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O Estado de S. Paulo: Para os EUA, descontrole da pandemia no Brasil e variante ameaçam o mundo

Autoridades da saúde e do governo americano estão em estado de alerta e afirmam que nenhum país estará seguro enquanto a disseminação do coronavírus continuar a crescer, pelo risco de surgirem novas variantes, mais transmissíveis e também agressivas

Beatriz Bulla* e Giovana Girardi, O Estado de S. Paulo
*Correspondente em Washington

Uma ameaça para o mundo. É assim que a imprensa americana retrata a atual situação da pandemia de coronavírus no Brasil, ecoando a preocupação de cientistas, autoridades da área de saúde e do governo americano sobre os efeitos do descontrole da propagação de uma nova variante do Sars-CoV-2 no País.

Nos EUA, a população já discute quando a vida poderá voltar ao normal, diante da aceleração do ritmo de vacinação e da indicação de que até o fim de maio o país terá doses de imunizante para todos. Depois de um ano como epicentro da pandemia, os EUA agora veem uma luz no fim do túnel e a ameaça do lado de fora. Mais especificamente no Brasil.

“Há uma sensação de alarme sobre a natureza não controlada da pandemia no Brasil e o ritmo lento da vacinação – especialmente agora que o Brasil é a fonte de uma nova e preocupante variante da covid-19”, afirma Anya Prusia, do Brazil Institute do Centro de Estudos Wilson Center, em Washington. “A atenção aqui está voltada para a disseminação dessa cepa mais contagiosa, a P.1, que se originou em Manaus.” 

Os primeiros dois casos da variante P.1 foram registrados nos EUA em janeiro, horas depois de o presidente Joe Biden revogar uma decisão de Donald Trump e recolocar a restrição de viagens do Brasil aos EUA.

Duas pessoas que estiveram no Brasil foram diagnosticadas com a nova cepa em Minnesota. Até agora, os EUA registraram 13 casos da mutação, em ao menos sete Estados. Mas ainda não há transmissão comunitária, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS).

Mas não foi a chegada nos EUA da cepa de Manaus que alarmou os americanos e sim a recente situação da pandemia no Brasil, que tem batido recorde de mortes. “Enquanto a pandemia continuar a crescer, ninguém estará a salvo”, disse o porta-voz do Departamento de Estado americano, Ned Price, em coletiva de imprensa.

Em pronunciamentos e entrevistas recentes, o principal infectologista do governo americano, Anthony Fauci, tem ressaltado que a cepa P.1 está associada a uma maior transmissibilidade e à preocupação de que a mutação possa interromper a imunidade induzida naturalmente e pela vacina.

Há cerca de um mês, Fauci afirmou que isso preocupa os americanos, que não devem derrubar tão cedo o bloqueio de passageiros que estiveram no Brasil. Nesta semana, ele voltou ao tema. “O Brasil está numa situação muito difícil. A melhor coisa é vacinar o maior número de pessoas o mais rápido possível”, disse Fauci, que chegou a dizer que os EUA poderiam ajudar os brasileiros.

O ritmo de vacinação nacional, porém, não anima. O Washington Post descreveu a vacinação brasileira como um processo de “escassez e atrasos”, enquanto o The New York Times reporta uma vacinação lenta e sem sinalização de melhora.

“O país atingiu o pior momento. Surgiram variantes que parecem mais mortais para pessoas saudáveis, e os cientistas documentaram coinfecção por múltiplas variantes”, escreveu Kevin Ivers, vice-presidente da consultoria americana DCI Group, em relatório. “A preocupação é que a disseminação acelere essas coinfecções no Brasil e leve a uma explosão de novas variantes mais agressivas.”

A situação brasileira foi definida pelo Washington Post, no dia 4, como “terreno fértil” para outras variantes. O risco foi mencionado também por cientistas, como Bill Hanage, epidemiologista da Faculdade de Saúde Pública da Universidade Harvard (leia a entrevista aqui).

Nas redes sociais, o também epidemiologista e economista da área da saúde Eric Feigl-Ding, membro da Federação de Cientistas Americanos, postou que o Brasil precisa da ajuda de líderes estrangeiros. “A epidemia descontrolada do Brasil será uma ameaça ao mundo, mas ainda não é muito tarde”, disse ao Estadão. “Mas é preciso ter sequenciamento genético, controle de fronteiras, quarentenas e testagem em massa.”

Para a epidemiologista brasileira Denise Garrett, vice-presidente do Sabin Vaccine Institute, com base em Washington, se o Brasil não for capaz de controlar a situação, os bloqueios de viajantes devem se intensificar. 

O neurocientista brasileiro Miguel Nicolelis, pesquisador da Universidade Duke, que nos últimos dias ganhou espaço em jornais estrangeiros pedindo uma pressão de outras nações sobre o Brasil, chama a atenção para a “geopolítica da pandemia”. “É a diplomacia do século 21. Já tem países trocando mercadorias por vacinas”, afirmou. “Se o fluxo ficar desimpedido, a doença desse país vai migrar para os outros.”

Falta de liderança

Na imprensa e entre analistas americanos, Jair Bolsonaro é o presidente que propaga desinformação, é cético sobre a vacina e está em choque com governadores. “Como aconteceu com Trump, o vácuo de liderança de Bolsonaro deu ao vírus abertura para se espalhar”, disse o Washington Post. Um dia antes, o The New York Times colocou a preocupação com o Brasil em sua capa.

A crise no País já chamou a atenção no ano passado, com as imagens de cemitérios lotados em Manaus e São Paulo. Desta vez, a preocupação é diferente, porque o que acontece no Brasil, segundo os americanos, pode colocar em xeque os avanços do resto do mundo.

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O Estado de S. Paulo: Ofensiva na Câmara pode atenuar leis anticorrupção

Nos bastidores, as medidas são chamadas de “pacote da impunidade” por adversários do presidente da Casa, Arthur Lira (Progressistas-AL)

Felipe Frazão, O Estado de S.Paulo

Depois de fracassar na tentativa de blindar parlamentares da prisão, a Câmara se prepara para enfrentar, nas próximas semanas, uma série de discussões com potencial para afrouxar leis anticorrupção e dificultar investigações. Nos bastidores, as medidas são chamadas de “pacote da impunidade” por adversários do presidente da Câmara, Arthur Lira (Progressistas-AL). A ofensiva reúne propostas que vão de mudanças nas leis de Improbidade Administrativa, Ficha Limpa, lavagem de dinheiro e proteção de dados para fins penais até a inviolabilidade de escritórios de advocacia.

A agenda é de interesse do Centrão, bloco de partidos que voltou ao comando da Câmara com a eleição de Lira. Logo no primeiro mês à frente da Casa, ele tentou aprovar a jato uma nova Proposta de Emenda à Constituição nesse pacote: a PEC da Blindagem, que amplia a imunidade parlamentar e restringe a possibilidade de prisão de deputados e senadores.

Foi uma resposta corporativa à prisão de Daniel Silveira (PSL-RJ), determinada no dia 16 pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), após o deputado bolsonarista divulgar um vídeo nas redes sociais com ofensas à Corte e apologia à ditadura militar. A manobra para aprovar a PEC sem passar pelo crivo de uma comissão só não vingou por pressão do Supremo e críticas de eleitores.

Diante do desgaste provocado na imagem do Congresso com a tentativa de autoproteção em um momento de agravamento da pandemia, os partidos se dividiram e Lira foi obrigado a recuar, enviando a PEC para análise de uma comissão especial. 

O presidente da Câmara rejeita o carimbo atribuído à iniciativa. “Não há impunidade nem blindagem. Nossa prioridade é não permitir que a gente viva nesse contexto de crise institucional semanal”, disse Lira em recente live promovida pelo grupo Prerrogativas, que reúne advogados. “Não vai faltar coragem para debater os temas necessários, que tenham clamor.”

Na semana passada, a Mesa Diretora da Casa liberou o funcionamento das comissões, que estavam paralisadas, entre elas o Conselho de Ética. À exceção da PEC da Blindagem e da ideia em negociação de apresentar uma proposta separada para alterar a Lei da Ficha Limpa, as demais proposições do “pacote” foram herdadas do período em que Rodrigo Maia (DEM-RJ) era presidente da Câmara. Algumas estão sendo preparadas desde 2019 e passaram por comissões especiais de juristas.

É o caso da proposta de criação da Lei Geral de Proteção de Dados Penal (LGPD-Penal) e da reforma da Lei de Lavagem de Capitais. Propostas feitas nessas comissões indicam que há risco de entraves às investigações e abrandamento de penas. Em 2020, o ritmo foi lento e nenhuma delas chegou a ser votada, apesar da derradeira tentativa de emplacar a proibição para ações de busca e apreensão em escritórios de advogados com base apenas na palavra de delatores.

“Tem comissões trabalhando há bastante tempo, que ainda não deram resultado. Outras estão mais adiantadas, como é o caso da que trata da improbidade. (A análise) vai ser muito no caso a caso, mas não vai haver corte em tudo”, afirmou Margarete Coelho (Progressistas-PI), que faz parte do núcleo de confiança de Lira. Foi ela a relatora da PEC da Blindagem, que amplia a imunidade parlamentar, e a deputada integra a maior parte dessas comissões.

Suspiro. O deputado Lafayette Andrada (Republicanos-MG), relator do projeto de prerrogativas dos advogados, disse que, “como houve uma série de atropelos”, Lira ainda não teve tempo para se debruçar sobre todas as propostas: “Quando houver um suspiro, essas pautas vão andar. Essas comissões voltarão ao normal, elas não morreram”.

Na Câmara, além da comissão da improbidade, a que está mais adiantada é a que trata da prisão após condenação em segunda instância. As duas já têm relatórios finais. Com as revelações da Operação Spoofing, mostrando a troca de mensagens entre procuradores e o ex-juiz Sérgio Moro no processo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, os parlamentares que costumam defender a Lava Jato temem ser derrotados. A portas fechadas, muitos manifestam receio de que o momento político favoreça acabe afrouxando a norma.

No caso da improbidade administrativa, sete dos atuais 24 integrantes da comissão especial criada na Câmara podem ser beneficiados por mudanças na lei, como revelou o Estadão. Eles respondem a processos , e as alterações propostas podem livrá-los de eventuais punições.

Recentemente, o presidente Jair Bolsonaro disse que a atual Lei de Improbidade é burocrática e “engessa o prefeito”. Já o líder do governo, Ricardo Barros (Progressistas-PR), defendeu a liberação da contratação de parentes no serviço público. Ou seja, quer autorizar o nepotismo, hoje proibido pela Lei de Improbidade e também pelo Supremo.

