha uma ideia, a P1 é duas vezes mais transmissível que a variante viral que pôs toda a Europa em lockdown ao final do ano passado. É provável que seja a propagação da P1 a responsável pelos colapsos hospitalares que temos visto no Rio Grande do Sul, em Santa Catarina, no Maranhão, no interior de São Paulo, além de em várias outras partes do país.
Diante dessa variação do vírus, a pandemia brasileira entrou em sua fase mais crítica desde que o sars-CoV-2 aterrissou no país em fevereiro do ano passado. Por esse motivo, o Brasil tem sido manchete dos principais jornais internacionais — como The Washington Post e The New York Times — desde o último fim de semana. Em entrevista ao jornal O GLOBO no último domingo, alertei para o perigo de que o Brasil se tornasse pária internacional, isolado do resto do mundo, devido à pandemia descontrolada e ao laboratório de mutações em que as ações e omissões do presidente da República e outros de nossos governantes nos transformaram. Somente as consequências disso para a economia já seriam alarmantes. E a elas somam-se outras: a população que não conta com o auxílio, as multinacionais que decidiram deixar o país, o desgoverno de Bolsonaro.
O que deveríamos estar fazendo agora? Primeiramente, um lockdown estrito, sobretudo nas localidades mais afetadas, onde os hospitais já carecem de leitos. Penso, inclusive, que o lockdown deveria ser decretado para o país inteiro, mas sei que isso é esperar demais de um país em que muitos ainda acreditam que saúde e economia não se misturam. Um ano não foi suficiente para que entendessem que o colapso da saúde é o colapso da economia, algo que tenho dito desde março do ano passado. A medida requer dar apoio material para que as pessoas a observem.
Traduzindo, não é possível instituir um lockdown sem que se tenha, ao mesmo tempo, a adoção do auxílio emergencial no valor de R$ 600, o custo de uma cesta básica. Diante da catástrofe anunciada, o término do auxílio só pode ser determinado pelos dados epidemiológicos, aqueles que poderiam indicar a reabertura gradual e lenta. Por fim, o Brasil deveria, sem esperar mais um minuto sequer, comprar doses de todas as vacinas disponíveis nas quantidades que puder. É urgente que se tenha vacinação e cobertura amplas para frear as cadeias de transmissão dessa variante para lá de alarmante. Escrevo ciente de que nada disso será feito, de que ninguém no governo entende a gravidade do que vamos atravessar e, se entende, prefere nada fazer, mas faço questão de deixar essas palavras no papel, para marcar o momento.
Estamos prestes a viver outra ruptura, essa muito pior do que a primeira. Da ruptura iminente talvez tenhamos convulsões sociais e políticas. Por certo teremos muitas mortes evitáveis. Viveremos a tragédia em outro patamar. O colapso não é único, não tem dimensão. O colapso tem tão somente o tamanho do descaso de um governante em relação à população, inclusive aquela que o elegeu.
*Monica de Bolle é Pesquisadora Sênior do Peterson Institute for International Economics e professora da Universidade Johns Hopkins
Fernando Gabeira: A vitória parcial do coronavírus
O desprezo pelo conhecimento fez do Brasil campo fértil para a devastação
Ainda não é hora do balanço final, mas já é possível afirmar que o Brasil foi devastado pelo coronavírus, com possibilidade de se tornar o país que mais sofreu com a pandemia. Sem mencionar as outras razões que nos isolam no mundo, o território brasileiro tornou-se um campo de observação para a humanidade, pois aqui surgiram perigosas mutações do vírus e nada garante que outras variantes não estejam em curso.
Com todo o respeito aos médicos e demais trabalhadores da saúde que batalham na linha de frente, comunicadores que tentam transmitir a dimensão do drama sanitário e grupos que se dedicam diuturnamente à solidariedade, todos combateram o bom combate, mas o saldo nacional é um grande fracasso.
Como é possível que um vírus triunfe sobre uma comunidade humana, neste momento de fácil comunicação e avanço da ciência? O que torna o Brasil tão vulnerável a um vírus mutante? Uma das razões é exatamente a nossa incapacidade de mudar com rapidez para enfrentar a nova situação.
Nenhum país teve um negacionista tão ativo na Presidência como o Brasil de Bolsonaro. Ele imaginou que o vírus seria uma grande ameaça ao seu governo, o impacto econômico poderia derrubá-lo. Daí seu esforço em negá-lo. E não apenas quanto à gravidade da contaminação, mas, sobretudo, no tocante às medidas necessárias para combatê-lo, como isolamento social e suspensão de algumas atividades.
Quando o novo coronavírus apareceu em Wuhan, na China, escrevi que ao chegar ao Brasil a única forma de combatê-lo seria uma resposta nacional e solidária. O comportamento de Bolsonaro mandou para o espaço a esperança de uma resposta nacional. Um passo importante nessa direção foi decapitar ministros da Saúde que reconheciam a importância do vírus e buscavam uma resposta articulada.
Graças ao STF, governadores e prefeitos tiveram reconhecido seu papel constitucional no combate ao vírus. Mas as constantes denúncias de corrupção enfraqueceram sua liderança em muitos Estados do País. No Rio, Witzel perdeu o cargo. A Polícia Federal fez incursões no Pará e no Amazonas. Respiradores foram comprados em lojas que vendem vinho. Em Santa Catarina o escândalo abalou o governo.
Esse processo na cúpula fortaleceu o ceticismo na base. O comportamento coletivo para atenuar os efeitos da pandemia não foi conseguido. Faltaram estímulos. Poucas foram as iniciativas de oferecer lugar para a quarentena, ou para levar água e facilitar a higiene. Poucas também para estabelecer conexão e facilitar aulas para as crianças, diversão para os adultos.
