Bolsonaro
Celso Ming: Vacina e economia
Uns entendem que o presidente Jair Bolsonaro não tem estratégia na sua política econômica. Outros, que não tem rumo. Outros, ainda, que ele não sabe o que quer.
É bom começar por discordar desses últimos. Bolsonaro sabe o que quer. Mais que tudo, ele quer se reeleger em 2022. Porém, a partir daí, fica tudo muito confuso, especialmente desde segunda-feira, quando inesperadamente o Supremo limpou a ficha do ex-presidente Lula e o tornou elegível.
Para garantir sua chance de se reeleger, Bolsonaro sabe que tem de mostrar serviço na economia. Não poderá pretender sucesso nas eleições se o desemprego continuar atingindo 13,5% da população ativa, se a renda continuar despencando, se continuar o ritmo de falência de milhares de empresas, se tantas e tradicionais fábricas começam a ser fechadas, como aconteceu com a Ford em Santo André, com a Mercedes Benz em Iracemápolis, com a 3M em São José do Rio Preto e com a Sony em Manaus.
A razão pela qual Bolsonaro se rebelou contra as medidas de distanciamento social para enfrentar a covid-19 e se rebelou nesta quinta-feira diante da nova “fase emergencial” decretada pelo governo do Estado de São Paulo é o fato de que elas derrubam o consumo, o faturamento do comércio e da indústria, produzem desemprego. É uma atitude imediatista e contraproducente, porque a melhor forma de conter o contágio e de retomar a atividade e o emprego é isolar temporariamente a população.
Bolsonaro recomendou remédios sem eficácia contra a covid-19, como a cloroquina, e desprezou qualquer coordenação do contra-ataque ao vírus. Até mesmo na sua especialidade, a logística, o atual ministro da Saúde, o general intendente Eduardo Pazuello, teve atuação desastrada. Faltou UTI, faltou oxigênio, faltaram seringas, falta vacina, faltou tudo, sobrou incompetência.
Se admira a política sanitária de Israel, como afirma, Bolsonaro teria feito o que Israel vem fazendo: depois de ter isolado a população, acelerou a vacinação. Hoje Israel apresenta o maior índice de vacinação do mundo: 104,81 doses ministradas por 100 habitantes.
A maneira mais eficaz de combater o coronavírus e de reerguer a economia é a vacina. O ministro da Economia tem lançado todos os dias advertências nesse sentido. Mas também nesse ponto, Bolsonaro teve atitude desastrosa. Boicotou as vacinas e impediu a importação de suprimentos enquanto estiveram disponíveis.
Nas últimas semanas parou de meter medo na população e parece ter mudado em alguma coisa sua atitude. Parece ter entendido que devesse adotar uma espécie de plano vacina, tomou a iniciativa de reunir-se com representante da Pfizer e encomendou um lote de 14 milhões de doses ao Brasil até junho. Nesta quarta-feira, sancionou projeto de lei aprovado pelo Congresso que autoriza o setor privado a comprar vacinas.
Ainda é pouco e muito tarde. E sabe-se lá se essa repentina conversão é para valer. O País se aproxima das 300 mil mortes pela covid-19. Apesar da forte recuperação mundial, a atividade econômica interna ainda não encontrou sustentação, a renda vai se desmilinguindo, o desânimo se espalha. E não fica claro como essa nova postura de Bolsonaro em relação à vacina pode ajudar a dar coerência à política econômica.
Eliane Cantanhêde: Lula é o oponente ideal para Bolsonaro, mas Lula e pandemia, juntos, ameaçam a reeleição
Jair Bolsonaro correu sozinho no páreo até aqui, mas passou a ter oposição
Com a falta de leitos e a disparada de mortes, o Exército Brasileiro logo estará entre duas alternativas: ir para a rua garantir o lockdown e salvar vidas, como propõe a senadora Kátia Abreu, ou, depois, usar seus caminhões para transportar corpos, como advertiu o então ministro Luiz Henrique Mandetta para o presidente Jair Bolsonaro, ao selar sua demissão do governo ainda no início da pandemia. O presidente não sabe ouvir a verdade. Degolou o ministro.
Mandetta caiu por defender isolamento social e Nelson Teich, por se recusar a adotar um medicamento rejeitado no mundo inteiro contra o coronavírus. Bolsonaro, então, foi buscar um general da ativa para ignorar o isolamento, liberar geral a cloroquina e bater continência para qualquer barbaridade – inclusive contra vacinas e até contra máscaras.
Só um ser na face da Terra é capaz de fazer Bolsonaro cair na real: Luiz Inácio Lula da Silva. Ao entrar na campanha presidencial de 2022, na quarta-feira, Lula já empurrou Bolsonaro para o campo minado onde ele é mais vulnerável, exatamente a pandemia, que pode, ou deve, chegar a 300 mil mortos ainda em março. Os conselheiros do presidente, muito terraplanistas e pouco científicos, previam 2.100...
Bolsonaro sentiu o golpe de Lula quase imediatamente. Logo depois da fala de Lula, que estava de máscara, pediu licença para tirá-la e passou álcool teatralmente no microfone, eis que o presidente aparece numa cerimônia do Planalto de máscara! Ele nunca usa, nem nos palácios, nas padarias, nas ruas, nem mesmo ao abraçar velhos e crianças em campanha política pelo País e já tentou até desacreditar o uso de máscaras numa live da internet. Foi patético!
Para piorar, o senador Flávio Bolsonaro, o “01”, esse da mansão mal explicada de R$ 6 milhões, pediu para a tropa viralizar a nova mensagem do pai: “Nossa arma é a vacina!”. Como assim? Todo mundo sabe que as “armas” dos Bolsonaros não são as vacinas, são revólveres, pistolas, rifles, balas. E que, para o presidente, a “vacina chinesa do Doria” (que a mãe dele tomou) causa “morte, invalidez e anomalia”. E alguém se esqueceu? “Não vou tomar, ponto final.”
