Bolsonaro
O Estado de S. Paulo: Eduardo Bolsonaro manda população ‘enfiar no rabo’ máscara contra covid-19
Filho do presidente, deputado federal critica cobertura da imprensa sobre uso de itens de proteção contra infecções pelo coronavírus
André Borges, Lorenna Rodrigues e André Shalders, O Estado de S.Paulo
BRASÍLIA – Visivelmente irritado, o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) mandou a população brasileira enfiar as máscaras de proteção contra a covid-19 “no rabo”. Em uma aparição ao vivo que fez em seu perfil pelo Instagram, o filho “03” de Bolsonaro criticou o uso do principal item de proteção contra a contaminação do vírus que, dia após dia, causa recordes de mortes no País.
“Eu acho uma pena, né, (que) essa imprensa mequetrefe que a gente tem aqui no Brasil fique dando conta de cobrir apenas a máscara. 'Ah a máscara, está sem máscara, está com máscara'. Enfia no rabo gente, porra! A gente está lá trabalhando, ralando”, afirmou o deputado. As declarações de Eduardo foram feitas no dia em que o presidente Jair Bolsonaro mudou o discurso, usou máscara e passou a defender as vacinas. Nesta quarta-feira, 10, o Brasil também atingiu mais um recorde de mortes: pela primeira vez foram registradas 2.349 mortes por covid-19 em 24 horas.
Em tom agressivo, enquanto seguia em um carro no banco de carona, o deputado comentou, ainda, o caso das rachadinhas de Fabrício Queiroz e a compra de uma mansão de R$ 6 milhões por seu irmão, o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ).
“Você, retardado mental, que fica falando ‘o problema são os filhos, cadê o Queiroz?’, pagou o apartamento R$ 50 mil em dinheiro. Seu animal, larga de ser um peão nesse tabuleiro de xadrez chamado política e começa a pensar um pouquinho, ver o perigo que está por vir e ver como o sistema trabalha porque não dá ponto sem nó, não. Fique com Deus e não consuma cachaça em excesso igual a uns e outros aí”, disse.
Eduardo Bolsonaro também afirmou que iria comentar o resultado da viagem que fez com uma comitiva para conhecer o spray contra a covid-19 em testes iniciais em Israel. Na prática, porém, o que acabou dizendo é que o Brasil é que está desenvolvendo a sua vacina. E não só uma, mas três vacinas próprias.
“Você sabia que o Brasil está desenvolvendo três vacinas?”, perguntou. “A vacina brasileira ainda está em desenvolvimento, não é para agora”, comentou ele, acrescentando que o Brasil terá seu próprio spray e que outros países deverão vir ao País comprar esse produto. Ele não deu nenhum detalhe sobre o que estava falando.
“É importante a gente dominar essa tecnologia e dominar, ter a vacina brasileira. Além disso, isso coloca o Brasil em outro patamar internacional. Ao invés de nós irmos atrás de outros países, eles é que virão atrás de nós. Pode ser inaugurada uma vacina que não precise mais de insumos de outros países. Os israelenses gostaram muito disso”, afirmou.
Além do spray definido pelo presidente de “milagroso”, que atuaria em conjunto com uma vacina, Eduardo disse que o Brasil tem uma segunda tecnologia em análise, com efeito “dois em um”, que curaria covid-19 e influenza.
“A terceira vacina vai diretamente em seu sistema imunológico. O Brasil está desenvolvendo tecnologia nesta área”, observou, sem nenhum detalhe, data ou previsão de testes.
“Depois que está a invenção feita, aí ‘tá’ o mundo inteiro correndo atrás da vacina, o mundo inteiro correndo atrás dos insumos… Aí já era. Isso que a gente foi fazer em Israel é à semelhança do que ocorreu com a vacina de Oxford. É chegar primeiro, chegar no começo. Quando estávamos saindo de Israel, estava chegando uma delegação de outro país, da República Checa”, lembrou o deputado. “Já procurou Israel não só a Grécia, mas também a Dinamarca, o Chipre, e alguns outros países. Acho que a Áustria também. Então, onde há tecnologia, o mundo inteiro está proativamente se deslocando.”
Eugênio Bucci: Justiça performática
Vivemos num tempo em que a arte nos enfada e os ministros do STF nos sobressaltam
Em dois dias, mudou tudo. Na segunda-feira, em despacho monocrático, o ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal (STF), devolveu os direitos políticos a Luiz Inácio Lula da Silva. Ao anular as sentenças da Lava Jato contra o ex-presidente, sob o argumento de que o juiz da 13.ª Vara Federal de Curitiba, Sergio Moro, não era aquele a quem cabia a competência para decidir sobre as acusações que pesavam contra o réu, Fachin limpou a ficha de Lula, que agora está livre para se candidatar em 2022.
No dia seguinte veio mais. A Segunda Turma do mesmo STF começou a julgar a parcialidade e a suspeição do juiz Sergio Moro nas sentenças contra Lula. O julgamento levado a efeito pela Segunda Turma ainda não foi concluído, pois o ministro Nunes Marques pediu vista, dizendo que precisava estudar melhor o processo antes de votar, mas o que os ministros disseram na tarde de anteontem abalou o que se tinha por certo e sabido. Quando se referiu à Operação Lava Jato como “o maior escândalo judicial da nossa história”, o ministro Gilmar Mendes deixou claro: tudo mudou.
Nada contra o veredicto de segunda. Nada contra a sessão de terça. As razões processuais alegadas pela defesa do ex-presidente Lula vão se demonstrando irrefutáveis. A incompetência do juízo de Curitiba só demorou uns anos para ser admitida no STF, mas é cristalina. Ninguém mais parece disposto a refutá-la, a não ser que tudo mude de novo. Quanto aos sinais de parcialidade do magistrado responsável pela Operação Lava Jato, que foram enumerados na terça pelos ministros Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski, não há peneira hermenêutica que dê conta de encobri-los. Houve abusos, alguns provados, outros até tacitamente admitidos.
Ao menos no caso de Lula, o juiz da Lava Jato perpetrou injustiças em série, ainda que tenham sido injustiças estritamente processuais, formais, como vem postulando a defesa. Por isso já se sabia que, em algum prazo, de alguma forma, essas injustiças acabariam sendo reconhecidas pelo Supremo, como começou a ser feito nestes dois dias. Só não se sabia que as coisas viriam assim, tão espetaculosas, alvoroçadas e atordoantes.
Portanto, o problema não é o que se decidiu. Ao contrário, a nova postura do STF sobre a matéria talvez seja até parte da solução. O problema é o risco imenso de se aprofundar uma impressão generalizada de que a mais alta instância da Justiça no Brasil se pauta pela inconsistência e pela imprevisibilidade errática. O risco não deveria ser desprezado. Justiça não combina com ciclotimia.
