Bolsonaro
Ricardo Noblat: Para estancar a sangria da Lava Jato, Fachin reabilita Lula
De volta à pergunta que não cala há dois anos
Salvo se recuar do que disse na última sexta-feira ao jornal El País, logo mais, a partir das 14h, quando concederá uma entrevista coletiva à imprensa na sede do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo, Lula repetirá que só será candidato à sucessão de Bolsonaro se os brasileiros quiserem, mas que está disposto a isso e que fará política até seu último dia de vida.
Em outubro de 2022, ele completará 77 anos de idade. Joe Biden, presidente dos Estados Unidos, estará com 78. Considera-se em boa forma para enfrentar mais uma campanha e afirma sentir-se como se tivesse apenas 30 anos – um exagero, por suposto, mas político costuma exagerar quando a seu favor. Tomará a primeira dose de vacina contra a Covid na próxima semana.
Tão logo tome a segunda dose e seja liberado pelos médicos, começará a viajar para fazer o que mais gosta – conversar. Falar mais do que ouvir. Relembrar as realizações dos seus governos. E bater duro em Bolsonaro, que ele considera um acidente na história do Brasil, um perigo à democracia, e responsável em parte pelas mortes da pandemia que deixou correr solta.
Em telefonemas, ontem à noite, trocados com amigos, Lula, que se emociona facilmente, pareceu chorar ou ter chorado. Não esperava a decisão do ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal, de anular suas condenações. Espantou-se com ela. Punha mais fé, mesmo assim duvidando, que a Segundo Turma do tribunal aceitasse o pedido de suspeição do ex-juiz Sérgio Moro.
O ex-presidente não se cansa de dizer que não alimenta rancores, que ser refém de rancores faz mal a às pessoas, mas que abre uma exceção quando se trata de Moro. Vê-lo considerado suspeito pela mais alta corte de justiça do país lhe daria uma satisfação indescritível. Talvez fosse a única maneira de recobrar a paz interior e de doravante limitar-se a olhar para frente.
A Segunda Turma do tribunal, presidida pelo ministro Gilmar Mendes, poderá presenteá-lo com isso. Talvez hoje mesmo ao voltar a se reunir. Se não, em breve, muito breve. Fachin pode ter reabilitado Lula com o propósito de estancar a sangria da Lava Jato que ele defende acima de tudo, Gilmar, porém, está disposto a enterrar a Lava Jato com desonra.
Dado à pandemia, 2020 foi mais um ano que não terminou. Com a decisão de Fachin, 2022 chegou mais cedo para os políticos e os que giram em torno da política. Apague tudo o que você já leu sobre a próxima eleição presidencial – possíveis candidatos, eventuais chances de cada um, como os principais partidos deverão se comportar até lá, o efeito do coronavírus…
Recomecemos. Dificilmente, até meados de 2022, haverá tempo para que o juiz federal que herdará os processos contra Lula o condene em algum deles, a instância seguinte da justiça avalize a condenação, de forma que o ex-presidente seja alçado novamente à condição de ficha suja, o que o impossibilitaria de ser candidato. Às vezes, a justiça aprende com seus próprios erros.
No PT não tem espaço para mais ninguém – o candidato será Lula. Não acabou, mas sofreu um duro golpe o sonho de partidos da esquerda de disputarem a eleição com outro nome, apartando-se do PT e atraindo partidos do centro. Ciro Gomes será candidato a presidente pela quarta vez – a última, caso perca. Se não viajar a Paris, apoiará quem for para o segundo turno, menos Bolsonaro.
A retroescavadeira usada por Fachin para desfigurar o que estava em construção fortaleceu a candidatura do apresentador Luciano Huck à sucessão de… Faustão, de saída da telinha da Rede Globo de Televisão. Dinheiro nunca é demais para ninguém, e a proposta que a emissora lhe fez é tentadora. Faz parte do pacote de benefícios um programa para Angélica, cobiçada pela Record.
Pela direita que se apresenta como centro para não ser confundida com o Centrão, quem se afirmará como candidato? João Doria (PSDB), governador de São Paulo, que por mais que vacine brasileiros continua sem decolar nas pesquisas de intenção de voto? Luiz Henrique Mandetta, ex-ministro da Saúde? Surgirá um novo nome? O tempo escasseia, o tempo urge.
A extrema direita já tem dono – Bolsonaro, que retomou os ataques a Lula e ao PT e incluiu Fachin entre seus alvos. O auxílio emergencial vem por aí para que ele reconquiste uma fatia da popularidade perdida. Bolsonaro foi visto negociando a compra de vacinas da Pfizer e despachou para Israel uma comitiva atrás de um milagroso spray nasal em fase de testes por lá.
À primeira vista, e enquanto a terra ainda treme, daqui a 19 meses poderá ganhar, enfim, uma resposta a pergunta que teima em não calar: Lula, que preso liderava todas as pesquisas, teria vencido ou sido derrotado por Bolsonaro em 2018? Nos seus cálculos, deixem a facada de fora, um ato insano e covarde do seu autor e de quem dele valeu-se para fugir aos debates.
Bolsonaro ofende a honra do governador do Rio Grande do Sul
Um presidente obsceno
O presidente Jair Bolsonaro descontrolou-se ao saber da decisão do ministro Edson Fachin, relator da Lava Jato no Supremo Tribunal Federal, de anular as condenações de Lula, devolvendo-lhe as condições para que dispute as próximas eleições.
Seus auxiliares mais próximos não queriam que ele, por enquanto, comentasse a decisão. Achavam que nada teria a ganhar com isso. Ofereceram-se para plantar informações na imprensa dando conta de que a decisão o beneficiaria, e assim foi feito.
Mas Bolsonaro é Bolsonaro, fala quando quer e só dá ouvido a quem pensa como ele. Passou recibo partindo para cima do PT e de Lula, e não poupou sequer Fachin, acusando-o de ter sempre militado na esquerda, e atingindo assim, por tabela, o tribunal.
A falta de vacina tirou Bolsonaro do sério, se é que um presidente bem composto ele já foi um dia. Bolsonaro aproveitou também o embalo para fazer insinuações obscenas contra Eduardo Leite (PSDB), governador do Rio Grande do Sul, em entrevista à BAND:
“Onde o governador, que fala muito manso, educadamente, uma pessoa até simpática, mas é um péssimo administrador. Onde ele enfiou a grana [das vacinas]? Não vou responder pra ele, mas acho que sei onde colocou a grana toda, não colocou na saúde”.
O Globo: Impacto de Lula no cenário eleitoral de 2022 vai depender do 'figurino' que petista adotar, dizem analistas
Segundo cientistas políticos, se ex-presidente adotar discurso mais próximo ao mercado, como fez em 2002, pode angariar votos do centro
Guilherme Caetano, O Globo
SÃO PAULO — A recuperação dos direitos políticos do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, após decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal Edson Fachin, nesta segunda-feira, embaralha a disputa eleitoral de 2022. Pesquisas de opinião colocam o petista em um patamar de intenção de voto mais alto que o do presidente Jair Bolsonaro. Mas tudo vai depender do "figurino" que Lula escolher para a disputa, avaliam cientistas políticos ouvidos pelo GLOBO.
Bastidores: Petistas adotam cautela, mas expectativa é que Lula assuma candidatura
De acordo com analistas, Lula pode beneficiar Bolsonaro se adotar uma postura tida como "radical". Por outro lado, pode ganhar votos do centro se fizer acenos ao mercado, como ocorreu em 2002. Não é automático, segundo os cientistas políticos, o ganho de Bolsonaro na polarização com Lula. Diferentemente de 2018, o presidente será cobrado pelas crises causadas pela pandemia do novo coronavírus.