Ficha Limpa. Criada em 2010 inspirada nos movimentos anticorrupção, a Lei da Ficha Limpa, por sua vez, também deve sofrer modificações, assim que a pandemia arrefecer, como mostrou o Estadão. A proposta chegou a entrar na PEC da Blindagem, mas foi retirada na frustrada tentativa de votar o texto a toque de caixa.

Agora, a ideia do PT e de partidos do Centrão, como o Progressistas e o Republicanos, é apresentar uma PEC separada, prevendo a possibilidade de novos recursos judiciais para salvar a candidatura de políticos hoje proibidos de disputar eleições porque foram condenados por decisões colegiadas. Para Lira, a Lei da Ficha Limpa “não pode ser uma prisão perpétua”. Condenado na Lava Jato, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva ficou inelegível em virtude dessa lei.

Para o deputado Aliel Machado (PSB-PR), a Câmara não deve se precipitar em votações polêmicas sem ter certeza de que terá apoio: “Lira me disse que todas as discussões devem ser decididas no plenário, não vai segurar nada”. Machado assume em breve a presidência da comissão especial da PEC que analisa a prisão em segunda instância. O Supremo derrubou, no fim de 2019, a possibilidade de execução antecipada de pena. A medida era um dos pilares da Lava Jato e a decisão permitiu a libertação de Lula.

Agora, a Câmara pode alterar a Constituição e prever a execução antecipada da pena. Em conversas reservadas, porém, parlamentares admitem que a chance de uma reviravolta assim ocorrer é próxima de zero. Machado acredita que o texto pode ir a plenário em 45 dias, mas não quer se precipitar. “Pautar a prisão em segunda instância de um dia para o outro, como aconteceu com a PEC da imunidade, pode fazer com que se perca todo o trabalho”, disse o parlamentar.


Lula: 'Falta que a gente tenha uma próxima eleição para medirmos força com Bolsonaro'

Petista vê chances de o seu partido ganhar a presidência em 2022, seja com ele ou com Haddad, ou o nome da esquerda que se sobressaia até lá. “Me contento em ir para a rua fazer campanha para um aliado nosso”. Para ele, a realidade vai se impor e Bolsonaro vai perder a disputa

Jan Martínez Ahrens e Carla Jiménez, El País

Luiz Inácio Lula da Silva vive um momento de energia em estado puro. Tem 75 anos, superou o câncer, o coronavírus e a prisão, e diz se sentir “com 30 anos.” Aparece na entrevista feita por Zoom em uma camisa de mangas e se posiciona de pé diante da câmera do computador. Parece estar à vontade; é sexta-feira, no último dia 5, e fala da sua casa em São Bernardo do Campo, na Grande São Paulo, onde vive com Rosângela Silva, a Janja, socióloga por quem se apaixonou quando estava preso em Curitiba. Às suas costas aparecem alguns poucos livros de capa mole e uma bandeira vermelha, de mesa, que exibe a sigla do PT e que, por causa de uma estranha corrente de ar, parece se movimentar em uníssono com Lula, como num comício, quando ele entra em ebulição. Algo que ocorre com frequência ao longo da entrevista.

É um fenômeno que vai crescendo. Primeiro Lula tira os óculos (quadrados e ostensivamente grandes), depois acelera o ritmo da resposta e, à medida que os minutos passam, dá rédea solta ao tigre político que habita nele. Fala, ri e ruge; agita os braços, bate na mesa. Lula ―e esta é uma das chaves da sua extraordinária capacidade de atração― transita de forma incessante pelos muitos Lulas que ele já foi. Ao longo de uma hora e meia de conversa, se sucedem, numa tela que fica cada vez menor, o homem que um dia foi pobre e que sabe se dirigir a outros interlocutores pobres, o torneiro mecânico simpático, o sindicalista que enfrentou a ditadura militar, o candidato dos grandes comícios e até o presidente (2003-2011) que deu ao Brasil anos de grandeza. Mas também o homem que foi preso e se revolta contra sua condenação, o político cassado que busca limpar seu nome. Lula passou 580 dias preso por corrupção e lavagem de dinheiro. E já recebeu outra sentença por crimes semelhantes no sítio de Atibaia. Esse rochedo o esmaga, e contra ele volta agora todas as suas energias.

“Aprendi com uma mãe analfabeta que não podemos viver ressentidos, que devemos ser firmes e acreditar que a vida pode melhorar. Tenho muito otimismo”, diz, em um dos raros momentos em que fica quieto (e a bandeirinha também). É só um instante. Depois continuará disparando para todos os lados, pisando fundo no acelerador de um motor que nunca se esgota e que fez dele uma lenda, tão querida quanto odiada, da esquerda latino-americana. Seu otimismo o deixa seguro de que o PT tem chances de voltar ao poder, seja com ele ou outro nome. Neste domingo, uma pesquisa publicada no jornal O Estado de S. Paulo reforçou sua ambiçãoLevantamento do Ipecmostra que 50% dos entrevistados votariam nele outra vez em 2022, contra 28% de presidente Jair Bolsonaro ―e 31% de Sergio Moro. Pela enésima vez, ele volta ao centro do debate político.

Pergunta. Como tem levado o confinamento, alguém inquieto como o senhor. Estaria na rua?

Resposta. Me sinto mal ficando em casa. Não me contento em ficar definhando. Vai te matando dentro. Apesar de estar namorando e apaixonado, preciso sair para a rua, respirar liberdade, falar com o povo. Toda vez que sinto falta de ar, não é o coronavírus, é a necessidade de falar com o povo, aprender com eles. Nasci em porta de fábrica. Por ora vou me cuidar e respeitar a ciência. Quando tomar a vacina e for autorizado eu saio.

P. O Brasil, diferente de outros países da região, está no pior momento da pandemia. A quantidade de mortes é terrível e a vacinação é lenta. Como vê a situação do Brasil, como ex-presidente e cidadão?

R. O Brasil vive um acidente de percurso da nossa democracia e da nossa civilidade por conta do presidente Bolsonaro. Ele tem demonstrado não ter nenhuma preocupação com a seriedade, seja para tratar a covid, a economia, a educação ou a sua relação internacional. O Brasil sempre foi o país que não tinha problemas com país nenhum no mundo. O vírus é uma coisa da natureza. Enfrentar o vírus é da responsabilidade das políticas públicas dos governantes no mundo. Aqui no Brasil, o presidente desrespeita a ciência, receita remédio, não tem solidariedade, nem respeito pela vida. Se o Brasil vivesse um momento de democracia efetivamente, o Bolsonaro já tinha sofrido o impeachment. Deixamos de comprar vacina quando poderia, vacinar quando deveria, e ele continua fazendo campanha contra o isolamento. É quase um genocida no tratamento da pandemia. O Brasil não merece isso.

P. Contudo, Bolsonaro continua com 30% de apoio popular e ainda num momento de economia ruim. Como se explica?

R. No mundo inteiro, você sempre tem entre 15% e 20% da sociedade que não querem votar, não gosta de política. Aquela parte da sociedade ultraconservadora, que defende pena de morte, que as pessoas tenham armas ao invés de empregos e livros, que defende a violência, são contra negros, mulheres, LGBTs, quilombolas, sindicatos. Essa gente existe. Muitos ex-militares aposentados, milicianos da guarda privada, gente que depende do Bolsonaro. O fato dele ter esse apoio significa que tem 70% que não concordam. E são esses 70% que vão garantir a democracia. Que na hora da decisão, vão se manifestar.

P. Mas, neste momento, não há uma oposição forte no país. Os últimos resultados eleitorais do seu partido PT foram ruins. Não falta uma nova liderança? O que falta para que o PT recupere força?

R. Falta que a gente tenha uma próxima eleição para medirmos força [na urna]. Eu lembro que quando o [partido espanhol] Podemos [junto com grupos à esquerda do PSOE] ganhou as eleições da prefeitura [de Madri], muita gente falou que o PSOE tinha acabado. Quem governa a Espanha hoje é o PSOE. O PT continua sendo o maior partido do Brasil, a força política mais organizada do país. O PT tem sido vítima de uma campanha de destruição enorme, com [a operação] Lava Jato. A minha inocência está provada e a culpabilidade do Ministério Público, do [Sérgio] Moro e da Polícia Federal está mais do que provada. Em 2016, na minha defesa, a gente já dizia tudo que está sendo publicado agora, os documentos oficiais liberados pela Suprema Corte. Houve um conluio para evitar que o Lula pudesse voltar à presidência do Brasil. Mentiu uma parte da Justiça, uma parte do Ministério Público, da Polícia Federal. Envolveram muita gente numa mentira, reforçada pelos meios de comunicação. Agora que sabem a verdade, como vão dizer para a sociedade que, durante 5 anos, condenaram uma pessoa inocente?

P. Se conseguir vencer a batalha judicial, se apresentaria como candidato?

R. Eu necessariamente não preciso ser candidato a presidente, porque eu já fui. Estou com 75 anos, com muita saúde, mas descobri que o [Joe] Biden é mais velho do que eu e governa os EUA. Quando eu chegar em 2022, eu vou estar apenas com 77 anos, um jovem. Se chegar na época e os partidos de esquerda entenderem que eu posso representá-los, eu não tenho problema. Mas o PT tem outras opções, tem o Fernando Haddad, outros governadores. E a esquerda também tem: Flávio Dino, o [Guilherme] Boulos... Na hora que tiver que decidir, vamos ver quem tem mais condições de ganhar. A única possibilidade que eu tenho de ser, porque eu não disputarei com ninguém, é se as pessoas entenderem que eu sou o melhor nome. Se não, me contentarei em ir para a rua fazer campanha para um aliado nosso. Pedi ao Fernando Haddad começar a lutar pelo Brasil, porque ele tem um passaporte diplomático de 47 milhões de votos conquistados em 2018, ele não pode ficar parado em casa. Tem que ir pra rua conversar sobre educação, emprego, sobre salário, custo de vida. E sobre coronavírus, precisamos exigir todo dia que esse país consiga comprar as vacinas para que o povo possa ter tranquilidade em viver dignamente.

P. O senhor tem dialogado com lideranças da esquerda e da direita sobre a eleição?

R. Você sabe que eu não tenho problema em conversar com ninguém. Às vezes eu vejo a imprensa ficar impressionada porque os conservadores ganharam a Câmara. Eles nunca perderam. Na Constituinte, em 1988, o Centrão percebeu que a gente estava crescendo e fazendo coisas demais, eles se reorganizaram e fizeram mais que nós. Toda vez que tem algo importante para votar, se constrói a maioria. A direita sempre foi maioria, a esquerda nunca. Acontece que a democracia é boa por conta disso. Não parecia que o Podemos era inimigo do PSOE na Espanha? E não se juntaram para governar? O [ultradireita] AfD não está junto com a Merkel? A política é boa por conta disso. Você vai construindo aquilo em que você acredita que é bom e aí a realidade te empurra para algo que não esperava.

