Bolsonaro

Novas relações do Brasil e EUA estão “apenas no início”, diz Rubens Barbosa

Em artigo publicado na revista Política Democrática Online, presidente do Irice analisa relação diplomática entre os dois países

Cleomar Almeida, Coordenador de Publicações da FAP

O presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (Irice) e embaixador aposentado, Rubens Barbosa, diz que o presidente dos Estados Unidos, o democrata Joe Biden, adotou atitude de não confrontação com o governo Jair Bolsonaro (sem partido). A análise foi publicada em artigo que produziu para a revista Política Democrática Online de março.

A revista mensal é produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania. A versão flip, com todos os conteúdos, pode ser acessada gratuitamente na seção de revista digital do portal da entidade.

Confira a Edição 29 da Revista Política Democrática Online

Biden e Bolsonaro, segundo Barbosa, iniciaram conversas sobre diversos temas das relações bilaterais. Entre os assuntos estão diferenças em relação a clima, direitos humanos e democracia podem prejudicar o Brasil.

De acordo com o artigo publicado na revista Política Democrática, a divulgação de uma série de documentos cobrando medidas duras contra o Brasil procurou influir na política externa do governo Biden.

Crítica à política ambiental

“O documento assinado por ex-altos funcionários e negociadores norte-americanos critica a política ambiental brasileira e reclama medidas contra o Brasil, caso não haja mudança nas políticas de proteção à Amazônia e de mudança de clima”, escreve o presidente do Irice.

Segundo ele, o trabalho “Recomendações sobre o Brasil para o Presidente Biden e Para a Nova Administração”, encaminhado por professores norte-americanos, brasileiros e diversas ONGs, faz duros reparos a política ambiental, direitos humanos e democracia.

Além disso, de acordo com Barbosa, o documento pede a suspensão da cooperação com o Brasil em diversas áreas como Defesa, comércio exterior, meio ambiente e outras.

O autor do artigo na revista da FAP lembra que o presidente da Comissão de Relações Exteriores do Senado também enviou carta ao presidente Bolsonaro e ao Ministro Ernesto Araújo, pedindo explicações e retratação de declarações, julgadas favoráveis a invasão do Congresso de Washington.

Correspondência ao Senado

Por fim, segundo o embaixador, um grupo de deputados norte-americanos enviou correspondência ao Senado requisitando a suspensão de alguns programas de cooperação na área de defesa pelos problemas com os quilombolas no Centro de Lançamento de Alcântara.

“O conteúdo dos documentos e dessas correspondências, combinado com a divulgação da política ambiental do presidente Biden, com referência específica à Amazônia, gerou preocupação pelos eventuais impactos sobre o Brasil”, observa o presidente do Irice.

Na avaliação de Barbosa, “as relações com os EUA, que começaram tranquilas, terão muitos outros capítulos em 2021”. “Estamos apenas no início”, analisa.

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Agência Senado: Brasil, recordista em desigualdade

Cintia Sasse, Agência Senado

A pandemia escancarou, mais uma vez, o péssimo quadro da desigualdade social e econômica no Brasil. Durante a primeira onda do coronavírus, no ano passado, mais de 30% dos 211,8 milhões de residentes no país tiveram de ser socorridos na etapa inicial do auxílio de R$ 600 aprovado pelo Congresso, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgados em julho de 2020.

O contingente dos que precisaram de ajuda espantou até mesmo algumas áreas de governo, mesmo tomando em consideração os desvios e irregularidades cadastrais. O Tribunal de Contas da União (TCU) estimou, em relatório divulgado ao final de fevereiro, que 7,3 milhões de brasileiros podem ter recebido o auxílio emergencial indevidamente. Mesmo quem não agiu de forma intencional terá que se acertar com o fisco agora em 2021.

Os cálculos quanto ao número total de beneficiários variam entre 67 e 68 milhões de brasileiros na primeira fase e cerca de 57 milhões na segunda rodada, a partir de setembro, quando o auxílio foi reduzido para R$ 300. Essa variação depende da fonte de informação consultada.

Além do espantoso número de beneficiários, o custo do chamado coronavoucher evidenciou o peso financeiro da desigualdade no país. Foram gastos praticamente R$ 293 bilhões no ano passado, cerca de 56% dos recursos federais desembolsados para enfrentar a primeira onda da pandemia, de acordo com o Siga Brasil, sistema do Senado que facilita a busca de dados do Tesouro Nacional. Ou R$ 321,8 bilhões, conforme os cálculos divulgados pelo Ministério da Economia sobre o gasto com o auxílio emergencial.

O importante é que qualquer uma das duas cifras reflete o custo elevado do perfil de distribuição de renda no país. Os recursos socorreram não só os que ficaram desempregados ou perderam seus pequenos negócios no meio da maior crise sanitária deste século. Entre os elegíveis ao benefício estavam brasileiros situados na base da pirâmide social. Ou seja, os pobres que vivem com menos de US$ 5,50 por dia ou os muito pobres que conseguem apenas US$ 1,90, conforme classificação do Banco Mundial.

Desigualdade
 

— O Brasil está entre os dez países mais desiguais do mundo — afirma o sociólogo Luis Henrique Paiva, coordenador de estudos em seguridade social do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
 

De fato. A publicação Síntese de Indicadores Sociais, divulgada pelo IBGE em 2020, trouxe estimativas do Banco Mundial com base no índice de Gini, instrumento criado pelo matemático italiano Conrado Gini para medir o grau de concentração de renda no grupo a ser avaliado. A variação numérica é de zero a um, sendo zero quando todos têm a mesma renda e um representando o extremo oposto.
 