A instituição incumbida de julgar todos nós não deveria sentir-se à vontade para mudar assim ao sabor das brisas, dos ventos e mesmo dos furacões. Alguma linha de coerência há de perdurar entre as decisões, sob pena de a sociedade parar de acreditar de vez na magistratura. Deus, que é Deus, pode escrever por linhas tortas. Os juízes, não, por mais que alguns insistam.
E agora? A sociedade brasileira assimilará bem a incongruência entre os acórdãos impenetráveis da mais alta Corte do País? Qual o limite para tantas idas e vindas? Se as arbitrariedades contra Lula eram patentes e gritantes, como eram, por que se permitiu que elas fossem tão longe? Por que se permitiu que elas o tirassem da eleição de 2018 e o enjaulassem. E por que reconsiderá-las agora, justo agora e só agora?
Se Moro praticou atos inadequados, que incidiram sobre o andamento de momentos históricos de enorme repercussão, por que ele seguiu imune e adulado por tanto tempo? E por que questioná-lo agora, assim? A impressão que se tem é que no Brasil de hoje tudo está sub judice: a prisão de Lula, que agora transparece como uma violência indizível, está sub judice e, junto com ela, a posse de Michel Temer na Presidência da República, a abolição da escravatura, a Guerra do Paraguai e o descobrimento do Brasil. É como se na segunda que vem o STF declarasse nulas as violações ao Tratado de Tordesilhas e, em seguida, anulasse também o próprio tratado, porque uma das firmas não foi devidamente reconhecida. Vai saber... O STF parece acreditar que faz o tempo retroceder.
Normalmente os críticos do Judiciário, focados nas tecnicalidades da aplicação da lei, esmiúçam a observância ou a inobservância dos ritos e o rigor ou a frouxidão das derivações jurisprudenciais de cada fundamentação. A esta altura nós deveríamos preocupar-nos igualmente com a percepção que os brasileiros terão da Justiça nos próximos anos.
O leigo pode não saber o que é heurística, pode não entender o significado de expressões como ex ofício ou ex ante e ex post, mas sabe perfeitamente o que é certo e o que é errado. Todo ser humano tem senso moral, percebe intuitivamente a iniquidade, separa o justo do injusto. Se, por algum motivo, os seres humanos deste país não virem mais no Poder Judiciário a encarnação legítima da justiça, tudo o que está mudando vai abaixo.
Eis o “ó do borogodó”, para invocarmos o novo brocardo jurídico. Vivemos num tempo em que a arte nos enfada e os ministros do Supremo Tribunal nos sobressaltam. Enquanto tudo muda, e alguma coisa está fora de prumo.
*Jornalista, é professor da ECA-USP
Ascânio Seleme: Lula foi ainda mais Lula
Depois de dois anos ouvindo Bolsonaro, qualquer um que lhe fizesse frente se destacaria com louvor. Mas ex-presidente foi mais longe
Retire os excessos de retórica e as figuras de linguagem, sublime os trechos destinados ao público interno e à militância. Ignore os erros involuntários e mesmo os estudados. Esqueça o tom de campanha. O resultado será um discurso grande, importante. Lula voltou com tudo. É verdade que o ex-presidente foi beneficiado pela torpeza e pela ignorância do seu oposto.
Depois de dois anos ouvindo Bolsonaro, qualquer um que lhe fizesse frente se destacaria com louvor. Mas Lula foi mais longe. Falou de política, economia, saúde; conversou com os brasileiros nos seus termos; mostrou que está pronto para negociar em todos os âmbitos; e apontou quem é o seu inimigo.
Isso, sem texto pronto, sem teleprompter, apenas com uma lista de tópicos em sua frente.
Com a mesma empatia de sempre, mas sério, sem se permitir às gracinhas habituais de seus discursos, Lula se posicionou de maneira inequívoca como uma opção para o Brasil e os brasileiros. Os diversos pontos do discurso, mesmo os que não pareciam apontar na mesma direção, tinham Bolsonaro como alvo. Mas sempre com postura presidencial.
Ao lembrar que a terra é redonda ou ao criticar a política de liberação de armas, o tom foi de compromisso, não de chacota. Mesmo ao defender uma política econômica não liberal, dizendo que o governo não tem ministro da Economia, o ex-presidente queria mesmo era mostrar seu apoio à política de distribuição de renda através do salário emergencial, substituto provisório do seu Bolsa Família.
A insistência ao tratar do coronavírus também tinha endereço. E o destinatário do Palácio do Planalto recebeu a mensagem no mesmo dia, se apresentando logo em seguida para falar sobre a vacinação e, incrível, usando máscara.
Aos brasileiros, Lula falou da fome, do preço da gasolina, da picanha na mesa do trabalhador, do seu eterno objetivo de chegar à raiz dos problemas nacionais por querer um mundo mais justo. Retórica, claro, mas que toca no coração das pessoas. Se Bolsonaro consegue acertar o estômago dos brasileiros com suas grosserias, Lula busca o coração com suas sutilezas. E é isso o que o distingue do outro.
Negociação com o Congresso, com toda a classe política, nas suas palavras, e com os empresários é aceno do Lulinha, Paz e Amor. O mesmo que disse não guardar mágoas, apesar das chibatadas que levou.
Os claros exageros, como a afirmação de que Marisa, sua mulher, morreu por causa da Lava Jato, serviram apenas para ele reiterar que apesar de tudo não tem mágoas. Porque, disse, não há espaço nem tempo para guardar ódio. Mesmo quando atacou injustamente jornais e jornalistas, ofereceu um afago ao defender a liberdade de imprensa e ao elogiar a edição de ontem do Jornal Nacional.
Aliás, uma frase do discurso explica o morde e assopra de Lula com relação à imprensa.
“A gente começa a gostar da vida quando está mais perto do céu”, disse o ex-presidente.
Pois Lula esteve muito perto do inferno, quando aliados seus, do seu partido e dos que o apoiavam, saquearam em conjunto a Petrobras. Também quando seu governo foi denunciado por pagar por apoio de partidos com dinheiro público, o famoso mensalão. Ou quando sua sucessora, Dilma Rousseff, quase quebrou o país. Ou ainda quando um apartamento e um sítio foram estruturados por empreiteiras para atender o gosto da sua família.
Nestes momentos em que esteve bem próximo do fogo eterno, Lula não gostava dos jornais e muito menos do JN.
Mas mesmo esse desvio pode rapidamente virar passado na retórica política de Lula. O que não mudou e não vai mudar, é a grandeza do seu discurso. Lula sabe com quem fala, sabe bem o que quer falar e sabe melhor ainda como falar. Bolsonaro não está mais só.