P. E com Ciro Gomes?

R. Não tenho problema com Ciro Gomes. Gosto dele de graça, como disse outras vezes. Mas ele está equivocado e precisa compreender. Ele resolveu engrossar o discurso antipetista achando que vai ganhar votos da direita. Não vai. Isso que é grave. Não adianta falar mal do PT e da esquerda achando que vai ganhar voto do Doria. Se continuar discurso xenófobo contra o PT ele vai perder gente da base dele. Se teve 12% na última eleição ele pode cair. E eu acho que o Ciro Gomes é importante para o Brasil. Mas ele precisa acertar na política. Ele pode não ter no PT o maior aliado porque o PT não o apoiou. Mas ele não pode considerar PT inimigo.

P. Hoje o Bolsonaro está alinhado ao Congresso reformista, com a agenda de teto de gastos. Não é pouco tempo para acreditar que o PT pode mudar a mentalidade no Brasil?

R. O PT pode e deve. Todo o combate ao coronavírus, ele se dá mais corretamente nos países onde o Estado tem políticas públicas de saúde. Aqui no Brasil, o SUS foi atacado pela elite brasileira desde que foi criado em 1988. Agora com o coronavírus, todo mundo começa a reconhecer que se não fosse o SUS o Brasil estaria muito pior. Por que é o sistema público de saúde invejável. E do qual eles cortaram muito dinheiro e que salva milhões de pessoas neste país. É o profissional do SUS, a estrutura do SUS que tem salvo o Brasil, que faz com que não esteja pior do que está.

P. Quando o senhor governou a China começava a investir muito, um momento favorável.

R. Quero desfazer esse equívoco que às vezes vocês cometem. “Ah porque teve um boom de commodities” [nos anos do PT]. Boom de commodities tem hoje. O problema é saber onde você vai gastar o dinheiro no país, aonde é que o pobre vai entrar na economia. Nós fizemos uma inclusão bancária de 76 milhões de pessoas, levamos energia de graça na casa de 15 milhões de pessoas, cisternas. Viajei muito pelo mundo, vendia a capacidade intelectual e produtiva do Brasil.

P. Mas agora nosso endividamento está perigoso.

R. O Brasil é muito grande e pode voltar a ser. Tenho a impressão de que o povo vai começar a perceber o que aconteceu no Brasil. Obrigatoriamente vai ter que comparar o que era no governo do PT e o que é o Brasil no governo do Bolsonaro, e dos outros.

P. Falando agora de Estados Unidos, eles tinham o presidente Donald Trump, muito parecido com o Bolsonaro. Seu último ato foi fomentar a invasão do Capitólio. Acredita que pode acontecer algo parecido se Bolsonaro perder as eleições?

R. Eu acho que o Bolsonaro vai perder as eleições, e a vitória será para alguém progressista, espero que seja para o PT. Acho que ele está armando o povo. Quem quer comprar arma, não é o trabalhador. O metalúrgico, o químico, o professor. As pessoas querem comprar comida, emprego. O Bolsonaro está vendendo armas para quem? Para uma elite, agrícola, ex-policiais, milicianos que lhe dão segurança, para a turma que matou Marielle. Se o PT voltar a ganhar as eleições, a gente vai desarmar o povo e recuperar o humanismo da sociedade brasileira, deixar esse ódio de lado. Só tem um remédio para este país: fortalecer a democracia. Tenho clareza absoluta que a gente pode ganhar outra vez. Aqui no Brasil o que parece impossível hoje vai ser possível amanhã. Este país é poderoso. O que ele tem é uma elite perversa, que acha que tudo é para ela. Precisamos de uma sociedade solidária, em que o humanismo prevaleça sobre a chamada inteligência artificial. Não quero virar algoritmo. Não quero que a sociedade vote num Trump ou num troglodita como o Bolsonaro nunca mais. As pessoas precisam votar em homens que pensam o bem.

P. Ou mulheres, não presidente? Não só homens.

R. Se tem uma pessoa que apostou na conquista das mulheres é este seu amigo aqui. No PF tivemos uma presidente mulher, 50% do meu partido são mulheres.

P. E tem uma mulher despontando como potencial candidata, cogitada até pelo PT, que é a empresária Luiza Trajano, nome inclusive de fora da política. Como o senhor a vê?

R. Conheço e adoro a Luiza Trajano como mulher, pessoa humana e empresária. Acontece que o mundo da política é insano, não é uma coisa fácil. Uma coisa é dirigir uma coisa sua, uma rede, uma fábrica. Outra é um Estado, um país, em que você presta conta para empresa, sindicato, Parlamento. Não tem curso universitário para preparar político. A política é difícil, é tomada de posição e não é ciência exata sempre. Você tem que decidir de que lado você está sempre, para quem quer fazer o bem. Atender uma [parte] e ferir a outra. Toda vez que se nega a política o que acontece é um Bolsonaro.

P. Em que se diferencia o Lula que assumiu o poder em 2003 e o Lula de agora? Qual experiência lhe trouxe a prisão?

R. O Lula de hoje não é diferente do Lula de 2002. Sou mais experiente, um pouco mais velho, mas continuo com a mesma vontade e a mesma certeza que é possível mudar o Brasil. Sonhava em possível construir um bloco econômico forte na América do Sul. Hoje, com a União Europeia, não dá pra você ficar negociando sozinho. Vamos ser francos, [meu tempo] foi o melhor momento da América Latina desde Colombo. Acho que o continente precisa se convencer que não pode continuar no século XXI sendo a parte do mundo que tem mais desemprego, mais miséria e mais violência. Sou a prova que o Brasil foi convidado para quase todas as reuniões do G-8, e virou protagonista internacional e é isso que os americanos não querem. Não querem competição. Por exemplo, não é assimilável que o Trump queira invadir a Venezuela e que países europeus reconhecerem o [Juan] Guaidó como presidente. Como reconhecer um impostor, alguém que não concorreu à presidência? A Europa é que desapareceu da política. Tudo é comissão. Tem comissão daquilo, de meio ambiente, tudo burocrata. Os governantes são eleitos e desaparecem. É preciso que a política volte a assumir o seu papel, tomar grandes decisões.

P. Mas o que mudou pessoalmente, com a prisão? Poucos políticos viveram isso. O que isso mudou do ponto de vista pessoal?

R. Se eu dissesse que eu não tenho mágoa de algumas pessoas eu estaria mentindo. Mas nunca na minha vida trabalhei com meus rancores. Quando a gente tem ódio a gente dorme mal, faz digestão mal. Como eu sempre tive consciência do que estava acontecendo comigo, eu nunca tive dúvida. Quando eu estava detido na Polícia Federal, houve uma tentativa de que eu fosse libertado e viesse para casa e utilizasse tornozeleira. O que eu disse? ‘Eu não troco minha dignidade pela minha liberdade’. Eles procuravam um motivo para me prender. Preciso agora deixar de ser refém, que a Suprema corte vote e decida. Só quero um julgamento honesto, eu não vou mais xingar o Moro, nem o Ministério Público. Todo político que rouba se esconde, submerge. E eles pela primeira vez enfrentaram um político que não tem medo deles porque sou inocente. É preciso saber quando o Supremo vai tomar a decisão porque ao me colocar como inocente eles vão ter que dizer que os outros mentiram, que a rede Globo mentiu, que a imprensa toda mentiu. Será o dia do perdão. Fico imaginando o dia em que o William Bonner abrirá o Jornal Nacional dizendo: “Boa Noite, hoje nós queremos pedir desculpas para o ex presidente Luiz Inácio Lula da Silva porque acreditamos nas mentiras do Dallagnol e do Moro”.

P. É utopia, né, presidente?

R. Você acha impossível, mas eu acho que vai acontecer. Eles pediram desculpas porque não cobriram as [manifestações pelas] eleições diretas depois de 30 anos. Os americanos admitiram que interferiram no golpe [de 1964] depois de 50 anos. Não sei se vou estar vivo mas mesmo que eu estiver no túmulo eu levantarei por alguns segundos de alegria por que finalmente a verdade aconteceu.

P. Deixaria um dia a política?

R. Não, não penso. A política está no meu DNA, é uma célula no meu corpo. Quando somente essa célula parar de produzir e eu morrer é que eu pararei de fazer política. Não tem saída para humanidade fora da política, para a democracia, para o crescimento econômico e a distribuição de riqueza. Tudo depende da política. Em 1978 eu dizia: “Eu não gosto de política e não gosto de quem gosta de política.” Hoje eu digo, eu gosto de política e toda sociedade deveria gostar.


Folha de S. Paulo: Pazuello agora pede ajuda, e Congresso é pressionado a assumir combate a Covid-19

O plano é que o grupo criado com governadores na semana passada concentre as principais ações do país contra o avanço do vírus diante da omissão de Bolsonaro

Coluna Painel, Folha de S. Paulo

Em meio à omissão, ineficiência e negacionismo de Jair Bolsonaro em um ano de pandemia, articula-se em Brasília um arranjo para colocar a cúpula do Congresso no comando do combate à crise da Covid-19, com o respaldo de governadores e até a participação do próprio ministro da Saúde. Após dez meses de submissão à cartilha bolsonarista e agora sob investigação, Eduardo Pazuello tem sinalizado com pedido de ajuda a gestores.

A costura tem sido feita nos bastidores e com cuidado para não provocar a ira do presidente.

A articulação envolvendo o Congresso parte de dois entendimentos em meio ao colapso nacional da saúde. Primeiro, os governadores querem evitar o desgaste de atuar sozinhos no pico da pandemia. Segundo, a polarização de Bolsonaro com eles chegou a um ponto em que a única forma de ter uma ação nacional é com o Legislativo junto.

Aliados de Arthur Lira (PP-AL) e Rodrigo Pacheco (DEM-MG) tentam tratar o assunto como uma pacificação entre os Poderes e não como um atropelo ao governo federal. O discurso é que Bolsonaro está ciente que deve agir e uma participação do ministério mostrará esse comprometimento.

