Bolsonaro
RPD || Entrevista Especial – Alberto Aggio: 'Bolsonaro não é só um mau soldado. É um fascista incapaz'
O desastre do governo Bolsonaro se configura num bloqueio civilizatório, um retrocesso com sérias repercussões para toda a sociedade brasileira, avalia Alberto Aggio, entrevistado especial desta edição da Revista Política Democrática Online
Por Caetano Araujo, Viniicius Müller e Rogério Baptistini
Desde seu início, o Governo Bolsonaro se notabilizou por suas ações voltadas ao enfraquecimento da democracia brasileira e de olho na reeleição. Com a recente decisão do STF de restaurar os direitos políticos do ex-presidente Lula, o Brasil caminha para a eleição de 2022 num cenário difícil, de muita divisão, avalia Alberto Aggio, entrevistado especial desta edição da Revista Política Democrática Online.
A estratégia do presidente brasileiro sempre foi a do confronto, minimizando a epidemia do novo coronavírus, atacando governadores e prefeitos, a mídia e demitindo ministros da saúde, além de ter apoiado manifestações públicas que pediam o fechamento do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Congresso Nacional, avalia Aggio. “Bolsonaro sempre praticou um jogo duplo, ambíguo, alternando um discurso tendente ao fascismo e um movimento político de composição e de ocupação das instituições”, completa.
Mestre e doutor em História pela Universidade de São Paulo (USP), Aggio é professor titular em História pela Universidade Estadual Paulista (UNESP), com pós-doutorado nas universidades de Valência (Espanha) e Roma3 (Itália). Dedica-se à história política da América Latina Contemporânea, em especial à história política do Chile. Atualmente é diretor do Blog "Horizontes Democráticos" voltado para o debate da política contemporânea no Brasil no mundo. Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista à Revista Política Democrática Online.
Revista Política Democrática Online (RPD): O governo Bolsonaro constitui ameaça real à democracia?
Alberto Aggio (AA): Acho que o Bolsonaro se configura como um governo, se não ameaçador à nossa democracia, pelo menos um governo que visou, desde o início, a um enfraquecimento dela; visou objetivamente confrontar suas principais instituições por meio de ações bastante agressivas do presidente e de seus apoiadores, que chamei de guerra de movimento. Essa guerra de movimento, essa agressividade às instituições democráticas, percorreu todo o primeiro ano de governo e, a partir da pandemia, já em 2020, com a necessidade de enfrentar a repercussão na opinião pública, Bolsonaro começa a mudar. Sua estratégia de movimento carecia de atores convencidos de que o projeto era - não apenas de ameaça – mas de derrubada da democracia da Carta de 88.
RPD: E quando ocorreu isso?
AA: Quando houve o bombardeio fake ao Supremo Tribunal Federal, estimulado por um discurso raivoso, um discurso de ódio, incapaz, no entanto, de transformar essa retórica em violência direta às instituições e a seus representantes. É importante ressaltar que, desde os primeiros meses do mandato, Bolsonaro declarou seu objetivo maior: a reeleição. Contudo, havia aí um paradoxo, o choque entre uma tática agressiva e a tentativa de cativar o eleitorado; objetivamente o golpe não necessitaria da reeleição. Sobretudo depois do início da pandemia, Bolsonaro deve ter concluído que a agressividade dessa guerra de movimento não era compatível com seu projeto eleitoral. Passou, então, a buscar acordos, no sentido de uma guerra posicional, ou seja, fazer política combinando ataque e defesa nas pautas que lhe interessavam. E isso caracterizou boa parte de 2020 e é isso que se vê em 2021.
RPD: Mas Bolsonaro mudou ou continua o mesmo?
AA: O fato é que Bolsonaro nunca se deixou domesticar. Sempre praticou um jogo duplo, ambíguo, alternando um discurso tendente ao fascismo e um movimento político de composição e de ocupação das instituições. Como parte dessa guerra de posições, cuidou, primeiro, em manter os militares dialogando com o Palácio do Planalto, evitando, assim, conspirações nos quartéis, e, segundo, não acionou uma linha miliciana que pudesse incluir as polícias militares dos Estados em confrontação direta com seus adversários. Vem cozinhando isso em fogo morno, que nunca apaga completamente.
RPD: De qualquer forma, permanece a ameaça
AA: Sim, permanece. Contudo, Bolsonaro demonstra não ser capaz de transformar essa ameaça em ação efetiva, numa palavra, num golpe. Acho que a situação é a seguinte: as sensações de ameaça às vezes crescem e, às vezes, são contidas em um terreno onde as disputas são localizadas, quase moleculares, com Bolsonaro tentando manter seu grupo de apoio, marcadamente antidemocrático, autoritário, que não crê na democracia como regime e tampouco como sociedade, como civilização. As sensações de ameaça variam, portanto, conforme a conjuntura e o movimento dos atores. É uma situação muito complexa, ambígua, paradoxal. Imagino que ele gostaria de ganhar cada vez mais posições institucionais com personagens puro sangue.
Mas, nem partido ele tem. Tem que negociar com uns e outros; é tudo pantanoso, difícil de compreender o alcance dessa estratégia. Mas, tudo isso é muito ruim para o país, especialmente num contexto de pandemia, de diminuição da atividade econômica. Não dá para imaginar o que vai a acontecer, sobretudo quando aumentam as ameaças à democracia, em meio a uma governança errática, de orientação ambígua, onde se muda a toda hora para tentar sanar erros cometidos e responder seja à opinião pública seja aos seus apoiadores. A intervenção na Petrobrás é prova disso, ocasião em que Bolsonaro decerto terá perdido muitos aliados, mesmo que tenha tentado depois apresentar os projetos de privatização dos Correios e da Eletrobrás, gestos mais preocupados com a mídia do que com uma ação política mais efetiva.
RPD: Embora já tenham sido explorados, indiretamente, os conceitos de guerra de movimento e guerra de posições, talvez coubesse ainda uma palavra adicional para melhor caracterizar os referidos conceitos.
AA: Usei os conceitos tendo em conta que Bolsonaro é um ator da guerra, ele vê a política como guerra, vê a política como a destruição de inimigos; pessoas, lideranças, instituições. Contudo, tecnicamente não se trata de uma ação militar, é uma ação política. E não importa se ele tem consciência ou sabe vocalizar isso. Pensando mais amplamente e convocando Gramsci que é o pai dessa conceituação, o conceito de guerra de posições identifica como se faz política contemporaneamente, especialmente depois da estabilização capitalista, depois da Revolução Russa de 1917, e mesmo depois da Crise de 1929 e da Segunda Guerra.
É como a política contemporânea tem se estabelecido, com os atores, especialmente os atores antagonísticos, buscando conquistar posições institucionais, culturais, sociais, etc. Alguns fracassam e desaparecem, como o comunismo; outros imaginam que ganharam tudo, como em um certo momento se supôs que a história tivesse acabado. Nas sociedades democráticas mais avançadas seria possível imaginar que essa guerra de posições poderia até mesmo se diluir e a metáfora perderia o sentido, com o seu desaparecimento no terreno da ação política. Possivelmente, a partir daí o debate pela hegemonia mudaria diluindo-se no corpo da sociedade; falaríamos então em “hegemonia civil”, hegemonia como um ato civilizatório. Acho que a democracia precisa estar muito mais avançada, ser muito melhor compreendida pelos cidadãos, para que se supere a metáfora da guerra na política.
RPD: Bom, mas como vincular Bolsonaro a essa discussão?
AA: Ao exacerbar a guerra de movimento, Bolsonaro mostrou que não foi capaz de finalizá-la, de vencer. Ele altera a tática, mas também não consegue sustentar-se: não tem partido, não tem intelectuais, não tem projeto, nem acredita no projeto do Paulo Guedes, não acredita nem mesmo no antigo projeto desenvolvimentista da ditadura militar, porque ele não é um homem do regime militar, ele é um homem da ala extremista do regime militar, que não venceu, que foi derrotada dentro do próprio regime pelo avanço do seu projeto de autorreforma. Em certo sentido, Bolsonaro é um ressentido porque é um homem solitário, sem projeto claro que possa apresentar “grande política”, e por isso começou seu mandato isolado politicamente, embora com voto e popularidade. Ele não é capaz de exercer uma liderança para além do seu narcisismo, para além do que ele mesmo é, expressão desse grupo de pessoas que o apoia. Isso não tem como se ampliar, a não ser na lógica da antipolítica, uma outra face do narcisismo que passou a predominar entre nós. Essas limitações comprometem sua capacidade de lidar com a guerra de posição. Com ele, o Brasil se distanciou enormemente da possibilidade de agregar maior qualidade a sua democracia. O desastre do governo Bolsonaro se configura num bloqueio civilizatório, um retrocesso com sérias repercussões para toda a sociedade.