Carlos Andreazza: O discurso de Lula
Não vi “paz e amor”. E nem me pareceu que fosse essa a intenção. Seria falso. Um sujeito, depois de mais de quinhentos dias de cana, cujo algoz – um juiz – decompõe-se em (justa) suspeição quer é guerra. Mas sem pressa; e de paletó, camisa impecavelmente passada. Sem pressa para se declarar candidato; antes – senhor do tempo – à frente do projeto que difundirá a sua inocência. Inocente não é; mas inocente será o que julgado por um acusador. Não havia “paz e amor”. Havia essa verdade; a de Gilmar Mendes: a de que corrupção nenhuma pode ser condenada com corrupção. Errado não está.
Esse foi o palanque – armado na altitude de quem conversa com o Papa – desde o qual falou Lula. Uma aula de discurso político – admita-se. (E seria aula mesmo se estivesse o sarrafo lá no alto.) Construção de profissional a serviço de rara capacidade de farejar para onde os ventos pandêmicos levam as demandas da sociedade. Articulação retórica de mestre para, se quiserem mesmo estabelecer o debate na cancha da polarização, aceitá-la nas bases que ditou: ele sendo o que usa máscara, prega distanciamento social e defende vacinação em massa. Radicalmente.
Com cálculo de provocador: se Bolsonaro, o capitão, investe em facilitar o comércio – sem fiscalização – de armas, Lula será o preocupado com o sucateamento das Forças Armadas.
Aula – e aqui fala Carlos Andreazza, jamais um esquerdista.
Para que fiquem claros os termos em que topa polarizar com o presidente: Lula associou Bolsonaro – com ênfase – às milícias. Será assim doravante. O discurso: não pode admitir que o país que governou – que fez respeitado no mundo – ora vá nas mãos de um miliciano.
Nem tudo foi verdadeiro, porém. Mentiu um lote – disparou números como nem Ciro Gomes. (As agência de checagem cortarão um dobrado.) E foi especialmente duro vê-lo falar sobre uma bem-sucedida gestão petista na Petrobras, como se não houvesse, entre esses gestores, Paulo Roberto Costa, Renato Duque e Nestor Cerveró – como se não houvesse, apenas como um exemplo, a barbaridade chamada Pasadena.
É um fato que a petroleira foi pilhada durante os governos do PT – fato também sendo que, como empresa, em função das escolhas lulopetistas para sua administração, quebrou. E a esse prejuízo – bilionário – não se referiu; pancada que ceifou empregos.
Mas aqui se analisa o discurso e só discurso; sendo fato também que a Petrobras de Lula – aquela onipresente, indutora maior da economia – simboliza um projeto de Brasil; de Brasil grande, independente, autossuficiente. (Que exportava óleo; e que, por isso, jamais poderia ser refém do dólar. O que fizeram
com essa nação para que se achatasse assim?) O Brasil de Lula – em que havia fábrica da Ford e onde quatro milhões de carros eram vendidos por ano – comunica. Alcança. Mobiliza. Atrai.
É um fato que a Petrobras de Lula – apesar da corrupção que abrigou profundamente – mobiliza memórias. Boas. A estatal que se expandia, quase uma casa moeda, distribuindo riquezas e gerando oportunidades – e não apenas, atenção, aos pobres. O ex-presidente jogou várias iscas. Quer ouvir os empresários – diz. Quer mesmo é lembrá-los de que foram felizes com ele; naquele Brasil-Petrobras que fabricava navios-sonda e multiplicava postos de trabalho (e propinas). Quer conversar com os políticos – com o Centrão. Quer de todos – e também dos mercados – compreender (como se Dilma Rousseff não tivesse existido) por que se foram associar ao liberal-bolsonarismo. Quer mesmo é fazer ver a todos que foram muito felizes com ele; e sem (promessas de) privatizações.
Um projeto de Brasil. Foi com isto que o ex-presidente jogou em seu primeiro pronunciamento – a aula – após reaver os direitos políticos: ele tem um projeto de Brasil. Goste-se ou não, Lula tem um. Em resumo: um país miserável como o Brasil não pode prescindir da mão forte do Estado. Simples e poderoso; tanto mais em meio a uma pandemia de efeito depauperante sobre os mais pobres.
É para onde o vento varrido pela peste levou o desejo da sociedade: para um lugar – espaço natural a Lula, que joga em casa – em que o governo injete dinheiros emergenciais na economia de modo a que o povo empobrecido sobreviva à falta de empregos, circunstância agravada pela incompetência-insensibilidade de Bolsonaro/Guedes.
Esse foi o discurso. O recado. Mais claro impossível. Lula – sangue nos olhos – desdobrar-se-á daí. Vem para a guerra – ou não seria um miliciano o seu adversário. E vem gigante. A caneta, porém, está com o outro. Que reagirá – acelerando o populismo que já vai em curso – com um derramamento de Estado. Precisa amarrar o Centrão, cujo preço subiu pela hora do almoço.
Fernando Schüler: Sinal de alerta para o centro político
A polarização tende a produzir uma fuga do centro, que deve buscar consenso
Lula fez discurso de candidato, na sede do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, e era seu direito fazê-lo. Disse que no seu governo a Petrobras era bem administrada e que o Brasil era o país “mais admirado do mundo”. Chamou a turma da Lava Jato de “quadrilha” e culpou a operação pela perda de mais de 4 milhões de empregos.
Mas o centro do discurso foi mesmo sobre Bolsonaro. Governo de milicianos, eleito pelas fake news, feito de gente que acredita que a Terra é plana. Governo de “imbecis”, em relação ao qual “alguma atitude nós vamos ter que tomar”.
É interessante que Lula não investiu na retórica da “ameaça à democracia”, que é a marca registrada da oposição a Bolsonaro desde a campanha de Fernando Haddad. Sua ênfase é no “pão com manteiga” na mesa do trabalhador, emprego, investimento público (“o que faz o país crescer). Talvez vá aí uma mudança, quem sabe um esgotamento do tema. Ou tenha apenas faltado combinar isso melhor.
A “narrativa”, como agora é moda dizer, parece clara: a decisão de Fachin foi, para todos os efeitos, uma absolvição, um reconhecimento tardio da inocência de Lula. Lava Jato, pois, é coisa do passado. Lula aguentou firme e sempre soube que este dia (esta quarta) iria chegar. E chegou.
OK, discurso político nem sempre se pode levar ao pé da letra, e sempre há aqui e ali algum excesso retórico. Mas o fato é que, escutando essas coisas, é surpreendente que alguém diga que a polarização política não tenha voltado, e voltado com tudo, com a entrada de Lula no jogo.
Se a disputa entre Lula e Bolsonaro é uma polarização entre dois “extremos” e se são extremos “equivalentes”, é um debate para a militância política. Um lado irá falar da corrupção, da quebradeira econômica e o risco de “venezuelização” (como li de um porta-voz bolsonarista), e o outro dirá o que Lula disse nesta quarta. Governo de milicianos, imbecis, feito à base de fake news etc. Não vi Lula usando a palavra “fascista”, mas é possível que ela apareça logo à frente.