Nesse ranking da desigualdade, o Brasil apresenta 0,539 pelo índice de Gini, com base em dados de 2018. Está enquadrado entre os dez países mais desiguais do mundo, sendo o único latino-americano na lista onde figuram os africanos. O Brasil é mais desigual que Botsuana, com 0,533 pelo índice de Gini, pequeno país vizinho à África do Sul com pouco mais que 2 milhões de habitantes.


Correio Braziliense: Com possível corrida por reeleição estadual, Doria tem truco no PSDB

Os aliados precisarão correr atrás do governador paulista, que tem a alternativa de disputar a reeleição ao Palácio dos Bandeirantes, se o quiserem como candidato ao Planalto. No plano nacional, porém, o tucano enfrenta dificuldades e concorrentes

Luiz Carlos Azedo, Correio Braziliense

O governador de São Paulo, João Doria, cansou de ser chantageado e resolveu trucar na disputa interna do PSDB, ameaçando concorrer à reeleição. Primeiro, foi o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, que se lançou pré-candidato e exigiu prévias na legenda. Depois, o ex-prefeito de Manaus Arthur Virgílio também anunciou a intenção de participar das prévias; finalmente, o deputado Aécio Neves, recém eleito presidente da Comissão de Relações Exteriores da Câmara, anunciou que o PSDB pode não ter candidato a presidente da República e apoiar alguém de outro partido, o que foi interpretado como uma sinalização do ex-governador mineiro de apoio ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, cujas condenações foram anuladas pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Edson Fachin.

Doria enfrenta outras dificuldades com os aliados. O MDB, fundamental para viabilizar capilaridade nacional à campanha, assedia o vice-governador Rodrigo Garcia (DEM) para que se filie à legenda, o que complica a vida de Doria na sua própria retaguarda, porque o ex-governador Geraldo Alckmin, seu padrinho político, com certeza, concorrerá ao Palácio dos Bandeirantes se o PSDB não tiver uma candidatura própria. O DEM também subiu no telhado, desde a eleição para a Mesa da Câmara dos Deputados, quando traiu o apoio ao deputado Baleia Rossi (MDB-SP), deixando de ser uma legenda confiável no plano nacional por causa da aliança do ex-prefeito de Salvador ACM Neto com o presidente Jair Bolsonaro. E ainda tem a ala adesista do PSDB, que apoia Bolsonaro, como é o caso do senador Izalci Lucas (DF), vice-líder do governo no Senado.

Noves fora as conversas do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso com o apresentador Luciano Huck, cuja pré-candidatura à Presidência da República nunca foi assumida publicamente, num cenário como esse, a desistência de João Doria deixa os partidos do chamado centro democrático sem uma candidatura competitiva para enfrentar a polarização entre o presidente Jair Bolsonaro e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. As outras opções são o ex-ministro da Saúde Henrique Mandetta (GO), que também não conta com nenhuma garantia de que terá legenda no DEM. E o ex-ministro da Justiça Sergio Moro, cuja candidatura é alicerçada no apoio popular à Operação Lava-Jato, um palavrão para a cúpula do PSDB.

Em vez de Doria buscar apoio, agora serão os aliados, se quiserem ter uma candidatura robusta à Presidência, que precisarão correr atrás dele, pois o governador paulista sempre tem a alternativa de concorrer à reeleição ao Palácio dos Bandeirantes, o vértice do sistema de poder que alicerça as alianças tucanas. Esse é o truco, o governador paulista dobrou a aposta. Foi decisiva para o gesto a entrevista de Aécio Neves, seu principal desafeto no partido, que ainda mantém grande influência na bancada federal, tanto na Câmara como no Senado. Suas declarações de que o PSDB poderia apoiar um candidato de outra legenda foram a senha para a “cristianização” de candidatura de Doria, que tem o precedente da aliança pirata do político mineiro com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva na campanha de 2002, colaborando para a derrota de José Serra (PSDB-SP).

Erros sucessivos

João Doria, porém, também tem culpa no cartório, porque cometeu vários erros na condução da política interna do PSDB. Primeiro, tentou expulsar Aécio Neves sem ter força suficiente para isso, apostando apenas na repercussão que o gesto teria na opinião pública. Segundo, tentou deslocar do cargo o presidente do partido, deputado Bruno Araujo (PE), num jantar em São Paulo no qual postulou a presidência do PSDB. O gesto foi muito mal recebido não somente pelo político pernambucano, mas por toda a cúpula do partido, abrindo espaço para que o governador gaúcho Eduardo Leite o desafiasse a disputar prévias, com amplo apoio das demais seções estaduais do partido.

Além disso, há dificuldades eleitorais propriamente ditas, porque Doria não larga bem na disputa pela Presidência. Tem à frente outros possíveis concorrentes, como Mandetta, Moro e Huck, todos de centro. O confronto com o presidente Jair Bolsonaro muito antes das eleições, por causa das vacinas, tampouco trouxe os ganhos eleitorais que imaginava, além de despertar uma oposição de direita ao seu governo constituída por setores que o ajudaram a chegar ao Palácio dos Bandeirantes. A candidatura do ex-presidente Lula também divide o eleitorado paulista, neutralizando o que deveria ser uma vantagem estratégica de Doria na disputa pela Presidência. Finalmente, como quase todo político paulista, o governador tem dificuldades para chegar junto aos eleitores do Norte e Nordeste, o que exige alianças com políticos dessas regiões. Como não tem nenhuma vivência parlamentar, seu trânsito acaba interditado no Congresso, tanto pelos desafetos tucanos como pelos aliados que querem levar vantagem em tudo.