RPD: Considerando a nomenclatura utilizada pela História, pode-se fazer analogias entre Bolsonaro e o fascismo do início do século 20, sem correr o risco de prejudicar a tática e a estratégia política dos democratas?
AA: Bolsonaro gostaria de ser efetivamente um fascista, de ser um líder fascista, mas ele fez a vida dentro do Estado, como militar e como parlamentar. O fascismo nasceu da sociedade, das agruras do pós-Primeira Guerra. No fundo, Bolsonaro é não só um mau soldado, como disse o General Geisel, mas é também um fascista incapaz. Fora essa ligação com os militares, sua vinculação com a religião é instrumental, a pauta de costumes reacionária, tradicionalista. Bolsonaro espelha melhor um regime autoritário a la Salazar ou Franco, do que a la Mussolini ou Hitler, esses, sim, carregaram um projeto ativo e moderno de mundialização, mas foram derrotados. Bolsonaro não tem nada disso. Não ultrapassa o tradicionalismo.
O fascismo do Bolsonaro é caricatural. Sua inclinação é muito mais tradicionalista, de uma sociedade fechada. Bolsonaro é o anti-Popper, é visceralmente contra a sociedade aberta, para usarmos aqui uma referência muito ao gosto do Vinícius Müller. Eu não insistiria muito nessa coisa de fascismo. Bolsonaro é um pragmático, mas por ser mentalmente restrito é alguém que não tem capacidade de ampliação pelo que ele representa. Em suma, não é efetivamente um líder. Pelos acordos políticos ele está conseguindo impedir o impeachment, pode conseguir a reeleição, se seus opositores errarem muito, e infelizmente sabemos que isso pode acontecer.
RPD: O modo como Bolsonaro faz política estaria reproduzindo em parte o que se fez na Nova República e, em caso afirmativo, poderia ele estar inaugurando uma nova fase na política brasileira, na condição do último presidente da Nova República?
AA: Se vencer em 2022, isso estará em questão. Mas se isso ocorrer, ele vai ter de fazer um governo diferente, não poderá ser “puro sangue”. Bolsonaro é a face mais deletéria, mais grave da política da Nova República. É um político que não valoriza os partidos nem a negociação política, um político que pensa que negociação é corrupção. Esse tema tem possibilitado a Bolsonaro alguns acordos desde o início do governo, mas depois da saída de Moro, a coisa se complicou. Ele tem que encontrar novos pares. E quais seriam eles? O Centrão terá dificuldades em se vincular a esse tema. Daí a regressão que estamos assistindo nessa matéria. Quais seriam as novas chaves do discurso de Bolsonaro? Não se sabe. Mas o fato é que ele prosperou num contexto em que perdemos a perspectiva de organização democrática e cosmopolita da Nação brasileira. E isso ocorreu a partir dos governos do PT, não do primeiro Lula, mas depois, com Dilma. Configurou-se, então, um cenário extraordinariamente paradoxal: um projeto de resgate do nacional desenvolvimentismo, e, na base, a valorização do consumo, que vem desde o primeiro Lula.
A mensagem era o individualismo no consumo e o mercado como o vetor capaz de reconfigurar a Nação; um “aggiornamento” capitalista, mas que não podia ser “puro sangue”. Isso de certa maneira contraditava o projeto nacional-desenvolvimentista que tinha por base o grande capital, os “campeões nacionais”, etc., uma espécie de visão coreana do desenvolvimento do capitalismo. Essa contradição desorganizou completamente o país, a economia, a sociedade. Bolsonaro se apresentou como aquele que era capaz de consertar essa desorganização, prometendo um capitalismo sans frase, que também não consegue impor – e hoje talvez nem queira. Nossa desorientação, portanto, não vem do impeachment, vem dessa contradição, é a política do petismo no último governo com Dilma que impossibilita que a sociedade, a Nação, se solde. Podemos lembrar muito bem os discursos dos petistas em busca de alguma unidade com o PSDB, por exemplo, no momento de crise aguda do governo Dilma. Temer ainda tentou algo, mas não conseguiu estabelecer um novo padrão. A vitória do Bolsonaro, por fim, abriu caminho para avançar a degradação.
RPD: O que efetivamente mudou na Nova República e que não se ajustou em tempo hábil?
AA: Vínhamos de um cenário em que se ultrapassava a democracia de partidos e se adentrava na democracia de audiência. A Nova República, de acordo entre diferentes, da Lei de Anistia, da Constituição de 1988, teria que se adequar. As instituições ficaram, mas o resto gradativamente sofre uma erosão. Na verdade, o Brasil passou por rupturas sem ruptura, que gerou desorganização e uma Nação à deriva. Bolsonaro venceu nesse quadro onde já havia degradação e isso não só se manteve como se aprofundou. Não se confia mais em ninguém. O jogo político piorou. Não é nem um jogo de grandes máfias, é um jogo da pequena política. E olha que o Brasil viveu “trasformismos positivos”, como identificou Luiz Werneck Vianna, como foi o período JK, que fizeram avançar a modernização. Hoje, com Bolsonaro, não se divisa nada. O que me parece terrível é que entramos em uma situação de guerra a partir de um terreno completamente desorganizado. E ele se desorganizou porque perdemos qualquer projeto de pensar o Brasil no mundo. O PT fracassou e depois dele não surgiu nenhum outro ator que pudesse recompor isso.
RPD: As projeções feitas para 22 ainda não esclareceram uma questão relevante. Desde 2014, 18, 16, o PT perde votos; na última eleição, Bolsonaro perdeu votos, mas não se sabe ainda para onde foram esses votos, quem os ganhou, os cenários continuam obscuros. Quais perspectivas de curto prazo existiria, então, para a formação e atuação de um centro democrático na disputa eleitoral de 2022?
AA: Os cenários são, de fato, obscuros. Bolsonaro é um flagelo, mas vem mantendo sua base eleitoral. Estudei o Chile e muitos se surpreendiam ao verificar que, no final da ditadura, a direita tinha bases sociais muito fortes, tendo um eleitorado que ultrapassava 40%. Do outro lado, Concertación, mesmo sem os comunistas, conseguia superar a direita e isso durou 20 anos. No caso do Brasil, é quase impossível acreditar que se possa formar algo parecido. Muito falam em “frente democrática”. Entendo que os obstáculos à construção da frente democrática são fortes. O primeiro é que os atores de maior projeção na esquerda ainda não estão convencidos disso. Muito pelo contrário, o PT discursa no sentido de resgatar o que foram os governos petistas.
Fernando Haddad acabada de declarar que todos – exceto o PT e seus aliados mais próximos – são de direita e que a oposição tem de se unir no segundo turno. É um non sense. Fazendo política assim, o PT demonstra que é narcisista tanto quanto Bolsonaro. Não se pode fazer política democrática a partir de uma concepção narcisista, uma posição antipolítica. A segunda dificuldade vem do nosso sistema eleitoral de dois turnos. Isso anima mais a competição do que a composição. Não creio que se possa montar uma frente democrática no primeiro turno. Certamente haverá alianças. Anunciam-se três polos, mais uma ou outra candidatura desgarrada deles, todos se opondo a Bolsonaro, o polo governista.
O PT deverá ser um dos polos. Ciro Gomes vai concorrer, mas não tem força para se constituir num polo. O chamado “centro democrático” está dividido, até o momento, em muitos nomes e não se pode dizer que já tenha um projeto para o País. Na sociedade, como mostram as pesquisas, Sérgio Moro e Luciano Huck têm melhor presença. João Doria Jr, governador de São Paulo, é uma força, sobretudo por seu protagonismo na questão da vacina, um tema crucial. Cogita-se também o nome do ex-ministro da Saúde, Henrique Mandetta. Nesse campo, os articuladores serão fundamentais. Até o momento, Rodrigo Maia, juntamente com o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e o ex-deputado Roberto Freire, parecem dispostos a cumprir esse papel. Em suma, caminhamos para a eleição de 2022 num cenário difícil, de muita divisão, sem um projeto para o futuro. E não haverá futuro algum quando se diz que se quer voltar ao poder para resgatar o que se fez no passado.