Professor do Insper, o cientista político Carlos Melo diz que o ressurgimento de Lula na cena política se dá no momento de maior fragilidade do governo Bolsonaro, que enfrenta múltiplas crises. Além do descontrole da pandemia que já deixou mais de 260 mil mortos, riscos de uma nova recessão técnica no primeiro semestre de 2021 e credibilidade internacional em baixa, a aprovação do presidente caiu para 28% segundo o último levantamento do Ipec
— Bolsonaro até agora tinha uma vantagem, porque não tinha ninguém no páreo. Mas tudo vai depender de como Lula vai aparecer em cena. Bolsonaro está fragilizado. Lula pode capitalizar a tensão em torno das crises agora ou esperar, estrategicamente comedido, pelo adversário sangrar mais até encontrá-lo numa situação mais crítica lá na frente — diz ele.
De acordo com a última pesquisa do Ipec, instituto criado por ex-dirigentes do Ibope, metade dos brasileiros (50%) dizem que votariam com certeza ou poderiam votar em Lula, e 44% não o escolheriam de jeito nenhum. Bolsonaro aparece 12 pontos atrás de Lula em potencial de votos (38%) e 12 pontos à frente em rejeição (56%). Outros possíveis presidenciáveis, como o governador João Doria (PSDB), aparecem em patamar mais baixo.
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Para Christian Lynch, do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Uerj, Bolsonaro terá vantagem sobre Lula se o petista se comportar como em 2018, quando, preso pela Lava-Jato, manteve uma retórica mais beligerante para "tentar mostrar sua força". No entanto, o presidente poderá enfrentar um adversário competitivo se este souber com os setores que abandonaram o atual governo.
— A eleição ainda está longe. Do ponto de vista da ação política, a pergunta que importa é: vai ser o Lula de 1989 ou de 2002? Se for o de 1989, é bom para o Bolsonaro. Se for o de 2002 e se mover ao centro, é péssimo para Bolsonaro — declara.
Em 2002, Lula lançou a "carta ao povo brasileiro", documento no qual acenava para a moderação. O objetivo era tranquilizar o mercado financeiro, que temia a política econômica que seria implantada com uma vitória do petista, e mostrar que o PT, se chegasse ao poder, se comprometeria a seguir os pilares econômicos implantados no Plano Real.
Lauro Jardim: 'Bolsonaro sempre insistiu que o adversário dele em 2022 seria o PT', diz ministro
O cientista político José Álvaro Moisés, da USP, diz que o jogo eleitoral dependerá da disposição de Lula para constituir uma candidatura que agregue as forças de oposição, mas avalia a decisão de Fachin como uma oportunidade para Bolsonaro radicalizar. Segundo ele, o presidente "ganhou uma possibilidade de reinterpretar a polarização".
— A grande mudança que a viabilidade de Lula coloca é um desafio extremamente difícil para o chamado centro moderado. Não vai poder lançar três, quatro, cinco candidatos. Terá de ser um, capaz de enfrentar os dois principais problemas do país: a desigualdade social e o alto desemprego. Se o centro não for capaz de definir uma candidatura em torno desses temas, vai ficar isolado — diz Moisés.
Tanto para Melo quanto para Lynch, uma eventual disputa entre Lula e Bolsonaro permitirá que duas grandes forças políticas, o antipetismo e o antibolsonarismo, meçam suas grandezas eleitoralmente.
— O antipetismo ainda existe, mas o antibolsonarismo está forte. Dependerá do movimento de Lula, porque não vejo Bolsonaro conseguindo se flexibilizar. Ele governa para 25% do eleitorado e não vai mudar — diz Lynch.
Bela Megale: Em reservado, aliados de Bolsonaro 'comemoram' decisão de Fachin
Melo diz que Bolsonaro poderá reavivar o antipetismo em benefício próprio, mantendo sua base energizada. Na última eleição, o então candidato pelo PSL apostou na aversão ao PT durante toda a campanha, e acabou derrotando Fernando Haddad com 57,8 milhões de votos (55,13%).
Ainda não está claro, no entanto, se Lula sairá candidato. A vaga de pré-candidato do PT vinha sendo ocupada pelo ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad, que já declarou em entrevistas que se Lula se livrasse da inelegibilidade, ele é que deveria disputar o Planalto em 2022. Desde a decisão de Fachin, petistas têm dito que Lula só não concorre à Presidência se não quiser.
Luiz Carlos Azedo: Lula livre para 2022
O fantasma petista assombra os eleitores que elegeram Bolsonaro e dele estavam se afastando, por causa de seus desatinos na pandemia
Como dizia o maestro Tom Jobim, o Brasil não é para principiantes. O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Edson Fachin surpreendeu o mundo político e até seus colegas de Corte ao anular todas as condenações do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, numa “interpretação técnica” do princípio do “juiz natural”. Tomou por base a jurisprudência do próprio Supremo, contra a qual se opusera quando a maioria dos ministros decidiu desmembrar os processos da Odebrecht, OAS e JBS do caso da Petrobras, remetendo-os para Brasília, Rio de Janeiro ou São Paulo, decisão que esvaziou a força-tarefa de Curitiba e sua própria relatoria no escândalo da Lava-Jato.
A decisão foi cirúrgica: acabou com a inelegibilidade de Lula e frustrou as expectativas de punição do ex-ministro Sérgio Moro e dos integrantes da força-tarefa da Lava-Jato em Curitiba, cuja suspeição foi arguida pela defesa de Lula. No mundo jurídicos e nos meios políticos, a aposta era de que somente a condenação de Lula no processo do triplex de Guarujá seria anulada, por suspeição de Moro, enquanto a condenação no caso do sítio de Atibaia seria mantida, no aguardado julgamento da suspeição pela Segunda Turma do Supremo. Presidente dessa Turma, desculpem-me o trocadilho, o ministro Gilmar Mendes ficou com o voto na mão.
Para o presidente Jair Bolsonaro, seus aliados e boa parte da oposição não petista, a anulação do processo do triplex de Guarujá e a suspeição dos protagonistas da Lava-Jato seriam o cenário ideal: Lula fora da eleição e Moro desmoralizado. Fachin pôs tudo de pernas para o ar, porque liberou Lula para concorrer à Presidência da República e manteve o ex-ministro Sérgio Moro no jogo de 2022, protegendo ainda os procuradores da Lava-Jato, a investigação da qual é o relator no Supremo e que estava à beira da extinção.
Outros réus poderiam pedir anulação de seus respectivos processos, pois é disso que se trata, principalmente para os advogados que atuam na Lava-Jato e sempre questionaram os métodos heterodoxos de Moro e dos procuradores de Curitiba. Na prática, a decisão de Fachin pode garantir a presença de Lula na eleição porque uma condenação em segunda instância, no Tribunal Regional Federal de Brasília, uma Corte garantista, leva em média 6 anos; além disso, como Lula tem mais de 70 anos, o caso já estará prescrito, pois os fatos ocorreram há quase dez anos e a prescrição cai de 16 para oito anos.
Tensão institucional
No plano imediato, o principal foco de tensão é dentro do Supremo, que voltará a se dividir profundamente. Em recente decisão sobre os processos criminais, a Corte estabeleceu que nenhuma decisão monocrática pode ser reformada por outro ministro ou pelas Turmas, no caso dos processos criminais, somente pelo plenário da Corte. O Ministério Público Federal (MPF) já anunciou que recorrerá da decisão, e não será surpresa se a defesa de Lula insistir na suspeição de Moro e dos procuradores, sendo acolhida pelo ministro Gilmar Mendes, na reunião de hoje da Segunda Turma.