Morre deputado que criticava vacinação

Morreu ontem, vítima de covid-19, em Cuiabá, o deputado estadual do Mato Grosso Silvio Antônio Fávero, autor de um projeto de lei que procurava vetar a obrigatoriedade da vacina. Fávero tinha 54 anos e estava internado desde o último dia 4 com complicações pulmonares. “O quadro de saúde se agravou nesta madrugada, chegando ao quadro de infecção generalizada”, informou a assessoria do deputado. Fávero apresentou, na Assembleia Legislativa de Mato Grosso, um projeto de lei que visava a permitir que o cidadão optasse pela vacinação contra a covid-19. Na justificativa, alegou: “O projeto visa também a evitar que a vacinação seja compulsória, eis que, atualmente, subsiste insegurança quanto à eficácia e eventuais efeitos colaterais das vacinas”. Apesar de ser contrário à obrigatoriedade dos imunizantes, o deputado também apresentou projetos com o objetivo de desburocratizar a compra de vacinas.

Morreu ontem, vítima de covid-19, em Cuiabá, o deputado estadual do Mato Grosso Silvio Antônio Fávero, autor de um projeto de lei que procurava vetar a obrigatoriedade da vacina. Fávero tinha 54 anos e estava internado desde o último dia 4 com complicações pulmonares. “O quadro de saúde se agravou nesta madrugada, chegando ao quadro de infecção generalizada”, informou a assessoria do deputado. Fávero apresentou, na Assembleia Legislativa de Mato Grosso, um projeto de lei que visava a permitir que o cidadão optasse pela vacinação contra a covid-19. Na justificativa, alegou: “O projeto visa também a evitar que a vacinação seja compulsória, eis que, atualmente, subsiste insegurança quanto à eficácia e eventuais efeitos colaterais das vacinas”. Apesar de ser contrário à obrigatoriedade dos imunizantes, o deputado também apresentou projetos com o objetivo de desburocratizar a compra de vacinas.


Eliane Cantanhêde: Bolsonaro, agora 'Capitão Gotinha', muda a retórica, assume as vacinas e vai abrir as torneiras

O Brasil vai assistir a uma guerra do populismo de esquerda contra o populismo de direita, com Lula ressentido e disposto a tudo e Bolsonaro cada vez mais sem escrúpulos, massacrando os fatos

À deriva, à mercê do coronavírus e exportando novas cepas para o mundo, o Brasil vai assistir – e sofrer – uma guerra do populismo de esquerda contra o populismo de direita, com o camarada Lula ressentido e disposto a tudo e o capitão Jair Bolsonaro cada vez mais sem escrúpulos, massacrando os fatos. Acaba de surgir o "Capitão Gotinha", o maior defensor da vacina no planeta. Acredita quem quer. E o pior é que tantos acreditam em qualquer coisa.

Os dois lados estão armados até os dentes e só nos resta torcer para que a imagem de retórica não vire realidade na era de um presidente com delírios autoritários e fetiche por armas. Depois de papai Jair combater incansavelmente as vacinas, a família presidencial assume um slogan oposto: "Nossa arma agora é vacina". Mas deixaram rastro, fantasiando o doce Zé Gotinha de miliciano, com um fuzil em forma de seringa. Argh!

E a deputada Carla Zambelli (PSL-SP)? Ao assumir a emblemática Comissão de Meio Ambiente da Câmara, a bolsonarista posou para o Estadão com cara de brava e... uma pistola 380. Não, não é contra desmatadores, traficantes, invasores de terras indígenas e criminosos em geral. Seus alvos são as ONGs!

Tudo isso num ambiente contaminado pelos recados velados e ameaças explícitas de Bolsonaro após a entrada de Lula no campo de batalha. Nervoso, o presidente deu um salto triplo carpado a favor das vacinas e atacou, além de Lula, governadores inimigos, como João Doria (SP), e amigos, com Ibaneis Rocha (DF). E acenou com insurreição, saques em supermercados... Eu, hein?! É convocação? Guerra civil?

Lula calibrou milimetricamente o confronto com Bolsonaro e a bandeira branca para o resto, enquanto Bolsonaro perdeu as estribeiras. Mas, afora táticas e estratégias, a polarização vai mostrar o quanto os extremos se aproximam, se parecem e se alimentam mutuamente, inclusive com métodos semelhantes de destruição de adversários, tratados como inimigos, e causas surpreendentemente comuns, camufladas pela ideologia.

PT e Bolsonaro, unha e carne no cerco a Sérgio Moro e à Lava Jato, trabalharam pelo mesmo candidato à presidência do Senado e estavam muito mais próximos na disputa na Câmara do que parecia à luz do dia. Agora, esquartejam a Lei das Improbidades – não para proteger os probos. Na campanha, sítio, triplex, rachadinhas e mansões milionárias farão a festa em palanques e na internet. Pior para Lula, que carrega os fardos do mensalão e do petrolão.

Na economia, PT e bolsonarismo caminham de mãos dadas no "nacionalismo" anacrônico, estatizante e corporativista. As corporações petistas estão na educação, cultura, ambientalismo, sindicatos. As bolsonaristas são mais "hard": militares, policiais, reinos universais, quartéis e cultos. (Lula, lembre-se, jamais teve arroubos contra a democracia, ao contrário de seu oponente, com esse exército.)

Os dois lados douram a pílula para atrair o capital, mas gostam mesmo da boa e velha mão pesada em Petrobrás, BNDES, BB, Caixa, Eletrobrás e Correios. Nada como manipular preços politicamente, alardear a "função social" das estatais e ter o Centrão a bordo. Mas, quando entra o "social", a balança pesa a favor de Lula. Além de correr desesperado atrás de vacinas, Bolsonaro será obrigado a mudar a retórica, acampar no Nordeste e abrir as torneiras.