O passado não deve ser esquecido, mas ele não é garantia de futuro. Por outro lado, a ideia de combater os extremos em si, não legitima nem sustentará candidatura alguma. Com as eleições municipais no retrovisor, recordemos que o PT perdeu uma quantidade significativa do seu eleitorado, mas venceu em lugares importantes do Nordeste e que Bolsonaro perdeu nas capitais, mas sua resiliência, como demonstram as pesquisas, ainda é forte. Tudo isso sublinha o quão importante é a conjugação de esforços na recuperação da política democrática, porque, de alguma maneira, todos estivemos envolvidos, ainda que em parte, no processo de permitiu a Bolsonaro chegar ao poder.
Post-scriptum
Em razão da decisão de 08 de março do Ministro Edson Fachin, do STF, que, no fundamental, garante elegibilidade de Lula (PT) na corrida presidencial de 2022, a relação de forças sofre alterações.
A musculatura do polo petista sai fortalecida não só em função da popularidade de Lula, mas também porque isso gera desestabilização em outras candidaturas por seu poder de atração. Antigos aliados serão desafiados, e o próprio Centrão, até agora em movimento inercial rumo à candidatura de Bolsonaro, deverá repensar seus futuros passos. O polo Bolsonaro também se revigora porque, em tese, pode recuperar a narrativa antissistema, criticando a decisão que favorece Lula.
É inevitável que Ciro Gomes mantenha sua beligerância tanto contra Lula e o PT, quanto contra o ex-juiz Sergio Moro. Envolvido diretamente, Moro será forçado a se pronunciar: ou contra-ataca, lançando-se definitivamente candidato ou se retira de uma vez da contenda eleitoral.
Por fim, o chamado “centro político”, cuja identidade primeira é se postar contra os “extremos”, está forçado a se definir pelo critério da popularidade, diante de duas potências de audiência. Se não tiver Moro, à primeira vista, aparentemente, só Huck teria esse atributo.
RPD || Editorial: O novo patamar da crise
Hoje, um ano depois da identificação dos primeiros sinais da pandemia em território nacional, as perspectivas que se desenham para os brasileiros nos próximos meses são sombrias. Do ponto de vista sanitário, assistimos à segunda onda da doença, transportada por novas variedades do vírus, mais perigosas que seu antepassado comum, algumas gestadas em nosso país. Do ponto de vista econômico, é de se prever o agravamento da crise, com a redução da atividade e as dificuldades evidentes de manter o necessário auxílio emergencial por períodos maiores que o previsto inicialmente. Finalmente, do ponto de vista político, observa-se a consolidação da base parlamentar do governo, com o afastamento, provisório ao menos, dos riscos de abreviação do mandato presidencial.
Não é possível subestimar a responsabilidade do governo federal pela situação de vulnerabilidade crescente em que os cidadãos brasileiros se encontram hoje. Todos os itens da agenda negacionista foram por ele perseguidos com empenho. Na contramão de toda evidência fornecida pela ciência, houve campanhas, que perduram até hoje, em favor de aglomerações e contra o uso de máscaras. A política de testagem massiva, chave do sucesso de muitos países, aqui foi simplesmente ignorada. Insiste-se ainda entre nós na falsa dicotomia entre economia e saúde, como se o controle da pandemia não fosse requisito da retomada econômica. Finalmente, todas as oportunidades de contratação de vacinas na quantidade necessária foram desperdiçadas, o que nos condenou a retardar o passo da imunização por falta de imunizantes.
Para coroar a sucessão de erros, uma consequência inesperada, apesar de previsível, da situação de caos que se criou. A circulação do vírus por grandes concentrações de pessoas, sem vacina e sem distanciamento social, parece ter propiciado o surgimento das novas variantes, capazes de infectar novamente pacientes já curados. A ilusão da imunidade natural da população ao preço alto de milhares de óbitos evaporou-se. Os óbitos aconteceram, mas nenhum benefício perdurou, e o Brasil é hoje potencial fonte de risco para os países que lograram êxito no enfrentamento da pandemia.
O governo errou de forma contumaz e persiste nos seus erros. É tarefa de todas as forças democráticas, nos estados, nos municípios, em todas as instâncias do Legislativo, persistir na resistência: suprir a omissão e a oposição do governo para trabalhar em prol do distanciamento social, do uso de máscaras, da obtenção no número suficiente de doses das vacinas disponíveis, assim como do acesso ao auxílio emergencial por parte daqueles que dele necessitam.
Com o sucesso da campanha de vacinação nos Estados Unidos, corremos o risco de ver em pouco tempo nosso país como número um no mundo em número absoluto de óbitos. Tentar evitar esse resultado é premente para nós. Igualmente importante, contudo, é deixar claro, para o conjunto dos cidadãos, os verdadeiros responsáveis pelo percurso trágico que estamos a seguir.
RPD || Sérgio Vale: Os desafios da economia brasileira
Governo Bolsonaro falha ao enfrentar a realidade de manter regras fiscais importantes e, ao mesmo tempo, gerar a estabilidade necessária que acelere o crescimento econômico do país
Desde as manifestações de junho de 2013, o Brasil tem passado por série ininterrupta de instabilidades de difícil solução, tanto mais porque as demandas da classe média continuam não sendo atendidas.
Em artigo seminal da década de 70, Albert Hirschman criou o conceito de efeito túnel, segundo o qual a classe média ganhou terreno na aquisição de bens com o aumento da renda, mas a contrapartida de serviços públicos de qualidade não seguiu a mesma trajetória. É como se, depois das conquistas materiais individuais, tivesse caído a ficha da população quanto à necessidade de demandar serviços públicos de qualidade do governo. Esse foi o grande tema das manifestações de 2013, depois de anos de forte crescimento de renda e do consumo da classe média e da ascensão de parte da classe mais baixa de renda para a classe média.
Não tendo sido atendidas de maneira satisfatória, o descontentamento da classe média fez crescer a pressão sobre o setor público no sentido da qualidade da prestação dos serviços. Só que a conjunção de incerteza, que afugentou investimento e diminuiu o ritmo de crescimento, com a necessidade de responder à população via mais gastos públicos colaborou para agravar a crise fiscal que já se avizinhava. Seria difícil naquele momento de descontentamento da população para um governo de esquerda fazer um ajuste fiscal.
Vivemos nesse dilema desde então, com diversos graus de incerteza que foram se acumulando na economia, diminuindo de forma duradoura o ritmo de crescimento, com a população cada vez exigindo respostas eficazes do governo.
O governo Bolsonaro enfrenta, hoje, a dura realidade de manter regras fiscais importantes e, ao mesmo tempo, gerar a estabilidade necessária que acelere o crescimento. Há muita desconfiança quanto à capacidade de o governo de entregar o ajuste fiscal reclamado pela população, assegurando espaço fiscal para o gasto de qualidade em educação e saúde, por exemplo. Parece contraditório, mas, de certa forma, o ajuste de privatização e o fim da corrupção foram temas prioritários das plataformas eleitorais de Bolsonaro, que sensibilizaram os eleitores no tocante ao desempenho eficiente futuro da máquina pública no setores. A pauta de 2013 afinal ainda vivia, mesmo que de forma extremada ao se apostar em um presidente com o perfil de Bolsonaro.
A situação brasileira torna-se ainda mais desafiante, porque investir depende de horizonte estável de longo prazo. Para isso, demanda-se do ordenamento político uma configuração mínima de respeito às regras econômica, capazes para dar confiança a investimentos mais agressivos. Esse foi o cenário que existia no primeiro mandato do presidente Lula, em que as regras econômicas do governo FHC foram mantidas em sua maioria e os investidores viram um país amadurecido em que a troca de centro direita (FHC) pelo centro esquerda (Lula) não tiraria o país do rumo.
Os excessos fiscais do final do governo Lula, todo o governo Dilma e a atual polarização são prejudiciais para quem quer investir em contratos de concessões de longo prazo, por exemplo. O recente encampamento da linha amarela pelo governo carioca, ainda em discussão no STJ, e a troca agressiva do presidente da Petrobrás mostram como o investimento no Brasil ainda está à mercê de baixa qualidade regulatória.
Isso não significa que o país não vai crescer. As commodities, que, embora não se reconheça, envolvem grande inovação tecnológica industrial, seguirão sendo o carro-chefe do crescimento brasileiro nos próximos dois anos, pelo menos. Espera-se forte incremento nos preços de commodities por questões tanto de demanda quanto de oferta, além da taxa de câmbio depreciada pelos riscos fiscais que nos acompanham há muitos anos. Estamos falando de cerca de 35% a 40% do PIB brasileiro que terá forte expansão e que precisamos aproveitar para entender seu importante papel no crescimento de regiões dependentes delas. Por exemplo, a região que mais teve queda na desigualdade de renda nos últimos anos foi o Centro Oeste pelo avanço do agronegócio, do qual todos acabam ganhando. Reforço que as commodities – o setor mais aberto da economia brasileira – são justamente o que tem trazido mais resultados positivos para o país e assim seguirá sendo.