Se isso não é uma polarização, o que seria, exatamente? Mais do que isto: é um tipo de debate de baixíssima qualidade política, que infelizmente preside nossa democracia.
É previsível que interlocutores do lulismo no debate público fiquem nervosos com a tese da “polarização entre os extremos”. Seu desejo é de que Lula pudesse liderar uma ampla frente, envolvendo o centro político, contra Bolsonaro. Ouvi de alguém que os elogios de Rodrigo Maia a Lula indicavam algo nesta direção.
Seria curioso uma aliança entre Lula e o Democratas, reunindo todos os que lutaram bravamente a favor das reformas, nos últimos anos, e todos os que o fizeram, também bravamente, na direção oposta. O lógico é que Lula seja candidato de uma frente reunindo seus tradicionais aliados na esquerda.
Se a polarização agrada ao Palácio do Planalto? Parece evidente que sim. À parte desviar o foco das debilidades do governo, a curto prazo, a presença de Lula permite a Bolsonaro reanimar a militância entediada ao ressuscitar sua retórica “identitária”, com um olhar no passado, reanimando velhos fantasmas do embate político brasileiro.
O principal motivo da discreta satisfação do Planalto, no entanto, é outro. A entrada de Lula e a crispação política criam um efeito de fuga do centro político. Eleitores à direita, decepcionados com Bolsonaro e dispostos a uma alternativa, tendem a reconsiderar diante do espectro de Lula. Nesse plano arriscamos enveredar em uma disputa de rejeições: o antipetismo contra o antibolsonarismo.
A conclusão é que o principal sinal de alerta soou para o centro político. Em 2018, vamos lembrar, Alckmin, Meirelles e Amoêdo somaram menos de 10% dos votos. É apenas uma lembrança. O centro político não tem, no atual cenário, outra tarefa a não ser buscar um candidato de consenso e um programa capaz de se colocar consistentemente como alternativa a Lula e a Bolsonaro.
Observando a nova coalizão majoritária em funcionamento no Congresso, não penso que seja uma tarefa simples.
*Fernando Schüler, professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.
Maria Hermínia Tavares: O dilema dos democratas
Esquerda, centro ou direita falam uma coisa e fazem o contrário diariamente.
A mais de um ano das eleições presidenciais, tudo que se diga sobre seu desfecho é temerário, todo prognóstico corre o risco de ser desmentido, com ou sem Lula no páreo. Isso posto, afastada ao que parece a hipótese de impeachment, o endosso da robusta minoria que ainda apoia Bolsonaro, se não derreter até lá, bastará para levá-lo ao segundo turno.
Democratas de esquerda, centro ou direita não se cansam de dizer que a ampla união de forças será necessária em 2022 para impedir que ele se reeleja e, assim, continue a destruir o país e a democracia a duras penas construída. Falam uma coisa e fazem o contrário diariamente.
O centro-direita e a direita não bolsonaristas se movem em torno de seus possíveis candidatos, como se não existisse no país esquerda com enraizamento social e expressão eleitoral consideráveis. Como se pudessem ganhar a Presidência sem o seu apoio.
Já os líderes mais destacados da esquerda dedicam-se com afinco a se atacar uns aos outros —veja-se o tiroteio entre Ciro Gomes e Fernando Haddad. Enquanto isso, intelectuais progressistas gastam tinta para demonstrar que todos os economistas liberais, mesmo os mais críticos ao governo, se igualam a Paulo Guedes e que todos os possíveis candidatos da direita são bolsonaristas envergonhados, ainda que hoje façam oposição aberta ao ocupante do Planalto. Não custa lembrar que Lula e Dilma foram a segundo turno, quando venceram com o imprescindível apoio de forças que não se situam no campo da esquerda.
No fundo, uns e outros continuam a se movimentar em torno da linha divisória traçada em 2016, com a derrubada de Dilma Rousseff, que consolidou a polarização política e abriu espaço para a disparada do ex-capitão. Mas, então, a minoria de extrema direita existente na sociedade não tinha expressão política nacional. Agora tem um líder à altura do seu primitivismo e da sua brutalidade.
As regras eleitorais incentivam a multiplicação de candidaturas no primeiro turno das eleições presidenciais. Mas não limitam conversas prévias que aplainem o caminho para entendimentos na rodada final nem impedem o trato civilizado entre os concorrentes do campo democrático. Nada indica que isso esteja sendo buscado.
Cientistas políticos estudam os chamados dilemas da ação coletiva, situações em que pessoas ou organizações agindo em prol de seus interesses, sem a possibilidade de coordenar seus atos, terminam por produzir desastres para si e para a sociedade. A volta de Lula ao jogo político não afasta o risco de que as próximas eleições venham a ser mais um episódio dessa história de final infeliz.
*Maria Hermínia Tavares -professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap.
Luiz Carlos Azedo: Cadê as vacinas, Bolsonaro?
As previsões de colapso do Sistema Único de Saúde (SUS), que sanitaristas e infectologistas vinham fazendo desde o mês passado, estão se confirmando
A cúpula do governo já se deu conta de que está protagonizando a maior tragédia sanitária da nossa história, ao fracassar no combate à covid-19, com o negacionismo reiterado do presidente Jair Bolsonaro e a incompetência do ministro da Saúde, general Eduardo Pazuello. Ontem, em solenidade no Palácio do Planalto, bem que Bolsonaro tentou dar um cavalo de pau e mudou o discurso em relação às vacinas, até disse que a senhora sua mãe foi vacinada em São Paulo (com a Coronavac do instituto Butantan, quanta ironia, a vacina do governador João Doria). Somente fez isso porque foi duramente atacado pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva por sua atuação como presidente da República durante a pandemia.
As previsões de colapso do Sistema Único de Saúde (SUS), advertência que os sanitaristas e infectologistas vinha fazendo desde o mês passado, estão se confirmando. O Brasil registrou nas últimas 24 horas 2.286 mortes por Covid-19 e 79.876 novos casos, segundo o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass). O número de vítimas fatais da doença no Brasil chegou a 270.65 e o total de casos aumentou para 11,202 milhões. Mesmo assim, Bolsonaro continua sabotando os esforços de governadores e prefeitos para conter a propagação da pandemia com o isolamento social, enquanto não há vacinas suficientes para imunizar a população.