O negacionismo de Bolsonaro desarmou grande parte das iniciativas que a ciência aconselha. Testes foram esquecidos num depósito em Guarulhos. Para que testar? Não houve intenso esforço tanto para sequenciar o vírus quanto no caso das vacinas. Então o Brasil ocupou um lugar único: o presidente se opunha a elas, seja por ignorância científica ou por ignorância política, bloqueando os melhores produtos ocidentais e ironizando os do Oriente vermelho.
A luta contra o coronavírus numa população como a do Brasil é difícil. O vírus é invisível. Mesmo na Europa, os problemas radioativos provocados pelo desastre de Chernobyl encontraram muito ceticismo precisamente porque não eram visíveis.
Mas a ignorância de Bolsonaro não influencia apenas os 30% que o apoiam. Ela se estende por uma faixa da população que não se interessa por ele nem por nenhum outro político. Uma faixa que não vê benefícios em se ter um governo, muito menos em se sacrificar por um coletivo.
Quando Bolsonaro, na sua campanha obscurantista contra a vacina, insinuou que ela poderia transformar pessoas em jacarés, não estava pregando no vazio. Ele conta com a superstição popular. E não está totalmente equivocado. A ideia de pessoas se transformarem em bichos é presente no Brasil. A mula sem cabeça, por exemplo, é um mito que percorreu a nossa infância. Diziam que era uma linda mulher que virou animal porque transou com um padre. E quem se dedicar a estudar a religião tupi verá que os caraíbas, espécie de sacerdotes, difundiam suas crenças contra a religião colonial, mas se diziam capazes de transformar gente em bicho.
O Brasil perdeu a guerra contra o vírus porque ela dependia não só de disciplina, mas de conhecimento. Não somos disciplinados como os vietnamitas, por exemplo.
Mas, para além do individualismo, o desprezo pelo conhecimento fez do Brasil um campo fértil para a devastação. O governo subestimou remédios consagrados, como a vacinação em massa, e optou por falsas saídas, como a hidroxicloroquina.
Em todos os momentos o conhecimento foi espancado. Até mesmo na batida musical das festas clandestinas o Brasil celebrou a ignorância.
Pode ser que no balanço final alguns desses termos se alterem. Mas vista de agora, nossa derrota para o vírus foi a derrota de nossas lacunas educacionais, entendidas em sentido mais amplo, desde o estudo convencional, que nos faça acreditar no invisível, até o flagelo do obscurantismo oficial, a corrupção e uma incipiente cidadania que não acredita na ideia de um país.
Afonso Benites: Bolsonaro repete tática da chacota para mobilizar radicais e desviar atenção
Presidente testa de novo estratégia que até agora tem sido eficaz para manter sua popularidade em torno de 25%. A seu favor, Planalto tem ainda cúpula do Congresso. No entanto, atraso na gestão da vacina pode cobrar preço econômico e mudar jogo com empresários e investidores
O presidente Jair Bolsonaro voltou a investir na sua política de confronto e de discursos diversionistas assim que confrontado com situações incômodas. O mandatário brasileiro dobra a aposta chamando de “frescura” e “mimimi” as práticas de distanciamento social quando há um recrudescimento da pandemia com mais de 1.600 mortos ao dia e após aumentarem as cobranças de governadores e prefeitos por uma coordenação nacional no combate à covid-19.
O ultradireitista choca e atrai para si os holofotes na semana em que seu primogênito, o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), investigado por lavagem de dinheiro, comprou uma mansão de 6 milhões de reais em Brasília. Nem tudo, porém, cabe no script do ultradireitista. Diante da volta dos panelaços nas grandes cidades contra seu Governo, ele desistiu por dois dias seguidos de fazer um pronunciamento em rede nacional de rádio e televisão. E, apesar de ironizar a vacinação, tenta agora recuperar o tempo perdido para a compra dos fármacos sob a pressão de empresários que contam com imunização em massa para fazer a economia escapar de nova retração.
Nesta quinta-feira, Bolsonaro disse que quem defendia medidas restritivas de circulação de pessoas como uma das principais armas para conter o avanço da pandemia estava de “mimimi”. Na prática, retomou o discurso de um ano atrás, quando tentou emplacar a tese de que um isolamento social vertical, no qual apenas os grupos de risco se trancam em casa, seria o mais adequado para a sociedade brasileira. “Nós temos que enfrentar os nossos problemas, chega de frescura e de mimimi. Vão ficar chorando até quando? Temos de enfrentar os problemas. Respeitar, obviamente, os mais idosos, aqueles que têm doenças, comorbidades, mas onde vai parar o Brasil se nós pararmos?”, afirmou o presidente Bolsonaro durante um discurso em Goiás. A chacota contra as recomendações sanitárias ignora o sofrimento dos familiares e amigos de 260.970 pessoas que morreram de covid-19 no Brasil nos últimos doze meses.
Desde meados de fevereiro, diversos Municípios e Estados brasileiros passaram a intensificar políticas de distanciamento social, com o fechamento do comércio e escolas para conter a circulação da população e frear a circulação do coronavírus, já que ainda não há vacinas para todos os brasileiros. Menos de 5% da população foi vacinada no país. Com o discurso contrário, Bolsonaro tenta empurrar para prefeitos e governadores o custo político de medidas impopulares, além de atrapalhar as campanhas de conscientização pelo isolamento social.