O segundo foco é o Congresso, principalmente a Câmara, cujo presidente, Arthur Lira lidera as articulações para acabar com a Lava-Jato. O Centrão e maioria das bancadas do PT e do PSDB apostavam na suspeição de Moro. O terceiro, o Palácio do Planalto, muito mais interessado no fim da Lava-Jato e na inelegibilidade do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
A retórica de Bolsonaro sobre a decisão mira o desgaste do Supremo junto aos militares e uma parte da opinião pública. A candidatura de Lula já está precificada. No esquema binário da narrativa bolsonarista, a esquerda é o inimigo principal. O fantasma de Lula assombra os eleitores que elegeram Bolsonaro e dele estavam se afastando, por causa de seus desatinos na pandemia e outras questões nas quais confronta os grandes consensos. Com Lula livre, o discurso golpista de Bolsonaro ganha uma dimensão eleitoral antecipada, com sua cantilena contra a urna eletrônica. Ou seja, quer ganhar no voto ou no grito.
Cristovam Buarque: Sequestradores sonsos e tolos
Convencionou-se dizer que “crianças abandonam a escola”, quando o certo seria dizer que elas são “arrancadas da escola”, por um conjunto de forças: pobreza da família, inospitalidade dos prédios, descontinuidade por interrupção das aulas, desmotivação familiar ou dos professores, equipamentos obsoletos, métodos ultrapassados, falta de perspectiva de futuro, merenda ruim, desincentivo ao estudo. Tudo se passa como se o Brasil conspirasse para sequestrar as crianças para fora da escola. Isto acontecia no século XIX, nos Estados Unidos, contra as crianças negras.
Por quase um século, aquele país foi dividido entre estados escravocratas no Sul e abolicionistas no Norte, com permanente fuga de escravos em busca da liberdade do outro lado da fronteira. Havia rede de apoio aos fugitivos, da mesma forma que havia redes de políticos, advogados, policiais, que agiam no sentido contrário, sequestrando afro-americanos no Norte para levá-los de volta ao Sul. O “Clube do Sequestro”, como ficou chamado o mecanismo que fazia este processo, tinha agentes que retiravam crianças negras das escolas, e as levavam para juízes que autorizavam o envio para seus senhores, no Sul.
Ao conhecer a maldade destes sequestradores organizados, percebe-se que isto é feito no século XXI com nossas crianças que abandonam a escola e caem na escravidão que aprisiona e devora os sem educação. No Brasil não é necessário “Clube de Sequestro”, porque as condições sociais e educacionais forçam as crianças a abandonar a escola. Agimos como o “Clube do Sequestro” norte-americano, levando estas crianças à escravidão do desemprego, baixos salários, despreparo para enfrentar e usufruir do mundo moderno.
Os sequestradores americanos eram movidos por ganhos pessoais, a recuperação do patrimônio do proprietário e os honorários aos membros do “clube”. No Brasil, somos sequestradores sonos, com a hipocrisia de ignorar o analfabetismo como uma algema mental e a falta de educação como escravidão; não tiramos a criança da escola com nossos braços, apenas assistimos que ela fuja da escola sem qualidade. Fecham-se os olhos, deixam-se que elas se condenem, escondendo que se tira proveito disto.
A parcela que concentra a renda e a educação usufrui do trabalho com baixos salários dos que não estudaram: pedreiros que fazem suas mansões, vendedores nas praias, cuidadores de carro, empregados domésticos. O abandono das crianças e das escolas se explica porque a má educação é uma trincheira da escravidão ainda não plenamente abolida.
Para que os ex-escravos não se libertem plenamente, não se assegura boas escolas para eles nem para seus filhos. Aqui não fogem para Estados abolicionistas no Norte, mergulham no mar da deseducação e continuam escravas, servindo aos seus sequestradores sonsos. Esta é a lógica da perversa desigualdade escolar, que condena nossas crianças a abandonarem a escola, como fazia o “Clube do Sequestro” nos Estados Unidos, no século XIX. No lugar de trazer de volta para antes de 1888, simplesmente fechamos os olhos à fuga das crianças em direção à escravidão moderna.
Mas além da perversidade sonsa, somos tolos, porque não medimos o custo do sequestro para todos os brasileiros. Cada criança que abandona a escola provoca uma perda para o país e, portanto, para cada brasileiro.
Comparando com países que cuidaram da educação de suas crianças, como a Coreia do Sul, pode-se estimar que o PIB brasileiro seria o dobro do atual se na infância nossos trabalhadores não tivessem sido sequestrados para fora da escola. Fazendo o Brasil mais pobre do que seu potencial permite, tanto quanto a escravidão nos amarrava no século XIX. Além desta perda, a falta de educação exige gastos gigantes com assistência social, porque os sequestrados na infância não são capazes de se manter na vida adulta. Sequestramos crianças negando-lhes futuro, e todos perdem o que elas poderiam oferecer ao Brasil se tivessem recebido boa educação.
Somos sequestradores sonsos individualmente, ao explorarmos as crianças sequestradas quando adultas, e tolos socialmente, ao impedi-las de se prepararem para construir um país moderno que beneficiaria a todos.
*Cristovam Buarque, Professor Emérito da Universidade de Brasília
Marco Aurélio Nogueira: Virando a página para trás
Lula, de novo elegível, não tem um mar aberto a sua frente. Não joga o jogo sozinho
É difícil avaliar a repercussão e os desdobramentos da decisão de Edson Fachin que, de uma só vez, monocraticamente, considerou sem validade todas as condenações de Lula. O ministro considerou que a Vara Federal de Curitiba não era o foro adequado para julgar os processos do ex-presidente, remetendo-os à justiça do Distrito Federal.
É mais fácil pensar no que a motivou. Fachin sabia que seria derrotado na Segunda Turma, antecipou-se a ela e deve ter tentado esvaziar a provável suspeição de Sergio Moro, artífice das condenações. Se terá êxito nisso não se sabe. Depois que se decidiu liberar os áudios da Vaza-Jato a Lula, era só questão de tempo soltar as amarras do ex-presidente, fazendo com que os processos voltassem à estaca zero.
Tudo isso tem um preço: como fica a imagem do STF, órgão supremo que precisou de cinco anos para descobrir que tudo que havia sido endossado pelos tribunais inferiores não passava de erro, de farsa, de injustiça? Há um quê de desmoralização que não passa despercebido. Pior para a vida institucional do País, que fica sem retaguarda.
Também é fácil vislumbrar a espuma de ódio que esguichará da boca dos bolsonaristas. Não por medo ou raiva, mas sim porque verão no fato um instrumento de campanha eleitoral, que agora está definitivamente aberta. Sentir-se-ão turbinados, revitalizados. Vira-se uma página para trás, de volta a 2018, ao antipetismo e ao antilulismo que tanta força deu à eleição do capitão.
É uma boa notícia para Bolsonaro, pois agora, quando o governo se mostra mais perdido e atarantado do que nunca, com nuvens carregadas pela pandemia, pelas mortes, pelo desemprego, pelas dificuldades fiscais, foi jogada na mesa uma carta que pode justificar as seguidas omissões presidenciais: ele agora dirá que o velho “inimigo” de antes voltou ao ringue e precisa ser combatido. O mesmo trololó de antes, de sempre, com direito a um pouco mais de fúria contra o STF.