O papai Jair e o irmão “01” tentaram, portanto, dar uma cambalhota no negacionismo, mas a única coisa que conseguiram foi aumentar a montanha de frases, imagens e atos que Lula já tem fartamente à disposição sobre o negacionismo de Bolsonaro, apontado como o pior líder do mundo na pandemia. E se esqueceram de avisar da guinada para o deputado Eduardo Bolsonaro, o “03”.
Em Israel, sem saber que agora máscara é legal, vacina é bacana e era para dar o dito pelo não dito, lá foi ele xingar a imprensa de “mequetrefe” por cobrar uso de máscara e divulgar que, numa comparação impregnada de simbologia, a comitiva liderada pelo chanceler Ernesto Araújo tirou foto sem máscara no embarque no Brasil e com ela no desembarque em Tel-Aviv. E o vexame do chanceler? Mas deixa pra lá. O fundamental é que estavam todos lá para um ato místico: orar para um spray milagroso.
A imprensa é mequetrefe, intrometida, enxerida e, assim, descobre mansões, rachadinhas, Queiroz, Wassef e informações privilegiadas da Petrobrás... A real ameaça é um presidente que se mete onde não deve, ataca a ciência, a inteligência, as pesquisas, as estatísticas, o ambiente, a cultura, a OMS, os parceiros prioritários do Brasil. Reclama que os governadores estão “destruindo” a economia, mas ele próprio destrói vidas.
Detestem ou não Lula, ele traz duas novidades para o ambiente macabramente contaminado do Brasil. Jair Bolsonaro correu sozinho no páreo até aqui, mas passou a ter oposição. E o petista é considerado o oponente dos seus sonhos, mas Lula e pandemia, juntos, podem ser mortais para a reeleição.
O Globo: Pressionado por Lula e pandemia, Bolsonaro recorre a militares, policiais e ao Congresso
Auxiliares do Planalto afirmam que a mudança de postura sobre vacina já vinha sendo discutida antes da decisão que deu de volta ao ex-presidente os seus direitos políticos
Daniel Gullino, Julia Lindner e Jussara Soares, O Globo
BRASÍLIA - Pressionado pelo agravamento da pandemia da Covid-19 e pela repercussão da volta do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao jogo político, o presidente Jair Bolsonaro faz movimentos para consolidar grupos que apoiam o governo. Ele forçou alterações na chamada PEC Emergencial para permitir a promoção de servidores, incluindo policiais; adotou a defesa da vacinação em massa, prioridade estabelecida pelos presidentes do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), e da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), ao assumirem as casas; e oficializou a demissão de Fabio Wajngarten da Secretaria de Comunicação, que tinha entrado em rota de colisão com militares e com o ministro Fábio Faria. Seu substituto será o almirante Flávio Rocha.
Já de olho em 2022, o presidente confirmou ontem em sua live semanal que abriu conversas para uma volta ao PSL. Como O GLOBO mostrou, Bolsonaro, que também cogitava ingressar e assumir o comando de uma sigla nanica, passou a considerar que precisa de um partido com mais recursos financeiros. O PSL, junto do PT, tem a maior fatia do fundo eleitoral, por serem as maiores bancadas da Câmara.
Auxiliares do Planalto afirmam que a mudança de postura sobre vacina já vinha sendo discutida antes mesmo da decisão do ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal (STF), que deu de volta a Lula os seus direitos políticos, mas reconhecem que uma defesa enfática da imunização é um antídoto ideal para conter o desgaste e diminuir o impacto das críticas da oposição ao enfrentamento da pandemia.
Um integrante do alto escalão do Planalto relatou ao GLOBO que, antes de dar o aval para colocar em prática a “operação vacina”, Bolsonaro recebeu uma avaliação do monitoramento de suas redes sociais que indicavam que os seguidores, neste momento, clamavam mais por vacina do que por emprego. O presidente também passou a reforçar que a nova variante é mais letal e, portanto, concordou a adotar um “meio-termo”, dizendo que o investimento na imunização é o suficiente para manter a economia funcionando.
Com a aprovação da PEC que autoriza a retomada do pagamento do auxílio emergencial, Bolsonaro aposta que sua popularidade crescerá entre eleitores de renda mais baixa e em regiões mais pobres do país, onde historicamente Lula tem melhor desempenho. O esforço para manter a promoção de servidores, incluindo policiais e militares, é outro movimento para evitar uma debandada de sua base de apoio. Bolsonaro minimizou as modificações no texto.
— Estamos olhando on-line a votação da Câmara. Parece que algumas emendas foram acolhidas. Eu fiquei 28 anos dentro da Câmara, sei como funciona lá. Então, nós temos que ter vitórias e, às vezes, a gente não pode ganhar de três a zero, quatro a zero, cinco a zero... Se ganhar de dois a um é uma vitória — declarou Bolsonaro durante encontro virtual da Frente Parlamentar da Micro e Pequena Empresa de 2021.
O presidente oficializou, com publicação no Diário Oficial da União de ontem, a demissão do secretário especial de Comunicação, Fabio Wajngarten. Definida há duas semanas, a troca agrada ao ministro das Comunicações, Fábio Faria, e aos militares que colecionavam atritos com o então secretário, considerado de perfil mais “explosivo”. Wajngarten recusou a oferta de três postos no governo, incluindo o de assessor do Ministério do Meio Ambiente. Antes de sair, o ex-secretário integrou a comitiva que esteve em Israel para firmar acordos para testes do spray nasal contra Covid-19 no Brasil.
A Secom será comandada interinamente pelo secretário de Assuntos Estratégicos, o almirante Flávio Rocha, apontado como um conciliador no governo. A substituição é vista internamente com otimismo para buscar uma comunicação menos conflituosa do que na gestão de Wajngarten. Um ano antes da eleição e com a polarização antecipada com Lula, há um consenso interno que é preciso escolher as brigas e apostar mais na divulgação das ações do Executivo.