O plano é que um grupo criado por Lira com governadores na semana passada concentre as principais ações do país contra o avanço da Covid-19, coordenando a atuação do ministério e esvaziando as ordens negacionistas de Bolsonaro. A ideia é colocar mais pessoas nesse comitê, como secretários de saúde, parlamentares, especialistas, médicos. O Supremo foi procurado para dar apoio à iniciativa.

Os principais pontos a serem comandados: fabricação e compra de vacinas, leitos de UTI, equipamentos suficientes para hospitais, e medidas de restrição para frear a transmissão.

Depois de quase dez meses obedecendo todas as diretrizes do presidente, Pazuello passou a indicar a gestores nos últimos dias que não consegue tomar as medidas que lhe são cobradas por não ter respaldo no Palácio do Planalto.

Apesar de políticos criticarem a atuação do ministro e o chamarem de incompetente nos bastidores, a leitura é a de que não é possível tirá-lo agora nem tirar a pasta da linha de frente do combate à pandemia, inclusive por questões legais (assinatura de documentos, divisão de dinheiro, etc).

Para pessoas que falaram com o general nos últimos dias, a impressão é a de que a sinalização dele agora é reflexo da preocupação com a investigação de que é alvo em meio ao crescente número de mortes, que não para de bater recordes.

A Folha revelou neste domingo (8) que a White Martins pediu transporte de oxigênio a coronéis que assessoram Pazuello e não foi atendida. O jornal também mostrou que o Brasil rejeitou no ano passado proposta da farmacêutica Pfizer que previa 70 milhões de doses de vacinas até dezembro deste ano.

O ministro acumula erros e acusações na condução da Saúde. As reclamações se dão também por ele ter chegado com o status de um especialista em logística, área que apresentou diversas falhas desde então, como as confusões em voos na entrega de vacinas, etc.

Entre governadores, há quem defenda que a mobilização deveria isolar completamente o governo federal, deixando inclusive Pazuello de fora. João Doria (PSDB-SP) escreveu no grupo de WhatsApp dos gestores que é contra qualquer relação com genocídas, mentirosos e incompetentes, segundo suas palavras.

Outra parte, porém, entende que a participação da União é obrigatória, inclusive para divisão de responsabilidades.

“Se o governo federal não quiser participar, vamos ao Supremo para obrigá-lo. Entre os direitos de quem exerce a presidência da República não está o de se omitir criminosamente”, disse Flávio Dino (PCdoB-MA) ao Painel.


Paulo Fábio Dantas Neto: Ciência e política, amantes do possível

O possível não é um dado. É um tesouro a ser encontrado. Quem acusa de inação os buscadores do possível engana-se, ou tenta despistar. O possível está num futuro que depende das circunstâncias do presente. Ele não tem compromisso prévio com a correção de erros do passado nem com a realização de intenções das mentes dos atores sociais. O possível não é conservador nem progressista, ele apenas será o resultado, sempre incerto, de um encontro, ou desencontro, entre a razão e a experiência. Dessa alternativa depende boa parte do que será felicidade ou tragédia, nesse futuro possível. 

A busca do possível requer um passo prévio: reconhecer o impossível para fazer dele uma baliza, em vez de objetivo da busca. Substituir um prévio intento pela aposta em nova possibilidade que reanima e contenta é dar um passo além, não só da impotência que nos incute culpa, como da resignação, que frustra e deprime. Falando assim pode parecer um convite a um passeio, mas a decisão por essa busca é processo dilacerante quando se dá em meio a uma situação crítica, que pode se tornar agonística.

O Brasil vive intensamente nada menos que duas dessas situações críticas. Parafraseando Jobim, não é para amadores lidar com Bolsonaro e Covid ao mesmo tempo. Os dois infortúnios se retroalimentam e isso pode nos fazer crer que um é causa do outro. Mas não é assim. Com ou sem Bolsonaro teríamos que recorrer à ciência para lidar com a pandemia. Com ou sem ela, teríamos que recorrer à política para lidar com Bolsonaro. Política não é vacina contra o vírus. E a ciência não derrotará Bolsonaro. A saída de cena de um não nos livra, necessariamente, do outro. Ciência e política, cada qual deve fazer sua parte. Para isso não precisam, nem devem brigar. E podem atuar de modo complementar.

A ciência, nesse caso, obteve um assombroso sucesso quando ofereceu ao mundo vacinas seguras em tempo recorde contra um vírus desconhecido. A humanidade vê aumentar sua dívida para com ela. O sentido de urgência da ação mais complexa foi atendido porque, desde logo, a comunidade da ciência compreendeu que não havia a solução simples de medicamentos que atalhassem o tratamento. A busca do possível não foi adiada porque se detectou e afastou o impossível do horizonte. A má notícia, acolhida com realismo, em vez de desespero ou depressão, produziu ação. No mundo todo, incluído o Brasil, que, graças à ciência que aqui também habita, está, sob forte tempestade, produzindo vacina.

Os resultados da ação política no mundo são mais controversos (se não o fossem estaríamos falando de outra coisa, não de política) e seus êxitos, menos universais. Para serem avaliados exigem lupas sobre múltiplas realidades nacionais, para o que não há espaço na coluna nem informação em meu poder. É visível, no entanto, a atitude da grande maioria dos dirigentes dos países de alta e média relevância (deixo de me referir aos de baixa relevância não por desprezo, mas por desinformação) de não querer matar a mensageira da má noticia, no caso, a ciência. Aqui é redundante, até enfadonho, assinalar o governo federal brasileiro como uma desonrosa exceção. Sem malhar em ferro já quente, pode-se dizer que, através de suas ações e inações, matou-se e ainda se mata muito mais que apenas a mensageira. 

Mas um inventário da ação da política brasileira em relação à pandemia não pode se resumir aos desmandos e crimes do Executivo Federal e muito particularmente daquele que é seu chefe nominal. Além de equívoco, seria injustiça ocultar serviços prestados pela política nessa quadra difícil. Governadores e prefeitos têm agido, com forte apoio do Judiciário, dando respostas, de um modo geral (quem quiser encontrar flagrantes do oposto, claro que achará), em patamar acima do potencial que a elite política subnacional parecia deter. Expertise em atuar na adversidade é um capital institucional inesperado que ela está a acumular, efeito colateral do treinamento político e social a que esse desafio a está submetendo. Do Congresso Nacional não se pode falar diferente, sendo digno de nota que os conflitos políticos recentes, especialmente na Câmara, não fizeram as duas casas se afastarem do centro da cena do combate à pandemia. Seguem construindo consensos amplos para votarem medidas cruciais de apoio a estados e municípios e de combate a efeitos sociais da pandemia e da crise econômica.

Esse o papel positivo que a política vem podendo exercer, no combate à pandemia, em condições extremamente adversas, maximizadas pela conduta do presidente e pela influência que ele exerce sobre agências do governo e sobre parcelas da população. Papel reforçado depois da detecção do impossível e do seu devido afastamento do horizonte de objetivos da ação. Assim como a consciência de que não havia remédio pronto para tratar a covid incitou a ciência a descobrir vacinas, a consciência de que é impossível, neste momento, afastar Bolsonaro, incitou o sistema político e judiciário a protegerem a democracia dos seus ataques frontais e a fornecer um mínimo de governabilidade ao País. Penso que os moderados resultados alcançados com essa atitude prudente resultam da ambiguidade própria da situação e não podem ser confundidos com intenções de conivência. Essa a imputação feita, a granel, a partidos e a dirigentes de instituições, cavalgando, por ingenuidade ou demagogia, na baixa simpatia popular de que gozam. Não houve até aqui sinais de ambivalência desses dois poderes da República nem quanto à crise sanitária, nem quanto à defesa das instituições democráticas.

Quanto ao enfrentamento político de Bolsonaro, é obvio que a ambivalência predomina. Mas quem quer acabar com ela, cobrando que o sistema político se oponha ao presidente, está em busca do possível? Ou ainda não afastou o impossível do rol de seus objetivos? Percebo que cobram da política que ela não apenas aja, como tem agido, em acordo com a ciência, mas que adote, em sua conduta prática, a ética da ciência e aí não só das ciências médicas e biológicas, mas a das ciências humanas e sociais, quando elas, por algumas de suas vertentes teóricas, se impõem a missão de compreender e também transformar o mundo. Para quem assim se posta palavras políticas chave são movimento e vanguarda. É complicado querer que sejam palavras-chave da ação de quem atua institucionalmente como elite especializada, em arenas racionalizadas de competição política ou de estabilidade judiciária. Num momento crítico de alta tensão e angústia sociais, em que pretensões de protagonismo de movimentos estão limitadas por inclinações conservadoras do eleitorado e atrofiadas pelo rigor da pandemia, esses apelos e cobranças de que instituições funcionem como movimentos chega aos limites da exasperação. Peço licença para fazer uma digressão um pouco longa, em torno da própria ciência social, no intuito de argumentar pela insensatez dessa pretensão. Quem estiver convencido nem precisa se deter nesse ponto da leitura.

“A ciência como vocação” e “A política como vocação” são dois dos mais contundentes textos de Max Weber sobre os paradoxos da modernidade. Em ambos, ele trata de vocação como dedicação a uma profissão. E da tensão entre a aceitação realista de um condicionamento social e a aposta na possibilidade de ação para o sujeito individual. A condição social inescapável é o desencantado mundo moderno, onde impera a racionalização de meios e fins; a possibilidade do sujeito é a escolha de um agir que conecte meio e fim a determinada “causa”. 

Como Raymond Aron chama a atenção, aqui temos, também, um problema existencial: delimitar em que espaços da sociedade a racionalização para objetivos ainda permite algum lugar a outros tipos de ação. A ciência e a política, mobilizáveis, também, por valores, são (ainda podem ser) espaços desse tipo. Desde que o exercício dessas vocações não se insurja contra o que há de inexorável na racionalização que, afinal, também alcança as duas áreas, como todas as demais.

O fato social e o ato individual são - para usar um lugar comum - facas de dois gumes. A racionalização (uma esquina onde se encontram a vontade de emancipação e práticas de instrumentalização) exacerba-se a ponto de reduzir e amesquinhar a razão. A decisão do ator (esquina da aspiração de autonomia com tentações de despotismo) devolve à razão sua amplitude e grandeza, mas ao risco de transpor as fronteiras do irracional. Diante do imprevisível, na ciência e na política persiste, ao menos, o dilema valorativo entre conservar uma estabilidade medíocre, depressiva, ou promover mudança, ao custo de uma insegurança ansiosa. Em outras áreas esse dilema sequer aparece. Foi resolvido em favor da razão instrumental. Ciência e política sobrevivem como domínios onde é possível o agir criativo.