Para um conjunto de juristas e segundo uma pesquisa da Faculdade de Saúde Pública da USP e da Conectas Direitos Humanos, Bolsonaro implementa uma política deliberada para sabotar ações contra a pandemia, e deveria ser punido penal e politicamente por isso. O presidente, porém, segue escudado por uma fisiológica base de apoio no Congresso Nacional ―recentemente reforçada por sua bem-sucedida operação ajudar a eleger a nova cúpula do Parlamento― que dificilmente apoiará um dos 60 processos de impeachment. Também conta, até agora, com um Procuradoria-Geral da República que não enxerga irregularidades em seus atos.
Seja como for, o presidente, contudo, tem tomado alguns cuidados. Ao mesmo tempo em agita sua extremista base de apoio, ele libera os seus subordinados a minimamente agirem contra a pandemia, sob pena de ver a economia naufragar e seus adversários políticos surfarem demais. Depois de o presidente e o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, criticarem por dois meses as exigências feitas pela farmacêutica Pfizer, o Governo Federal decidiu avançar nas tratativas para a compra de 100 milhões de doses do imunizante dela até dezembro deste ano. O primeiro lote seria entregue em maio. Se aceitasse o contrato no passado, o país já teria recebido 70 milhões de doses em dezembro.
A corrida global pela vacina não é simples e o Planalto começa a colher reveses. Nesta quinta, ao conversar com apoiadores em Uberlândia (MG), ele reclamou das cobranças que recebe para adquirir os imunizantes. “Tem idiota nas redes sociais, na imprensa, [que fala] ‘vai comprar vacina’. Só se for na casa da tua mãe! Não tem para vender no mundo!”. É bem distinto da fala feita em 28 de dezembro do ano passado, quando afirmou que eram os vendedores quem deveriam buscar o governo brasileiro, e não o contrário. “O Brasil tem 210 milhões de habitantes, um mercado consumidor de qualquer coisa enorme. Os laboratórios não tinham que estar interessados em vender para a gente? Por que eles não apresentam documentação na Anvisa?”, indagou a um grupo de apoiadores no Palácio da Alvorada. “Pessoal diz que eu tenho que ir atrás. Não, quem quer vender (que tem). Se sou vendedor, eu quero apresentar”, completou.
Jogo até 2022
A fórmula caótica de Bolsonaro tem lhe rendido lucros mínimos. Se ainda não tem ameaças graves no campo político um dos motivos é justamente a sua popularidade, com índices superiores a 25%. Além de ser um patamar considerado alto para que um presidente seja tido como descartável pelo mundo político, isso também quer dizer que, caso a eleição presidencial fosse hoje, muito provavelmente Bolsonaro estaria em um segundo turno. “As variáveis que tornaram possíveis a ascensão do bolsonarismo foram a crise econômica do Governo Dilma Rousseff [PT] combinada com a Operação Lava Jato. Esse movimento não se dissipa de um dia para o outro”, avalia o cientista político Antônio Lavareda, do Instituto de Pesquisas Sociais, Políticas e Econômicas (IPESPE), que produz levantamentos frequentes atualmente para a corretora de investimentos XP.
Na visão de Lavareda, no entanto, a disputa eleitoral de 2022 pode mudar a equação porque acabará colocando quatro temas na mesa, todos em que Bolsonaro pouco progrediu: a atuação na pandemia, que tem sido catastrófica; a retomada da economia, ameaçada pela falta de vacinação em massa; o combate à criminalidade violenta; e a redução da corrupção. No mês passado, o levantamento XP-Ipespe mostrou que o presidente patina nos quatro grandes assuntos. Na condução do enfrentamento à pandemia, 53% consideram seu desempenho ruim ou péssimo. Com relação à corrupção, 48% acreditam que há a expectativa de aumentar a prática. Na percepção de 62% a violência e a criminalidade violenta aumentaram. E, para 57%, a economia segue no caminho errado. “A preço de hoje o presidente tem problemas importantes em três desses temas. E perdeu a grande dianteira que tinha no combate à corrupção, por causa de suas alianças atuais, pelo fim da Lava Jato e por causa dos casos mal explicados de seus filhos”, disse Lavareda.
Ao notar esses movimentos, o presidente persiste na radicalização de seu discurso e, como jamais desce do palanque eleitoral, espera confrontar algum adversário do campo da esquerda em um segundo turno. “Ao que parece, o presidente vai precisar ressuscitar os fantasmas de 2018, da corrupção, do descalabro econômico do Governo Dilma e da falsa ameaça comunista”, avaliou o cientista político.
De momento, o custo Bolsonaro não parece incomodar a Câmara dos Deputados, atualmente presidida pelo líder do Centrão e neobolsonarista Arthur Lira (PP-AL). Até agora poucos são os deputados fora do campo da oposição que defendem qualquer tipo de enfrentamento contra o presidente. A nova tentativa de atingir o Governo vem do pedido de criação da CPI do Auxílio Emergencial, que ainda colhe assinaturas para investigar fraudes que atingem o montante de 50 bilhões de reais na concessão do benefício.
Já no Senado, passaram a circular nos últimos dias conversas para que o presidente da Casa, Rodrigo Pachedo (DEM-MG), outro aliado tático de Bolsonaro, autorize a abertura da CPI da Saúde, que tem como objetivo investigar toda a atuação do Governo federal. Pacheco tem buscado argumentos para impedir a abertura desse grupo por entender que a apuração seria contraproducente no momento. Por ora, essa parede ainda protege Bolsonaro.