Diálogo com o PSL
Em transmissão ao vivo em suas redes sociais, o presidente admitiu que retomou as conversas com o PSL, seu antigo partido, para discutir uma possível filiação até o fim do mês. O chefe do Executivo destacou que só vai decidir após ouvir parte dos integrantes do PSL. Segundo ele, há uma “meia dúzia” de pessoas na legenda com quem ele não quer conversar porque “destruíram todas as pontes” de diálogo:
— E eu quero tomar a decisão depois de ouvir vocês (apoiadores), ou melhor, a grande maioria de vocês, porque tem meia dúzia lá que não dá para conversar, que destruíram todas as pontes ao longo dos últimos anos em causa própria, mas tudo bem. Então, eu espero brevemente decidir essa questão partidária.
Como mostrou O GLOBO, após o ministro Fachin anular as condenações de Lula, o que o tornou elegível em 2022, o presidente retomou negociação para se filiar ao PSL, partido pelo qual disputou o pleito em 2018, mas do qual saiu brigado um ano depois. A avaliação é que a entrada de Lula no páreo tornará mais acirrada a disputa no primeiro turno e, nessas circunstâncias, tempo de televisão e fundo partidário ganham mais relevância.
Vinicius Torres Freire: Maior onda de alta do preço da comida em 18 anos não vai ter refresco tão cedo
Coincidência rara de dólar e commodities em alta pressiona inflação: entenda os motivos
O preço da comida passa pela maior onda de alta em 18 anos no Brasil. Tem sido assim desde o último trimestre do ano passado. Nos 12 meses contados até fevereiro, o custo da comida que se leva para casa aumentou 19,4%.
A carestia dos alimentos pode andar mais devagar neste 2021, com alta de uns 6%. Ainda que seja assim, nos dois anos de epidemia o preço da comida terá subido 25%. O rendimento mediano do trabalho terá crescido nada.
Há uma rara coincidência de preços de commodities em alta com dólar caro. Commodities: petróleo, ferro, cobre, grãos como soja e milho etc. Quando sobem os preços dessas mercadorias que o Brasil vende para o mundo, o dólar fica mais barato, ou costumava ficar —agora, não ficou.
Os motivos dessa situação mais rara são controversos e ficam para outro dia. Importa mais lembrar que a matéria prima de combustíveis e alimentos está em alta forte, multiplicada ainda pelo dólar caro, e a coisa vai continuar assim até meados do ano, na hipótese bem otimista.
Por que as commodities estão em alta? Porque parte da economia mundial se recuperou (China e entorno) ou vai se recuperar (Estados Unidos). Porque também as duas maiores economias do mundo mais lançaram pacotes de estímulos gigantes.
O clima frustrou a produção de alguns grãos e até mesmo de minério de ferro. Os chineses recuperam rebanhos perdidos (porcos perdidos para a peste) ou os alimentam com rações melhores, o que consome mais grãos.
Países seguram estoques de comida na epidemia, seguram exportações, ou facilitam importações. Em tempos de horror sanitário, desemprego e tensão social latente, a ideia é manter os preços da comida baixos o quanto possível.
Há ainda especulação financeira com certas commodities. Com dinheiro sobrando no planeta, taxas de juros a zero no mundo rico e alguma hipótese de inflação, investe-se em commodities a fim de cobrir o risco de alta de preços e de manter alguma rentabilidade.
O petróleo sobe porque os países petroleiros mantêm a produção em nível relativamente baixo e a economia mundial se recupera. A “virada verde” das economias e o uso intensivo de internet eleva o consumo de cobre.
Para quase cada commodity há uma história altista. Neste ano, o Goldman Sachs prevê altas na casa de 20% para energia e metais industriais, em torno de 5% para produtos agrícolas e nada para carnes. No máximo, haveria um refresco na comida, pois: pararia de aumentar muito.
A alta dos preços dos produtos brasileiros de exportação, como se dizia, tende a ser boa coisa, de costume (quando o dólar se valorizava, nesse processo). Nesses tempos de melhoria de “termos de troca”, a renda dos exportadores cresce, claro, e costuma haver alta de investimento em novas construções, máquinas, equipamentos (em capital, pois).
Dada a desordem da epidemia, não sabemos bem o que será do investimento (embora no ano passado a queda tenha sido surpreendentemente pequena). O efeito combinado de matérias primas e dólar em alta, porém, persistirá. A inflação média (IPCA) deve chegar a mais de 7% ao ano lá por junho e julho.
Sim, parte da alta do dólar se deve à desordem e à falta de perspectiva econômicas do Brasil. O grosso da desvalorização do real, porém, tem motivo externo desde o início da epidemia. Não há o que fazer a não ser melhorar emprego e renda, mas não há governo.
Não há sinal de descontrole da inflação, que deve voltar à casa dos 3,9% no final do ano. Mas haverá alta de juros, o que vai dificultar ainda mais o controle da dívida pública.
Comida cara costuma talhar a popularidade de governos no Brasil, o que até agora não ocorreu de modo notável com Jair Bolsonaro, talvez por causa da massa de auxílio emergencial de 2020. Neste ano, não haverá tanto auxílio.
Míriam Leitão: Política dos governadores combate a pandemia e fortalece federação
Uma das raras notícias boas nesse tempo trágico é a união dos governadores. Eles começaram a se organizar em consórcios regionais e depois no Fórum para ocupar o espaço vazio criado pela omissão do governo federal. Nesse momento, a união dos governadores ajuda o país a enfrentar a catástrofe que já ceifou mais de 270 mil vidas, mas para além desse momento, isso ajudará a fortalecer a federação brasileira, dando aos entes federados mais noção do poder que têm. Disso sairá um equilíbrio maior de poder entre os estados e o governo federal.
Na falta de uma coordenação geral, a articulação entre os estados é bem-vinda. Governadores têm criado uma rede solidária. Princípio fundamental numa federação. Ao invés de cada um cuidar apenas do seu estado, estão construindo uma rede de ajuda mútua. Além disso, do ponto de vista da gestão criaram formas de que haja circulação rápida de informação entre eles e meios de negociação para a construção de consensos. O consórcio do Nordeste criou seu próprio comitê científico, e o Fórum de governadores fez manifestações importantes e está se articulando no Congresso para suprir as inúmeras e criminosas falhas do governo central.