“A política do lockdown adotada no passado, o isolamento ou confinamento, visava tão somente dar tempo para que hospitais fossem aparelhados com leitos de UTI e respiradores. O governo federal não poupou esforços, não economizou recursos para atender todos estados e municípios”, disse Bolsonaro. O presidente anunciou que o Brasil já adquiriu 270 milhões de doses de vacinas, a maioria para o primeiro semestre deste ano, mas as vacinas não chegam na frequência que a velocidade de propagação do vírus exige, por causa da incompetência do governo nas negociações. Voltou a defender o “tratamento imediato” com medicamentos não recomendados pelas autoridades de saúde, ao sancionar uma lei que prorroga a suspensão do cumprimento de metas pelos prestadores de serviço do Sistema Único de Saúde (SUS).
Patentes
O general Pazuello, atarantado com a ameaça de que a crise de Manaus se repita simultaneamente em várias capitais do país, também corre atrás do prejuízo. Tenta minimizar seu fracasso e ressalta os esforços dos principais centros de produção de vacinas: “Sem a produção da Fiocruz e do Butantan, nós hoje praticamente não teríamos vacinado ninguém. Essa é a realidade”. Desde janeiro, o país utiliza os imunizantes CoronaVac e Oxford/AstraZeneca.
Ontem, na reunião da Organização Mundial do Comércio, em Genebra (Suíça), porém, o Brasil voltou a se manifestar contra a suspensão dos dispositivos de propriedade intelectual sobre patentes de remédios, vacinas e outros produtos de combate à pandemia da Covid-19. A proposta apresentada pela Índia e pela África do Sul em outubro de 2020 visa a suspender patentes ligadas a tratamentos e métodos de prevenção para a Covid-19. Na epidemia de AIDS, a quebra de patentes foi fundamental para controlar a doença.
Diante do fracasso, Pazuello pediu ajuda à China, que tanto foi hostilizada pelos filhos do presidente Bolsonaro e integrantes do governo, inclusive o chanceler Ernesto Araújo. Enviou ofício à embaixada da China no Brasil para pedir auxílio para a compra de 30 milhões de doses da vacina da farmacêutica chinesa Sinopharm, que havia sido ofertada pelo governo chinês no ano passado, pois trata-se de um laboratório estatal, mas à época não houve interesse do governo. Pazuello também negocia a compra de outros imunizantes, como o produzido pela Pfizer, único com registro definitivo concedido pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), o que é outra novela.
William Waack: Vendedores de esperanças
Bolsonaro e Lula vão disputar o mesmo eleitorado, num faroeste sem mocinhos
Nos fenômenos políticos brasileiros dos últimos 20 anos Luiz Inácio Lula da Silva e Jair Messias Bolsonaro exibem uma importante característica em comum: foram vendedores de esperanças frustradas. As diferenças ideológicas e de estilo entre eles empalidecem diante do fato de que assumiram prometendo grandes transformações e acabaram governando com a mesma massa amorfa de forças políticas empenhadas em acomodar interesses setoriais, cartoriais, corporativistas e regionais às custas dos cofres públicos ou de pedaços da máquina pública – plus/minus a roubalheira petista.
O fator excepcional agora é o alargamento e aprofundamento de crises simultâneas de saúde pública, economia estagnada e liderança política. Elas são causa e consequência ao mesmo tempo do esgarçamento do tecido social (perigo de anomia), da deterioração do equilíbrio dos poderes (Judiciário emasculando os demais) e da incapacidade generalizada de elites econômicas de enfrentar a estagnação de produtividade e competitividade da economia (já nem se fala mais de PIB ruim de ano para ano, mas de PIB ruim de década para década).
Diante da tragédia da saúde e de seu impacto na economia – claudicante já antes da pandemia –, o problema para Bolsonaro e Lula é qual esperança vão vender. As bandeiras do lulopetismo estão manchadas não só pela corrupção adotada como forma de governo, mas, e ainda mais decisivos, pelo espetacular fracasso no intervencionismo e dirigismo da economia e a incapacidade de resolver mazelas sociais. São graves pois derivam de ideias equivocadas, em boa parte abraçadas por setores das elites empresariais.
Sem ideias próprias, Bolsonaro abandonou sucessivamente qualquer conjunto coerente de postulados emprestados por Paulo Guedes, além de deixar para lá ou atuar contra as bandeiras da luta anticorrupção, da reforma e enxugamento do Estado e, de forma também espetacular, parou de se empenhar por destravar a economia do País. Que, ainda por cima, enfrenta o agravamento do sufoco fiscal, questão não meramente conjuntural (gastos com pandemia).
A tripla crise é particularmente grave para a vida nacional, pois reforça um angustiante estado de paralisia no qual se destaca a percepção generalizada de que nada anda direito – inclusive criar alternativas políticas aos fracassados vendedores de esperanças. Paira um sentimento (sim, coisa subjetiva, mas política é coisa subjetiva também) de que impera por toda parte uma extraordinária hipocrisia: um STF que só toma decisões ao sabor da política, dizendo que não toma decisões políticas. Um Centrão que só pensa nos próprios interesses setorializados, quando fala que defende interesses do País. Um presidente que só pensa na reeleição e na própria família, quando diz falar pela coletividade, cujo sofrimento pouco o comove.
Por uma desagradável ironia, Bolsonaro e Lula (ou as forças que representam) estão hoje na situação de terem de disputar a mesma parcela do eleitorado mais dependente de assistencialismo, mais arriscada a cair na miséria total se faltar a mão do Estado, mais ignorante e com a situação agravada pela falta de acesso a serviços básicos e educação de qualidade. Quadro piorado pela pandemia.
É uma dura constatação, mas que até aqui não levou as diversas elites dirigentes brasileiras (entendidas como os grupos “que pensam” na economia, no ambiente cultural no sentido amplo e na condução de agrupamentos políticos) sequer a um diagnóstico comum, quanto mais a linhas de ação. A noção de que “a corrupção” seria a grande causa e a explicação para o nosso atraso relativo foi derrubada agora com o “desmascaramento” da Lava Jato (juntando na mesma trincheira safadeza com defesa de princípios da ordem democrática). “Mais saúde e educação”, as palavras de ordem de 2013 viraram slogans vazios de conteúdo.
Dizer que estamos vivendo um faroeste sem mocinhos é repetir Maquiavel, cuja originalidade estava na afirmação de que em política não se consegue realizar princípios. O problema é quando vira um faroeste sem esperanças.
Alon Feuerwerker: O estado da corrida
Vamos esperar as próximas pesquisas, mas a primeira presidencial feita após Luiz Inácio Lula da Silva ter voltado a ficar elegível mostra ele uns dois dígitos atrás de Jair Bolsonaro no primeiro turno e empatado tecnicamente com o presidente no segundo turno, apesar de numericamente atrás quatro pontos (a margem de erro do levantamento é três) (leia).