Fernando Abrucio: Bolsonaro nos afasta do século XXI
A covid-19 é o mal imediato, mas o problema mais profundo está na visão arcaica, míope e populista de nosso presidente
O Brasil chegou ao seu pior momento da pandemia e o governo Bolsonaro tem apenas sabotado o país. Milhões de casos, milhares de mortes, sistema de saúde em colapso, aumento da pobreza e da desigualdade, além do confronto com governadores, prefeitos e mercado, tudo de uma vez só. Esse é o retrato atual da nação. Mas é possível ver a luz do fim do túnel e imaginar que no segundo semestre, após a vacinação de boa parte da população e com os ventos positivos da economia internacional, sairemos do momento mais crítico da crise. O problema é que o dia seguinte da covid-19 deixará o rei nu, mostrando que o presidente não tem a menor ideia do que fazer para enfrentarmos os desafios do século XXI.
Muitos analistas já estão apresentando um cenário pós-pandemia alvissareiro, com melhor desempenho econômico em 2022. Por esta ótica, a crise sanitária da covid-19 é o “bode na sala”: basta retirarmos esse bicho que nos incomodou tanto que tudo voltará ao normal. Trata-se de uma visão míope, que olha apenas para o curto prazo.
Há dois grandes erros nesta percepção de que a pandemia é apenas o “bode na sala”. O primeiro deles deriva do fato de que haverá sequelas da crise impulsionada pela covid-19. Não será fácil apagar a dor dos parentes que viram seus próximos morrerem, das pessoas que sofreram com a doença, daqueles que perderam emprego ou tiveram sua vida virada de cabeça para baixo. A vacinação em massa e o impulso externo têm boas chances de ativar a roda da economia até o fim do ano, mas as taxas de desemprego dificilmente voltarão ao patamar anterior à eleição de Bolsonaro.
Uma das sequelas da crise é o aumento, ainda em curso, do contingente de descontentes que não mudarão sua visão apenas com a melhoria do cenário econômico. Puxando esse processo, há uma parcela significativa da população que avalia muito mal a gestão da política de saúde, algo que foi catapultado pelo fracasso inicial no processo de vacinação. Na verdade, consolidou-se num patamar próximo à metade do eleitorado, uma visão negativa sobre a capacidade de o governo gerir qualquer coisa. O fracasso não ocorreu apenas no plano sanitário. Ele também é nítido, especialmente para a população mais pobre, na política educacional, que foi abandonada por um MEC que nem consegue gastar o dinheiro que tem. A sensação de incompetência também aparece em outros setores, como meio ambiente e cultura, por exemplo, nos quais o bolsonarismo só fez por destruir.
Assim, além do radicalismo dos valores e da lógica política de guerra, o modelo bolsonarista caracteriza-se hoje, para grande parte da população, como um governo de incompetentes. Há uma enorme lista de ministros e auxiliares que são reconhecidos pela opinião pública como desastrosos. Mesmo que a economia seja puxada um pouco para cima, quase que naturalmente, pelo fim da pandemia, não parece haver muito espaço para Bolsonaro ampliar seu eleitorado por meio de políticas públicas.
Não por acaso a sua presidência alicerça-se numa concepção que independe ou é contraditória com uma lógica estruturada de políticas públicas. Bolsonaro busca legitimidade no terreno dos valores tradicionais, na criação de inimigos para seu séquito de apoiadores odiar e, cada vez mais, em medidas populistas que não são sustentáveis ao longo do tempo, mas que geram um alívio imediato em públicos-alvo importantes do bolsonarismo. Todo o debate recente sobre os preços dos combustíveis, com a mudança abrupta na gestão da Petrobras e a criação de um paliativo tributário, tem como objetivo contentar momentaneamente caminhoneiros, motoristas de aplicativos e afins. O que será feito para garantir no longo prazo essa política está fora do alcance do populismo bolsonarista.
Em poucas palavras, a crise da covid-19 revelou claramente que o governo Bolsonaro é adepto de um populismo imediatista, pouco preocupado em construir políticas públicas consistentes e bem estruturadas, seja porque seleciona basicamente gestores incompetentes, que estão lá porque têm juízo de obedecer, seja porque o bolsonarismo não tem nem um diagnóstico nem um plano para transformar o Brasil.
A falha da visão otimista alicerçada na teoria da pandemia como “bode na sala” vai além de não perceber as sequelas deixadas pela gestão populista da crise da covid-19. O maior problema do bolsonarismo reside na ausência de uma agenda para enfrentar os desafios do século XXI. O governo oscila entre a defesa de ideias completamente ultrapassadas e a proposição de ações puramente imediatistas. Trata-se um populismo que bebe em visões arcaicas de sociedade e do modelo político - incluindo aqui sua defesa nefasta da ditadura militar -, ao mesmo tempo que procura saídas fáceis para resolver as demandas do eleitorado, como mudanças no Código Nacional de Trânsito como forma de “libertar” os motoristas ou a ampliação gigantesca do uso de armas como forma de garantir a paz do “cidadão de bem”.
A opinião pública em geral e as elites econômica e política continuam discutindo as ações e os factoides de curto prazo criados por Bolsonaro, mas deixam de lado a ausência de uma agenda minimamente antenada com as principais questões contemporâneas. Esse fenômeno já vinha de antes, porém, aprofundou-se com o bolsonarismo: perdemos a capacidade de pensarmos o futuro do país e de dialogarmos com as principais tendências internacionais.
Por isso, quando sairmos da fase mais crítica da pandemia, precisamos elencar quais são os grandes desafios para os quais devemos nos preparar nos próximos anos. Cinco deles serão decisivos como passagem a um século XXI melhor: questão ambiental, educação, novas formas de desenvolvimento econômico, combate às desigualdades e aperfeiçoamento da governança democrática.
A temática ambiental é relevante para todo o mundo, todavia, é muito mais importante para o Brasil, por causa de nossa riqueza e diversidade de ecossistemas, especialmente da Amazônia. O meio ambiente tem que se transformar num ativo para o desenvolvimento do país. Qualquer outra perspectiva é anacrônica e nos levará a perder apoio econômico e geopolítico.