Na democracia, é importante que nos momentos de emergência haja construção de consensos entre as autoridades passando por cima de suas diferenças partidárias ou regionais. E as autoridades dos estados federados vêm se comportando muito bem, exceto alguns. No Rio, infelizmente, o governador Cláudio Castro não assinou a carta e disse em resposta ao governador João Doria "da população do Rio cuido eu". Ele não está cuidando quando se desconecta do grupo de governadores e não adota as medidas necessárias para proteger a população.
O governador do Piauí, Wellington Dias, presidente do consórcio do Nordeste, disse que a ideia é tentar adquirir vacinas de uma forma conjunta e transferir para o Programa Nacional de Vacinação. Isso é para evitar que sejam beneficiados apenas os estados mais ricos e que têm verba para compra da vacina. Dias tem sido o excelente porta-voz do grupo, por ser firme no principal - o alerta sobre os riscos da pandemia - mas evita conflitos desnecessários.
Tenho conversado com vários governadores e é interessante ver como eles têm negociado entre eles, aparando arestas, trabalhando pelos pontos em comum, mesmo quando há divergências. E eles não querem atuar contra o governo federal, pelo contrário, querem ser eficientes como gestores públicos na defesa da vida. Não é um movimento contra o governo, mas pela saúde dos brasileiros.
Pedro Doria: Pela democracia, relação de Lula com a imprensa precisa ser diferente
Ataques à imprensa, como se tornaram praxe no governo Lula, hoje ganham outra dimensão
Foi num discurso com a verve que lhe é única, com o carisma que nenhum outro hoje tem, que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva se colocou de volta na cena política brasileira. Ele não o disse com clareza, mas fez discurso de candidato ao Planalto. Só que o Brasil de 2021, assim como o de 22, não é mais aquele que ele deixou ao descer a rampa do Palácio há dez anos. Neste Brasil de hoje, desinformação é o que nutre a máquina que ameaça a democracia. A ação responsável de qualquer líder político terá de ser diferente do que noutros tempos.
Quando Lula era presidente, o PT tinha uma máquina na internet imbatível por qualquer outro grupo político. Uma cadeia de sites e blogs, alguns feitos por jornalistas ligados ao partido, outros por militantes, trabalhava um dia após o outro para oferecer uma versão governista dos fatos. O noticiário, as análises, as entrevistas, tudo funcionava como contraponto àquilo que a imprensa independente produzia. Com todos os atritos que geraram no tempo, tinham uma atuação muito distinta da máquina de desinformação bolsonarista. Havia transparência: autores assinavam textos com seus nomes e os debates provocados eram feitos à luz do dia.
Não é que o PT nunca tenha lançado mão de desinformação. Claro que lançou, e poucos exemplos são mais claros — e desleais — do que a campanha contra a candidata do PSB em 2014, Marina Silva. A propaganda petista na TV a acusava de dar controle da economia aos banqueiros por tornar independente do Banco Central. Nas imagens, o resultado era comida sumindo do prato das pessoas, como se a fome fosse voltar por esta decisão.
O jogo eleitoral nunca foi plenamente limpo, Fernando Collor atuou contra o próprio Lula de forma ainda mais desleal, em 1989, e visto de hoje parece até ingênuo criticar qualquer grupo político por suas práticas do passado. Perante um governo como o de Jair Bolsonaro, que opera na mentira o tempo todo, que distorce informações por praxe corriqueira, todas as outras forças políticas brasileiras jogam com muito mais elegância.
Mas é por isso mesmo que o PT não pode mais atuar como atuou no passado. É preciso um pacto do PT, do PDT, do PSDB, de todas as legendas de defesa da confiança na informação. Do ambiente de informação. Da garantia da coerência e integridade da informação que chega aos brasileiros. Foi o que Lula fez em seu discurso, por exemplo, ao dar ênfase às mensagens a respeito da pandemia. Em prol da vacina, do isolamento, do álcool gel.
Isto quer dizer também que não dá mais para infantilizar críticas à imprensa. Questionar uma reportagem, discutir um número, reclamar de uma informação imprecisa, tudo é do jogo. Mas há instituições cujo trabalho é colocar informação perante a sociedade numa democracia. A academia é uma delas. ONGs. Institutos. Também a imprensa — diariamente. Ataques sistemáticos à instituição imprensa, como se tornaram praxe no governo Lula após a explosão dos escândalos de corrupção, hoje ganham outra dimensão.
Hoje alimentam o monstro da desinformação.
Quando políticos atacam a imprensa é sempre porque não gostam do que leem. Mas esta relação, numa democracia, só é mesmo saudável quando tensa. O jornalismo não está a serviço de quem está no poder, sua função não é agradar e militantes vão sempre se queixar. É assim, não deixará de ser assim.
Este, porém, é um momento em que parte da população vive uma realidade paralela. O pacto democrático necessário é o de preservar a maioria que ainda vive no mundo real. Os adversários de Jair Bolsonaro têm esta responsabilidade. Não com a imprensa — ou academia, ou ONGs —, mas com a democracia.
Ruy Castro: Bolsonaro prestes a espumar
Quando isso acontecer é porque só lhe restará ser enjaulado
Alguns comentaristas acreditam que, em toda sua carreira, Jair Bolsonaro "viveu do confronto" e que, agora, com Lula à solta, ganhou uma saída para disfarçar o caráter criminoso de seu governo. Ouso discordar. Até dois dias atrás, o imbrochável Bolsonaro nunca soube o que era debater com alguém. Em seus 30 anos como um dos deputados mais medíocres da história, limitou-se a eventuais trocas de insultos e cusparadas com adversários imaginários. Ele próprio era tão desimportante, até para seus pares, que seus ganidos mal chegavam ao noticiário.