Repito: o governo precisa gerar crescente estabilidade política com eficiência fiscal para que os investimentos nos outros setores não dependentes do setor externo voltem a acontecer. Resgatar a pauta de 2013 de forma coerente é o melhor que os governos poderão fazer para viabilizar condições de crescimento para o país.
*Economista-chefe da MB Associados
RPD || Rubens Barbosa: Biden e o Brasil
De forma pragmática, Biden adotou uma atitude de não confrontação com o governo Jair Bolsonaro, iniciando conversas sobre diversos temas das relações bilaterais. Diferenças em relação a clima, direitos humanos e democracia podem prejudicar o Brasil
A divulgação de uma série de documentos cobrando medidas duras contra o Brasil procurou influir na política externa do governo Biden. O documento assinado por ex-altos funcionários e negociadores norte-americanos critica a política ambiental brasileira e reclama medidas contra o Brasil, caso não haja mudança nas políticas de proteção à Amazônia e de mudança de clima. O trabalho “Recomendações sobre o Brasil para o Presidente Biden e Para a Nova Administração”, encaminhado por professores norte-americanos, brasileiros e diversas ONGs, faz duros reparos a política ambiental, direitos humanos, democracia e pede a suspensão da cooperação com o Brasil em diversas áreas como Defesa, comércio exterior, meio ambiente e outras.
O presidente da Comissão de Relações Exteriores do Senado também enviou carta ao presidente Bolsonaro e ao Ministro Ernesto Araújo pedindo explicações e retratação de declarações, julgadas favoráveis a invasão do Congresso de Washington. Por fim, um grupo de deputados norte-americanos enviou correspondência ao Senado requisitando a suspensão de alguns programas de cooperação na área de defesa pelos problemas com os quilombolas no Centro de Lançamento de Alcântara. O conteúdo dos documentos e dessas correspondências, combinado com a divulgação da política ambiental do presidente Biden, com referência específica à Amazônia, gerou preocupação pelos eventuais impactos sobre o Brasil.
Do lado do governo brasileiro, houve três ações concretas para tentar evitar medidas contra o Brasil. A carta do presidente Bolsonaro a Biden em que manifesta “disposição a continuar nossa parceria em prol do desenvolvimento sustentável e da proteção do meio ambiente, em especial a Amazônia, com base em nosso Diálogo Ambiental, recém-inaugurado”. O telefonema do Ministro Araújo com o Secretário de Estado Blinken e a reunião telefônica entre o Chanceler e o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, com John Kerry. O setor privado também se manifestou com Nota da Câmara Americana de Comércio e da US Chamber sobre as perspectivas favoráveis para o intercâmbio comercial.
A forma como Biden no início de sua gestão vai tratar o Brasil foi definida pelas recentes declarações das porta-vozes da Casa Branca e do Departamento de Estado, segundo as quais “a prioridade é manter o diálogo e buscar oportunidades para trabalhar conjuntamente com o governo brasileiro em questões em que haja Interesse Nacional comum pois existe uma relação econômica estratégica entre os dois países e o governo Biden não vai se limitar apenas a tratar de áreas em que haja discordância, seja em clima, direitos humanos, democracia ou outros”.
Nessa primeira fase do relacionamento com o Brasil, Washington decidiu adotar uma atitude de não confrontação, demandada pela ala progressista do Partido Democrata, e iniciar as conversas sobre diversos temas das relações bilaterais. Foi uma atitude pragmática, vista pelo governo brasileiro como um avanço positivo na relação bilateral. Durante os meses de março e abril, a convite do governo norte-americano, o Brasil deve participar, a nível presidencial, nas conferências sobre Clima e sobre Democracia (com forte ênfase nos Direitos Humanos), além da Cúpula das Américas, na Florida. Nesses encontros, todos os assuntos mais importantes no contexto das relações bilaterais e hemisféricas deverão ser tratados.
Dependendo das posições defendidas por Bolsonaro, começarão a aparecer as diferenças de políticas entre Brasília e Washington, em especial. Vão surgir, também, com força, nessa fase, as diferenças na área de mudança de clima e preservação da floresta Amazônica. Tudo vai depender da reação do governo brasileiro (defensiva ou com ajuste na retórica e em anúncios de medidas com resultados verificáveis). A posição defensiva – que tem mais chances de prevalecer – poderá ter “consequências econômicas”, como disse Biden.
No telefonema com John Kerry, Araújo e Salles concordaram em iniciar encontros regulares para examinar formas de colaboração mútua e como transferir recursos ao Brasil para preservação da floresta amazônica. O problema reside no fato de Bolsonaro e Ernesto Araujo acreditarem em que a situação está sob controle e que avançará “business as usual”, como mencionado na carta a Biden, o que não deverá acontecer, na minha visão. Assim, os desdobramentos das políticas de Biden devem começar pelo meio ambiente, em relação à preservação da Amazônia e das comunidades indígenas, passando para as questões de Direitos Humanos, comércio (SGP e restrições a produtos brasileiros), defesa (Alcântara) e outras áreas de cooperação.
As relações com os EUA, que começaram tranquilas, terão muitos outros capítulos em 2021. Estamos apenas no início.
*Presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (IRICE).
RPD || Raul Jungmann: Armamento, riscos à democracia e 2022
"A desconsonsolidação democrática não precisa envolver violações a constitucionalidade. E os governos reacionários têm desfrutado de um apoio popular consistente. A esperança de que cidadãos pudessem ameaçar governos que cometessem transgressões contra a democracia, impedindo-os, com isso, de seguirem esse caminho, infelizmente é infundada."
A citação é de Adam Przeworski, professor de política e economia da Universidade de Nova York, com vasta produção na área da ciência política. Ela bate com que estamos vivendo no Brasil e, especialmente, com o que vivenciamos na segurança pública. Uma população que se sente indefesa diante da violência e não vê da parte do poder público a prestação de serviços de segurança compatíveis com a sua a proteção da sua vida e família, sanciona atsques a democracia em nome da sua defesa. É o caso das mais de trinta normas editadas pela Presidência da República ou órgãos de controle do executivo, afrouxando as regrass ou visando a massificação do armamento pela população. Nesse ponto, o armamento da cidadania, cruzamos os limites da área da segurança pública, onde há duas décadas se travava o debate, e passamos a seara da política, e do ideológico.
Ao propor armar a todos, o Presidente está, consecutivamente: (i) quebrando o monopólio da violência legal, privativa do Estado Nacional, (ii) ferindo o papel constitucional da Forças Armadas, esteio e última ratio da integridade e da soberania e (iii) acenando com a hipótese de um conflito de brasileiros contra brasileiros, uma guerra civil.
Isso nos motivou a redigir uma carta aberta ao Supremo Tribunal Federal, onde tramitam ações contrárias a política de armamento massivo, alertando para os riscos para a segurança pública e para a estabilidade democrática. Lembrando, ao final, o ocorrido recentemente nos Estados Unidos, quando da invasão do Capitólio por vândalos. No curso da sua divulgação, a repercussão da carta superou nossas expectativas na mídia tradicional, nas redes, colunas de opinião e junto a vários formadores de opinião. O que talvez queira dizer da preocupação das pessoas com o tema e a percepção dos riscos envolvidos numa política armamentista. E existem razões concretas para tal.
Segundo a Polícia Federal, em 2020 o registro de armas de fogo cresceu 90% face o ano anterior, o maior crescimento de um ano para outro já registrado pela série histórica. Do outro lado da moeda, as mortes violentas, que iniciam uma queda em 2018 (ano em que éramos Ministro da Segurança Pública) e continuaram caindo em 2019, retomaram sua escalada em 2020. A ADIN impugnando os quatro decretos supracitados tem como relatora a Ministra Rosa Weber, que solicitou informações ao executivo e, nos próximos dias, decretos editados em 2019 sobre o mesmo tema e objetivo irão ao plenário do Supremo, tendo como relator o Ministro Edson Fachin.
Entidades diversas da sociedade civil e ongs, se mobilizaram promovendo um abaixo assinado em apoio a nossa Carta Aberta, que já conta com mais de dez mil assinaturas. Devendo ser entregue aos dois ministros em breve.