Eis o relevante ponto weberiano que ambos os textos exprimem: o sujeito que adota a política ou a ciência como vocação é, em certo sentido, um sobrevivente no exercício de uma autonomia, mas por ter escolhido uma das duas, nem por isso escapa da condição de mover-se num fio de navalha. 

Mas quanto às distinções entre ciência e política? Elas cabem na distinção, feita pelo próprio Weber, entre a “ética da convicção” e a “ética da responsabilidade”? Quem pensa nessa dicotomia – apresentada na parte final de “A política como vocação” - como uma chave para compreender as distintas vocações da ciência e da política, surpreende-se ao não encontrar em “A ciência como vocação” um contraponto à ética da responsabilidade. Esta orienta, claramente, o político por vocação, mas não se constata clareza equivalente na correspondência entre o profissional da ciência e a ética da convicção. A ambiguidade ética da vida política infiltra-se no agir científico, impondo também ao cientista uma negociação com demônios. Sua ética vai além das convicções. Sem isso não nasce a pesquisa científica. Assim como faz a ética da política – e de modo diferente dela – a ética da ciência também contrasta a fé religiosa, certamente valiosa, para outros fins humanos e conforme outros valores. Mas nos dois textos de Weber lemos que ambas (ciência e política) estão expostas a visitas do irracional. São visitas insólitas, que trazem ideais de perfeição. A ideologia, quando fé, faz ciência e política perderem suas razões de ser. Entre as respectivas razões há convergências que balizam a exploração de diferenças e até contrastes entre as vocações da ciência e da política, sem criar um abismo ético entre elas.  Numa palavra, compreender as razões e a experiência da política institucional como distintas das razões e da experiência do movimento social e ver essa distinção com simpatia não coloca ninguém na contramão da ciência. Apenas arma a consciência para não ver a “classe política”, nem mesmo o que se apelidou de centrão, como inapelável aliada de Bolsonaro e do que ele representa. É interlocutora, não adversária.  

A política tem sua ética, ainda que no mundo real predominem simulacros, no centrão e nas “melhores” famílias ideológicas.  Weber fala em política como causa que sustenta uma vocação (profissão) e avisa sobre a impossibilidade de estender à política uma ética única, de fora dela. Essa pretensão é tão irrealista quanto afirmar que a ética da politica não possui nexos com qualquer outra ética (supor políticos santos é tão irrealista quanto supor que todo político é aético). Sim, a ética da responsabilidade (o norte da política) põe em risco a salvação da alma e a ética dos últimos fins põe em risco as metas, por ausência de responsabilidade pelas consequências. As duas éticas orientam diferentes condutas diante de noções de bem e de mal e da irracionalidade do mundo: “O mundo é estúpido e mesquinho, eu não” (ética dos últimos fins); “Eis-me aqui. Não posso fazer de outro modo” (ética da responsabilidade). E arremata: “A política é como a perfuração lenta de tábuas duras (...) somente quem tem a vocação da política terá certeza de não desmoronar quando o mundo, do seu ponto de vista, for demasiado estúpido e mesquinho para o que ele lhe deseja oferecer. Somente quem, frente a tudo isso, pode dizer “apesar de tudo!” tem a vocação para a política”.  A reflexão vale como metáfora institucional, por mais que no caso do político beltrano seja descrição veraz e no de sicrano, doce ilusão.

A que serve tanta digressão? Para dizer que, sim, a situação extremamente crítica que vivemos no Brasil com a associação entre Bolsonaro e Covid pode ser enfrentada pelas gramáticas da ciência e da política. Culpa, vergonha, covardia são repertório léxico funcional ao universo bolsonarista, incapaz de explicar o buraco, menos capaz ainda de nos tirar dele, embora essas palavras brotem do desespero de pessoas de várias condições sociais. São autoexplicáveis cobranças de ação contundente e resultados imediatos por parte de quem se vê direta ou potencialmente implicado nas ameaças e delitos diários.  A parte da sociedade que tem consciência das dimensões da tragédia desconfia da fina camada de proteção que as instituições construíram contra as investidas autocráticas, ainda mais se a compara com a jaula em que está trancada, por medo da doença e falta de horizonte. Mas será mesmo uma jaboticaba brasileira?

Essa interpretação sempre se apresenta quando se alega os quatro séculos de escravidão. A lembrança atiça o açoite masoquista. Ajoelharemos no milho por outros quatro séculos e ainda não será bastante para apagar a vergonha que somos como país. Temos tão cronicamente vergonhosas elites civis que cumpre duvidar de tentativas não governamentais concretas de fazer, em hora critica, algo socialmente justo, apesar do governo. São inconfiáveis como parte desse legado espúrio, tanto quanto as iniciativas políticas que tentam levar o governo a assumir seus deveres por caminhos diversos ao da contestação. Quanto ao povo, coitado, se foi capaz de votar em Bolsonaro e de continuar em boa parte crendo nele a caminho do extermínio, dele não se pode esperar nada a não ser que se arrependa da condição de bicho solto e passe a ser guiado por uma vanguarda onisciente que o redimirá para a civilização do dever.

Pois bem, como se sentia e movia metade dos norte-americanos durante os quatro anos de Trump, o ultimo deles passado em interação com a pandemia? E a outra quase metade que seguiu fiel ao mito até as urnas desse ano? Até a invasão do Capitólio não se viu, da parte das instituições da ciência e da política daquele país outras atitudes que não a marcação cotidiana para conter a fera, a esgrima de bastidores e escaramuças públicas pontuais, enquanto movimentos de cidadãos preparavam o acerto de contas eleitoral do qual ascendeu um político convencional e moderado. A opção por pacificação revelou-se rota não só virtuosa, como eficaz. Se devemos fazer de outro modo é preciso dizer o porquê.

Penso que a política brasileira precisa saltar sobre a tardança, não a carregar, como fardo expiatório. Sem sentar sobre ela, nem a ruminar, seguir buscando as vacinas que a ciência produziu, tentando encurtar o tempo, protegendo como possível as pessoas mais vulneráveis durante a inevitável espera e marcando em cima, fungando no cangote do governo, para que não ceda a novas sabotagens do presidente e do seu grupo palaciano, militares incluídos. Se algum plano cabe além desse é o de chegarmos de pé a 2022 para o acerto de contas entre Bolsonaro e a democracia.

A sociedade, partidos de oposição, movimentos políticos e sociais podem buscar formas de expressão contundentes de indignação e contestação. Ao mesmo tempo é importante que cúpulas das instituições continuem a jogar o xadrez político discreto de cada dia, para que a corda não se parta e, com ela, liames que, ainda em pé, ligam o estado e a sociedade emersa ao mundo bruto em que vive o cidadão comum.

Para isso precisaremos vencer a tentação da ética da não aceitação do impossível como tal. Evitar chamar de impotência (uma disfunção) a busca de soluções possíveis, que é o sentido mais próprio da política. Antes que alguém se engane: o que estou dizendo nada tem a ver com resignação, aceitação meramente racional do impossível como tal. Falo é da consciência do impossível ser chave de buscas individuais e coletiva pelo possível. Porque ele, o possível, é o único terreno em que se pode VIVER.

* Cientista político e professor da UFBA 


El País: Amazonas caminha para terceira onda de covid-19, com avanço de variantes

Estado tem o dobro da média nacional de mortalidade para cada 100.000 habitantes, mas flexibilizou a quarentena e reabriu lojas e restaurantes. Caso de Manaus representa ameaça para todo o Brasil, alertam pesquisadores, que recomendam fechamento imediato das atividades

Steffanie Schmidt, El País

Após a covid-19 provocar cenas de terror em Manaus ―com a falta de oxigênio e de leitos nos hospitais no auge da segunda onda da pandemia―, a capital do Amazonas caminha para uma terceira onda de infecções pelo novo coronavírus e para a estabilização do número de mortes em um platô alto, o que deve ocorrer a partir de março e se manter durante todo o ano. O alerta é do grupo de pesquisadores que reúne especialistas em várias áreas (como matemática, estatística, infectologia, imunologia e biologia) responsável pelo estudo publicado em agosto de 2020 na revista Nature Medicine que previu a segunda onda em Manaus quatro meses antes dela acontecer.

O alerta aponta para um cenário de reinfecção constante e de uma média de 50.000 infectados simultâneos, chegando ao pico de 75.000 no mês de junho. “Isso é preocupante porque tende a propiciar o surgimento de uma nova variante resistente às vacinas já conquistadas, dentro de seis meses a um ano. Essa situação é gravíssima”, afirma o biólogo Lucas Ferrante, doutorando pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA) e um dos pesquisadores que assinam o estudo.

A pesquisa prevê ainda que, caso nada seja feito, o Amazonas viverá um pico da pandemia até 2023. A recomendação do grupo de estudiosos é que o Estado adote um lockdown imediato, diminuindo a circulação de pessoas em 90% por um período de 20 a 30 dias, em paralelo à vacinação de ao menos 70% da população nos próximos três a quatro meses. “É a melhor estratégia do ponto de vista econômico e epidemiológico. Todas as autoridades no Amazonas já foram avisadas, mas preferem a prática de uma necropolítica. Eles sabem das consequências, mas usam a desculpa de conciliar os interesses da economia, sendo que a própria economia sofre com esse abre e fecha. Estamos prevendo mais dois fechamentos este ano. A gente precisa de um lockdown federal”, defende o biólogo.

Apesar dos avisos dos pesquisadores e ainda que o governador Wilson Lima afirme que o Estado segue na fase vermelha (o que representa o alto risco de contaminações), o horário de funcionamento dos serviços essenciais e não essenciais no Amazonas foi ampliado nesta sexta-feira, 5 de março. Lojas, que antes abriam das 9h às 15h, agora podem ficar abertas até às 17h, de segunda a sábado. Flutuantes registrados como restaurantes podem funcionar das 9h às 16h, de segunda a sexta. Supermercados e padarias ganharam uma hora a mais de funcionamento. E o toque de recolher foi encurtado em duas horas, sendo agora das 21h às 6h.

Já a campanha de conscientização do Governo estadual afirma que a responsabilidade em não provocar aglomerações é da população, mas não é difícil encontrar lojas e shopping cheios no Estado. O Amazonas ostenta a triste liderança do ranking de mortalidade no Brasil, com o dobro da média nacional de mortes para cada 100.000 habitantes. O índice de mortes pela covid-19 para cada 100.000 habitantes no Estado é de 270, enquanto a média nacional é de 125.