Como candidato à Presidência, a facada em Juiz de Fora permitiu-lhe escapar dos debates, o que escondeu sua personalidade demente e inaptidão administrativa e seu potencial de risco para as instituições. Enquanto os adversários se destruíam entre si, elegeu-se sem ser posto à prova. Daí, no trono, não conseguir disfarçar sua incapacidade de debater e dialogar, instrumentos comuns aos que já descemos da árvore.
No Planalto, Bolsonaro só usou até hoje os microfones para escoicear e mentir. Só pode falar em palanques preparados, onde cada palavra sua provoca um coro de kkks cacarejados pelos apoiadores e o estimula a mandar as pessoas enfiarem coisas no rabo. Esse é o seu nível e dos seus. E perguntas de repórteres são respondidas com um grosseiro "Página virada!", "Assunto encerrado!" ou "Acabou a entrevista!". Grosseiro, mas conveniente —Bolsonaro não responde porque não sabe responder.
A claque imediata também lhe serve de escudo. Por maiores as barbaridades, os bovinos de terno e de farda que o cercam babam e justificam tudo o que ele fala. Bolsonaro nunca teve um opositor de verdade.
Agora tem. E, na esteira de Lula, é preciso que outros saiam do torpor e também o contestem com fatos, números e argumentos. Quando Bolsonaro começar a espumar pelo canto da boca é porque só lhe restará ser enjaulado.
Alon Feuerwerker: Batalha tucana morro acima
O PSDB tem dificuldades para voltar a liderar o seu campo político
Não é frequente eleições presidenciais no Brasil trazerem surpresas. De 1994 a 2014, deu a lógica, pelo menos sobre quem iria ao segundo turno, ou ganharia no primeiro. Foram as duas décadas da polaridade PT/PSDB. Tempos nos quais os apelos “contra a polarização” tiveram pouca acolhida no debate público e na opinião pública. No máximo, viam-se ensaios de “terceira via”, que as circunstâncias invariavelmente acabavam deixando na poeira.
O que mudou em 2018? Jair Bolsonaro desalojou o PSDB da hegemonia no bloco que vai do centro à direita. É interessante notar que a Lava-Jato acabou tendo para os tucanos um efeito mais destrutivo que para os petistas. Varrido do cenário nacional pouco mais de dois anos atrás, o PSDB luta agora para retomar o posto de líder de seu campo, não sem razoável dificuldade. Uma batalha morro acima.
Os tucanos mantêm alguma expressão pelo Brasil em nível estadual, mas, à exceção de São Paulo, não dá para dizer que o partido tenha capilaridade hegemônica em nenhum outro estado. Um lugar onde mostrava algo parecido com isso era Minas Gerais, mas ali razões históricas conhecidas fazem hoje o PSD de Gilberto Kassab ser o candidato mais forte a ocupar a vaga de eventual partido hegemônico — inclusive com a participação de ex-peessedebistas.
“Em 2018, Bolsonaro tirou dos sociais-democratas a hegemonia no bloco que ia do centro à direita”
Situações de crise trazem oportunidades, diz o batido bordão, e o governador João Doria luta com todas as forças para ser o comandante da ofensiva de reconquista tucana. Teve a ousadia de sair na frente nas vacinas contra a Covid-19 e espera colher os frutos no próximo ano. Os fatos dirão. Um problema para Doria? É provável que daqui a um ano e meio, na hora da eleição, as “vacinas federais” já sejam em bem mais quantidade que a “de São Paulo”.
Doria tem um histórico de respeitáveis arrancadas eleitorais. Aconteceu quando concorria à prefeitura da capital paulista e, depois, ao governo estadual. É um argumento que ele tem usado ao ser confrontado com seus baixos índices atuais de intenção de voto. Há precedentes também na eleição presidencial. Fernando Henrique Cardoso em 1994, Dilma Rousseff em 2010 e Jair Bolsonaro, em 2018, partiram de trás — ainda que não tanto quanto o governador hoje.
Há, porém, uma diferença essencial entre os cenários enfrentados por Doria nas corridas de 2016 e 2018 e a disputa pela sucessão presidencial de 2022. O desafio ali era ocupar um espaço em larga medida desocupado. Nem para a prefeitura nem para o governo estadual, Doria teve de lutar em seu bloco com um Jair Bolsonaro. Os oponentes a ultrapassar eram Celso Russomanno e a incógnita entre Paulo Skaf e Márcio França.
Logo no começo do mandato de agora, Doria escolheu abrir, mais cedo do que recomenda a sabedoria convencional, a refrega com o atual presidente. Talvez tenha sido apenas por estilo, ou vai ver o governador avaliou que Bolsonaro se enfraqueceria rapidamente. A favor de Doria está o fato de as arremetidas anteriores dele terem dado certo. Contra, a também certeza de que enfrentar um presidente na cadeira costuma pedir mais frieza quando ainda falta muito tempo para a eleição.
Publicado em VEJA de 17 de março de 2021, edição nº 2729
Rogério Baptistini: A vítima é a democracia de 1988
As evidências da perseguição política movida contra o ex-presidente Lula pelo juiz Sérgio Moro e os procuradores da Lava-Jato ganham volume. A instrumentalização do Direito como ferramenta de disputa política e arma de guerra contra os inimigos já não pode ser ignorada. A partir da chamada “República de Curitiba”, práticas de lawfare desestabilizaram o sistema político, confundiram a opinião pública e produziram resultados eleitorais.
Em que pese o uso das leis e dos procedimentos legais como instrumentos de uma batalha política, os petistas não estão na condição de vítimas inocentes de um golpe contra a democracia (2016), nem de vítimas dos eleitores (2018). O PT contribuiu fortemente para o estado de coisas que transformou o magistrado em justiceiro e os políticos em bandidos.