Se o centro é uma incógnita, o Centrão (ou direitão) é fácil. Quem está com Bolsonaro e já esteve com Fernando Henrique, Lula, Dilma e Temer irá para onde os ventos soprarem. Como define um expert em Centrão, eles são garçons diligentes e cuidam bem da louça suja, não estão nem aí se o menu é comida chinesa ou pizza napolitana. Querem boa remuneração e nacos de poder, que Lula, Bolsonaro e centro dão de bandeja. Quem dá mais?


Pedro S. Malan: 2022, o ano que vem chegando mais cedo

Aung San Suu Kyi: ‘O temor de perder o poder corrompe aqueles que o exercem’

 “Creio que nenhum homem tem plena consciência das engenhosas artimanhas a que recorre para escapar à sombra terrível do conhecimento de sua própria pessoa” (Joseph Conrad). Seria possível imaginar o mesmo de um país? Dizer, como o personagem de Shakespeare (em Macbeth): “Ai de ti, pobre país, quase com medo de conhecer a si próprio”. O Brasil sob o bolsonarismo parece cada vez mais enredado no autoengano e na autocomplacência, empenhado em perder-se em engenhosas artimanhas para escapar ao conhecimento de si próprio.

Mas a terrível sombra está a ficar mais visível com o agravamento da pandemia, e com suas consequências. Paradoxalmente, é o que poderá talvez permitir que escapemos, nos próximos 18 meses, do autoengano coletivo, que seria trágico. Terrível como possa ser, o Brasil, a duras penas, pode estar se conhecendo melhor. Afinal, Bolsonaro e sua grei são parte integrante de nossa realidade. Cumprirá a cada um de nós procurar construir coalizões – de pessoas, de partidos – aptas a apresentar-se à sociedade em geral (não apenas a nichos identitários, corporações estabelecidas e interesses consolidados) como alternativas de poder viáveis e construtivas.

Não será fácil. No presidencialismo à brasileira o poder incumbente dispõe de enormes vantagens, particularmente quando a busca da reeleição constitui sua inequívoca prioridade. O poder que detém o presidente de nomear, demitir, vetar e cooptar não deve ser subestimado. Nem sua presença nas redes sociais ou o expressivo contingente do eleitorado que lhe confere o status de mito.

Em algum momento será preciso convergir para nomes, a política assim o exige. Mas tão importante quanto o quem é com quem mais (pessoas, partidos, grupos sociais), com que tipo de proposta sobre os principais desafios do País, com que tipo de interpretação sobre onde estamos, como até aqui chegamos e para onde se está propondo que caminhemos.

Carlos Pereira, em artigo recente (Folha 8/2), comenta a diferença entre montar uma coalizão para uma disputa eleitoral e gerenciar uma coalizão para efetivamente governar, à luz das dificuldades de coordenação, custos de governabilidade e perspectivas de sucesso legislativo. Após um ano e meio de recusa, Bolsonaro foi obrigado a aceitar uma coalizão e a empenhar-se pessoalmente na eleição dos novos presidentes da Câmara e do Senado. Mas, como notou o autor, “estando o presidente disposto a jogar o jogo do presidencialismo multipartidário, precisa aprender a gerir a sua coalizão de forma profissional e não amadora”. Sua forma de gerir a coalizão alcançada tem se mostrado volátil e estouvada, mas claramente concentrada em sua reeleição. Que depende da consolidação e ampliação de seu eleitorado fiel, do cultivo das corporações que tem como suas e da transferência de responsabilidades para governadores, prefeitos e para a mídia profissional.

A extraordinária disfuncionalidade do Executivo federal no combate à covid é o exemplo mais flagrante e doloroso dessa inépcia, mas não o único. Afinal, é de nosso presidente a afirmação: “O País está quebrado, e eu não consigo fazer nada”. Eis a continuação da mensagem, implicitamente sugerida: porque não me deixam fazer o que eu gostaria, ou o que precisaria ser feito, a culpa não é minha. Em outra fala, saiu-se com variante muito mais grave: “Alguns acham que posso fazer tudo. Se tudo tivesse que depender de mim, não seria este o regime que nós estaríamos vivendo”. Nada surpreendente para quem em janeiro afirmara que “quem decide se um povo vive sob uma democracia ou uma ditadura são as Forças Armadas”. As duas frases não deveriam surpreender a quem conheça sua trajetória, no Exército e no Congresso, ou a quem se dê ao trabalho de assistir, na íntegra, ao vídeo da famosa reunião ministerial de 22 de abril de 2020, verdadeira ressonância magnética de um organismo disfuncional.

A História ensina que uma sociedade enjaulada em acerbas polarizações é particularmente vulnerável a populismos fraudulentos. Existem sempre instigadores que despertam e incendeiam a ambição de populistas e tiranos em potencial. Como existem sempre os facilitadores que, ainda que percebam o perigo representado por aquela ambição, imaginam-se capazes de controlar os arroubos autoritários do populista (ou do tirano) enquanto se beneficiam de seu estilo de assalto a instituições estabelecidas. Como aponta com pertinência Aung San Suu Kyi, “não é o poder que corrompe, mas o medo. O temor de perder o poder corrompe aqueles que o exercem. E o medo do açoite do poder corrompe aqueles que estão sujeitos a ele”. Persio Arida retomou o tema em excelente live recente, a propósito do Brasil de hoje.

Nos próximos 18 meses o Brasil deverá decidir se afinal deseja assumir-se como uma democracia vibrante, reconhecida como tal pelo resto do mundo; ou se persistirá na trajetória de incerteza crescente sobre nosso futuro econômico, social e político. E a correr sério risco, à luz de eventos dos últimos dias, de reeditar o tipo de polarização que marcou tanto nossa experiência em 2018 como os últimos trágicos 12 meses de pandemia.