Embora não se manifestem, as Forças Armadas, devem estar debruçadas sobre essa questão. Recentemente, o Departamento de Fiscalização de Produtos Controlados do Exército teve duas portarias suas sobre rastreamento de armas e munições revogadas por ordem do Planalto, logo após o que o seu responsável desligou-se da sua direção. Pablo Ortellado nos diz que cansados de escândalos de corrupção e de uma elite política que apenas pensa na solução dos seus problemas e não dos seus representados, o eleitor em 2018 buscou um “ultradiferenciação”, votando naquele que rompia simbólica e retoricamente com o status quo.
Pode ser. Mas a questão é que essa opção do eleitorado veio a reboque de uma operação Lava Jato, que no combate a corrupção desestruturou a dinâmica política desde a redemocratização para cá, a tríade de partidos que organizava o jogo congressual e das alianças (PMDB, PT e PSDB) e suas lideranças nacionais. Se for incapaz de reconstruir uma narrativa que supere e incorpore soluções para o mal estar, desânimo e mau humor da população, decorrente da percepção da corrupção da política e da insegurança endêmica, a afirmação inicial de Adam Przeworki continuará valendo, para 2022 e além.
*Raul Jungmann é ex-deputado federal, foi Ministro do Desenvolvimento Agrário e Ministro Extraordinário de Política Fundiária do governo FHC, Ministro da Defesa e Ministro Extraordinário da Segurança Pública do governo Michel Temer.
RPD || João Batista Andrade: Migração do cinema para a literatura
No início da década de 1960 do século XX a cultura brasileira dava um salto para a modernidade. O golpe de 1964 jogou por terra essa utopia, mergulhando o país em uma ditadura de 21 anos, lembra o cineasta e escritor João Batista de Andrade
Para minha geração, o cinema encarnava uma utopia vigorosa.
Vindo do interior mineiro, entrei na Poli (Escola Politécnica da USP) em 1960, já com vinte anos, muita imaginação, crise existencial profunda e pouco conhecimento cultural.
As crises se sucediam, eleição de Jânio, renúncia com golpe explícito, militares tentavam impedir a posse de Jango, mas Jango tomava posse gerando um governo popular seguindo a mesma crise que se aprofundava até o golpe de 1964. De qualquer maneira, um período rico de formação.
Em quatro anos passando da esperança, da luta à derrota para os militares, enquanto, bebendo do porre democrático do governo JK, a cultura brasileira dava um salto para a modernidade. Bossa Nova, Teatro Novo, Cinema Novo. Minha geração finalmente tinha sua trilha traçada rumo ao futuro, distanciando-se de uma Brasil atrasado e pobre.
O golpe de 1964 jogou por terra essa utopia, mergulhando o país e minha juventude no absurdo de uma ditadura de 21 anos.
Eu já filmava e escrevia.
Hoje escrevo.
MUDANÇA DE HÁBITOS
Poderia escrever: escritor, cineasta.
Ou cineasta, e basta?
Escritor, catador de latas, doutor
Ou nada, parte de uma casta?
Rico, remediado ou vivendo de favor?
Onde estará o bom, o certo, o novo?
No cinema, na literatura ou no viver?
O mundo gira e minha cabeça arde
Em busca de saídas, alguma solução
Mas o povo, o povo, onde está o povo?
Não quero filmar praças e ruas vazias
E morrer nas salas de cinema que me odeiam!
Quem vê o que filmo?
Quem lê o que escrevo?
Quem quer saber o que fiz de novo?
Quem toca no que desenho, esculpo
Senão aqueles que vivem sob tantas perguntas?
Nada me tira desse labirinto
Nem adianta dizer sou negro
Sou índio, sou analfabeto, pobre
Como se tudo não passasse de um capricho
Sou o que sou, sem passado nem futuro
Catando pedras brilhantes onde pobres catam lixo
Só não quero ainda morrer
Nem de vírus nem de tristeza
Sem filmar, prefiro escrever
Escapando ao meu pobre destino
E é o que sempre fiz e faço agora
Um tanto alegre, um tanto comovido
Como escritor, era quase clandestino
Já que cada imagem tem seu santo
E dizem que não se pode ser os dois
Coisa que na vida sempre quis ser três
Como escritor, político, cineasta
Clandestino nunca fui, na arte ou no saber
Mesmo na política, meu nome é JB
Tantas vezes alertado e proibido
Fotografado, filmado e perseguido
Sempre criei desafios aos donos do poder
Cinema Brasileiro morreu tantas vezes
E pateticamente soube reviver
E vive mais do estado do que do sucesso
Nada paga o que se filma, monta, copia
E exibe em salas tão estrangeiras
Há impostos criados para o cinema
Mas há também impostores no caminho
-Para onde vai agora essa famosa grana?
Destino incerto, olhos e bolsos ligeiros…
Tristes utopias dos cinemas nacionais
Com mercados tão facilmente tomados!
Mãos de ratos nos tomam os impostos pagos
Para usar em suas regalias mortais
O Cinema Brasileiro, de olhar perdido
Leva fama injusta, tão usada e infeliz
Quando na verdade somos tão pequenos
Diante das bocas gigantes que nos sugam
O mesmo Estado, sempre enlouquecido
Refém de mãos tão ávidas quanto sujas
Mata-nos como piolhos sob o pente
Com um simples rabisco de caneta bic
Sabemos, sempre soubemos e sofremos
Numa disfarçada ou descarada ditadura
Tudo começa com perseguições, mortes
E a destruição de nossa cultura!
Ao escrever, parece que deixo o ringue
Onde lutei a vida inteira pela utopia
Cineasta da miséria, da fome e do sangue
Estaria jogando a toalha, triste dia…
-Nada disso! Nada disso, senhores
Procuro o melhor lugar dessa guerra
E onde possa buscar o povo, meus leitores!
Escrever é revirar entulhos em busca de vida
É procurar no lixo o que nos chama e pulsa.
Por isso aguardem o novo livro de ficção:
1964- Uma bomba na Escuridão
Romance de ficção
Crise e sofrimento vivencial
Para ler, sentir, gostar
Textos escritos por mim, perdido
Durante e depois do golpe militar.
Em formato novo, buscando o leitor digital
Escapando do cerco das salas e livrarias
Fugindo das prateleiras tomadas por autoajudas
Longe desse vil comércio elitista e mortal
Falsas ciências e outras tantas porcarias!
Filho de índios e negros sem os conhecer
Afinal, quem sou?
Não, não quero, ainda não posso morrer
Mesmo que agora, mal saiba viver.
* Cineasta, escritor.
RPD || Guilherme Acciolly: A miopia de curto prazo e o desmatamento da Amazônia
País precisa conter imediatamente o processo de desmatamento da Amazônia e evitar a chegada ao “ponto de não retorno”, quando será impossível deter a destruição da floresta
O desmatamento na Amazônia continua aumentando. Segundo os dados oficiais do INPE, entre 2018 e 2020, portanto durante o governo Bolsonaro, a taxa de desmatamento na Amazônia cresceu 47 %.
Os motivos para isso são muitos. Mas certamente a política simpática aos setores responsáveis pelo desmatamento (grileiros, alguns madeireiros e pecuaristas, garimpeiros ilegais) e o cerceamento à atuação do IBAMA e demais órgãos encarregados da repressão ao desmatamento contribuíram de forma decisiva para esse resultado.
Essa postura é suicida no longo prazo, mas faz sentido numa perspectiva míope de curto prazo. Não há dúvida de que é popular para grande parte da opinião pública local e nacional. De fato, num primeiro momento, há relevante aumento da renda na região da fronteira do desmatamento. A retirada da madeira, a instalação ou ampliação de serrarias, a compra de maquinário, a implantação de pastos no lugar da floresta, a comercialização da carne bovina, a recepção dos novos habitantes, tudo isso gera renda e emprego. Muito mal distribuídos, mas com impacto positivo no início.
Esse avanço é incentivado por se dar majoritariamente sobre terras públicas (e crescentemente sobre Áreas Protegidas) – e, portanto, com custo de aquisição nulo. Porém, logo depois, a receita madeireira se extingue ou decresce muito, a agricultura é prejudicada pela má qualidade do solo na Amazônia, e resta a pecuária de baixíssima produtividade. Ou seja, a prosperidade chega e vai embora. Aí o que se faz é repetir o processo mais adiante.
Essa dinâmica vai empurrando a fronteira, avançando pela floresta. Só que esse recurso, a floresta, não é infinito. Já desmatamos cerca de 20% da Amazônia. Se nada for feito, um dia, nem tão remoto, ela acaba e teremos matado a proverbial galinha dos ovos de ouro. Na verdade, isso não ocorrerá. Muito antes disso, a própria destruição parcial da floresta a levará ao colapso, ao se interromperem os processos e fluxos naturais de regeneração.