O discurso de deslegitimação da política e dos políticos, no Brasil, é obra da UDN e foi repetido à exaustão contra Getúlio Vargas e os seus herdeiros, levando às duas mortes do getulismo, em 1954 e 1964. No regime de 1946, os udenistas não fizeram outra coisa senão denunciar, quando derrotados, o sistema eleitoral e o governo de turno, sempre a partir de uma posição moralista. Na Nova República, o PT fez disso a sua profissão de fé.
Em 1985, durante a transição democrática, o PT boicotou o colégio eleitoral que encerrou o ciclo dos presidentes militares. Não bastasse, expulsou três deputados que votaram em Tancredo Neves contra o candidato da ditadura. No ano seguinte, a candidatura ao governo de São Paulo foi apresentada sob a alegação de ser “diferente de tudo o que está aí”, ou seja, dos partidos e dos políticos que costuraram a transição e estavam conduzindo o processo de redemocratização. Na mesma década, em 1988, após ter elegido Lula como o deputado constituinte mais bem votado do país, o partido votou contra a aprovação da Carta Constitucional, assinando somente depois fora do Plenário. O período se conclui com o insulto ao Congresso, que seria composto “por picaretas com anel de doutor”.
Em uma sociedade com uma democracia jovem, em construção, a pedagogia petista radicalizou a mística populista, cuja lógica é o binarismo: povo contra elite perversa. A inclusão do terceiro, do herói, completou a explicação e conferiu sentido ao desprezo pela política como produtora de consensos progressivos. A aposta na narrativa da “esperança contra o medo”, do nós contra eles, fez sentido estratégico com os mandatos presidenciais consecutivos, mas produziu consequências desastrosas para a cultura pública.
Como o Brasil moderno é uma sociedade complexa e o PT opera no sistema político formal, uma vez no poder não pôde entregar o céu na terra. A própria alteração discursiva tardia e eleitoreira, voltada para acalmar o mercado – a Carta aos Brasileiros (2002) – foi um reconhecimento dessa verdade, referendada pelo mensalão do primeiro governo Lula e pela captura do Centrão. No lugar da política, que sempre demonizou, o partido optou pela compra e submissão dos adversários, ao custo do aparelhamento e do loteamento do Estado. Em sua viagem redonda, como afirmou Luiz Werneck Vianna, o diferente se encontrou com o velho patrimonialismo político.
A partir do primeiro grande escândalo, da queda de Zé Dirceu e de outras lideranças históricas, Lula e os petistas operaram de negação em negação, tornaram-se mais do mesmo. A cidadania traída entregou-se a um juiz e a um grupo de procuradores obscuros. O engodo destroçou o sistema partidário e vitimou a democracia de 1988, obra da política e do possível.
Benito Salomão: Desafio brasileiro
Dados recentes da PNAD-IBGE mostram que o país iniciou a década de 2021 – 30 com uma dura realidade, em 2020 cerca de 13,5 milhões de pessoas foram vítimas do desemprego, outras 5,5 milhões de desalento, os dados mostram ainda um total de 31,2 milhões de trabalhadores estão subocupados e 33,5 milhões seguem na informalidade. Estes números dão pistas acerca da quantidade de pessoas que no curtíssimo prazo demandam algum tipo de socorro do Tesouro Nacional, que por sua vez viu sua Dívida Pública Bruta crescer em janeiro para 89,7% do PIB.
Conciliar uma situação de legítima pressão por mais gastos públicos na forma de políticas sociais e transferências diretas de renda, com um alto endividamento público é o maior desafio brasileiro de curto prazo. O país, que segue sem Lei Orçamentária Anual (LOA) para 2021, têm um déficit primário previsto na Lei de Diretrizes Orçamentária (LDO) de R$247 bilhões, estimado omitindo novas parcelas do auxílio emergencial. É evidente que novas parcelas do socorro vão dilatar em muito o déficit previsto para 2021 e a dívida pública no curto prazo. O governo promete atenuar esta expansão fiscal com privatizações como Eletrobrás e Correios. Este é um outro problema, considerar a agenda de privatizações com um olhar puramente fiscal, não garantindo que, por exemplo, as condições de investimento no setor de energia elétrica possam resolver um gargalo histórico da economia brasileira com diversificação da matriz e ampliação da oferta.
Mas, privatizações à parte, voltemos aos vulneráveis, o Brasil está planejando uma nova rodada do auxílio emergencial. Na minha opinião, atrasado! Pois já se sabia em novembro de 2020 que uma segunda onda do Coronavírus seria inevitável e que as condições de recuperação da economia brasileira seriam, novamente, postergadas. O governo mais uma vez cruzou os braços e apostou em uma solução via mercado. Como de praxe, alimentou o incêndio para em seguida tentar apaga-lo quando parte do estrago já está em curso, o auxílio é prometido para março, mas nada impede que seja disponibilizado apenas em abril. Até lá centenas de pessoas já terão morrido de fome, de COVID-19, ou de qualquer outro efeito colateral típica deste contexto.
O governo se perde buscando vincular o auxílio a medidas que ainda não estão prontas para serem votadas como as PEC emergencial e reforma administrativa. Flerta com imposto novo, ao invés de fazer o óbvio, pagar o auxílio de forma célere, vinculando a medidas profiláticas contra a doença como uso de máscaras, distanciamento social e acomodar o choque fiscal no curto prazo na elevação da dívida pública. Embora alta, três características suportam um aumento do endividamento no curto prazo: 1° as dívidas públicas de todos os países importantes estão crescendo, portanto, a posição relativa do Brasil no mundo, não tende a se alterar tanto. 2° um crescimento da dívida de curto prazo não tende a ser um problema muito grave se houver coordenação e liderança no processo, capaz de sinalizar que no longo prazo, ela será estabilizada. Para isto, normas como o Teto de Gastos devem ser preservadas e novas medidas de fortalecimento da austeridade devem ser prensadas. 3° No momento de proposição do auxílio, por 4 ou 6 meses, o governo deve apresentar um plano para o day after.