*Economista, foi ministro da Fazenda no governo FHC


Rolf Kuntz: A chanchada sinistra do autoritarismo

A pandemia avança, enquanto o governo encena a paródia da ditadura militar

Pornochanchada já era. O Brasil vive agora uma chanchada trágica, encenada pelo mais incompetente e mais desastroso governo de sua História. Não há como estranhar as obscenidades de Jair Bolsonaro e de seu filho Eduardo, especialmente quando dirigidas à imprensa. Suas barbaridades apenas expressam, de modo chulo, o padrão moral, intelectual e político do grupo instalado no centro do poder federal. Quando manda enfiar em lugar impróprio as máscaras destinadas à prevenção sanitária, o filho do presidente celebra, como seu pai, a mortandade dos brasileiros. Essa grosseria, tipicamente bolsonariana, foi postada em 10 de março, quarta-feira. No mesmo dia, um novo recorde de mortes pela covid, 2.349 em 24 horas, foi registrado. A família presidencial poderia celebrar um novo marco em sua história.

Também na quarta-feira o ministro Eduardo Pazuello, famoso por sua omissão quando pacientes morriam sufocados em Manaus, negou o risco de colapso nos serviços de saúde. “O nosso sistema de saúde está muito impactado, mas não colapsou nem vai colapsar”, assegurou. Em todo o País, governadores, prefeitos, secretários e médicos apontavam hospitais lotados e filas de doentes à espera de vaga em UTIs. Todos esses fatos eram componentes de um desastre muito maior: o desmoronamento, iniciado em 2019, da administração federal.

O papel mais patético nessa quarta-feira coube ao chefão da trupe, o presidente Jair Bolsonaro. Ele apareceu de máscara, num evento no Palácio do Planalto, defendeu a vacinação e até lamentou as mortes causadas pela covid. Em São Bernardo, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, de novo em condição de concorrer à Presidência, havia criticado a ação federal diante da pandemia. O senador Flávio Bolsonaro pediu aos seguidores a distribuição, em redes sociais, de uma foto de seu pai com a frase: “Nossa arma é a vacina”.

Vinte e quatro horas depois o Bolsonaro de sempre reapareceu, já sem máscara e com a truculência habitual. Apoiadores o haviam aconselhado, segundo fontes de Brasília, a desfazer a impressão de ter sido acuado por Lula. Mas havia sido. Isso foi evidenciado até pelo globo exibido em sua live de quinta-feira, uma resposta a quem o havia chamado de terraplanista.

Palavras grotescas, falsas e ameaçadoras compuseram a live. Contrariando fatos conhecidos e documentados, o presidente negou ter chamado de gripezinha a covid-19. Confundiu com estado de sítio as medidas preventivas, como o toque de recolher, determinadas por alguns governadores. Ele obviamente ignora o sentido de “estado de sítio”, tema tratado na Constituição.

Bolsonaro lembrou sua condição de chefe supremo das Forças Armadas. Raramente um presidente democrata menciona esse fato. Mas, além de falar sobre isso, lembrou o regime militar e pediu apoio ao povo para enfrentar os governadores. “Como é que eu posso resolver a situação? Eu tenho que ter apoio. Se eu levantar minha caneta BIC e falar ‘shazam’, vou ser ditador. Vou ficar sozinho nessa briga?”.

O palavrório é meio estranho, mas, apesar da obscuridade e dos subentendidos, a convocação lembra as ameaças de promover algo parecido com a mobilização comandada pelo presidente Donald Trump. Nos Estados Unidos, o presidente derrotado na última eleição incitou seus apoiadores a invadir o Congresso. Há alguns meses, Bolsonaro mencionou o risco de algo semelhante no Brasil se a eleição de 2022 for realizada sem voto impresso.

Bolsonaro chamou de herói nacional o torturador Brilhante Ustra, criou mal-estar com o governo chileno ao elogiar a ditadura do general Pinochet e cita com frequência o regime militar no Brasil. Referências à ditadura estão longe de ser meros componentes de uma retórica infeliz, grotesca e muitas vezes chula. O presidente, seus filhos e vários componentes da administração federal têm conseguido encenar uma paródia sinistra dos tempos ditatoriais.

O Ministério da Educação enviou a reitores de universidades federais um documento ameaçador, prometendo sanções, por “imoralidade administrativa”, a “manifestações de desapreço ao governo”. A censura é aplicável a professores e alunos. Um processo disciplinar foi aberto contra o ex-reitor e o pró-reitor de Extensão e Cultura da Universidade Federal de Pelotas. Ambos tiveram de assinar um termo de ajustamento de conduta para encerrar o processo.

Técnicos do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) também foram pressionados. Receberam recomendação de limitar seus contatos com a imprensa e de evitar a divulgação de estudos antes de “aprovação definitiva” pela direção. O presidente do Ipea, Carlos von Doellinger, parece haver esquecido sua experiência dos anos 1970, quando ele mesmo e outros pesquisadores tinham amplo contato com jornalistas. Estudos eram produzidos sem censura. Artigos publicados na revista Pesquisa e Planejamento Econômico discutiam livremente a política econômica. Esse padrão, sustentado por João Paulo do Reis Velloso, um dos criadores do instituto, foi mantido por muito tempo. Talvez faltasse um governo bolsonariano.