Do lado de lá, não dá para cravar que a notícia fará com que Lula se proclame imediatamente candidato. O ex-presidente poderá voltar a ser penalizado no médio prazo, a depender da velocidade com que trabalharem a Justiça do Distrito Federal e o Tribunal Regional da 1ª Região (TRF-1).
De certo mesmo é que a decisão de Fachin espirrará em outras eventuais candidaturas potenciais, tipo Ciro Gomes e Flávio Dino, que ficarão paralisados, na expectativa dos próximos lances.
Lula, porém, não tem um mar aberto a sua frente. Não joga o jogo sozinho. Volta ao jogo com a bandeira do “injustiçado” tremulando mais alto, o que é um trunfo importante. Mas sabe que não vencerá a eleição sem um vínculo com o centro, com o mercado, os bancos. Poderá subir o tom contra Bolsonaro, lançar feromônios para seduzir o povo que o adora, mas também precisará suavizar o discurso para atrair os moderados e oferecer a eles alguma perspectiva de poder.
Até mesmo algo diferente poderá acontecer: uma coalizão de centro-esquerda que faça direito as contas, avalie politicamente a correlação de forças e convença o ex-presidente a aderir a um tertius e a um programa que salve o País. Tudo está, afinal, para ser jogado e no tabuleiro não há peças irremovíveis, nem vitoriosos por antecipação.
*Marco Aurélio Nogueira, professor de Teoria Política da Unesp
Alon Feuerwerker: Lula ficha limpa, por enquanto
Sobre a decisão do ministro Edson Fachin de anular as duas condenações de Luiz Inácio Lula da Silva (tríplex e sítio) em Curitiba, o argumento dos advogados era de que as acusações nada tinham a ver com a Petrobras. E por que decidir só agora? Segundo Fachin, porque os advogados só apresentaram esse argumento em novembro.
Questões juridicas à parte, é preciso fixar que a decisão representa uma vitória política para Lula e o PT. É claro que Lula pode ainda ser condenado pela Justiça Federal do DF, e se a condenação for confirmada em segunda instância voltará a ficar inelegível. Mas a partir de agora o cenário é outro.
Fachin não anulou os atos instrutórios de ambos os processos. O juiz em Brasília poderá, se desejar, simplesmente decidir em cima de tudo o que foi preliminarmente produzido sob a supervisão de Sergio Moro em Curitiba. Mas é possível que os advogados de Lula argumentem que Moro tampouco deveria ser o juiz encarregado de tocar a instrução.
Por que Fachin fez o que fez? Uma hipótese é tentar evitar que a Lava Jato descesse pelo ralo junto com os processos de Lula se a Segunda Turma declarasse a suspeição de Moro. Mas a esta altura é menos relevante para o quadro político. O fato é que Lula está de volta ao palco. E isso tem efeitos imediatos, como mostrou hoje a queda da Bolsa.
Quem ganha e quem perde? Ganham Lula e o PT. Mas também em algum grau Jair Bolsonaro, que vem sob fogo cerrado dos segmentos políticos “ao centro”. Com Lula no cenário, certamente será revivido o argumento de que o atual presidente seria uma espécie de mal menor para esse grupo.
*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação
Fernando Gabeira: Uma visita à mansão Bolsonaro
Flávio Bolsonaro comprou mansão de R$ 6 milhões em Brasília. Raramente me interesso por pessoas cujas casas têm banheiros com mármore de Carrara, espaço gourmet, iluminação LED na piscina, home theater e toda essa papagaiada.
No entanto os teóricos do bolsonarismo, entre eles Steve Bannon e o chanceler Ernesto Araújo, sempre afirmam que sua luta é contra o materialismo decadente, que dará lugar a uma sociedade dominada pelos símbolos e povoada por sacerdotes.
Uma das formas de combater essa posição é apontar a distância entre as palavras e a realidade. Bannon vive como um homem rico, e a mansão do primogênito de Bolsonaro é mais uma demonstração de que seu grande projeto na vida é enriquecer.
Existem, no entanto, outras formas de contestar os teóricos do bolsonarismo, embora quase ninguém se importe com isso, por achar que eles são autoconstestáveis.
Gosto dessas discussões, pois, afinal, são parte da minha vida. Nas poucas visitas a Londres, sempre dedicava meu tempo a passear na querida Charing Cross Road, rua famosa por suas livrarias, que talvez nem existam mais como antes.
Foi na Charing Cross que comprei cinco volumes de uma pesquisa realizada pela Fundação Europeia de Ciência, sob o título de “Crenças no governo”. O quarto deles foi o que mais me interessou. Chama-se “O impacto dos valores”.
Toda vez que vejo teóricos da “alt-right” afirmarem que vivemos numa sociedade materialista decadente, lembro-me desse livro.
Segundo ele, os pontos da decadência materialista que mais incomodam, o feminismo, a luta contra o racismo, a ecologia, são na verdade valores que surgiram precisamente no pós-materialismo, a partir dos anos 60.
A passagem dos valores materialistas para uma nova fase significa a superação dos anos de dificuldades econômicas e inseguranças, abrindo espaço para as necessidades de autoexpressão, pertencimento, satisfação estética, cuidados ambientais, nesse caso uma ética para com as novas gerações.
Tudo isso surgiu de mudanças profundas na sociedade. Não houve um processo de perda de valores, mas sim de câmbio de valores.
As feministas questionam valores patriarcais, os negros questionam a supremacia branca, tão cara à alt-right, os intelectuais pós-materialistas condenam uma ideia de felicidade que consiste na acumulação de riquezas.
Os teóricos do bolsonarismo, ao se apegar a uma religiosidade popular, são apenas nostálgicos, pois não examinam as próprias mudanças no interior da religião, provocadas pelo avanço da racionalidade ocidental, aquilo que os sociólogos chamam de desencantamento do mundo.
Steve Bannon dá a impressão de que leu Heidegger. Duvido que tenha feito bom proveito. Segundo o filosofo alemão, somos um ser no mundo, impossível descuidar dele.
Trump e Bolsonaro destroem o meio ambiente em nome de um materialismo vulgar, que supõe que somos senhores do mundo e o controlamos de uma posição exterior.
Não quero dizer que as lutas modernas são perfeitas, nem negar que às vezes se excedem. Também não acredito que a questão identitária possa substituir uma consciência que envolva o problema de todos.
Quero apenas acentuar que os líderes espirituais da extrema-direita buscam reviver um passado que não existe mais e, mesmo quando essa ilusão leva a uma vitória eleitoral, é completamente incapaz de conduzir o presente. Por isso, volto à mansão do senador Flávio Bolsonaro e encontro nela um espaço mais adequado para traduzir os anseios de um grupo político que apenas se aproveita da religiosidade popular para atender aos anseios de acumular riquezas.
Não é por acaso que o grande líder mundial dessa corrente é Donald Trump. E seu correspondente tropical entope o país com armas, em confronto com a própria religião.
Demétrio Magnoli: Lockdown, só usa quem pode
Bolsonaro afirmou que lockdowns “não funcionaram em lugar nenhum do mundo”. É cascata, como tudo que escorre da boca do presidente. Doria retrocedeu São Paulo para a “fase vermelha”. Atenção: não é, nem de longe, lockdown. Brasil afora, em meio à escalada da pandemia, governadores e prefeitos tornaram-se alvo de um bombardeio de críticas por não declararem lockdowns. No caso, os gestores têm razão: lockdown, só usa quem pode.