O segundo desafio é o da educação. O Brasil precisa, aqui, fazer duas tarefas ao mesmo tempo: acabar com as mazelas derivadas de um longo tempo de letargia educacional e, sobretudo, criar pontes para o futuro. Professores e gestores mais qualificados e em constante renovação, métodos didáticos inovadores que ampliem as possibilidades formativas dos alunos, formas colaborativas de gestão, parcerias com a sociedade e um modelo educacional comprometido com a maior equidade das crianças e jovens, eis os pontos que deveriam ser discutidos agora. Mas, no momento, o MEC está completamente ausente deste debate.
Explorar as potencialidades econômicas do país de uma forma criativa, antenada com as tendências futuras e captando as singularidades brasileiras deveria ser uma tarefa central hoje. Várias frentes de produção de riqueza podem surgir: atividades culturais e de entretenimento, melhor exploração do meio ambiente pela agroecologia e pelo turismo sustentável, empreendedorismo das periferias, criação de novos serviços com tecnologia da informação, reorganização dos grandes centros urbanos, uso de fontes renováveis de energia, avanço da infraestrutura sob bases mais modernas, para ficar em alguns dos temas mais contemporâneos e fascinantes. Há um enorme espaço para novas formas de desenvolvimento, que podem ativar e renovar o restante da economia.
O combate às desigualdades é essencial para mudar a cara do Brasil no século XXI. É preciso atacar as profundezas desse fenômeno, ampliando as oportunidades para um enorme contingente de pessoas que estão alijadas do processo de desenvolvimento. Não se trata de políticas compensatórias de curto prazo. Em vez disso, são necessárias ações estruturais, baseadas num planejamento de longo prazo. A redução das iniquidades de diversas ordens - de renda, racial, de gênero, regional - vai não só tornar o país mais justo e solidário (algo essencial para a melhoria da ação coletiva, como a pandemia comprovou), como também vai aumentar o espaço sustentável de desenvolvimento econômico.
O quinto e último desafio é aperfeiçoar e fortalecer a governança democrática do país. Isso passa pelas estruturas institucionais mais gerais, como as eleições, as relações entre os Poderes e a responsabilização da administração pública, bem como pela cultura política, incentivando o diálogo social permanente e o reforço das formas solidárias de ação coletiva. Ter mais e melhor democracia tem efeitos positivos sobre todas as coisas. Basta pensar que novas pandemias podem surgir no futuro, e o Brasil não poderá repetir a vergonha que foi ter conjunto enorme de indivíduos atuando de forma egoísta, sem respeitar o distanciamento social e ignorando o uso de máscaras, o que se somou a um líder nacional que não teve empatia com os milhares de cidadãos mortos.
Começar a refletir, debater e planejar para atuar nestes cinco desafios é tarefa urgente. O pós-pandemia, neste sentido, é muito mais complexo do que o debate rasteiro que tem sido feito no Brasil. Pior: Bolsonaro não quer dialogar ou mesmo ignora os desafios do século XXI. A covid 19 é o maior mal imediato, mas o problema mais profundo do país está na visão arcaica, míope e populista de nosso presidente.
*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas
Maria Cristina Fernandes: O léxico mortífero de Bolsonaro na crise sanitária
Prisão de deputado por ofensa a um poder contrasta com a inimputabilidade de um presidente que, ao longo de 12 meses, foi determinante para a posição do Brasil no pódio mundial da covid-19
1) “Obviamente temos uma crise, uma pequena crise. No meu entender, muito mais fantasia, a questão do coronavírus, que não é tudo isso que a grande mídia propaga pelo mundo todo” (10/2/2020)
Discurso para a comunidade brasileira em Miami, três dias depois de chegar à Flórida, onde jantou com o então presidente Donald Trump. Nas semanas que se seguiram, 23 integrantes da comitiva foram diagnosticados com o vírus. No dia seguinte, a Organização Mundial de Saúde (OMS) reconheceu a pandemia. No dia 26 seria oficializado o primeiro caso de coronavírus. O Ministério da Saúde depois reconheceria que havia casos, sem diagnóstico, desde janeiro.
2) “O que está errado é a histeria, como se fosse o fim do mundo. Uma nação como o Brasil só estará livre quando certo número de pessoas for infectado e criar anticorpos” (17/03/2020)
Entrevista à rádio Tupi. No dia anterior, o Ministério da Saúde havia notificado a primeira morte por coronavírus, depois ratificado para 12 de março. No dia seguinte à entrevista, o presidente solicitou a calamidade pública para suspender artigos da Lei de Responsabilidade Fiscal.
3) “No meu caso particular, pelo meu histórico de atleta, caso fosse contaminado pelo vírus, não precisaria me preocupar. Nada sentiria ou seria, quando muito, acometido de uma gripezinha ou resfriadinho” (24/03/2020)
Pronunciamento em rede nacional. No dia seguinte, o presidente baixaria decreto incluindo atividades religiosas de qualquer natureza e unidades lotéricas entre atividades essenciais durante a pandemia.
4) “O tratamento da covid-19, à base de hidroxicloroquina e azitromicina, tem se mostrado eficaz nos pacientes ora em tratamento” (25/03/2020)
Postagem em redes sociais. A produção de hidroxicloroquina pelo Laboratório Químico do Exército chegaria a 80 vezes a média histórica, com compra de insumo 167% mais caro que a média do mercado. Em maio a OMS suspenderia estudos sobre a hidroxicloroquina em função dos efeitos adversos do medicamento.