*Jornalista


Cristovam Buarque: Lula Taí

A história do Brasil já está marcada por ele

Quando Arraes voltou do exílio, não havia TV a cabo, internet, WhatsApp, mas logo se espalhou o cochicho de “Arraes Taí”. Lembrei disto ao assistir a fala do Lula na manhã da quarta-feira, depois que o Supremo Tribunal Federal anulou seu julgamento pela Lava-Jato de Curitiba. Foi como anistia de condenação que está passando a ideia de ter sido motivada politicamente. Muitos dos que se indignam e condenam a comprovada avassaladora corrupção na Petrobras, durante seu governo, desconfiavam das provas contra o Lula nos casos que o envolviam pessoalmente. Sobretudo depois de o juiz dos casos abandonar a toga para assumir um ministério. Mais ainda, ao tomarem conhecimento dos diálogos entre juiz e procuradores, durante o processo.

Por isto esperei a fala de Lula com temor de que voltasse ao discurso desagregador de quando foi solto em 2019, e com esperança de um discurso agregador, como fez em 2002 e durante seus dois governos. Colocando-se à disposição das forças políticas para encontrar o candidato com mais chance de impedir a reeleição do atual presidente. Seu discurso não teve a mensagem desagregadora, nem foi suficientemente esperançoso. Não passou a arrogância do isolamento, nem deixou clara mensagem de que “Lula Taí” para ser um dos líderes, não o monopolizador, de uma aliança pela democracia, olhando o futuro com responsabilidade econômica e empatia social. Mas deixou aberta a possibilidade dele e o PT participarem da construção de uma aliança de todos que desejam superar a atual tragédia que o Brasil enfrenta na epidemia, na incompetência gerencial, nas ameaças à democracia, no obscurantismo e no isolamento internacional.

Quem gosta e quem não gosta do Lula tem de reconhecer que a história do Brasil já está marcada por ele: ao demonstrar que um operário retirante nordestino é capaz de ser um presidente que representou bem ao país no Exterior, que manteve compromisso com a estabilidade monetária durante seus dois mandatos e atendia demandas sociais.

Mas talvez a maior contribuição de Lula ao Brasil, sua “melhor hora”, será a partir de agora: ajudar o Brasil a eleger um novo presidente, seja ele próprio ou não. Para isto, seu discurso precisa afirmar sua abertura a participar da aliança em um bloco maior do que apenas a esquerda tradicional. Abrir-se à realidade do mundo da globalização, dos limites ecológicos ao crescimento, da inexorável modernização tecnológica, deve reconhecer as dificuldades fiscais, éticas e gerenciais da máquina do Estado. Ele tem argumentos para afirmar que sua condenação foi anulada e que sua consciência está em paz, mas precisa assumir que houve corrupção avassaladora em instâncias de seu governo, devido ao aparelhamento pelos partidos que o apoiavam no Congresso. Deve se colocar à disposição de todos os candidatos já lançados e se propor a participar na escolha do candidato que terá mais chance de barrar a monstruosidade do atual governo, seja ou não de seu partido.

“Lula Taí” e tem diante dele a tarefa maior e mais difícil do que se eleger pessoalmente em 2002, a tarefa de ser um dos líderes, não o único, a retomar a democracia plena, com empatia pelos problemas do povo, com rumo para o Brasil.

Se o STF não voltar a surpreender, “Lula Taí”: esperemos que os outros líderes reconheçam sua força política e que ele entenda que o Brasil é maior do que qualquer um de nós e de nossos partidos.

*Cristovam Buarque foi senador, ministro e governador


Dorrit Harazim: Brasil, ano 2

Lançado em 1976, ano do bicentenário da independência dos Estados Unidos, o filme-sátira “Rede de intrigas”, de Sidney Lumet, contava a história de um âncora de TV demitido porque sua audiência despencara. Interpretado por Peter Finch (Oscar póstumo de melhor ator), o personagem decide comunicar ao vivo sua saída e avisa que se suicidará na semana seguinte com o programa no ar. A audiência dá um salto, e a emissora decide voltar atrás.

A partir daí, o âncora passa a encarnar um oráculo insano que só diz verdades. Numa cena antológica, ele convoca os espectadores a se insurgirem contra a lógica do mercado e da dominação do capitalismo: “Quero que todo mundo levante de sua poltrona agora, vá até a janela, abra-a, ponha a cabeça pra fora e grite a plenos pulmões: ‘Chega! Não aguento mais! Estou explodindo de raiva!’.”

O Brasil de 2021 tem um quê de “Rede de intrigas”. Temos o cidadão que não aguenta mais, que gostaria de explodir sua raiva contra o abandono a que foi condenado. Ele só não explode nas janelas e pelas ruas do país por medo de morrer de Covid-19. A diferença é que, no lugar de um maluco de ficção que no filme apontava para a realidade, temos um presidente da República insano, porém real, descontrolado e amoral, a nos enredar em falsidades.

Ao longo do interminável ano de 2020, o país se acomodou, encolhido no que pesquisas sobre saúde mental definem como “pensamento mágico” — apostou-se na vã esperança de um reencontro com a vida em 2021. No fundo era um mero atalho mental para sair da era da incerteza pandêmica, escapulir do estado de ansiedade e do silêncio coletivo. Apostamos, muitas vezes às escondidas de nós mesmos, que, no decorrer do ano novo, poderíamos sair da toca e procurar nos reconhecer nas pessoas que algum dia fomos. Aniversários cancelados seriam comemorados duas vezes, o Natal adiado reuniria famílias e amigos na Páscoa de abril, e o resto do calendário de 2021 ficaria lotado de abraços apertados.