Lockdown é um extensivo congelamento da economia e da sociedade. Só os setores mais essenciais são autorizados a funcionar. A circulação de pessoas é restringida ao máximo. Funciona, pois a drástica redução de interações sociais ao longo de dois a três meses diminui radicalmente a taxa de transmissão do vírus. Não é, porém, uma varinha mágica. Como persiste alguma mobilidade social, e o vírus atravessa, impávido, a porta das residências, continuam a ocorrer contágios. Lockdowns não substituem a imunização coletiva.
A Nova Zelândia eliminou o vírus combinando lockdowns com fechamento de fronteiras. O sucesso, replicado por raros países, deve-se à circunstância de que, na etapa inicial (e oculta) da pandemia, as ilhas neozelandesas não experimentaram elevadas taxas de contágio. Hoje, porém, a reabertura de fronteiras depende da vacinação em massa da população. Na Europa, os lockdowns só conseguiram achatar temporariamente as curvas pandêmicas, impondo repetições do traumático processo.
O lockdown tem impactos políticos, econômicos, sociais e psicossociais devastadores. A restrição de direitos e liberdades, as perdas de negócios e renda, a insegurança e a solidão que provocam não devem ser menosprezados. Como a amputação, lockdown é um recurso extremo destinado a salvar o bem mais precioso — no caso, a funcionalidade do sistema hospitalar. Bolsonaro é incapaz de entender isso, mas as sociedades modernas proíbem-se, moralmente, de assistir à morte de pacientes sem atendimento.
Estados totalitários, como a China, podem deflagrar lockdowns à vontade. Basta girar a chave do maquinário estabelecido de controle social. Nas nações democráticas, há pré-condições indispensáveis para implantar o lockdown: um consenso político mínimo, um nível razoável de coesão social e o monopólio estatal do uso da força. Os EUA jamais aplicaram um lockdown nacional pela ausência da primeira dessas condições. No Brasil, faltam as três.
O voto tem consequências, acima e abaixo do Equador. Bolsonaro ainda comanda cerca de um terço dos eleitores e conta com um apoio amorfo de uma maioria parlamentar, como ficou evidenciado na eleição das mesas do Congresso. Nas esferas estadual e municipal, o bolsonarismo representa uma força política significativa. Não se fará lockdown sob o atual governo. O Brasil vive — e morre — com suas escolhas democráticas.
Nas nações europeias, formadas por extensas classes médias, os lockdowns sustentaram-se sobre o pilar do Estado de Bem-Estar. As duras restrições foram compensadas por políticas de preservação das empresas e dos empregos. Nada disso evitou a eclosão de manifestações de massa contrárias às medidas sanitárias emergenciais. No Brasil, porém, a extensão da pobreza e da informalidade exigiria, para a imposição de lockdown nas nossas derramadas periferias urbanas, a mobilização generalizada dos aparatos de repressão. Os gestores, felizmente, não se engajarão em desvarios desse tipo. Nota importante: a esquerda que clama por lockdown seria a primeira voz a condenar as violências policiais decorrentes.
O Brasil não é Araraquara. Há tempos, o Estado brasileiro perdeu o controle sobre a totalidade do território nacional. No Rio de Janeiro, um lockdown exigiria negociações das autoridades com chefes de milícias e do narcotráfico, algo que também seria necessário em favelas fincadas noutras metrópoles. Quando Eduardo Paes descarta a alternativa, não opta pela morte, mas meramente pelo realismo.
Compreendo o desespero dos epidemiologistas que exigem lockdown. Desconfio do discernimento dos comentaristas políticos que ecoam o mantra desses dias sombrios.
Sergio Lamucci: Economia caminha para um semestre perdido
Primeira metade do ano deverá ser marcada pela combinação de atividade fraca e inflação ainda elevada
A economia brasileira terá mais um ano difícil em 2021, especialmente no primeiro semestre, marcado pela combinação de atividade fraca e inflação ainda elevada. Com o avanço do número de casos e mortes pela covid-19 e a vacinação lenta, a adoção de medidas mais rigorosas de isolamento social se tornou necessária em muitos Estados e municípios, o que vai afetar especialmente o setor de serviços. Além disso, a volta do auxílio emergencial demorou, prejudicando a demanda nos primeiros três meses do ano, e não foi acompanhada de iniciativas mais firmes para controlar a expansão dos gastos públicos obrigatórios, o que mantém o câmbio sob pressão, num momento de alta dos preços de commodities. Em resposta à inflação mais elevada, o Banco Central (BC) deverá começar neste mês um ciclo de aumento dos juros, apesar da falta de fôlego da economia.
Além do ambiente doméstico difícil, o cenário externo pode ficar menos favorável para países emergentes como o Brasil. A alta das taxas de retorno dos títulos de 10 anos do Tesouro americano aponta para um quadro complicado para esse grupo de economias. A expectativa de um ritmo forte de crescimento nos EUA pode resultar numa elevação precoce da inflação, levando o Federal Reserve a retirar parte dos estímulos monetários antecipadamente, ainda que esse não seja o cenário com que trabalham os dirigentes do BC americano. O risco de um quadro externo mais adverso é causar uma desvalorização adicional do real, que segue muito mais depreciado do que sugerem fatores como os termos de troca (a diferença entre preços de exportação e importação) e a situação das contas externas.
O governo federal é o grande responsável pelo cenário negativo. A economia só terá chance de deslanchar com a vacinação em ritmo acelerado. Com a falta de planejamento na compra de imunizantes pelo Ministério da Saúde, o processo avança lentamente, custando milhares de vidas e atrasando a normalização da economia. Na semana passada, o país teve mais de 10 mil mortes por covid-19. Enquanto isso, o presidente Jair Bolsonaro minimiza a gravidade da crise sanitária, desdenha de medidas como o uso de máscaras e se opõe a decisões de maior isolamento social, apesar da escalada do número de casos e de óbitos, num momento em que o sistema de saúde de diversos Estados se aproxima do colapso.
A Tendências Consultoria projeta um crescimento de 2,9% em 2021, menos que a herança estatística que o ano passado deixou para este ano, de 3,6%. Isso significa que, se PIB não crescer nada em relação ao fim de 2020, a expansão será da magnitude do carregamento estatístico. “Ainda estamos trabalhando nos números trimestrais, mas a projeção de 2,9% embute a perspectiva de contração no primeiro semestre”, diz a economista Alessandra Ribeiro, sócia e diretora de macroeconomia e análise setorial da consultoria.
Em relatório da Tendências, os economistas Thiago Xavier e Lucas Assis destacam os fatores que contribuem para interromper a retomada da economia no começo do ano. “Do ponto de vista qualitativo, o contexto é de elevação de casos de covid-19, já superando os patamares registrados no auge do contágio em 2020, de redução do arsenal de políticas fiscal e monetária anticíclicas e de persistência da relativa pressão inflacionária corrente.” Segundo eles, é um ambiente especialmente difícil para os vetores fundamentais para a recuperação sustentável da economia no curto prazo, como a demanda das famílias, a atividade de serviços, o mercado de trabalho e a confiança do consumidor.
Os dois notam que a suspensão do auxílio emergencial desde janeiro é “uma limitação importante” para o consumo das famílias e para o PIB. O benefício vai voltar, mas num valor mais baixo e para um público menor, devendo vigorar por um período de quatro meses. O volume total do auxílio em 2020 superou R$ 293 bilhões, o que representa 4% do PIB total e 6% do PIB das famílias, observam os analistas da Tendências. Em tese, o auxílio neste ano estará limitado a R$ 44 bilhões, dadas as restrições fiscais.