Tudo indica que no curto prazo o comportamento de agregados como desemprego, desalento e subemprego devem continuar elevados e, talvez, em trajetória crescente. Neste sentido, o governo deve ter um plano de recuperação do investimento e do emprego para o pós auxílio. Se o governo se compromete, por vias de reformas em várias frentes, com uma agenda de sustentação do investimento e do emprego, isto será entendido pelos financiadores da dívida pública que o auxílio emergencial será substituído no longo prazo no orçamento destas famílias por salários advindos de trabalho com carteira assinada.
Diante disso, o impacto fiscal seria limitado ao curto prazo e, no longo prazo, a solvência do Estado brasileiro estaria garantida, seja porque as regras fiscais que hoje garantem uma trajetória sustentável do país seriam mantidas, ou ainda, seja porque com estímulos ao investimento e ao emprego, a retomada do crescimento pode estabilizar a relação dívida/PIB. Mas para tanto, será necessário coordenação, planejamento, liderança e credibilidade, tudo que não se viu até agora.
*Benito Salomão é doutorando em Economia pela Universidade Federal de Uberlândia e Vencedor do Prêmio Brasil de Economia 2020.
Ribamar Oliveira: A derrota do governo evita o pior para Guedes
Como estava, a PEC 186 promovia uma super vinculação
O governo perdeu ontem na votação de um dispositivo da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 186, aquele que trata da proibição de vinculação das receitas públicas a órgão, fundo ou despesa. A derrota, no entanto, pode ter sido um alívio para o ministro da Economia, Paulo Guedes. A derrubada evita um engessamento ainda maior do Orçamento da União.
A Câmara dos Deputados já tinha aprovado, em primeiro turno, a PEC que veio do Senado e votava as emendas destacadas. Da forma como estava redigido, o texto promoveria uma super vinculação de receitas, na contramão da defesa que o ministro Guedes vem fazendo, desde que tomou posse no cargo.
Uma das emendas destacadas, apresentada pelo líder do PDT, Wolney Queiroz (PE), eliminava a mudança no inciso IV do artigo 167 da Constituição, que trata da proibição de vinculação das receitas públicas a órgão, fundo ou despesa. A desvinculação da receita a despesas orçamentárias é um dos 3 D da estratégia de Guedes. Os outros dois são a desindexação e a desobrigação do gasto.
Atualmente, o inciso IV do artigo 167 da Constituição veda a vinculação de receita de impostos a órgão, fundo ou despesa. E ressalva a destinação de recursos para as ações e serviços públicos de saúde e para manutenção e desenvolvimento do ensino.
Ressalva também a destinação para a realização de atividades da administração tributária, que beneficia a Receita Federal, a prestação de garantias às operações de créditos por antecipação de receita e para prestação de garantia e contragarantia à União para o pagamento de débitos, além das transferências por repartição de receitas para Estados e municípios.
Guedes queria eliminar, principalmente, a vinculação de recursos para saúde e educação. Na primeira versão de seu substitutivo, o senador Márcio Bittar (MDB-AC), relator da PEC 186 no Senado, atendeu ao ministro e acabou com essa vinculação. A forte reação da opinião pública obrigou Bittar a retroceder.
O relator, no entanto, ampliou substancialmente as ressalvas à proibição de vinculação de receitas. Em seu parecer ele permitiu vincular as receitas oriundas da arrecadação de taxas, doações, de atividades de fornecimento de bens ou serviços facultativos e na exploração econômica do patrimônio próprio dos órgãos e entidades da administração, remunerados por preço público, bem como o produto da aplicação financeira desses recursos, transferências recebidas para o atendimento de finalidades determinadas e as receitas de capital.
Nada disso está no atual texto constitucional. “A Constituição só trata de vinculação de impostos e de contribuições sociais”, explicou o ex-secretário da Receita Federal, Everardo Maciel, em conversa com o Valor. “A vinculação das receitas oriundas de taxas e de atividades da administração remuneradas por preços públicos é matéria de lei. Assim, ao levar para a Constituição, em vez de desvincular, a PEC vinculou”, disse.
Quando os senadores perceberam a ampliação feita por Bittar, apresentaram suas reivindicações. Assim, a PEC 186 aprovada pelo Senado passou a ressalvar as vinculações de receitas para o Fundo Nacional de Segurança Pública, o Fundo Penitenciário Nacional, o Fundo Nacional Antidrogas, o Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, o Fundo de Defesa da Economia Cafeeira, o Fundo para Aparelhamento e Operacionalização das Atividades-fim da Polícia Federal, o Fundo Nacional para a Criança e o Adolescente, o Fundo Nacional da Cultura e para manter os programas de financiamento a estudantes de cursos superiores não gratuitos.
Além disso, a PEC permitiria a vinculação de receitas “de interesse à defesa nacional e as destinadas à atuação das Forças Armadas”. Este comando abriria possibilidades de numerosas novas vinculações de receita, principalmente porque ele foi redigido de forma genérica, sem especificações mínimas de sua amplitude.
Durante a tramitação da PEC na Câmara, o deputado Kim Kataguiri (DEM-SP), disse aos repórteres Raphael Di Cunto e Marcelo Ribeiro, do Valor, que recebeu mensagens de ministros tentando criar exceções ao texto. “Recebi mensagem da ministra Damares Alves (ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos) para retirar o fundo dos idosos (da proibição de vinculação de receita)”, informou o parlamentar.
Mesmo aceitando todas as ressalvas à proibição de vinculação em seu substitutivo, Bittar excluiu da relação os recursos para a realização de atividades da administração tributária, ou seja, aquele que beneficia atualmente a Receita Federal. Isso revoltou os servidores da Receita, que ameaçavam entregar os cargos comissionados que ocupam e realizar uma paralisação dos serviços.
Quando foi colocado o destaque apresentado pelo PDT, todos aqueles que desejavam mudar o texto sobre vinculação de receita, uniram-se. A Câmara dos Deputados aprovou o destaque por apenas seis votos: 302 deputados votaram contra a proposta pedetista, quando eram necessários 308.