Há evidência científica indicando que esse “ponto de não retorno” já está muito próximo. Ou seja, se não houver a contenção imediata do processo de desmatamento da Amazônia, ela em pouco tempo deixará de existir.
E qual o problema? É até bom, pois facilita o desenvolvimento agrícola e a exploração mineral na região (olha o nióbio!). Esse argumento, tão típico dos dias atuais, exige resposta. Se a floresta amazônica acabar, se extinguirá toda a riqueza potencial advinda da atividade madeireira sustentável e da extraordinária biodiversidade ali encontrada. Ninguém sabe tudo que pode ainda ser descoberto e aproveitado. Trata-se de uma riqueza literalmente incalculável. Provavelmente inúmeras vezes maior que o potencial agropecuário e mineral.
Mas o prejuízo não se limita a isso. A eventual extinção da floresta amazônica – o que é possível que ocorra em breve – prejudicaria decisivamente o agronegócio, bem como toda a população do Centro-Oeste e Sudeste. O regime de chuvas seria fortemente afetado com a interrupção da chegada da umidade oriunda da Amazônia, que tem volume equivalente ao Rio Amazonas, no fenômeno conhecido como Rios Voadores.
Ou seja, o processo de desmatamento da Amazônia é popular na região e em boa parte do país (embora haja também ampla parcela da população que a ele se opõe), até porque traz alguma prosperidade no curto prazo. Entretanto, no médio e longo prazo, é um baita tiro no pé. A miopia curtoprazista pode ser extremamente prejudicial para a região, para o Brasil e para o planeta.
Não é novidade para o Brasil. No início de século passado, a prosperidade advinda da exploração da borracha foi assombrosa e, aos olhos da sociedade local – e nacional – da época, infinita e perpétua. Até as plantações asiáticas aniquilarem essa riqueza. O Brasil hoje é importador líquido de látex.
Essa mesma miopia faz com que setores do governo se deem ao luxo de destratar gratuitamente nosso maior parceiro comercial, a China. O raciocínio é que “a China não pode ficar sem nossa soja”. Isso é verdade hoje. Mas os chineses (que certamente não podem ser acusados de não ter uma visão de longo prazo) não devem ser subestimados. Em janeiro deste ano, o Ministro da agricultura chinês declarou que “As tigelas chinesas devem ser enchidas com grãos chineses, e os grãos chineses devem ser cultivados a partir de sementes chinesas.” Isso ainda está longe de acontecer, mas a estratégia já está definida. É questão de tempo (olha o longo prazo aí).
*Guilherme Acciolly é economista
Valor Econômico: Volta de Lula deve apressar Huck, diz Roberto Freire
Apresentador mostrou interesse no atual cenário eleitoral e na viabilidade de uma candidatura de Mandetta
Por Cristian Klein, Valor Econômico
RIO - A volta do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao jogo eleitoral fortalece a polarização entre o PT e o presidente Jair Bolsonaro (sem partido), mas atores políticos ligados ao apresentador de TV Luciano Huck (sem partido) ainda consideram que haja espaço para uma candidatura competitiva mais centrista, na disputa pela Presidência do ano que vem.
Logo depois da decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Edson Fachin, que devolveu os direitos políticos a Lula, na segunda-feira, Huck conversou com o presidente nacional do Cidadania, o ex-deputado Roberto Freire, sobre a nova conjuntura. O Cidadania é um dos partidos cotados para abrigar o apresentador, caso ele decida concorrer.
Segundo Freire, os dois não trataram de filiação, mas Huck se mostrou interessado em saber da avaliação do dirigente sobre o cenário eleitoral e a quantas anda a possibilidade de fusão entre o Cidadania e o Partido Verde, legendas ameaçadas pela cláusula de barreira. Também abordaram a viabilidade de uma candidatura do ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta (DEM-MS).
Para Freire, a entrada de Lula não muda, em essência, a polarização que estava desenhada entre Bolsonaro e o PT. O ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad, derrotado em 2018, já havia começado a circular em pré-campanha pelo país, mas cancelou a visita que faria hoje e amanhã ao Rio, depois do pronunciamento feito ontem em que Lula falou como candidato.
Freire disse que Lula elegível só torna “a polarização mais explícita”, o que “viabiliza melhor a alternativa do campo democrático”. “Ajuda a busca por unidade nas articulações feitas hoje”, afirmou ao Valor o dirigente, para quem Huck “é o melhor candidato para discutir o Brasil do século 21”.
O presidente do Cidadania diz que seu partido é o único em que Huck tem a garantia de concorrer, enquanto em outras siglas, como o DEM, isso não é certo. “Nem para o Mandetta há garantia”, diz, afirmando que a sigla está dividida entre os que querem apoiar Bolsonaro ou outras candidaturas, como a do governador de São Paulo João Doria (PSDB) ou do também tucano Eduardo Leite, governador do Rio Grande do Sul. Por causa da reviravolta no cenário, o PSDB antecipou as prévias que seriam realizadas no ano que vem para outubro.
Freire diz que o apresentador ainda tem tempo para definir se concorre ao Planalto ou permanece na TV Globo, mas a volta de Lula vai acelerar a tomada de decisão. No entorno de Huck, segundo apurou o Valor, a expectativa é que uma decisão possa ser tomada "mais para o fim do segundo semestre". "Até o prazo limite de filiação, em 4 de abril, é uma eternidade", conta esta fonte.
Na visão do Freire, Lula e Bolsonaro são fortes candidatos para chegarem ao segundo turno, mas o antipetismo continua em alta, acrescido do forte antibolsonarismo. As rejeições favoreceriam a candidatura centrista. Para o outro interlocutor do apresentador, Lula "está sem conexão com a classe média e o centro da política brasileira" pois teve que se "abraçar com a esquerda tradicional, o corporativismo", durante o período em que se defendia dos processos da Lava-Jato e dos 580 dias em que passou na prisão em Curitiba, apoiado pela militância. Isso o impediria de fazer um movimento em direção ao centro, como esboçado pelo ex-presidente no discurso de ontem. "A candidatura do Lula não esmaga o centro", afirma.
Por outro lado, acrescenta, Bolsonaro também tem perdido eleitores mais centristas. E Ciro Gomes (PDT) vai ser um candidato com discurso muito similar ao de Lula, "contra as reformas". "Vai ter uma dissidência do outro lado também", diz a fonte, minimizando a necessidade ou a possibilidade de que haja uma unidade grande do centro, em torno de um só candidato, numa composição improvável entre os tucanos, Huck e Mandetta.
Freire conta que as conversas sobre fusão envolvem o presidente do Partido Verde, José Luiz Penna, e Eduardo Jorge, que concorreu à Presidência pelo PV em 2014 e foi vice na chapa de Marina Silva (Rede) em 2018. Desse projeto também está próximo o ex-presidente da Câmara Rodrigo Maia (DEM-RJ), que rompeu com o partido e procura nova legenda.
Segundo apurou o Valor, Huck já recebeu convites oficiais de pelo menos cinco partidos: PSB, PSD, Cidadania, Podemos e DEM, além de uma sondagem do MDB.
Ruth de Aquino: Lula não é santo mas fez milagre
Nenhum cientista, nenhuma manchete, nenhum general, nenhum empresário, nenhum pastor, nenhuma recessão e nem mesmo os recordes sucessivos de mortos por Covid, nada disso produziu o milagre testemunhado pelo país nesta quarta-feira. Foi Lula quem “obrigou” Bolsonaro a usar máscara, defender vacinas e pedir imunizantes à China.
Nem mesmo a vacinação da mãe, Olinda, com a comunista Coronavac provocou essa transmutação radical de Bolsonaro. Lembram outubro de 2020? “A da China nós não compraremos, é decisão minha, mesmo se for aprovada pela Anvisa”. “Eu não tomo vacina (contra Covid), não interessa se tem uma ordem, seja de quem for, eu não vou tomar a vacina”. Sempre desencorajou uso de máscaras, à revelia do mundo. Citava “efeitos colaterais”. Seu filho Eduardo foi mais grosso em vídeo nas redes: “Enfia (a máscara) no rabo, gente, porra!” Que vergonha, deputado. Que vergonha.