O cenário para o investimento também se turva. O descontrole da doença gera tanto efeitos diretos, ao impedir a retomada do mercado de trabalho da construção civil e limitar a demanda por bens industriais, quanto efeitos indiretos, uma vez que a persistência de um quadro complicado para a pandemia é fonte expressiva de incertezas, afetando as decisões das empresas de investir, dizem Xavier e Assis. “Ao final, não há saída na direção de uma recuperação econômica sem superar inevitavelmente a pandemia da covid-19”, resumem eles.
Também atrapalham a retomada a taxa de câmbio excessivamente desvalorizada e os juros futuros elevados, pressionados pelas incertezas no campo fiscal e por fatores como a atitude mais intervencionista de Bolsonaro na economia. A volta do auxílio é necessária, mas deveria ser acompanhada por medidas mais consistentes de ajuste das contas públicas, como de controle dos gastos com pessoal. A versão da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) Emergencial aprovada na sexta-feira pelo Senado não tirou o Bolsa Família do teto de gastos, mas não embute regras mais duras de consolidação fiscal num prazo mais curto. Nesta semana, a Câmara dos Deputados deverá analisar o texto.
O dólar está próximo de R$ 5,70, afetando a inflação num quadro de alta forte das commodities. Para piorar, as taxas mais elevadas dos títulos de longo prazo dos EUA são preocupantes para emergentes como o Brasil - o rendimento dos papéis do Tesouro americano de 10 anos está perto de 1,6% ao ano, depois de começar 2021 em 0,93%. A aprovação do pacote de estímulo fiscal nos EUA, de US$ 1,9 trilhão, deve ajudar a manter essas taxas em nível alto.
Ao comentar o ambiente externo, Alessandra diz que, “de um lado, há crescimento mais expressivo nas principais economias e alta de commodities, o que seria positivo para o Brasil”, mas, de outro, há uma expectativa antecipada de aumento dos juros, com o receio de inflação maior. “Esse cenário pode ser mais difícil para emergentes, em especial para aqueles com fundamentos mais frágeis”, afirma ela. “No Brasil, o risco é um câmbio mais depreciado, maiores pressões inflacionárias, alta mais expressiva dos juros futuros e o BC tendo que ser mais agressivo no processo de normalização da política monetária”. Se concretizado, esse quadro vai afetar ainda mais o ritmo da economia brasileira, minando uma eventual retomada no segundo semestre, que depende primordialmente de um processo mais rápido de vacinação.
Bruno Carazza: São todos coniventes
O silêncio cúmplice dos pré-candidatos diante da pandemia
Há exatamente um ano, 45 pessoas - incluindo ministros, assessores, parlamentares e empresários - acompanharam o encontro de Jair Bolsonaro com o então presidente dos Estados Unidos Donald Trump.
O jantar no famoso resort de Mar-a-Lago, na Flórida, não trouxe nenhum resultado concreto em termos diplomáticos ou comerciais. Em compensação, 23 integrantes da comitiva brasileira retornaram contaminados com o novo coronavírus. Começava ali uma longa história de negativa da doença, dos seus efeitos e dos métodos cientificamente comprovados para combatê-la.
Bolsonaro é insensível à morte. Ao ordenar, na quinta-feira, “chega de frescura e mimimi”, nosso governante mais uma vez desrespeitou o luto nacional permanente em que vivemos desde o início do ano passado.
Logo no dia seguinte, porém, ao sair do Palácio do Alvorada, assegurou: “Até o final do ano acabou o vírus já, com toda a certeza". Essa frase deixa claro que há um cálculo bastante racional por trás de toda a sua psicopatia.
Na lógica macabra do presidente, mais dia, menos dia a maioria da população será vacinada e em outubro de 2022 o pior terá passado. Com um pouco de sorte - a manutenção das baixas taxas de juros internacionais, um novo boom de commodities e um generoso bônus estatístico depois das quedas de 2020 e do primeiro semestre de 2021 -, o candidato à reeleição poderá até se vangloriar de uma boa taxa de crescimento do PIB durante a campanha.
Com um exército de milhões de seguidores nas redes sociais e uma teia de grupos de WhatsApp com capilaridade em todo o Brasil, editoriais da imprensa, manchetes negativas na TV e notas de repúdio não o comovem - pelo contrário, lhe servem de alimento e incentivo.
Adorado por 30% do eleitorado, blindado pelo Ministério Público e com o Supremo Tribunal Federal acuado, não lhe interessa se morrem a cada dia mil, duas mil ou cinco mil pessoas.
Na sua desastrosa gestão da pandemia, só houve um episódio em que o presidente foi obrigado a recuar na irresponsabilidade. No início do ano, ameaçado duplamente pela possibilidade, ainda que remota, de aceitação de um pedido de impeachment por Rodrigo Maia e pelo marketing agressivo de João Doria com a vacina do Butantã, optou por moderar o discurso e tratou de acelerar os processos de aprovação e obtenção dos imunizantes.
Contudo, afastado o risco político com a vitória de Lira e Pacheco no Congresso e vislumbrando que Doria não decolou nas pesquisas, a morbidez voltou a ditar o rumo das ações presidenciais.
Esse episódio demonstra que Bolsonaro não se importa se ao final serão 300, 400 ou 500 mil brasileiros mortos - o que o move é o instinto de sobrevivência para permanecer no Palácio do Planalto até 2026.
Está cada vez mais claro que não há outro caminho para o governo adotar um comportamento responsável no combate à covid-19 se não for pela política. E tão chocante quanto a postura de Bolsonaro é a inação dos seus potenciais adversários nas próximas eleições.
No PT, Lula e Haddad concentram todos os seus esforços na reversão das condenações dos integrantes do partido na Lava-Jato. Enquanto isso, Ciro Gomes atira em todas as direções com o objetivo único de ser a alternativa da esquerda num eventual segundo turno em 2022.
Sergio Moro, por sua vez, submergiu diante das novas atividades profissionais como diretor de empresa que presta consultoria jurídica para empreiteiras envolvidas com corrupção.
Quanto a Luciano Huck, há quatro anos continua seu chove-não-molha de tuítes e artigos publicados em jornais, repletos de belas palavras e ótimas ideias, mas carentes da coragem de assumir-se como um verdadeiro político.
Cada um à sua maneira, todos parecem apostar na velha estratégia do “quanto pior, melhor”. Ao torcerem para a pandemia e a crise econômica corroerem a popularidade de Bolsonaro até as eleições, indiretamente Lula, Haddad, Ciro, Moro e Huck se mostram coniventes com as centenas de milhares de mortes pela covid-19.
O caos que se dissemina nas ruas, hospitais e cemitérios de todo o país exige que cada eventual candidato saia do conforto das suas contas de Twitter, onde criticam os descalabros do atual mandatário para seus seguidores, e assumam desde já a postura de liderança que prometem exercer a partir de 1º de janeiro de 2023.
Não se trata aqui da defesa de uma utópica formação de uma “frente ampla” com a definição antecipada de uma chapa única para concorrer à Presidência em 2022.
Há várias ações que os principais pré-candidatos poderiam tomar em conjunto para encurralar Bolsonaro politicamente e, assim, forçá-lo a combater seriamente a pandemia, a começar por uma intensa campanha na mídia tradicional e nas redes sociais em que todos se colocariam lado a lado na defesa da vacinação, do uso de máscaras e de ações efetivas de distanciamento social.