5) "Eu acho que não vai chegar a esse ponto [a situação dos Estados Unidos]. Até porque o brasileiro tem que ser estudado. Ele não pega nada. Você vê o cara pulando em esgoto ali, sai, mergulha, tá certo? E não acontece nada com ele". (26/03/2020)
Declaração a apoiadores em frente ao Alvorada. Nesse dia, a Secretaria de Comunicação do governo lança a campanha “Brasil não pode parar”, com a informação de que, no mundo todo, são raros os casos de vítimas fatais do coronavírus entre jovens e adultos”.
6) “O vírus está aí. Vamos ter que enfrentá-lo, mas enfrentar como homem, porra. Não como um moleque. Vamos enfrentar o vírus com a realidade. É a vida. Todos nós iremos morrer um dia”(29/03/2020)
Declaração a apoiadores em aglomeração em Brasília. No dia seguinte, o Ministério da Saúde suspende as entrevistas diárias sobre a pandemia. Dois dias depois, Trump diz que avalia a possibilidade de banir vôos provenientes do Brasil.
7) “Ninguém vai tolher meu direito de ir e vir” (10/04/2020)
Declaração em aglomeração formada pelo presidente durante ida a farmácia em Brasília. Dois dias depois, o então ministro Luiz Henrique Mandetta se queixa, em entrevista ao Fantástico, que o brasileiro não sabe a quem escutar, se a Bolsonaro ou a ele, Mandetta.
8) “Eu não sou coveiro” (20/04/2020)
Responde a jornalistas na saída do Alvorada sobre a escalada de mortes da pandemia. Naquela semana, demitiu Mandetta e deu posse a Nelson Teich.
9) “E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê? Sou Messias, mas não faço milagre” (28/04/2020)
Em resposta a jornalistas à saída do Palácio do Alvorada. Brasil ultrapassa a China em número de casos confirmados. Estudo do Imperial College, de Londres, mostra que o país tem a maior taxa de contágio do mundo.
10) “Eu gostaria que todos voltassem a trabalhar, mas quem decide isso não sou eu, são os governadores e prefeitos” (01/05/2020)
Em ‘live’ por ocasião do Dia do Trabalho. Dias depois, acompanhado de empresários, atravessa a pé a praça dos Três Poderes para uma visita ao então presidente do STF, Dias Toffoli, a quem se queixa da decisão do Supremo pela autonomia dos Estados e municípios na gestão da pandemia.
11) "Os senhores, com todo o respeito, têm que chamar o governador e jogar pesado. Jogar pesado, porque a questão é séria, é guerra. Estou exigindo a questão da cloroquina agora também” (14/05/2020)
Em videoconferência com empresários. Na véspera, Teich alertara sobre efeitos colaterais da hidroxicloroquina. Presidente edita MP que isenta agentes públicos de responsabilização por atos e omissões na pandemia. Congresso não vota e a medida caduca.
12) “Quem for de direita toma cloroquina, quem for de esquerda toma tubaína” (19/05/2020)
Entrevista ao Blog do Magno. Brasil ultrapassa a marca dos mil mortos pelo coronavírus em 24 horas. Quatro dias antes, Teich se demitira. Assume interinamente o general Eduardo Pazuello, que adota protocolo para uso da cloroquina e da hidroxicloroquina.
13) “Alguém lembra da guerra do Pacífico? Os soldados chegavam feridos e precisavam de transfusão, mas não tinha doador. Começaram a meter água de côco na veia deles. Sem comprovação científica, salvou milhares de pessoas” (22/05/2020)
Declaração em live. Dois dias depois, EUA proíbem entrada de estrangeiros que tenham partido do Brasil. Dez dias depois, Bolsonaro passeia a cavalo por Brasília durante atos antidemocráticos.
14) “STF decidiu que os governadores e prefeitos é que são responsáveis por essa política, inclusive isolamento. Agora está vindo uma onda de desemprego enorme […] Não queiram colocar no meu colo” (07/06/2020)
Declaração à saída do Alvorada. Na véspera, governo tira do ar plataforma do Ministério da Saúde com informações consolidadas sobre a pandemia, levando os meios de comunicação a formar consórcios para atualizar os dados.
15) “Seria bom você, na ponta da linha, tem um hospital de campanha aí perto de você, um hospital público, arranja uma maneira de entrar e filmar. […] tem que fazer para mostrar se os leitos estão ocupados ou não, se os gastos são compatíveis ou não" (11/06/2020)
Declaração a apoiadores à saída do Alvorada. Universidade Johns Hopkins coloca o Brasil como o segundo em número de mortes. Uma semana depois, o Brasil ultrapassaria a marca de 1 milhão de casos.
16) “Eu sou a prova viva de que [a cloroquina] deu certo” (18/08/2020)
Declaração em inauguração de obra no Pará. Bolsonaro é diagnosticado em 6 de julho, no mesmo dia em que veta dispositivos da lei que obrigava estabelecimentos a fornecer gratuitamente a funcionários máscaras de proteção. Dali a um mês, quando o Brasil já contava 130 mil mortos, Pazuello seria confirmado na Saúde.
17) “Isso existe, os países se preparam para guerras, até com bombas. Aí tem a guerra nuclear, bacteriológica. Pessoal mexe com vírus em laboratório, pode ter escapado isso aí” (28/10/2020)
Declaração a apoiadores à saída do Alvorada. Na semana anterior, o Ministério da Ciência e da Tecnologia anunciara estudos sem evidências sobre inibição da carga com o vermífugo Anita.
18) "Está acabando a pandemia [no Brasil]. Acho que [o Doria] quer vacinar o pessoal na marra rapidinho porque vai acabar e daí ele fala: 'acabou por causa da minha vacina'. Quem está acabando é o governo dele, com toda certeza" (30/10/2020)
Declaração a apoiadores à saída do Alvorada no início da guerra das vacinas com o governador paulista.