Os pesquisadores afirmam ainda que a constatação de que ter sido infectado por outras variantes do coronavírus não garante imunidade à cepa P.1 torna a população de Manaus refém de um ciclo constante de reinfecções, segundo Lucas Ferrante, o que faz com que a cidade “coloque em xeque os esforços mundiais para conter a pandemia.” A pesquisa a respeito desse quadro está em fase de revisão para publicação científica nas próximas semanas. “Não foi a P.1 que causou a segunda onda, mas a segunda onda ocasionou a P.1. Desde outubro os casos já vinham aumentando. Nós alertamos que o Amazonas encerraria o ano de 2020 com 6.000 óbitos, o que foi concretizado com 6.500 mortes, demonstrando que o modelo que utilizamos é eficiente”, explica o biólogo. Atualmente o Estado contabiliza 18 linhagens do SARS-CoV-2.

Negacionismo e banalização das mortes

O epidemiologista da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz/Amazônia) Jesem Orellana levou uma denúncia contra as autoridades sanitárias brasileiras de crime contra a humanidade na 46ª audiência da Comissão Internacional de Direitos Humanos. “Faremos a denúncia também nas Nações Unidas já que no Brasil ninguém faz nada e impera a impunidade. Só resta recorrer a organismos internacionais”, afirmou o pesquisador, que também previu a segunda onda em Manaus e vem alertando publicamente sobre as consequências trágicas da gestão da pandemia no Amazonas. O Estado atingiu 11.229 mortes pela covid-19 nesta sexta-feira, sendo que a metade delas ocorreu somente em 2021. “A partir de janeiro, a P.1 tem predominância nas novas contaminações”, afirma o biólogo Lucas Ferrante. Há semanas a taxa de ocupação de leitos de UTIs se mantém superior a 80%.

Para o sociólogo Marcelo Seráfico, professor doutor da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), as trágicas duas ondas no Amazonas evidenciaram a naturalização da tragédia na sociedade brasileira. “Nos planos federal, estadual e municipal temos um alinhamento fino com o negacionismo, que tem contribuído decisivamente para estimular a população a condutas que são absolutamente nocivas a ela mesma”, afirma.

Outros agravantes no enfrentamento da pandemia são a pobreza e a perspectiva de piora da economia. “A vulnerabilidade econômica faz com que a população, ao invés de reivindicar políticas econômicas e sociais que seriam adequadas, se mobilize para fazer o inverso: pedir o fim do isolamento, o não uso do lockdown como estratégia de contenção da doença. Há um problema lógico de definição de prioridade: é difícil desenvolver atividade econômica estando morto”, opina. Mais da metade da população de Manaus vive em habitações precárias, os chamados aglomerados subnormais, como são classificadas as favelas, invasões, palafitas e loteamentos, segundo dados do IBGE de 2020. É também a cidade onde o trabalho informal está acima de 50%.

Mesmo sendo o primeiro Estado brasileiro a sentir o impacto da pandemia durante a primeira onda, em um colapso hospitalar e funerário em abril de 2020, centenas de pessoas foram às ruas para protestar contra o fechamento do comércio em dezembro. Pressionado, o Governo estadual recuou das restrições. Duas semanas depois, o Estado vivenciou a tragédia com pessoas morrendo por falta de oxigênio e voltou a implementar uma quarentena. Desde meados de fevereiro, porém, o comércio e a indústria voltaram a funcionar, apenas com horário reduzido e observação do toque de recolher.

Informações desencontradas

Em comum, as duas ondas da pandemia no Amazonas tiveram uma enxurrada de informações desencontradas ou falsas sobre os tratamentos adequados contra a doença. No início de janeiro, três dias antes do colapso com a falta de oxigênio em Manaus, o ministro Eduardo Pazuello (Saúde) defendeu o “tratamento precoce” para minimizar a pandemia de covid-19 no Estado. Na ocasião, em entrevista à CNN, o prefeito de Manaus, David Almeida, concordou com a afirmação do ministro e recomendou que a população procurasse as unidades básicas aos primeiros sintomas para “iniciar o tratamento de forma precoce” e “profilático”.

A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e a Organização Mundial de Saúde (OMS) ressaltaram, entretanto, que não há comprovações de que exista um tratamento precoce ou preventivo eficiente contra a doença e, assim, o ministro recuou da recomendação dias depois. Já em relação à hidroxicloquina, defendida pelo presidente Jair Bolsonaro, a OMS concluiu que o medicamento não funciona no tratamento contra o novo coronavírus e alertou ainda que seu uso pode causar efeitos adversos.

Mas ainda que a principal autoridade da Saúde brasileira tenha recuado na defesa do “tratamento precoce”, a hidroxicloquina e outros medicamentos sem comprovada eficácia no combate ao coronavírus continuam a ser defendidos por profissionais respeitados no Amazonas. É o caso do geriatra e reitor da Fundação Universidade Aberta da Terceira Idade do Amazonas (FUnATI/AM), Euler Ribeiro, favorável ao tratamento à base de ivermectina, azitromicina e vitamina D associada ao zinco, além de cloroquina. Na avaliação dele, o tratamento foi “politizado”, o que fez com que sua eficácia fosse colocado em xeque. “Eu já tratei 111 idosos, alguns com comorbidade e nenhum morreu. Nenhum. Eu sou favorável ao uso, fui secretário de saúde no Estado durante sete anos e sei da eficácia do medicamento, principalmente no caso de malária (cloroquina), que eu receito há 30, 40 anos. Nunca vi alteração cardiológica. Eu adoto esse protocolo e uso, associado a corticoides e anticoagulantes”, defende o geriatra.

Por outro lado, ele faz coro em defesa do isolamento social e a vacinação ―isso sim, um consenso na comunidade científica. “Não estamos livres, tem que prevenir, fechar comércio, se isolar. Precisamos vacinar 70% da população para conter isso. Como tem pouca vacina, ainda estamos à mercê. Entre a economia e a vida, fico com a vida”, diz Ribeiro, que recebeu a primeira dose do imunizante.

Convencer a população a tomar a vacina é mais um desafio em meio à tempestade que atinge o Amazonas. A aposentada Raimunda Ferreira Gamboa, de 67 anos, recebeu a primeira dose do imunizante, mas narra a dificuldade em convencer amigos e vizinhos. Ela, que contraiu a doença em novembro, passou 28 dias internada no Hospital e Pronto Socorro Delphina Aziz (o maior em quantidade de leitos e referência para a covid-19 em Manaus). “Depois do que eu passei, quero mesmo é me vacinar. Infelizmente, nem todos pensam assim: minha vizinha, que perdeu a irmã para a covid recentemente já disse que não quer saber de vacina.”


Elio Gaspari: Flávio Bolsonaro desconsiderou Tancredo

Senador descumpriu uma norma, explicitada por Neves em 1963: “É norma ética consabida que o governante não compra nem vende nada”

Flávio Bolsonaro comprou uma casa de R$ 5,9 milhões, com R$ 3,1 milhões financiados pelo Banco de Brasília, cujo maior acionista é o governo do Distrito Federal. Com uma renda familiar declarada de R$ 37 mil mensais brutos, deverá aguentar uma mensalidade de R$ 18 mil. Poderá viver sem pedir auxílio emergencial.

O doutor ganhou fama de empreendedor com uma casa de chocolates da Kopenhagen e, em 16 anos, fez 20 transações imobiliárias, muitas delas quitando parte dos pagamentos em dinheiro vivo. Filho do capitão Jair Bolsonaro, elegeu-se deputado estadual no Rio em 2002, aos 21 anos, e senador em 2018.

Flávio Bolsonaro descumpriu uma norma, explicitada por Tancredo Neves em 1963:

 “É norma ética consabida que o governante não compra nem vende nada.”

Era pura sabedoria. Lula deu-se mal porque usufruiu o sítio de Atibaia e discutiu a compra de um apartamento no Guarujá. Juscelino Kubitschek foi muito mais longe, adquirindo um apartamento na avenida Vieira Souto.

Na “nova política” dos Bolsonaro, faltam os pilares da cultura histórica de Tancredo. Nela, abunda aquilo que o presidente americano Joe Biden acaba de chamar de “pensamento de Neandertal”. Rachadinhas podem ser coisas da Idade da Pedra.

A repórter Malu Gaspar mostrou que na “nova política” acontecem também golpes da modernidade, como a utilização de informações vindas do coração do governo para se ganhar um dinheirinho fácil no mundo do papelório.

Às 17h15m de quinta-feira, dia 18 de fevereiro, terminou uma reunião no Palácio do Planalto. Delas participaram o presidente Bolsonaro e, por ordem alfabética, os ministros Augusto Heleno, Bento Albuquerque, Braga Netto, Luiz Eduardo Ramos, Paulo Guedes e Tarcísio Freitas. Nela, o capitão manifestou seu desconforto com o presidente da Petrobras.

Às 17h35m, uma mão invisível do mercado operou uma aposta de R$ 2,6 milhões na baixa nas ações da Petrobras. Passados nove minutos, outra, de R$ 1,4 milhão. Nunca haviam acontecido operações desse tamanho em tão pouco tempo. Às 19h (85 minutos depois da primeira aposta), Bolsonaro anunciou que “alguma coisa” aconteceria na Petrobras.

Malu Gaspar mostrou que até as 17h15m, quando terminou a reunião do Planalto, aconteceram 41 transações, com algo mais de 2 mil apostas. Depois que a reunião terminou, em apenas 39 minutos, foram negociadas 2,5 milhões de apostas.

Quem conhece o mercado estima que o dono, ou os donos, da mão invisível embolsaram algo como R$ 18 milhões com a queda do valor da ação da Petrobras no dia seguinte.

À primeira vista, os órgãos de controle do governo poderão desvendar essa salada de números. Contudo, durante o governo Bolsonaro, o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) soltou um edital prevendo a compra de R$ 3 bilhões de equipamentos para a rede pública de ensino.

A Controladoria-Geral da União (CGU), órgão de controle do governo, sentiu cheiro de queimado. Afora os indícios de direcionamento, 355 colégios receberiam mais de um laptop por aluno, 46 ganhariam mais de dois, e um deles, em Itabirito (MG), teria direito a 30 mil, 118 para cada aluno.

A CGU funcionou. O edital foi suspenso e logo depois cancelado, mas até hoje ninguém explicou como e por quem foi produzido o jabuti. Nem em pizza deu, deu em nada.

Recordar é viver

Em 1969, um comando da Vanguarda Armada Revolucionária roubou um cofre guardado na casa da namorada do ex-governador paulista Adhemar de Barros. Quando o arrombaram, encontraram cerca de US$ 2,5 milhões de dólares (algo como US$ 18 milhões de hoje). Parte do ervanário ainda estava com as cintas de papel de um banco suíço.