No Congresso, os pré-candidatos também poderiam se lançar num processo articulado com vistas, pelo menos, à aprovação de uma CPI mista para investigar as responsabilidades do governo federal pelas mortes pela covid.
Unidos, os aspirantes ao Planalto também poderiam empreender um giro internacional buscando alertar os demais países da gravidade da situação brasileira e dos riscos que ela representa para o mundo em termos de novas variantes do vírus, tentando assim acelerar a obtenção de novas doses das vacinas.
Em botânica, existe um outro sentido para o termo “conivente”. Trata-se de estruturas que na base são separadas, mas cujos ápices se inclinam e se aproximam até se contactarem, mas sem se fundir - como certas flores, em que filetes independentes se unem para tornar mais eficiente o processo de polinização.
Lula, Haddad, Ciro, Moro, Huck, Doria e qualquer um que queira se lançar candidato no ano que vem têm diante de si a escolha de qual significado darão para sua “conivência”: se, pela omissão, serão sócios de Bolsonaro na morte de outros milhares de brasileiros ou se, juntos, abrem mão de diferenças pessoais e ideológicas para pressionar o governo a pôr fim ao estado de calamidade em que nos encontramos.
*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.
Almir Pazzianotto Pinto: O presidente e a reeleição
À semelhança da ditadura chavista, tudo será feito para repetir o regime militar
É inevitável a antecipação da campanha para as eleições presidenciais de 2022. O presidente Jair Bolsonaro lançou-se candidato à reeleição ao iniciar o governo. Renegou compromisso de campanha quando declarou que não tentaria reeleger-se. Seria honesto, mas tolo ou fracassado, se deixasse de fazê-lo. Ninguém abdica do poder, escreveu Maquiavel.
Ademais, promessa de candidato só compromete quem ouve. A frase, cujo autor ignoro, corresponde ao que há de mais mesquinho na política brasileira. Como os partidos não passam de legendas sem ideologia, promessas e programas de governo são redigidos para dar ao povo crédulo a sensação de que serão executados. Prometer algo que não se vai cumprir é estelionato eleitoral. Fosse punido, a maioria da classe política estaria na cadeia.
Jair Bolsonaro será candidato em 2022. Por qual partido ou coligação partidária não interessa. Será candidato graças ao instituto da reeleição, enxertado no Direito Constitucional brasileiro pela Emenda n.º 16, de 5 de junho de 1996, promulgada no primeiro mandato do presidente Fernando Henrique Cardoso. Não subestimem o capitão. Apesar de autoritário e rústico é esperto. Em seus planos deve estar o de filiação a legenda inexpressiva. Precisará apenas da legenda. Recursos e adesões serão obtidos pelo exercício abusivo do poder. Terá o apoio da ultradireita conservadora. Em cada quartel, clube de tiro e loja de armas encontrará aguerrido comitê eleitoral.
Quem busca a reeleição disputa uma corrida de obstáculos, com larga vantagem sobre os demais competidores. Ao ser dada a partida, terá a favor parcela apática do eleitorado. O elevado número de candidatos provoca, entretanto, dispersão dos votos e torna inevitável a segunda rodada de votação. No primeiro turno, os eleitores votam no candidato preferido. No segundo as possibilidades se igualam, pois a escolha é determinada pela rejeição.
São vários os nomes em circulação na bolsa de valores eleitorais. A quase certeza da derrota não evitará que partidos nanicos disputem com candidatura própria, ou em coligação.
Entre os grandes, no PSDB se apresenta o governador João Doria, mas depende da direção nacional, pois corre por fora o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite. O insistente Ciro Gomes tentará pelo PDT. Fernando Haddad deve ser o preferido do PT, salvo se Lula resolver o problema da inelegibilidade. Guilherme Boulos virá pelo PSOL ou como vice do PT. O outrora poderoso MDB terá dificuldade para encontrar alguém apto a participar da prova. O melhor nome, deputado Baleia Rossi, é jovem e foi derrotado como candidato à presidência da Câmara dos Deputados.
Sergio Moro e Luciano Huck produzem ruído, mas falta-lhes cacife para jogar o pôquer eleitoral. Com os espaços congestionados, não será fácil para eles encontrar legenda, salvo se concordarem em concorrer à Vice-Presidência ou ao Senado.
Sob que panorama econômico e social serão disputadas as eleições de 2022? Essa é a questão. A vacinação em massa, boicotada por Jair Bolsonaro, será decisiva para o controle da pandemia. Não bastará, porém, para resolver os problemas da desindustrialização, do desemprego, da expansão da informalidade, do empobrecimento da classe média e da crescente miséria.
É possível e desejável que até o segundo semestre do próximo ano a pandemia tenha sido debelada. Dela, porém, ficarão terríveis marcas da morte de centenas de milhares de infectados. O tempo e o esquecimento cobrirão de silêncio a destrambelhada política do negacionista defensor das aglomerações e da cloroquina? Creio que não.
A política suicida do presidente Jair Bolsonaro, exposta pela maneira como conduziu o Ministério da Saúde, ao nomear para dirigi-lo general intendente do Exército, será relembrada por familiares dos mortos, infectados e precariamente tratados por falta de vacinas, de oxigênio, de vagas hospitalares.
Quanto à economia, dizem os pesquisadores ser provável que haja deterioração ainda maior neste e no próximo ano. A responsabilidade, na opinião de especialistas, cabe à falta de foco do governo e à incapacidade de avançar com agenda econômica liberal destinada a destravar os obstáculos enfrentados pelo País.
Como a oposição lidará com o problema e se organizará em frente única, é difícil saber. Afinal, os adversários do presidente Jair Bolsonaro revelaram, nos dois primeiros anos de mandato, total incapacidade de comunicação com a opinião pública. Não se ouviu na Câmara dos Deputados e no Senado um só discurso viril contra a criminosa maneira de o governo se conduzir diante da pandemia.
Há em curso projeto de permanência no poder a qualquer preço. À semelhança da ditadura chavista, tudo será feito para repetir o regime militar, desta vez com segunda eleição. Fica a advertência.
Com as vantagens asseguradas pelo exercício do cargo, controle do Tesouro Nacional e pacto com o “Centrão”, não será impossível nova emenda ao artigo 14, parágrafo 5.º, da Constituição.
*Advogado. Foi ministro do Trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho
Gil Alessi: No auge da pandemia, Governo Bolsonaro censura professores e acelera desmonte ambiental e de direitos humanos
Após facilitar acesso a armas e munições no começo do ano, gestão volta a fragilizar fiscalização ambiental e coloca em xeque o futuro do Programa Nacional de Direitos Humanos. Na última sexta, ofício circular constrangeu servidores do IPEA
Em meio a recordes de morte pela covid-19 no Brasil, atraso na vacinação e resultados pífios no desempenho econômico, o Governo de Jair Bolsonaro continua centrando sua artilharia em algumas de suas principais bandeiras desde o início do mandato, em acenos claros à sua base eleitoral mais ideológica. Após uma série de decretos ampliando acesso e compra de armas de fogo e munições no início do ano, agora a gestão investe na desregulamentação ambiental —a “passada da boiada” antecipada pelo ministro do Meio Ambiente, Ricado Salles—, e em medidas que, na visão das ONGs do setor, atacam os direitos humanos. Na última semana, dois episódios também acenderam o alerta: a Controladoria Geral da República, subordinada à Presidência, abriu procedimento contra dois professores que haviam criticado Bolsonaro enquanto uma circular constrangeu pesquisadores do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), ligado à pasta da Economia, a não divulgar nada sem a estrita supervisão da cúpula.