O presidente mantém sólido o contingente que votou nele no primeiro turno em 2018. Ele teve então algo que correspondeu a pouco menos de um terço do eleitorado total. A diferença está nas simulações de um eventual segundo turno, pois em 2018 Bolsonaro colocou em torno de dez pontos de vantagem sobre o então candidato do PT, Fernando Haddad.
Na referida pesquisa, os demais nomes ainda lutam para romper a barreira dos dois dígitos no primeiro turno. Tentarão fazer isso argumentando contra a polarização. Não funcionou da última vez. Vai funcionar agora? Há dúvidas. O tema polarização versus despolarização parece por enquanto meio fora do universo de preocupações do público mais amplo.
O que vai decidir, então? Em tese, como a economia vai chegar em meados do ano que vem. E isso dependerá da vacinação. Se ela andar razoavelmente, Bolsonaro tende a atravessar a turbulência e chegar competitivo. Pois removeu até o momento o risco de vir a sofrer nesse meio tempo um processo de afastamento na Câmara dos Deputados.
Se não, tende a se tornar um “pato manco”, como se diz nos Estados Unidos. Essa é a esperança dos concorrentes dele do centro para a direita.
*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação
Maria Cristina Fernandes: A volta de Lula
Se os arquivos da Lava-Jato permitem a Lula tentar reescrever sua história, os de Bolsonaro, com condutas, falas, gestos e atos de seu governo dificultam sua reinvenção
Radical é a pandemia, inútil competir. A dor do povo é tão grande que não autoriza mágoas. O estrago é tão gigantesco que a mudança de rumo não é um desejo, mas um imperativo. O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva usou a pandemia para ancorar a moderação do presente e baixar a guarda sobre o futuro. É este o eixo de Lula 2022. À indagação sobre as chances de sua candidatura, foi simples e curto: “É mais fácil construir uma frente de esquerda contra o que está acontecendo no país do que uma frente de direita”.
Já mudou o país. No domingo, a pesquisa Ipec o trouxe com um potencial de voto acima daquele do presidente da República. Na segunda, Jair Bolsonaro acordou cordato para uma reunião com a direção da Pfizer. Na terça-feira, o ministro Nunes Marques pediu vistas da suspeição de Moro para manter aberta a possibilidade de as provas dos processos de Lula serem validadas pela primeira instância do Distrito Federal. Na quarta-feira pela manhã, horas antes de o ex-presidente começar a falar, apareceu de máscara na cerimônia que sancionou a lei da aquisição de vacinas. Em seguida, o senador Flávio Bolsonaro tuitou uma foto do pai com a frase: “A vacina é nossa arma.”
Não será fácil para Bolsonaro. Se é a revelação de um arquivo de mensagens entre os integrantes da operação da Lava-Jato que permite a Lula tentar reescrever sua história, com Bolsonaro se dá o inverso. É o arquivo de condutas, falas, gestos e atos de seu governo que torna pouco crível a fantasia de estadista responsável que o presidente da República passou a envergar. E nem precisa de “hackers” para isso. Está na memória recente dos milhões de brasileiros que perderam familiares e empregos.
Isso não significa que Lula tenha uma avenida desimpedida. A reação dos pregões à sua elegibilidade que o diga. No único momento mais exaltado da entrevista, respondeu à repórter Cristiane Agostine, do Valor: “Não concordo com tudo que eles fazem nem eles com tudo que eu fiz, mas não precisam ter medo.” Desfiou a convivência de oito anos, sua posição contrária à autonomia do BC e em defesa do investimento público até chegar à sua crítica mais aguda: “A Febraban poderia me chamar para eu mostrar o demônio. Vou lá na Fiesp também. O demônio é a safadeza daqueles empresários para quem Guido Mantega liberou R$ 500 bilhões de desoneração que não foram repassados para os trabalhadores”. Ao atingir não apenas os empresários mas o governo de sua antecessora já antecipou a vacina que pretende usar contra a herança da ex-presidente Dilma Rousseff, esquecida na nominata.
A julgar pelo discurso, não haverá uma segunda Carta ao Povo Brasileiro. Suas credenciais serão os resultados de seus oito anos de governo. De olho na aversão dos investidores ao seu adversário, Bolsonaro resolveu prestigiar o ministro Paulo Guedes e o presidente do Banco Central, Roberto Campos, ao se deixar cercar por ambos na conferência virtual com a Pfizer. Não é capaz de estender esse prestígio à sua base no Congresso, incapaz de barrar as mudanças que desidratam a proposta que congela gastos para abrir espaço fiscal ao auxílio emergencial.
A entrada de Lula no cenário vai subir o “custo Centrão”, com reflexos nas contas públicas. Bolsonaro sancionou, a contragosto, como já deixou claro ao próprio presidente do BC, a autonomia do banco, mas tem como trunfo, para evitar a escalada de juros nesse momento em que enfrenta a volta do petista, os 90 dias de prazo que a mudança lhe deu. A partir da promulgação da emenda constitucional da autonomia, em 24 de fevereiro, Bolsonaro tem até 90 dias para enviar os nomes do presidente e dos diretores do Banco Central. Está dado que a equipe é esta que aí está, mas não custa lembrar que a prerrogativa é dele de confirmá-la.
A ausência do ministro da Saúde do encontro virtual com a Pfizer sinalizou qual será a saída do presidente para tirar a pandemia de suas costas. Eduardo Pazuello é o problema e ele, Bolsonaro, a solução. Para enfrentar o novo discurso do presidente, Lula mimetiza o presidente americano. Se as tragédias pessoais de Joe Biden (a perda da primeira mulher e de uma filha bebê num acidente de carro e de um filho para o câncer) alimentaram sua empatia com o eleitor americano assolado pela pandemia, Lula também tem seu arsenal. Sua segunda viuvez, que atribui à Lava-Jato, a morte de um neto de sete anos enquanto estava na prisão e a de um irmão a cujo enterro foi proibido de comparecer: “Queriam que eu fosse para um quartel do 2º Exército e meu irmão, dentro do caixão, fosse me visitar”.
Desde a decisão de Fachin, o mundo político em Brasília já se reposiciona. O Centrão ficará onde está. Fincou sua praça pedagiada no governo Bolsonaro com uma tarifa reajustada diariamente e usará os recursos arrecadados para se fortalecer na negociação com quem assumir a estrada. Nos demais partidos, o efeito da polarização será o de aumentar as candidaturas, não de reduzi-las. Se a ausência de Lula levava à reunião de forças para enfrentar Bolsonaro, sua presença estimula o lançamento de candidaturas visando à negociação de uma aliança no futuro governo. É isso, por exemplo, que levou o MDB a namorar a possibilidade de lançar o ex-presidente da Câmara Rodrigo Maia (DEM-RJ) e fez com que o PSD filiasse o secretário de Fazenda de São Paulo, Henrique Meirelles, ex-candidato à Presidência pelo MDB, com vistas à disputa de 2022. A postulação do governador João Doria virou o mote preferido das piadas que chegam ao gabinete presidencial.