No dia a dia, um pouco de pensar mágico não faz mal a ninguém. Sua utilidade se assemelha à das superstições inofensivas. Quando o problema é imenso, e sua solução parece fora de alcance, o recurso apenas aumenta a sensação de desamparo. É onde o Brasil se encontra neste primeiro aniversário da primeira morte por Covid-19, registrada em 12 de março de 2020. O choque, o horror inicial, cedeu primeiro à inércia, depois à fadiga, mas finalmente adquire contornos de consciência. Agora é torcer para que se transforme em cobrança. É como se só agora estivéssemos despertando de verdade para 2021: com a cara num muro pandêmico de 275 mil mortos, falta de vacinas e o colapso do sistema hospitalar.

Também governadores, prefeitos e o Congresso, ora em separado, ora em ações emergenciais conjuntas, acordaram para o galope da devastação humana nacional. Ainda assim, de modo atabalhoado, indesculpavelmente a reboque da mortandade anunciada, ainda sem linha mestra clara. Basta listar algumas decisões tomadas num mesmo dia — a quinta-feira passada — em nível estadual e municipal para desnortear qualquer bípede. No Paraná, estado com a maior fila por leitos hospitalares (500) do país, o governador Ratinho Jr. reabriu o comércio e anunciou o fim do lockdown de 12 dias, apesar de constatar que o Brasil vive “a maior guerra de saúde pública dos últimos 100 anos”. Em Curitiba, é o prefeito Rafael Greca que alerta para a eventual necessidade futura de um lockdown. “Cumpro meu dever de prefeito para anunciar que estamos chegando ao nosso limite”, disse ele. Seu dever de prefeito não seria agir ANTES que o colapso ocorra? O governador de São Paulo, João Doria, fez discurso semelhante ao suspender normas anunciadas dias antes e decretar “fase emergencial”: “Pessoal, infelizmente chegamos ao momento mais crítico da pandemia”. Ou seja, deixou chegar a emergência crítica, para só então fechar cultos em igrejas e estádios para jogos.

No Rio de Janeiro, o prefeito Eduardo Paes desfolhava de forma errática a margarida das vacinas : uma hora tem o imunizante, na hora seguinte não tem. Resta ao grupo da faixa etária que se apruma para estender o braço voltar para casa sem saber do amanhã. Paes também afrouxou medidas tomadas na semana anterior — liberou o comércio na praia, academias de ginástica, cultos, ambulantes, barraqueiros, entre outros —, não dando tempo para que se estude a eficácia de medida alguma. É sabido que, para um lockdown ter algum impacto na curva de contágio e de óbitos por Covid-19, e poder ser analisado em detalhes, ele deve ter duração de ao menos 15 dias. A medida exige uma serenidade difícil de encontrar nas diversas esferas do poder nacional.

O mais esquizofrênico e deletério, sem dúvida, continua a ser o capitão do Palácio da Alvorada, que confunde a medida sanitária do toque de recolher, adotada pelo governador do Distrito Federal para reduzir a disseminação do vírus, com estado de sítio, instrumento excepcional pelo qual o presidente da Republica suspende por determinado período a atuação dos poderes Legislativo e Judiciário.

“Por vezes, morremos muito antes de sermos enterrados”, escreveu o francês Romain Gary em seu romance “Além deste limite, seu bilhete não vale mais”. O Brasil, neste ano 2 da pandemia planetária, parece decidido a não morrer tão antes do inevitável. A sociedade civil se organiza, a iniciativa privada se mexe, um reordenamento nas esferas estadual e municipal brota como opção B ao inexistente comando federal. Mas, para sobrevivermos, urge deixar Jair Bolsonaro e sua sombria parentela falando sozinhos. 


Míriam Leitão: A falha dos poderes é ameaça perigosa

A democracia brasileira, nos últimos dias, deu mais alguns passos na perigosa trilha em que entrou. O Supremo Tribunal Federal (STF) aumentou a insegurança jurídica, ao dar vários sinais de que os ministros tomam decisões que mudam a vida do país seguindo a lógica das brigas internas da corte. A Câmara entregou a Comissão de Constituição e Justiça a uma deputada que esteve em atos que propuseram rasgar a Carta e a Comissão do Meio Ambiente a quem faz parte da tropa antiambiental. O presidente mais uma vez ameaçou o país com a ditadura, contando para isso com o silêncio dos generais.

A decisão do ministro Edson Fachin obedece à lógica de que se o caso não é relativo à Petrobras não tem que ficar na 13ª Vara Federal em Curitiba. A dúvida que permanece é por que levar tantos anos para descobrir a procedência da tese sempre apresentada pelos advogados do ex-presidente. Fachin explicou em entrevista a Aguirre Talento e Bela Megale do GLOBO que o assunto havia sido mencionado, mas que ele não recebeu pedido direto da defesa de Lula até novembro de 2020. O ministro disse que a Justiça tem que ser imparcial e apartidária. É verdade. Mas também precisa ser tempestiva. A intempestividade pareceu mais um lance da briga entre duas das onze ilhas da corte

O ministro Gilmar Mendes afirma que é insuspeito. E explicou por quê: “ao contrário da ministra Cármen, dos ministros Lewandowski e Fachin, não cheguei aqui pelas mãos do Partido dos Trabalhadores.” Isso quer dizer que os outros três ministros são suspeitos em ações do PT? Ou que ele é suspeito para julgar os casos do PSDB? Ele acusa o ex-juiz Sergio Moro de ter se tornado inimigo do réu, quando ele próprio dá demonstrações constantes desse sentimento em relação ao ex-juiz e aos procuradores.

Depois do duelo jurídico entre Fachin e Gilmar para saber quem tem a última palavra no destino de um ex-presidente da República, outro conflito emergiu no plenário virtual do STF. Na quinta-feira, o ministro Marco Aurélio chamou o ministro Luiz Fux de autoritário e o ministro Alexandre de Moraes de xerife. Foi mais um sinal ruim. Não é a primeira vez que as divisões na mais alta corte são expostas, mas esta semana houve um concentrado de votos idiossincráticos e falas pontiagudas. Quem acredita na democracia defende o STF dos ataques bolsonaristas, mas, na devastação institucional em que vivemos, certos ministros deveriam entender que seus ombros envergam as togas não a título pessoal, mas em nosso nome.