Na área ambiental o novo golpe veio com a nomeação, feita pelo ministro Salles e publicada no Diário Oficial da União na quarta-feira, da advogada Helen de Freitas Cavalcante como superintendente do Ibama no Acre, um Estado-chave para a preservação da floresta amazônica. As credenciais da indicada para o cargo, no entanto, contrariam a finalidade do órgão, que é o responsável pela fiscalização e preservação dos ecossistemas brasileiros. Cavalcante fez carreira advogando em prol de infratores ambientais que eram autuados não apenas pelo Ibama, mas também pelo Instituto Chico Mendes de Biodiversidade (ICMBio).
A defensora divulga vídeos em suas redes sociais nos quais vende seus serviços como uma maneira de evitar que os produtores rurais sejam alvo de multas e outras sanções por parte da fiscalização. “Com uma assistência jurídica especializada não será a Justiça que lhe citará como um executado em (...) multa do Ibama, mas você como autor de uma ação anulatória do auto [de infração] do Ibama, mandará citar o Ibama”, diz Cavalcante. Em outro trecho, ela indaga: “Você que já recebeu aquela multinha do Ibama, aquela que vai de 100.000 reais pra frente? E pensa que é só isso? Mas esse é só o início da sua saga. Você se vê respondendo aqui: na Justiça Federal. Se você tiver um bom advogado, você vai ser autor [de um processo contra o órgão]”.
Após ter a nomeação criticada por ambientalistas e partidos de oposição, a nova superintendente divulgou nota afirmando que sua atuação à frente da entidade se pautará pelos “ditames da legalidade observando as leis e diretrizes ambientais pertinentes ao órgão”. Ainda segundo o texto, Cavalcante diz que sua experiência na área “só acrescentam lisura aos atos perpetrados, pois é necessário um pessoa tecnicamente preparada para a condução do órgão”.
A nomeação de uma advogada que defendia infratores ambientais é mais um capítulo na novela do desmonte e flexibilização de políticas conservacionistas pelo Governo Bolsonaro, que já o colocou em rota de colisão com diversos países europeus e mais recentemente com o recém-empossado presidente dos Estados Unidos, Joe Biden. O mandatário americano já havia afirmado durante a campanha que a preservação da Amazônia é um ponto central de sua política. Ainda não está claro quais mecanismos ele deve usar para pressionar o Planalto a mudar suas diretrizes na área, mas existe a expectativa de que a floresta deve entrar na pauta das relações bilaterais entre os países.
O outro front de embate do Governo é ideológico, e envolve a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves. Ela criou em fevereiro um grupo de trabalho com a finalidade de rever e analisar as políticas da pasta, e em especial o Programa Nacional de Direitos Humanos 3 (PNDH-3). O documento foi aprovado em 2009 durante o segundo mandato do então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, e é considerado um plano progressista. Ligada a grupos evangélicos e com uma atuação marcada por acenos à base conservadora do bolsonarismo, Damares foi criticada por entidades da sociedade civil por excluí-los das discussões sobre o tema. Como pano de fundo existe o temor de que pontos do programa ligados a diversidade, gênero e até mesmo educação sexual sejam excluídos ou alterados pelo ministério sem o devido debate.
Em um vídeo de quatro minutos publicado na última segunda-feira, Damares se defende e ataca “a esquerda” e ministros de Governos anteriores. “Sabe por que deu esse barulho [confusão]? Porque os ex-ministros e a esquerda, que já deixaram o poder, disseram que vamos mexer no Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3). É claro que vamos rever e avaliar esse plano”, afirma a ministra. De acordo com ela, a avaliação será “tão transparente e participativa que será conduzida pela Escola Nacional de Administração Pública’'. “E nessa avaliação todos vocês vão participar!”. Até o momento, o grupo criado pela ministra conta com 14 integrantes, todos de sua pasta.
A Human Rights Watch divulgou nota na qual insta o Governo de Bolsonaro a “garantir que quaisquer discussões sobre mudanças das políticas de Direitos Humanos no país ocorram de forma transparente, com amplo debate e participação da sociedade civil e dos grupos envolvidos”. A diretora da entidade no Brasil, Maria Laura Canineu, destacou também que o Planalto “vem promovendo uma agenda antidireitos”, e que agora planeja mudar o PNDH-3 “em segredo absoluto e sem a participação de qualquer um que discordar de suas políticas”.
Por fim, dois episódios acendem alerta para táticas do Governo para silenciar seus críticos. Nesta semana, a Controladoria Geral da União, subordinada à Presidência, lançou uma ofensiva contra dois professores da Universidade Federal de Pelotas (Ufpel), no Rio Grande do Sul. Na linha pregada pelo movimento Escola Sem Partido, que visa monitorar e tolher a liberdade de expressão dos docentes nas escolas, o órgão subordinado ao Planalto fez com que o epidemiologista e ex-reitor da Universidade Pedro Rodrigues Curi Hallal e Eraldo dos Santos Pinheiro tivessem que assinar um termo de ajustamento de conduta. Ambos haviam criticado Bolsonaro durante uma transmissão ao vivo em janeiro. O deputado federal Bibo Nunes (PSL-RS) acionou a CGU pedindo a exoneração dos dois —o que ainda não conseguiu. Agora eles terão que ficar dois anos seguindo à risca a lei 8.112, que veta a funcionários públicos ”promover manifestação de apreço ou desapreço no recinto da repartição”, sob pena de sofrerem sanções mais graves.
Eu sua conta no Twitter, o professor Hallal resumiu nesta quinta-feira seu ponto de vista sobre o ocorrido. “Existe um ditado alemão que diz: ‘Se há dez pessoas numa mesa, um nazista chega e se senta, e nenhuma pessoa se levanta, então existem onze nazistas numa mesa. Não se pode tolerar o intolerável”, escreveu. Ao EL PAÍS, o ex-reitor que coordenou o maior estudo epidemiológico do país sobre a covid-19, disse: “Não me lembro de nada do tipo partindo diretamente do Governo Federal. Processos disciplinares acontecem com frequência, envolvendo acusações de assédio, prestação de contas errada e uso inadequado de recursos. Agora um processo disparado por um deputado ligado ao presidente da República diretamente contra um professor, é a primeira vez que eu vejo”.
Nesta sexta, os pesquisadores do IPEA foram surpreendidos por um ofício assinado pelo presidente do órgão, Carlos Von Doellinger, que lembra a todos que os estudos e pesquisas “são direito patrimonial do Ipea” e que a divulgação “pode ocorrer após sua conclusão e aprovação definitiva, devendo serem seguidos normais, protocolos e rotinas internas, inclusive quanto à interação com os órgãos de imprensa”. O texto lembra que, caso a ordem não for seguida, pode haver punições. Ainda que a normativa se baseei em regras internas do órgão, subordinado ao Ministério da Economia, o ofício foi visto como intimidatório pelos funcionários. Circula internamente que o detonador do ofício, classificado de “lei da mordaça” e “censura prévia” pelo sindicato do IPEA, foi a publicação de um trabalho ainda em andamento do economista Marcos Hecksher pela BBC Brasil. Segundo a estudo, “o risco de morrer de covid-19 no Brasil foi mais de 3 vezes maior que no resto do mundo. Constrangimentos no órgão não são exatamente novidade ―em 2014, pesquisadores relataram ter sofrido pressão do Governo Dilma Rousseff para não publicar um estudo que falava sobre a alta da pobreza extrema―, mas a percepção é de que a atual cúpula foi além com a determinação de que as pesquisas são “propriedade” do IPEA.