A poderosa máquina da ditadura identificou quinze pessoas envolvidas no assalto. Quatro foram mortos e sete foram presos nos meses seguintes. Um deles morreu sob tortura num quartel. Sua autópsia, feita no Hospital Central do Exército, apontou dez costelas quebradas e pelo menos 53 marcas de pancadas.

Imenso foi o esforço para se descobrir o que foi feito com o dinheiro. Nula foi a curiosidade para saber como ele foi parar no cofre. Adhemar era conhecido por ter uma “caixinha” e apreciava o slogan “rouba, mas faz”.

Com a ajuda de um amigo militar, a dona da casa sustentou que o cofre estava vazio. Nem em pizza o cofre do Adhemar deu. Deu em nada.

A ditadura negava que torturasse presos e orgulhava-se de ter uma Comissão Geral de Investigações para caçar corruptos. À época, era presidida por generais.

Tarcísio está noutra

Tarcísio Freitas, ministro da Infraestrutura, só convive com as moscas de padaria. Não é candidato a nada e não quer ser. Até porque já decidiu: quando sair do governo, irá para a iniciativa privada.

Guedes e Maritza Izaguirre

Outro dia, o ministro Paulo Guedes disparou uma urucubaca:

“Para virar a Argentina, seis meses; para virar Venezuela, um ano e meio.”

Misturou cloroquina com cloro de piscina. A Argentina teve projetos liberais mal conduzidos e fracassados. Na Venezuela, isso nunca aconteceu. O projeto de demagogia miliciana de Hugo Chávez era político.

Em 1999, quando o coronel Chávez assumiu, o tal de “mercado” torceu para que a manutenção de Maritza Izaguirre no Ministério da Fazenda garantisse alguma racionalidade. Um ano depois, Izaguirre foi substituída e voltou para o Banco Interamericano de Desenvolvimento.

Chávez chegou prometendo “mercado até onde for possível e Estado apenas onde for necessário”. Era lorota.

Sonham acordados

Quando o governador João Doria anunciou que em janeiro começaria a vacinação em São Paulo, o secretário executivo do Ministério da Saúde, coronel da reserva Élcio Franco (aquele que usa brochinho de crânio atravessado por uma faca), disse o seguinte:

— Senhor João Doria, não brinque com a esperança de milhares de brasileiros, não venda sonhos que não possa cumprir, prometendo uma imunização com um produto que sequer possui registro nem autorização para uso emergencial.

No dia 17 de janeiro, foi vacinada no Hospital das Clínicas a enfermeira Mônica Calazans.

Jogo jogado

Na quinta-feira, a repórter Paula Ferreira mostrou que Franco encaminhou ao Senado uma planilha informando que neste mês o ministério distribuirá 38 milhões de vacinas.

No dia 17 de fevereiro, o general Eduardo Pazuello anunciou que entregaria 46 milhões de imunizantes. Onze dias depois, a previsão baixou para 39,1 milhões.

Em duas semanas, evaporaram-se 7,9 milhões de vacinas.

O doutor deveria entrar na sala do general Pazuello admitindo:

— Chefe, estamos brincando com a esperança de milhares de brasileiros, vendendo sonhos que não podemos cumprir.

 (O Ministério da Saúde levou em conta 8 milhões de doses de um laboratório que ainda não deu entrada ao pedido de autorização da Anvisa, mas deixa pra lá.)


José Roberto Mendonça de Barros: Totalmente sem rumo

A ausência, por quase 3 meses, dos pagamentos do auxílio amplia a fraqueza da demanda

Estamos perdidos no meio de uma tempestade. Antes de tudo, pelo que aconteceu no ano passado. Desde que a pandemia mostrou sua força, mergulhamos numa crise humanitária, com elevado sofrimento e número de mortos, que nos jogou numa forte recessão. 

Pior que tudo, o negacionismo do presidente da República e a explosiva mistura de arrogância e incompetência de seu terceiro ministro da Saúde tornaram as coisas mais difíceis, com apelo a poções mágicas e negligência na compra de vacinas, a única forma de combater o coronavírus nos dias de hoje.

Além disso, pego de surpresa, o ministro da Economia começou uma longa corrida atrás dos fatos, desde que declarou que “com R$ 5 bi nós matamos o bicho”. Foi o Congresso que desenhou todas as regras e a estrutura do auxílio emergencial (depois apropriado pelo Executivo), que, a partir de junho, elevou a demanda de consumo e resultou numa melhora da atividade no segundo semestre.

Nesta semana, soubemos que a queda do PIB foi de “apenas” 4,1%, e não os 6% a 8% que se anteviam por volta de junho. 

Nesse resultado, merece menção que, do lado da oferta, cresceram apenas o setor financeiro, a agropecuária, os serviços imobiliários e a extrativa mineral. 

Do lado da demanda, a queda foi universal, destacando-se o consumo das famílias. 

O pior é que não se projeta continuidade da recuperação rumo a um crescimento mais sustentável, como mostra a precariedade da taxa de investimento (que ficou abaixo de 16%, quando se corrige o impacto das importações fictas de plataforma de petróleo), a queda abrupta das expectativas de todos os agentes econômicos neste início de ano e as consequências da desastrada intervenção na Petrobrás.

Ao contrário, até o governo já reconhece que não haverá crescimento no primeiro semestre. Para a MB, o PIB, na margem, será negativo em 0,8% no primeiro trimestre e 0,3% no segundo trimestre, configurando uma recessão técnica. E a recuperação era para ter sido em “V”! 

Nada é mais distante da realidade do que declarou o ministro à Veja (23/12/20): “Estamos disparando uma onda de investimentos. O grande desafio de 2021 será exatamente esse. O Brasil será a maior fronteira de investimentos do mundo”.

O conjunto de vetores aponta para um período ainda muito difícil adiante. 

Antes de mais nada, a virulência da segunda onda do vírus está produzindo um colapso em muitos Estados, que piora o ambiente e implica restrições à atividade em muitos lugares. O mercado de trabalho continua extremamente fraco e os dados mostram que a população sacou uma quantia apreciável de suas cadernetas de poupança para cobrir seus compromissos. 

A ausência, por quase três meses, dos pagamentos do auxílio emergencial amplia a fraqueza da demanda. 

Estamos assistindo a uma piora significativa na inflação, que continua puxada pelo custo de alimentação e outras pressões no setor industrial. Isso levará o Banco Central a iniciar uma elevação de juros a partir de março, pressionando a recuperação da atividade através do custo do crédito, já prejudicado pelo avanço da tributação no sistema bancário. 

Uma coisa positiva foi a aprovação da PEC emergencial no Senado, por trazer de volta a ajuda às famílias mais pobres. Entretanto, as contrapartes aprovadas contêm apenas promessas futuras de avanços no equilíbrio das contas públicas, que ainda terão muita dificuldade em se materializar. 

Finalmente, vemos uma diminuição do peso da equipe e a ausência de uma proposta consistente e convincente de política econômica para enfrentar o momento. 

Fica cada vez mais difícil crer que uma aliança do Centrão com o Palácio do Planalto vá resultar em reformas e ajuste fiscal. Mais fácil acreditar em duendes. 

Com o País aflito e desarvorado, podemos bater no muro em futuro relativamente próximo.


Celso Ming: Razões de governo e direito ao luto

Quando afirma que a comoção provocada pelas mortes em decorrência da covid-19 não passa de “frescura e mimimi”, Bolsonaro renega o direito ao luto e incorre em impiedade e desrespeito à humanidade

O presidente Jair Bolsonaro pode ter lá suas razões de governo para julgar “frescura e mimimi” a prostração dos brasileiros pelos mais de 260 mil mortos pela covid-19. Mas, em assim agindo e em assim se manifestando, contraria leis multimilenares, que existem desde que o homem é homem.

A mais representada das tragédias gregas em todos os tempos é a sempre atual Antígona, de Sófocles, encenada pela primeira vez em 441 antes de Cristo. Trata do conflito entre razões de governo e direitos de família.

Creonte, o então todo-poderoso de Tebas, decretou que Polinices, filho de Édipo, não poderia ser sepultado na cidade, por considerá-lo traidor. Seu cadáver teria de ser exposto às intempéries e à ação dos cães e das aves carniceiras. Antígona, irmã de Polinices, se rebelou contra essa determinação “desumana e contrária aos deuses”. Em segredo, recobriu o cadáver do irmão com a veste dos mortos, fez as abluções devidas e o sepultou de acordo com os rituais sagrados. “As tuas determinações não têm força” – justificou-se depois diante de Creonte – “para impor aos mortais até a obrigação de transgredir normas divinas, não escritas, inevitáveis.”

Por sua insubordinação foi condenada à morte. Mas as consequências vieram a galope. Creonte e sua família foram castigados pelos deuses. “Cedo ou tarde, o mal parecerá um bem àquele que os deuses resolveram desgraçar” – canta o coro da peça.

O direito ao luto e a reverência aos mortos são registrados pela literatura clássica e pelos que vieram depois. Na Ilíada, de Homero, Agamenon, o comandante da coligação grega, se submete a sacrificar sua filha Ifigênia para obter ventos favoráveis para a frota paralisada nas areias de Aulis.

Esta é mais uma situação em que razões de governo se sobrepujaram aos direitos de família. Os castigos se sucederam. De volta vitorioso a Micenas e em vingança pelo assassinato de Ifigênia, Agamenon foi decapitado a machado por sua mulher Clitemnestra. Anos depois, o filho de ambos, Orestes, vinga a morte do pai e elimina a mãe.

Nas cenas finais da Ilíada, o rei de Troia, Príamo, arrisca sua vida, transpõe o acampamento dos gregos, ajoelha-se diante de Aquiles, que matou seu filho Heitor em luta diante das muralhas de Troia, e implora a devolução do cadáver para que possa ser pranteado e, depois, cremado. O “animal Aquiles” – na expressão de Christa Wolf, em sua obra “Cassandra” – se comove com a coragem do rei inimigo, devolve o cadáver de Heitor e determina trégua na guerra, até que se completem os funerais.

Quem viveu tempos não muito distantes deve lembrar-se. A morte de alguém envolvia a família, a rua, o bairro, a aldeia inteira. As lojas baixavam as portas em sinal de luto, os sinos dobravam a finados, as bandeiras eram hasteadas a meio pau. Nas solenidades e antes de eventos esportivos, guarda-se um minuto de silêncio em memória do falecido.

Quando afirma que a comoção provocada pelas mortes em decorrência da covid-19 não passa de “frescura e mimimi”, Bolsonaro renega essa herança cultural e incorre em impiedade e desrespeito à humanidade. Como visto pela literatura, coisas assim têm consequências.