Guedes ficou sem a desvinculação das receitas, mas evitou o pior: uma super vinculação. De sua estratégia dos 3 D, o ministro da Economia já tinha perdido a desindexação (não correção por um índice de inflação) do salário mínimo, dos benefícios previdenciários e assistenciais. Essa proposta foi vetada pelo próprio presidente Jair Bolsonaro. O secretário especial de Fazenda do Ministério da Economia, Waldery Rodrigues, quase perdeu o cargo ao defender a desindexação, em nome de seu chefe imediato.
A PEC 186 aumentou também aquilo que Guedes queria diminuir, que são os comandos constitucionais obrigando o governo a realizar despesas. A desoneração da cesta básica passou a ser uma obrigação constitucional. O ministro da economia queria substituir esse benefício por outro que chegasse melhor a quem necessita. Não poderá mais. Assim, com a aprovação da PEC 186, a estratégia dos 3 D de Guedes foi definitivamente arquivada.
José Serra: A pressa é inimiga da Constituição
Sociedade tem o direito de esperar que processo legislativo seja seguido com absoluto rigor
O escritor português José Saramago é conhecido por tiradas geniais que nos fazem refletir diante de encruzilhadas. Lembrei-me de uma delas em plena votação da chamada PEC Emergencial: “Não tenhamos pressa, mas não percamos tempo”. O Senado aprovou celeremente uma emenda constitucional que autoriza o pagamento do auxílio emergencial, mas, ao mesmo tempo, cobre a Constituição com uma cortina de fumaça que compromete a credibilidade do nosso arcabouço fiscal.
Nosso país enfrenta a pior fase da pandemia, com nosso sistema público de saúde próximo do colapso. Diante disso, infelizmente, o governo vem sendo negligente: critica o uso de máscaras, condena o distanciamento e dificulta a vacinação.
Na discussão da PEC Emergencial o governo adotou uma estratégia que consiste em acuar o Congresso, com o objetivo de aprovar a agenda de austeridade improvisada pelo Ministério da Economia. Usou seu poder para introduzir na PEC um dispositivo que torna viável o pagamento de um benefício emergencial ao mesmo tempo que, em troca, embute uma obscura reforma estrutural nas demais partes da emenda.
Às limitações do sistema semipresencial de votações junta-se uma celeridade que torna a discussão precipitada e os resultados, confusos. Analisando a proposta com a experiência que tive de relator dos capítulos de finanças públicas na Constituinte, percebi a armadilha em que fui colocado: sem poder votar contra o auxílio emergencial, nem concordar com que se manipule a Constituição.
Julgo que emendar a Constituição implica responsabilidade análoga à tarefa de elaborá-la. A maioria dos estudiosos classifica as alterações constitucionais como emanadas do poder constituinte. Assim sendo, sua execução exige o máximo de cautela, a fim de evitar casuísmos e imprudências com a norma jurídica mais importante da fundação do Estado.
O próprio texto constitucional se protege de mudanças improvisadas e arriscadas: estabelece que não se pode emendá-lo na vigência de situações emergenciais, como o estado de defesa, o estado de sítio e a intervenção federal. Esse dispositivo, aliás, remonta à Constituição de 1934, em resposta à Emenda Constitucional n;° 3, promulgada em plena vigência do estado de sítio decretado em 1926 pelo presidente Artur Bernardes.
A pandemia permanece assolando nosso país e impedindo a volta da normalidade. Neste contexto, várias comissões do Congresso Nacional nem sequer voltaram a funcionar. Isso por si só já justifica postergar a votação de emendas constitucionais, a não ser que haja absoluto consenso, como no caso do Fundeb.
Mas o texto da PEC Emergencial exige considerações acerca das duas dimensões: uma emergencial, outra estrutural. Considero a emergência a dimensão mais importante para enfrentar o vírus e nela constato uma tática do tipo tudo ou nada. A medida torna viável o pagamento de auxílio emergencial limitado a R$ 44 bilhões, o que pode ser considerado o plano oficial do governo para enfrentar o vírus neste ano.
Assim como não foi possível combater a emergência sanitária no ano passado com R$ 5 bilhões – de acordo com os planos do governo no início da crise –, é improvável que a estimativa atual seja suficiente para enfrentar todos os efeitos da pandemia em 2021. Para resolver esse impasse previsível a PEC apresenta outra saída emergencial: suspender todas as regras fiscais do País. Uma emenda comparável a um AI-5 sobre o sistema fiscal previsto na Constituição.
Um plano fiscal para enfrentar a crise é o mínimo que se espera de um governo responsável. Não temos plano. Nem mesmo o Orçamento anual foi aprovado.
Ademais, a proposta encaminhada à Câmara compromete a credibilidade do nosso arcabouço fiscal. Criam-se regras fiscais com lacunas jurídicas e incentivos à contabilidade criativa, levando ao crescimento do gasto público.
Sabe-se que a crise fiscal tem um viés eminentemente federativo. Hoje, 68% das despesas com funcionários e 84% das verbas destinadas ao consumo de bens e serviços têm sua origem nos Estados e nos municípios. A PEC 186 estabelece que as medidas de ajuste fiscal a serem adotadas por governadores e prefeitos limitem a despesa corrente a um máximo de 95% da receita corrente.
Uma análise, mesmo superficial, revela que esse porcentual pode estimular o aumento da despesa: governadores e prefeitos que gastam menos de 95% poderão aumentar as despesas até esse patamar, especialmente em épocas de eleição. O Executivo poderá aumentar os gastos correntes dando aumentos salariais e subsídios, pois a regra tem por alvo o gasto passado, mas não o futuro.
Numa situação emergencial como a que vivemos hoje, não se deveria sequer pensar em alterar regras estruturais do Estado brasileiro. O momento não é propício, o contexto é temerário. A sociedade tem direito a esperar de nós, seus representantes na Câmara e no Senado, que o processo legislativo seja seguido com absoluto rigor.
Em poucas palavras: a pressa é inimiga da Constituição.
*Senador (PSDB-SP)