O discurso eleitoral de Lula no sindicato dos metalúrgicos, convocando a população a usar máscaras e se vacinar, mudou tudo. Bolsonaro se apresentou imediatamente depois em um bloco de mascarados. Disse que sempre foi a favor de se imunizar. O milagre estendeu-se aos filhos Flávio e Carlos, tocados com a anulação das condenações de Lula. “Nossa arma é a vacina” passou a ser o slogan da família. Cara de pau. A arma de Bolsonaro sempre foi o trabuco mesmo. Sua arma é a que cospe tiros, palavrões, bacilos e cloroquina. “Vacinaremos dezenas de milhões de brasileiros”. O verbo está no tempo errado. O futuro deveria ser pretérito. É imperfeito e condicional na voz de Pazuello, o general passivo da ativa. Pazuello não via o porquê de “tanta ansiedade e angústia” da nação em dezembro. E hoje? “O sistema de saúde não colapsou nem vai colapsar”. Que vergonha, ministro. Que vergonha.
Em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, o vice-presidente Mourão afirma que “faltou uma campanha intensiva de conscientização da população”. Não, Mourão, faltou conscientizar Bolsonaro e seu ministro da Saúde. Olhe agora Joe Biden nos Estados Unidos. Cem milhões de doses serão aplicadas nos 50 primeiros dias de governo e quase toda a população adulta estará vacinada até julho. Uma questão de liderança.
O Brasil ficou sem hospitais de campanha, sem leitos, sem oxigênio, sem vacina, limitado a jogar corpos em frigoríficos. Deveríamos vacinar, dia e noite, ao menos 1 milhão de brasileiros. É inadmissível interromper a imunização por falta de doses.
Temos uma em cada quatro mortes por Covid no planeta. Somos o epicentro de uma calamidade sem controle. O STF precisa continuar a cobrar de Bolsonaro o repasse de recursos aos estados. O ministro Lewandowski deu prazo até o fim da semana. O STF precisa também cobrar explicações sem desculpas esfarrapadas. Qual é a culpa do Poder Executivo na tragédia, Supremo Tribunal Federal? Bolsonaro não quis ter vacinas já em dezembro. Semana passada, mandou comprar vacina na casa da tua mãe.
Nunca foi tão fácil fazer oposição. É só ter bom senso. Contra o destempero, recomenda-se cautela. Lula se comparou no discurso a um escravo que leva 100 chibatadas. Disse que foi vítima do maior erro jurídico em 500 anos de história. Menos, Lula. Inspire-se nos líderes autênticos que saíram da prisão com maior estatura e modéstia, como Mujica e Mandela, e não nos populistas que se gabam demais e derrapam em mentiras. Você criticou o fanatismo dos bolsonaristas. Não estimule o fanatismo dos petistas. Não precisamos de santos. Precisamos de presidente.
Murillo de Aragão: O acaso sempre aparece
É mais fácil prever o futuro em questões judiciais do que o passado
No Brasil dos últimos anos, é mais fácil prever o futuro em questões judiciais do que o passado. A competência do juízo federal sobre algumas iniciativas da Lava-Jato foi questionada tempos atrás. Talvez temendo o patrulhamento da opinião pública e da imprensa, o Supremo Tribunal Federal tenha deixado de lado uma questão que parecia óbvia e não esclareceu devidamente os limites das investigações da operação que se transformou em catarse.
Para o país e o mundo, a tardia definição da questão é um vexame, ainda que a decisão do ministro Edson Fachin possa ser juridicamente precisa. Mas por que o STF não delimitou claramente os limites da investigação? Por que o ex-juiz Sergio Moro não encaminhou a investigação para o juízo competente?
Ambas as respostas devem, obrigatoriamente, conter componentes não jurídicos e, obviamente, políticos. O establishment não quis salvar o ex-presidente Lula pelo que fez e pelo que poderia fazer após a derrocada de sua protégée, Dilma Rousseff. Os abusos da Lava-Jato eram como mentiras sinceras.
Por seu lado, Moro não abria mão de processar e julgar Lula, mesmo sob questionamentos consistentes, pois contava com a aliança jurídico-midiática para validar os seus movimentos e condenar o ex-presidente.
Ao fim e ao cabo, os excessos lavajatistas terminaram comprometendo a Operação Lava-Jato, podendo jogar as investigações sobre Lula para as calendas. Ainda que a decisão de Fachin possa ser revista pelo plenário do STF. Outro fato que importa é o seguinte: Lula, que estava na lateralidade do jogo político, volta a ter relevância, mesmo que não saia candidato à Presidência em 2022. Sua reabilitação vitaliza seu papel como candidato ou cabo eleitoral.
“Lula, que estava na lateralidade do jogo político, volta a ter relevância, mesmo que não saia candidato”
A terceira consequência é que o episódio Lula-Fachin poderá deflagrar o desmonte da Operação Lava-Jato, que, mesmo com seus abusos e excessos, provocou avanços institucionais importantes.
Ademais, o episódio jogou um balde de incertezas na conjuntura jurídica e política. A decisão de Fachin será mantida? No caso de ser mantida, como proteger a parte sadia da Lava-Jato? Qual será o futuro político de Moro? A polarização Bolsonaro versus Lula será predominante? Como fica o centro político?
É cedo para respostas definitivas. Lula, caso seja candidato, tem o desafio de unir a esquerda e buscar apoios ao centro. Bolsonaro tem outros desafios mais imediatos, como lidar com a pandemia e promover o crescimento econômico. O centro político, que não definiu qual caminho escolher na sucessão, se vê pressionado a tomar um rumo.
O curioso é que a polarização direita-esquerda não eliminará a característica central da política brasileira: com ou sem o desmonte da Lava-Jato, quem definirá o próximo presidente da República será o eleitorado não radical.
Uma questão preocupante: a política continuará a ser profundamente afetada pelas decisões do Judiciário e, até mesmo, por decisões monocráticas que surgem como raios em céu azul? A imprevisibilidade afeta o processo de consolidação de nossas instituições tanto quanto nossas elites se iludirem com processos catárticos como soluções de prateleira aos desvios de nossa política.
Publicado em VEJA de 17 de março de 2021, edição nº 2729
Claudia Safatle: Delfim vê Lula como próximo presidente
“Sem a dúvida, dado o quadro, votaria nele de novo”, diz ex-ministro
Delfim Netto foi um dos primeiros deputados a declarar apoio à candidatura de Lula em 2002, sob o argumento de que seria importante eleger o candidato do PT, pois ele faria uma administração ruinosa, e o partido não mais voltaria ao poder. “Eu me enganei”, disse o ex-ministro da Fazenda e do Planejamento a esta coluna, ontem.
“O senhor votaria nele novamente?”
“Diante do quadro que está aí, não tenho a menor dúvida”, respondeu Delfim, que completa 93 anos no dia 1º de maio.
Depois da decisão do ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal (STF), que anulou todo o processo do petista em Curitiba, “não tem pecha de ladrão que pegue mais nele [Lula]”. O ex-ministro e ex-deputado considera que a ação de Fachin “zerou o jogo” e muito provavelmente Lula, em um confronto com Jair Bolsonaro, será o próximo presidente do Brasil.
Depois de passar 580 dias na prisão e ser solto em novembro de 2019, agora Lula foi recolocado como possível candidato à Presidência da República pelo STF. Na quarta-feira ele fez um longo pronunciamento seguido de entrevista que, para Delfim, revelou “um orador brilhante”, com uma ideia clara sobre o país que queremos: “democrático, vigoroso e mais igualitário”.
A exposição que fez no sindicato dos metalúrgicos de São Bernardo do Campo mostra que Lula “amadureceu dramaticamente e, talvez, para mais ninguém esse longo tempo na prisão tenha sido tão produtivo”. Ambos, Delfim Netto e Lula, têm uma relação de profunda amizade. “Fiquei feliz ao vê-lo em plena forma”, comentou o ex-ministro.
Se eventualmente Lula vier a ser eleito presidente da República em 2022, ele viria carregado de mágoas ou não as tem mais? A essa pergunta Delfim responde:
“Esse negócio de não ter mágoas é tudo mentira. Acho que não há ninguém que não tenha mágoas, mas há pessoas que são capazes de agir mesmo não usando as mágoas, e ele é um desses”.
E o mercado, como se comportaria? A Faria Lima esboçaria alguma reação? Delfim acredita que não haveria qualquer reação contrária. Afinal, não houve desde então presidente que mais protegeu o mercado financeiro e teve boa relação com os empresários.
Duas características de Lula impressionam Delfim. “Ele tem uma técnica de reunir as pessoas e provocá-las. Eu assisti à reunião dele com Guido Mantega [ministro da Fazenda] e Henrique Meirelles [então presidente do Banco Central] em que ele provocava os dois e depois arbitrava. E a esquerda que Lula representa nada mais é do que uma preocupação com a questão social. “Em uma reunião patrocinada pelo PT em São Paulo, em que se discutia o socialismo, Lula levantou-se e falou: ‘Esse negócio de igualdade é ótimo, mas sem uma hierarquia nada funciona”, relatou o ex-ministro.