19) “Lá no meio dessa bula está escrito que a empresa não se responsabiliza por qualquer efeito colateral. Isso acende uma luz amarela. A gente começa a perguntar para o povo: você vai tomar essa vacina?” (16/12/2020)
Entrevista à TV Bandeirantes. Dois meses depois, seria tornada pública carta da Pfizer com a oferta da vacina ao Brasil.
20) "A questão da máscara, ainda vai ter um estudo sério falando sobre a efetividade da máscara… é o último tabu a cair” (26/11/2020)
Declaração na ‘live’ semanal. Anvisa autoriza prorrogação excepcional da validade dos testes depois que o “Estadão” informou que mais de 6 milhões de testes perderiam a validade.
21) "Eu não vou tomar vacina e ponto final. Minha vida está em risco? O problema é meu” (15/12/2020)
Discurso na Ceagesp, em São Paulo. Na semana anterior, 11 ex-ministros da Saúde haviam publicado artigo- denúncia da estratégia de vacinação.
22) "A pandemia, realmente, está chegando ao fim […] pequeno repique pode acontecer, mas a pressa da vacina não se justifica” (19/12/2020)
Entrevista ao programa do filho, Eduardo Bolsonaro. Na semana seguinte, a Câmara de Comércio Exterior (Camex) eleva o imposto de importação sobre cilindros que armazenam gases medicinais.
23) “Quem frequenta a praia pega um sol, e o sol é o que fixa a vitamina D no corpo. Tiveram problemas graves? Não. A solução está aí” (07/01/2021)
Declaração em live semanal. No dia seguinte, Supremo concede liminar para impedir que a União requisite agulhas e seringas contratados pelo Estado de São Paulo.
24) “Nós demos dinheiro, recursos e meios. Não fomos oficiados por ninguém do Estado na questão do oxigênio” (27/01/2021)
Declaração no Alvorada. Duas semanas antes, Pazuello dissera saber da crise de oxigênio. Governo escolheu Manaus, onde se acumulam mortes por asfixia, para lançar o aplicativo TrateCov, que sugeria hidroxicloroquina e ivermectina até para bebês.
25) “O pessoal fica buscando alternativas já que não existe remédio específico e, pelo que tudo indica, o tratamento da covid em casos graves tem tudo pra dar certo com esse spray” (16/02/2021)
Live gravada em Camboriú (SC) sobre a negociação de compra de um spray nasal de Israel, o único país que já conseguiu o patamar seguro de vacinação de sua população.
Murillo de Aragão: As crises e as oportunidades
O Brasil foi desarmado para a guerra contra a pandemia
Como disse Pedro Malan, no Brasil até o passado é incerto. Avaliar o debate sobre a PEC Emergencial antes de sua aprovação é temerário. No entanto, quando escrevia esta coluna o Senado já tinha aprovado a proposta de emenda constitucional de forma razoável: abrindo espaço para o auxílio emergencial com a manutenção do teto de gastos. E, em meio a intenso debate, a emenda provavelmente será definitivamente aprovada nesse formato.
A aprovação definitiva da PEC Emergencial respeitando a integridade do conceito de teto de gastos é apenas uma batalha na guerra travada neste momento pelo povo brasileiro. A questão fiscal permanece relevante com o futuro debate do Orçamento da União e o andamento das reformas constitucionais e infraconstitucionais. Mas outras batalhas estão em curso.
Meus leitores sabem que, no fim de janeiro do ano passado, coloquei aqui mesmo minhas preocupações com a epidemia que vinha da China. Alertava que seria um imenso desafio para governos e sociedade. E com repercussões alarmantes, caso se alastrasse. Tempos depois escrevi Ano Zero, livro que traz uma reflexão sobre a economia e a política no pós-pandemia e que está disponível em Veja Insights, no site desta revista.
“O auxílio emergencial foi essencial, mas não houve um programa de retomada do crescimento”
Embora minhas preocupações e as de outros tenham sido transmitidas às autoridades ainda em janeiro, o Brasil partiu desarmado para a guerra contra a pandemia. Eventos tão extraordinários como esta crise sanitária exigem foco, liderança e planificação. Aspectos que foram insuficientes ao longo da evolução da pandemia. Pela capacidade econômica do Brasil, nosso programa de vacinação deveria ter sido iniciado em dezembro do ano passado. Não fosse a “vachina” do Instituto Butantan, a nossa situação seria muito, muito pior. Em tempos de pandemia, cada dia desperdiçado resulta em vidas perdidas e atrasos na retomada das atividades.
No campo econômico, as respostas foram parciais e, de alguma maneira, não houve uma tragédia maior. O auxílio emergencial foi essencial, mas não se traçou um programa estruturado de retomada do crescimento econômico da magnitude que situações como a pandemia exigem. Não há saída de crises profundas sem esforços organizados. Foi assim na Grande Depressão, dos anos 30, no pós-guerra dos anos 40 e após o crash de 2008.
Todos sabem que as crises também significam oportunidades. Perdemos a chance de debater soluções estruturantes para a miséria, a pobreza, a economia informal, a qualidade da educação e o fortalecimento do Sistema Único de Saúde (SUS). Ficamos no meio do caminho cuidando da questão fiscal e distribuindo dinheiro para os necessitados. Não basta. Infelizmente, o país não para de validar a frase do economista Roberto Campos: “O Brasil não perde a oportunidade de perder uma oportunidade”.