Míriam Leitão: Velhos temores que nos rondam

A inflação ronda a economia. O temor até dentro do governo é que ela não caia depois de chegar a 7% em junho. Bolsonaro piora tudo. Ele produz incerteza, isso pressiona o dólar que, num círculo vicioso, atinge os preços. A inflação de alimentos fechou em 11% no ano passado e alguns produtos industriais estão em falta, como papelão e aço. Há outros fantasmas. A dívida é alta e ficará mais cara. Os juros futuros e o risco-país aumentaram e a Selic terá que subir. A equipe finge acreditar que há ajuste fiscal na PEC aprovada no Senado. Ela nada economiza a curto prazo, cria mais rigidez, fragiliza a Receita Federal e propõe a médio prazo o que não conseguirá fazer.

Bolsonaro é a crueldade ostentação. O “vai chorar até quando?” ou o “vai comprar vacina na casa da mãe” foram lançados no rosto de um país que enterra quase dois mil mortos por dia. Ele gostaria de desviar a atenção posta sobre a mansão do filho. O mundo vê, registra e quer distância de nós. Esta semana, dois grandes jornais, um americano e um britânico, fizeram editoriais dizendo que somos fator de risco sanitário global.

Na economia, há uma mistura pesada. Recessão, inflação, desemprego e piora fiscal. A alta dos juros começará ao longo do primeiro semestre apesar da atividade fraca. O mercado financeiro comemorou a aprovação da PEC Emergencial porque acha que ela evitou o pior. O Bolsa Família fora do teto abriria mais espaço no orçamento para despesas populistas. O ganho foi, portanto, evitar o bode voador que apareceu na última hora. No resto, o ajuste é um saco vazio. Ele proíbe o proibido. O salário do servidor civil já não seria reajustado este ano, portanto esse ponto da PEC é inócuo. Ela permite a alta dos salários dos militares e ainda carimbou despesas das Forças Armadas. Ao fim, a emenda engessou mais o orçamento. A única desvinculação afeta a Receita Federal, o órgão que arrecada, combate a sonegação e a lavagem de dinheiro.

O faz de conta fiscal levou o governo a uma situação ridícula. Ele terá que decretar estado de calamidade para acionar os gatilhos, porém os gatilhos nada acionam. O governo precisa gastar mais por causa da pandemia, mas não consegue formular boas políticas de ajuste.

A parte da PEC que trata da redução de subsídios é inexequível. Felipe Salto, da IFI, mostra que ao blindar a Zona Franca de Manaus, o Simples, os fundos constitucionais e as entidades filantrópicas ficou inviável a proposta de reduzir as renúncias fiscais a 2% do PIB. Teria que zerar toda a dedução do Imposto de Renda Pessoa Física, todos os subsídios agrícolas, acabar com a lei de incentivos para a cultura, suspender estímulos à ciência e inovação tecnológica. Salões de beleza caros da Zona Sul do Rio são optantes do Simples, mas o governo ameaça tomar o dinheiro do Microempreendedor Individual (MEI).

Reduzir subsídios é necessário, mas trabalhoso. Exige olhar dentro desses gastos, para separar o justo do injusto. Bolsonaro acabou de criar R$ 3 bilhões de subsídios para o diesel. Não alivia o consumidor, porque o dólar está subindo, e o petróleo, também. Mas pesa para o Tesouro. O benefício é para o caminhoneiro autônomo. Mas também para as empresas que têm frotas de caminhões, os carrões SUV, as lanchas. Todo benefício geral é injusto num país desigual. O trigo subsidiado faz o pão do pobre e o das padarias gourmet. A cesta básica inclui filé mignon, picanha, peixes nobres como salmão e subsidiá-la custou R$ 15 bilhões em 2018. Seria melhor ter dado esse dinheiro diretamente aos mais pobres.

O que se diz até na equipe econômica é que se as expectativas de inflação ficarem sem âncora, os índices não vão cair no segundo semestre, ao contrário do previsto. E isso pode “definir o destino deste governo”. As projeções para o IGP-M já estão em 8%, depois de subirem 23% em 2020. O quadro é este: a economia está instável, a situação social é dolorosa, a pandemia mata cada vez mais e Bolsonaro escala as agressões. O objetivo dele é conhecido. Ele mente dizendo que tem plano pronto contra a pandemia, mas não executa porque o STF não deixa, e que os governadores causaram a crise econômica. Por isso ele adula as Forças Armadas. Bolsonaro é um autocrata trabalhando para uma ruptura, que, segundo o filho 03, não é uma questão de “se”, mas de “quando”. O que a família reinante parece não saber é que a economia em escombros derruba governos.


Vinicius Torres Freire: Nova falha na vacinação vai matar milhares de idosos no Brasil

Novo cronograma federal é em parte ficção; Bolsonaro precisa ser interditado

O atraso da Fiocruz e da importação de vacinas da Índia vai deixar o Brasil sem 15,2 milhões de doses da AstraZeneca/Oxford em março. Seria o bastante para vacinar 7,5 milhões de pessoas do grupo de mais de 60 anos, no qual morrem mais de 74% das vítimas de Covid-19. Levando em conta o número diário de mortes recente, esse buraco de um mês na vacinação vai ameaçar a vida de uns 7.400 idosos. Nem todos seriam salvos, pois a vacina leva tempo para fazer efeito. Mas milhares morrerão porque faltaram essas vacinas.

É um exemplo aritmético do terror, que pode ficar pior. É preciso instalar uma espécie de governo de salvação nacional da saúde, uma articulação de governadores, prefeitos e Congresso capaz de aprovar medidas legais e administrativas a fim de garantir vacinas e providências epidemiológicas coordenadas. Jair Bolsonaro está em campanha contra a República Federativa e contra a segurança nacional sanitária. Como não será impichado, precisa ser neutralizado.

Ainda que o novo cronograma federal de vacinas fosse cumprido, já seria tarde. A economia vai afundar pelo menos até abril. Sem antecipar vacinas, afundará por mais tempo. O vírus pode se espalhar a ponto de causar uma epidemia de variantes incontroláveis. O genocídio de março já está dado. O de abril, quase garantido. Há que se evitar a marca de 400 mil mortes em maio.

Parte do novo cronograma do Ministério da Saúde para março e abril ainda é ficção. Parte é incerteza: houve um problema na produção dos primeiros lotes da Fiocruz, das vacinas que serviriam para um teste antes da fabricação "industrial". Com essa falha, em vez de entregar 15 milhões de doses em março, a Fiocruz vai entregar apenas 3,8 milhões (ainda tentam salvar alguma coisa mais).

Um calendário obtido por este jornalista no governo federal prevê 32 milhões de doses da vacina da AstraZeneca/Oxford em abril. Mas a Fiocruz por ora estima poder entregar 25 milhões, se é que a fábrica não vai quebrar de novo. As doses de AstraZeneca/Oxford que seriam importadas da Índia, do Serum, dependem de boa vontade política: é grande a pressão para barrar a venda para o exterior.

No calendário, o ministério inclui doses da Covaxin, outra indiana, 8 milhões em março e mais 8 milhões em abril. Mas essa vacina não tem licença da Anvisa, que começou a conversar com a fabricante apenas na quinta-feira. Aliás, nem mesmo as vacinas AstraZeneca/Oxford a serem fabricadas pela Fiocruz foram autorizadas pela Anvisa. Espera-se que o sejam até 12 de março.

No calendário federal consta a entrega de um número otimista de doses do Butantan para abril. O instituto espera, sim, antecipar a entrega de vacinas, mas isso não é certo. Ainda para abril, o governo prevê a chegada de 2,9 milhões da Covax e 400 mil doses de Sputnik, que também não foi aprovada pela Anvisa.

Em resumo, o governo espera receber 94,1 milhões de doses em março e abril. Pelo menos 29,3 milhões são promessas ainda mais incertas ou doses de vacinas não aprovadas.

Caso seja cumprido, o calendário federal prevê vacinas para mais de 75 milhões de pessoas até o fim de maio (cerca de 158 milhões de doses). Seria mais do que suficiente para vacinar os maiores de 50 anos e, em suma, todos os grupos das pessoas em que morrem 88% das vítimas de Covid-19 no Brasil. É o equivalente a 49% da população vacinável (maior de 18 anos) ou a 35% da população total. Ainda seria tarde. A fim de evitar genocídio e desastre econômico maiores, é preciso antecipar em quase um mês esse calendário.


Bruno Boghossian : Bolsonaro já sente custo político de choques na economia

Presidente passa a trabalhar quase exclusivamente para conter efeitos sobre popularidade

O aumento da gritaria contra o fechamento do comércio e a investida sobre a Petrobras revelam o que inquieta Jair Bolsonaro no pior momento da pandemia. O presidente sentiu o impacto dos choques da economia e passou a trabalhar exclusivamente para reduzir os efeitos dessa crise sobre sua popularidade.

Sem o amortecedor do auxílio emergencial, os efeitos da inflação e o tropeço da atividade econômica passaram a ter um custo político maior. Embora Bolsonaro se esforce desde os primeiros dias da pandemia para fugir das responsabilidades nessa área, a conta costuma ficar com os presidentes das República.

Os números já apareceram em pesquisas feitas nos primeiros meses de 2021. A reprovação ao governo Bolsonaro cresceu à medida que a população começou a dar sinais crescentes de desconforto em relação aos rumos da economia.

Desde dezembro, o percentual de brasileiros que classificavam o trabalho do presidente como ruim ou péssimo subiu de 35% para 42% nos levantamentos XP/Ipespe. No mesmo período, a proporção de entrevistados que diziam que a economia estava no caminho errado passou de 50% para 57% –e só 30% acham que esse caminho está certo.

Vem desses dados a preocupação de Bolsonaro em transferir para os governadores a responsabilidade pela piora nos indicadores econômicos. Desde o fim de fevereiro, ele ataca quase todos os dias as medidas de restrição à circulação nos estados, omitindo o fato de que elas só são tomadas para conter o colapso de sistemas de saúde e salvar vidas.

Já o malabarismo para reduzir o preço dos combustíveis e a promessa de "meter o dedo na energia elétrica" são tentativas de conter a inflação.

Esse componente do desajuste econômico costuma provocar uma reação imediata do eleitorado –que tende a ser mais intensa com um auxílio emergencial menor. Em janeiro, o Datafolha mostrou que 96% dos brasileiros diziam ver aumento de preços da comida, 86% citavam o gás e 84% falavam da conta de luz.