A volta de Lula só enfraqueceu mesmo as candidaturas de fora da política, como a do apresentador Luciano Huck, e ameaça a de adversários do campo da centro-esquerda, como o ex-ministro Ciro Gomes (PDT), que foi pra cima. Disse que o fato de Lula ser inocente não significa que seja honesto. Lula valeu-se da mesma fleuma para responder ao ataque de Ciro (“Ele é um homem de 64 anos, não pode ofender as pessoas como quando era jovem”) e ao elogio de Rodrigo Maia, que foi ao Twitter para dizer que não é preciso gostar de Lula para entender a diferença dele para Bolsonaro (“Se ele resolveu reconhecer algum mérito no que fiz, fico agradecido [...] quem sabe está querendo construir uma nova relação política”).
O sucesso da estratégia de Lula será diretamente proporcional à capacidade de contagiar seu próprio partido de sua lhaneza. A sobrevivência de um discurso ajuste-de-contas com aqueles que lhe deram as costas ao longo dos últimos anos jogará por terra o apelo de conciliação nacional com o qual o ex-presidente reapareceu e no qual aposta para tirar seu passado dos tribunais e devolvê-lo para o juízo das urnas.
Cristiano Romero: O espetáculo da corrupção
Lava-Jato sofrerá novas perdas de reputação
Um famoso juiz federal perguntou certa vez a um jornalista sua opinião sobre vazamento de informações. Como todo repórter que vive da apuração de notícias, a resposta foi: “O vazamento me apraz”. Mas, para espanto e visível frustração do magistrado, o jornalista acrescentou: “Mas, como qualquer cidadão, não posso me coadunar com informações vazadas ilegalmente”.
A ética do jornalista, como ensinou o saudoso Claudio Abramo, não é nem deve ser diferente da ética do cidadão. “Sou jornalista, mas gosto mesmo é de marcenaria. Gosto de fazer móveis, cadeiras, e minha ética como marceneiro é igual à minha ética como jornalista - não tenho duas. Não existe uma ética específica do jornalista: sua ética é a mesma do cidadão”, escreveu Abramo no livro “A Regra do Jogo: O Jornalismo e a Ética do Marceneiro” (Companhia das Letras, 1988).
“Suponho que não se vá esperar que, pelo fato de ser jornalista, o sujeito possa bater a carteira e não ir para a cadeia”, acrescentou Abramo, um dos responsáveis pela modernização nas décadas de 1970 e 1989 da “Folha de S.Paulo”.
A pergunta do juiz perturbou o repórter porque ele percebeu que o magistrado ficou desapontado com sua resposta. A lembrança imediata, como sempre lhe ocorre quando colegas de profissão defendem a ideia de que os fins justificam os meios, foi das palavras de Claudio Abramo sobre a ética no jornalismo. Ele pensou com seus botões: “Para o juiz, sua ética não é a mesma do cidadão”.
A confusão na cabeça do profissional de imprensa estava instalada porque juiz é funcionário do Estado, pago para julgar se um crime foi cometido ou não e, com base nisso, manifestar se o acusado pela promotoria é culpado ou não, e então, no caso de condenação, estabelecer a pena, tudo com base nos parâmetros estabelecidos em leis.
Naquele momento, ficou claro para o jornalista que este país estava diante do seguinte quadro:
1. Sim, foi desbaratado, em 2014, um enorme esquema de corrupção envolvendo a maior estatal do país (a Petrobras) e centenas de pessoas, nesta ordem de "entrada em cena”: funcionários daquela empresa pública (os responsáveis pela montagem do bilionário mecanismo de corrupção), políticos e seus partidos, doleiros, executivos de grandes empresas (especialmente, empreiteiras) e empresários donos das empresas; não há dúvida alguma de que os desvios de recursos da maior companhia da economia brasileira, estimados em R$ 20 bilhões, ocorreram, afinal, descobriram-se contas milionárias de empregados da estatal no exterior, executivos e empresários confessaram a realização de pagamentos de propina a funcionários públicos e políticos etc.
2. As investigações, conduzidas por uma força-tarefa integrada por representantes da Polícia Federal (PF), do Ministério Público Federal (MPF) e da Justiça Federal e amparadas por um sem-número de delações premiadas, expediente relativamente novo na realização de inquéritos na Ilha de Vera Cruz, logo revelaram um objetivo maior, de caráter político -_ provar que o ex-presidente Lula era o chefe daquele grande esquema de corrupção - ; não dá para afirmar taxativamente que a força-tarefa estivesse a cargo de um propósito político-eleitoral, com vistas ao pleito de 2018, mas, convenhamos, o resultado foi o que se viu;
3. Para a força-tarefa, não bastava investigar, recolher provas, indiciar e/ou prender, interrogar, processar e condenar; mais importante era promover o “espetáculo da corrupção”, uma forma de massificar o apoio da opinião pública à operação e, assim, tornar sumárias investigações e condenações de alguns acusados, principalmente de Lula;
4. Com o apoio incontestável da sociedade, “entusiasmada” com o fato de ver empresários (antes, em sua maioria, inimputáveis devido a seus laços com o poder) e políticos pela primeira vez na cadeia, a Lava-Jato cometeu abusos de todo tipo, como permitir delações inconsistentes para validar presunções com viés político; vazar informações ao arrepio da lei para criar fatos consumados, isto é, evitar que instâncias superiores da Justiça questionassem o trabalho que vinha sendo feito; indiciar dezenas de pessoas que, depois, comprovou-se não terem envolvimento algum com o esquema de corrupção; grampear conversa da então presidente da República, Dilma Rousseff, com o ex-presidente Lula, sem autorização do STF, com o objetivo de criminalizar ambos; vazar a íntegra do grampo poucas horas depois da gravação da conversa e, assim, jogar a opinião pública contra a chefe do governo e contra Lula, um ato político, desprovido, portanto, de caráter jurídico;
5. Como se viu, as instâncias superiores do Poder Judiciário foram constrangidas pela primeira instância da Justiça; a prova disso é que a segunda instância (TRFs) rejeitou quase sempre por unanimidade os recursos da defesa; a Lava-Jato tornou-se um grande BBB, em que o importante não é o comportamento real dos participantes da “casa”, seu caráter e suas atitudes, mas o julgamento que os expectadores fazem a partir de narrativas induzidas pelo próprio “reality show” e de pré-concepções esmagadoramente conservadoras dos concorrentes ao prêmio, o que torna o BBB perpetuador de nossas doenças seculares, como o racismo e o machismo.
Ora, se a Justiça usa de expedientes abusivos e ilegais para cumprir sua missão institucional, esta fica maculada, independentemente de quem seja o réu. Não pode haver dúvidas num processo que leva à prisão de um ex-presidente da República, no ano em que este, e de acordo com as leis vigentes, seria um dos candidatos do pleito.