Fontes oficiais avaliam que foi até bom Lula ser recolocado na disputa eleitoral, pois assim os bolsonaristas no governo ficam “mais espertos”. As duras críticas feitas por Lula ao governo ajudaram a forjar o Bolsonaro das últimas horas, um mandatário que passou a usar máscaras e parece estar empenhado em arranjar vacinas para imunizar a população, em lugar de afrontar os protocolos que evitam a contaminação por covid-19 e negligenciar a compra de vacinas, patrocinando medicamentos sem qualquer comprovação científica.
Mais medidas
Aprovada a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) Emergencial, o governo ainda deve aguardar a aprovação do Orçamento da União para este ano antes de anunciar novas medidas de combate aos efeitos da pandemia. A pasta da Economia estuda, junto com outras áreas do governo, medidas de oferta de crédito para empresas, nos moldes da lei que reduziu a jornada de trabalho e os salários, dentre outras. A ideia é usar menos recursos do Tesouro Nacional e aumentar a participação do setor financeiro.
Mesmo não tendo saído exatamente como o governo queria, a PEC Emergencial pode ser vista como um “divisor de águas” para Jair Bolsonaro, na visão de fontes qualificadas que temiam uma nova vitória das corporações, desta vez da polícia, na questão dos reajustes salariais. Afinal, Bolsonaro pressionou, em vão, por mudanças para garantir a progressão e o aumento dos salários dos policiais.
“Era o rigor no gasto público e o compromisso de dispor de vacinas para imunizar a população ou um mergulho no populismo”, disse uma fonte oficial.
A proposta viabiliza a retomada do pagamento do auxílio emergencial e estabelece gatilhos a serem acionados em caso de descumprimento do teto de gastos públicos. O texto flexibiliza regras fiscais para financiar o benefício e prevê um limite para gastos fora do teto de R$ 44 bilhões.
Pelos cálculos da área técnica do governo, seriam três grupos beneficiários do auxílio: pai solteiro receberia R$ 150; o casal receberia R$ 250, e mãe solteira, R$ 350 por mais quatro meses, até o fim do primeiro semestre. Os valores podem ser ligeiramente diferentes desde que a média ponderada seja equivalente à um benefício médio de R$ 250.
A área econômica avalia que no fim do primeiro semestre o país terá vacinado boa parte da população, e o segundo semestre seria o da tão esperada retomada do crescimento.
César Felício: Poder supremo
Judiciário, na prática, exerce um poder moderador
Se há algo que muda de forma surpreendente no Brasil é o entendimento do Judiciário sobre um fato. A anulação da condenação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, manobra desesperada do ministro Edson Fachin para impedir a derrubada por completo de todas as punições determinadas no âmbito da Lava-Jato, é a maior tradução disso. Em uma corte antes tão escrupulosa com a forma, o Supremo Tribunal Federal agora é mais flexível em suas decisões. A questão de Curitiba não ser o foro adequado para se decidir sobre todos os casos no âmbito da operação já havia sido tratada pelo STF antes, e Fachin não concordava com a tese.. Agora foi uma das bases da decisão do ministro.
“Política é como nuvem, cada hora de um jeito”, frase em geral atribuída ao antigo governador mineiro Magalhães Pinto, aplica-se também ao entendimento da magistratura em determinadas questões. A conjuntura tem prevalecido sobre a doutrina.
É útil lembrar da sucessão de fatos do março de 2016. Não faz tanto tempo, cinco anos, e o Supremo Tribunal Federal pouco mudou. Entraram na corte Alexandre Moraes (2017) e Kassio Nunes Marques (2020). A guinada, entretanto, foi suprema.
O mês começou com o então presidente da Câmara, Eduardo Cunha, virando réu no Supremo Tribunal Federal, por dez votos a zero, no dia 2. Na manhã seguinte, vazou a delação do senador Delcídio do Amaral implicando tanto a presidente Dilma Rousseff quanto Lula.
Em paralelo, a Lava-Jato acelerava. Lula foi levado coercitivamente para depor em 4 de março. O empresário Marcelo Odebrecht foi condenado a 19 anos e 4 meses de prisão no dia 8.
Degenerava a situação política. Em 12 de março, o PMDB rompia com o governo federal. Atos contra Dilma reuniram 500 mil pessoas no dia 15. No inesquecível 16 de março, Dilma nomeou Lula ministro da Casa Civil e o juiz Sergio Moro divulgou o famoso áudio entre os dois, fora do período permitido para a escuta e apesar da citação a pessoas com foro privilegiado. A posse foi suspensa por Gilmar Mendes no dia seguinte e não houve nenhuma punição para o magistrado. No dia 22, Rosa Weber negou recurso de Lula.
O contraste com o Supremo de 2021 é evidente. O atual presidente da Câmara, Arthur Lira, deixa de ser réu em ação penal, depois de o Supremo voltar atrás na aceitação da denúncia sobre o quadrilhão do PP. A decretação da suspeição de Moro é iminente. Lula está livre para concorrer.
Não se pode entender a reviravolta sem mencionar o vazamento de mensagens entre Moro e integrantes da Lava-Jato, mostrando que havia uma promiscuidade entre a Justiça e o Ministério Público na operação. Mas isso não explica tudo. Não é apenas Lula que está sendo redimido. A mão pesada está sendo retirada de toda classe política.
Foi o cientista político Humberto Dantas, da Faculdade de Sociologia de São Paulo (Fesp) e do Centro de Liderança Pública (CLP), que alertou em artigo para a falta de sincronia entre o março de 2016 e o deste ano. “Há muitas análises sobre o impacto eleitoral do retorno de Lula ao cenário, sempre condicionadas pelas circunstâncias. O momento para Bolsonaro é péssimo, isso pode mudar. Já a instabilidade de decisões do Judiciário é algo que começa a se tornar preocupante”, afirmou.
Para Dantas, a Justiça cometeu atropelos em 2016 ao tolerar extravagâncias da Operação Lava-Jato, que desvirtuaram a investigação contra Lula, e se desdiz agora. Constata-se que temos um Judiciário de conjuntura, atento sempre para a direção que o vento sopra. Ele não vê no movimento um “mea culpa” do Judiciário em relação a erros passados, mas a permanência de um padrão que se destaca pela insegurança. “Diminui a expectativa da sociedade por imparcialidade na corte”, constata.
Ele também vê a mesma falta de constância na decisão que levou ao cárcere o deputado Daniel Silveira (PSL-RJ), tomada pelo ministro Alexandre de Moraes. Se Silveira fez ataques às instituições e colocou em risco a segurança nacional, o então deputado Jair Bolsonaro não fez o mesmo em repetidas ocasiões durante sua vida parlamentar, sem jamais sofrer sanção nenhuma?
O Supremo avança além de suas competências, legisla sobre questão eleitoral, pode influir tão decisivamente na eleição de 2022 quanto influiu na última. A situação jurídica de Lula, por exemplo, permanece precária. Não é impossível que ele seja retirado do quadro dos candidatos em breve, ou na vigésima-quinta hora.
O Judiciário exerce, hoje, um verdadeiro poder moderador. Cioso de seus privilégios, do topo à base. Ontem um juiz federal substituto em Brasília, Rolando Spanholo, garantiu em liminar à Associação Nacional dos Magistrados Estaduais (Anamages) o direito de importar e aplicar vacinas contra covid-19 exclusivamente para “seus associados e respectivos familiares”.
A sociedade e o Congresso toleram o Judiciário assim porque os arroubos autoritários do presidente Jair Bolsonaro e dos seus apoiadores estressam o sistema democrático, deixam sempre a ruptura no horizonte e a muralha de contenção que existe está na magistratura. Mas Dantas pergunta: o que aconteceria se a Justiça, no futuro, ficasse alinhada a um Executivo com viés ditatorial?
O exercício é sinistro, sobretudo quando se enxerga o passado recente. Sem entrar no mérito das decisões, o Judiciário foi fundamental tanto para que o impeachment de Dilma se concretizasse há cinco anos, quanto para que Michel Temer concluísse o mandato, ao rejeitar a impugnação eleitoral da chapa de 2014. É ali, e não nos quartéis, que se concentra poder real. O que faz com que se olhe com redobrada atenção para a próxima escolha de Jair Bolsonaro para compor a corte, no próximo mês.
*César Felício é editor de Política.