A pandemia nos dá a possibilidade de encaminhar questões estruturais, que deveriam ser enfrentadas com determinação, organização e patriotismo. Sobraram chiliques, meias verdades, guerra de egos, conflito de competências, indefinição e negacionismo. Milhares de pessoas morreram. E essa tragédia poderia ter sido, pelo menos, minimizada.
Publicado em VEJA de 10 de março de 2021, edição nº 2728
Armando Castelar Pinheiro: Sabor de fim de festa
Pandemia, populismo, inflação alta e um cenário externo menos favorável vão complicar o quadro econômico
A matéria de Lucas Hirata, manchete do Valor de uma semana atrás, impressionou: A bolsa de valores “sofreu fuga recorde de capital externo após a intervenção do presidente Jair Bolsonaro na Petrobras. Investidores estrangeiros retiraram, segundo a B3, R$ 9,2 bilhões no período de três pregões desde o estouro da crise”. No mês, os estrangeiros tiraram R$ 6,8 bilhões da bolsa, depois de três meses investindo uma média de R$ 28,3 bilhões ao mês. Com essa virada, não surpreende o Ibovespa ter caído 5,1% em fevereiro.
Dois fatos determinaram esse movimento, nenhum deles provável de ser revertido nos próximos meses.
Primeiro, a percepção de que o “estilo populista” do presidente influenciará cada vez mais na política econômica, conforme as eleições se aproximem e a economia siga sem se recuperar.
Reflita um instante sobre a coreografia da crise da Petrobras. O mandato de Roberto Castello Branco estava acabando e ele logo poderia ser substituído, sem ruído ou o presidente se envolver. Este, porém, optou por comandar a mudança, via a imprensa, com grande alarde, supostamente para impedir uma paralisação de caminhoneiros. Como mostrou Malu Gaspar, porém, esse risco não existia (glo.bo/3kD06MY). A conclusão é que a “crise” foi construída do nada, para colocar o presidente do lado do “povo” contras as “elites”. Nas suas palavras: “O petróleo é nosso? Ou é de um pequeno grupo no Brasil?”.
Ao fim, a ruidosa destituição de Castello Branco rendeu o resultado que buscava: grande exposição do presidente na mídia.
Até aí, trata-se de estilo político. Ocorre que o evento trouxe grande prejuízo para os investidores, e não apenas os estrangeiros, e não apenas da Petrobras, mas de empresas estatais em geral. A gestão dessas empresas ficará mais difícil, afetando seu desempenho. A gestão da política econômica também se complica, inclusive nas negociações no Congresso, pois se perde segurança sobre que posições defender. Levar a MP de privatização da Eletrobras ao Congresso, ou iniciar o debate da reforma do monopólio postal, não muda isso: a chance de um dos dois avançar é mínima no quadro atual, em que pese o esforço dos envolvidos.
E fica no ar a dúvida de se algo semelhante ocorrerá em outras áreas da política econômica. Me preocupa, em especial, o não trivial ciclo de alta da taxa Selic que o Banco Central (BC) deve iniciar em sua reunião de daqui a duas semanas. A Selic a 2% está bem fora de lugar, considerando a perspectiva de uma inflação girando perto de 7% no meio do ano, a mudança no quadro externo e a necessidade de evitar riscos à estabilidade financeira. Será que o presidente manterá nessa nova etapa o mesmo apoio que deu ao BC quando este trouxe a Selic para 2%? Ou será que, com a economia estagnada, e a pandemia se agravando, veremos uma repetição do episódio Petrobras, se se opor à alta da Selic render popularidade?
O outro fato propulsor da saída dos estrangeiros foi a mudança de humor global em relação a ativos de países emergentes e ativos de risco em geral. Esta resultou da escalada dos juros pagos nos títulos públicos americanos, refletindo a expectativa de inflação e de juros reais mais altos. Isso porque a provável aprovação de um pacote fiscal de US$ 1,9 trilhão e o impulso advindo da vacinação, que já alcançou um quarto da população americana, devem aquecer fortemente a economia do país, levando o Fed, o BC americano, a subir os juros antes do que se esperava.
Uma economia americana mais aquecida fará o país ter um déficit externo mais alto, irrigando o mundo de dólares. Por outro lado, se os EUA forem vistos como o melhor destino dos investimentos, pela perspectiva de mais crescimento e de juros mais altos, o fluxo de recursos financeiros para lá será grande. O resultado líquido provavelmente será um dólar mais forte, que é algo ruim para emergentes e o Brasil em particular, que já está com o câmbio muito depreciado.
Difícil imaginar como evitar uma alta mais significativa da Selic nesse cenário. Especialmente porque o Brasil seguirá crescendo pouco e demorando muito para alcançar um nível mínimo de normalização sanitária, fatores que o tornarão pouco atraente para o investidor estrangeiro, mesmo na comparação com outros emergentes.
Durou pouco para nós, portanto, o clima de festa que emergiu com o anúncio da vacina contra a covid-19 no início de novembro. É verdade que a vacinação vai acelerar nos próximos meses, que com isso o desempenho da economia pode melhorar no segundo semestre, e que sempre há a esperança de o Congresso aprovar reformas que diminuam o risco fiscal e estimulem o investimento. Mas será que dá para apostar em avanços substantivos?
Pandemia, populismo, inflação alta e um cenário externo menos favorável do que se imaginava na virada do ano vão complicar o quadro econômico nos próximos meses. Turbulência e incerteza, em um mercado financeiro internacional também volátil, vão ser a norma até que as eleições de 2022 tragam alguma ancoragem às expectativas.
*Armando Castelar Pinheiro é Coordenador de Economia Aplicada do Ibre/FGV, professor da Direito-Rio/FGV e do IE/UFRJ