Com seu método de atuação, a Lava-Jato, mesmo levando em conta os resultados alcançados no combate à corrupção, resultou claramente na criminalização da classe política. Foi nesse vácuo que emergiu o inesperado Jair Bolsonaro, com discurso anti-política, anti-Brasília, impulsionado por uma campanha de instituições do Estado (PF, Justiça e MPF) que deveria ter se limitado à legalidade. O diagrama que mostrava Lula no centro do esquema de corrupção já deveria ter sido suficiente para mostrar a impropriedade com que a operação se movimentava.
Fernando Exman: Fachin catalisa a eleição presidencial
Decisão do ministro coloca Lula no jogo e antecipa campanha
Edson Fachin, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) que recolocou Luiz Inácio Lula da Silva na lista de presidenciáveis com uma canetada, agiu olhando para o legado da Lava-Jato, mas as consequências de seu ato já se percebem no presente. Em relação ao futuro, será necessário aguardar para ver o quão determinante terá sido para o resultado das eleições a sua decisão de cancelar as condenações do ex-presidente.
Fachin provocou uma catálise no processo de rearranjo político-partidário previsto para o início do segundo semestre. A campanha presidencial de 2022, que já vinha sendo caracterizada como uma das mais precoces da história contemporânea, tende a antecipar-se ainda mais.
O episódio dá dinamismo à pré-campanha. Mesmo sem um pré-candidato em campo, o PT já formulava um programa antagônico à agenda liberal da equipe econômica e ensaiava palavra de ordem capaz de contrapor o slogan do governo Jair Bolsonaro: “A vacina acima de tudo.” Lula deixará a função de titereiro para dominar o palco.
Bolsonaro, o maior interessado em reeditar o clima da disputa de 2018, ainda observa os eventuais desdobramentos da decisão do magistrado. Precisará equilibrar-se na tênue linha que divide o que seus apoiadores esperam ouvir e o que pode dizer o chefe do Executivo sem criar atritos com outro Poder.
O episódio também coloca sob pressão aqueles que esperam personificar uma terceira via. Entre eles, Ciro Gomes (PDT), que tem se mantido aquecido neste período de pré-campanha.
Meses atrás, esse espaço até poderia ser disputado pelo ex-ministro Sergio Moro, mas o ex-juiz da Lava-Jato é justamente o principal derrotado, do ponto de vista eleitoral, da decisão de Fachin. Sobra, portanto, cada vez menos tempo para que o apresentador Luciano Huck, o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite (PSDB), ou o ex-ministro da Saúde Henrique Mandetta (DEM) se posicionem no jogo. Os tucanos, para não ficarem a reboque, marcaram prévias para outubro.
Sob a condição de não ter seu nome revelado, um especialista que sabe das coisas assegurou: a decisão de Fachin não muda o pano de fundo que vinha sendo construído e a eleição de 2022 será um embate de “imaginários negativos”, ou seja, o antibolsonaro contra o antipetismo. Nesse contexto, ponderou o experiente consultor, Bolsonaro sai perdendo, pois quem vem agora para o embate é um Lula que o atual presidente da República não gostaria de enfrentar.
“Lula está renovado e cheio de gás”, explicou. “É outro Lula perante o Bolsonaro, mas não é outro Lula perante o Brasil”, acrescentou, referindo-se à grande popularidade do petista e à aprovação de suas administrações por parcela considerável da população.
Deve-se lembrar, também, que ele poderá dizer aos quatro cantos que, mesmo perseguido, não é mais um condenado. Seus adversários rebaterão afirmando que erros procedimentais do processo ou a conduta das partes não anulam o fato de que os governos do PT abrigaram diversos esquemas de corrupção. Com razão. O problema de Bolsonaro, porém, é que sua campanha terá dificuldades de sustentar o discurso anticorrupção de 2018.
“A mansão adquirida pelo seu filho é uma casa de horror, um bolo de chocolate para quem faz campanha política”, comentou essa fonte. “A questão ética não vai ser decisiva como foi na última eleição. Misturou tudo.”
Então, quem pode se beneficiar nessa conjuntura? Aquele que conseguir extrair o pior dos dois oponentes e surfar na onda antibolsonaro e antipetista. O momento do país também exige que os candidatos apresentem soluções para a crise. “Quem oferecer uma saída pode se deslocar. Isso quer dizer uma campanha positiva, um plano de governo e propostas para o país”, destacou. “É uma eleição de forças negativas, como foi a de 2018. Normalmente, quando isso acontece o natural é que se demonize a política. Agora, no entanto, é o contrário.”
Segundo essa visão, o momento exige uma liderança capaz de aglutinar forças, combater a pandemia e os efeitos da crise. Um cenário que pode ser desafiador para alguém de fora da política tradicional.
Precipitada a entrada de Lula na disputa, um dos principais desafios de Bolsonaro será acelerar a consolidação de sua imagem no Nordeste. Um fator que poderá dificultar essa entrada é a relação conflituosa que vem mantendo com governadores. Por outro lado, o presidente tenta capturar bandeiras da oposição, com a reformulação do Bolsa Família, inaugurações de obras da transposição do rio São Francisco ou a ampliação do acesso à água.
Na opinião desse especialista, sem novas ideias, dinheiro e boa gestão, resta ao presidente aproximar-se das marcas de outros governos. “Ele provoca danos cognitivos fortes não só no seu eleitorado, mas no público médio” com o vai e vem de seu discurso e essa confusão narrativa, apontou a fonte. “Ele faz uma subversão da linguagem e dos significados”, completou, citando como exemplo o fato de se cogitar a entrada do presidente no Partido da Mulher Brasileira (PMB). Em 2018, ele foi alvo de ampla campanha negativa do público feminino, que levantou a "hashtag" #elenão. Sua filiação à sigla poderia lhe garantir uma espécie de vacina contra estratégia semelhante.
Outra notícia negativa para Bolsonaro é a capacidade de mobilização de Lula, num momento em que o presidente corre o risco de ver crescer os panelaços ou até mesmo movimentos de rua.
Ele pode insistir no discurso de que existe o risco de o Brasil virar uma Argentina ou uma Venezuela, se a esquerda voltar ao poder. No entanto, o exemplo de outro vizinho deveria gerar maiores preocupações, neste momento, no Palácio do Planalto: o presidente do Paraguai, aliado de Bolsonaro, tenta conter protestos e escapar de um processo de impeachment por suposta negligência no combate à covid-19. “O que existe não é um sentimento de letargia. É um acúmulo depressivo que vai ser vomitado uma hora”, concluiu o especialista. O acirramento do ambiente não ajudará o país a solucionar os seus problemas.