A Câmara enfraqueceu o sistema de check and balances ao fazer duas escolhas para as comissões. Não é uma questão partidária que torna a deputada Bia Kicis (PSL-DF) a pessoa errada para presidir a Comissão de Constituição e Justiça. São as suas manifestações em rede, ou nas ruas. Ela é uma radical e por isso não terá o equilíbrio necessário. Kicis esteve em atos que pediram um novo AI-5, o Ato Institucional que fechou o Congresso e cassou deputados na ditadura. A deputada Carla Zambelli (PSL-SP) fará o oposto do que se espera de uma presidente da Comissão de Meio Ambiente. O governo está fazendo uma demolição do aparato legal que protege o meio ambiente. O legislativo precisava ser o freio e o contrapeso dessa ação de passar a boiada pela cerca das leis.

O executivo trabalha contra a democracia. Isso já virou rotina. Basta ouvir o que o presidente diz. Sua visão distorcida do artigo 142 da Constituição, sobre o papel das Forças Armadas, é sempre jogada na cara do país como ameaça. Ele está tentando mudar o que quis dizer com “o meu Exército”, afirmando que se referia aos seus seguidores, mas a Arma nada fez para lembrar que ela pertence ao país.

Bolsonaro mostrou no Sebrae, no seu habitual tom colérico, que continua prisioneiro da visão conspiratória. Mentiu que o país está há um ano em lockdown e afirmou que isso está sendo feito para atingi-lo. “Até quando aguentaremos a irresponsabilidade do lockdown?” E tudo “só consegue atingir o presidente da República”. Bolsonaro chamou de “estado de sítio” as medidas protetivas tomadas em todos os países do mundo. Houve quem se iludisse, achando que a elegibilidade de Lula iria convencê-lo a mudar. Exceto por aceitar, enfim, a forma esférica da Terra, no resto Bolsonaro continua sendo negacionista. Ele ameaça a saúde dos brasileiros e a democracia. Quando os outros poderes falham, o país fica ainda mais vulnerável ao candidato a tirano que nos governa.


Vinicius Torres Freire: A nova revolta da vacina russa - Bahia, BH, Maricá e Morro da Fumaça compram doses

Descrédito e incompetência de Bolsonaro provocam confusão e desespero na vacinação

Os estados do Consórcio Nordeste, liderados pela Bahia, contrataram a compra de 37 milhões de doses da vacina russa Sputnik. As primeiras chegariam em abril.

Belo Horizonte afirma ter contratado 4 milhões. Betim, outra cidade mineira, 1,2 milhão de doses. Maricá, no Rio de Janeiro, diz ter fechado a compra de 400 mil. A prefeitura de Morro da Fumaça assinou carta de intenções para comprar 20 mil doses para 18 mil fumacenses. A cidade faz parte do grupo de 233 cidades de Santa Catarina que pretende encomendar 4,1 milhões de doses. Até o governo federal diz agora ter contrato para 10 milhões de doses.

De certo modo, é a revolta da vacina. O descrédito e a incompetência do governo de Jair Bolsonaro fazem com que governadores, prefeitos, empresas privadas e associações civis se virem a fim de obter doses, alguns com motivos nada republicanos.

Na prática, como em tantos assuntos nacionais, de “reformas” a providências para barrar tentativas autoritárias de Bolsonaro, passando pela gerência da epidemia, o restante do país tem de improvisar a governança básica.

Isto posto, impõem-se duas questões essenciais: 1) haverá tanta Sputnik? Quando?; 2) quando sai a aprovação da Sputnik? Desde janeiro está atrasada a entrega dos documentos corretos na Anvisa 3) como seriam aplicadas essas vacinas? Alguns governantes falam em usar as doses apenas em sua região.

O governador Wellington Dias (PI-PT) repetia até antes do fechamento do contrato Sputnik do Nordeste que as vacinas do Nordeste irão para o programa nacional, respeitando o calendário de prioridades para grupos de risco. Governadores de outros estados e consórcios municipais de Sul e Centro-Oeste dizem que pode não ser assim.

O Fundo de Investimento Soberano Russo, que patrocina o desenvolvimento, produção e distribuição da Sputnik, não informa um calendário de produção de vacinas, cronograma que seria publicado “nas próximas semanas”. Jornais russos, mais ou menos independentes, dizem que em março seriam fabricadas 30 milhões de doses, indo a 40 milhões por mês até junho. Até fevereiro, haviam sido produzidos pouco mais de 7 milhões de Sputniks. Até 11 de março, a Rússia vacinara 4,98 milhões de pessoas, 5% da população: tanto quanto o Brasil.

Mastigando várias fontes de números, parece que dois terços das doses de março em diante seriam fabricados fora da Rússia, em 10 países. Metade dessas doses “estrangeiras” de Sputnik seriam produzidas justamente no Brasil e na Índia, outra boa parte na Coreia do Sul. Mas tanto aqui como alhures o início da produção está atrasado.

Segundo o Statista, site alemão de estatísticas de mercado, o mundo havia encomendado 791 milhões de doses de Sputnik até 11 de março. Dessas, 470 milhões seriam fabricadas por certos países para si mesmos: Coreia do Sul, Índia, Casaquistão e 8 milhões de doses da União Química no Brasil. Nós importaríamos outros 10 milhões (as doses federais). Os demais 40 milhões de doses a serem comprados até agora por estados e cidades não estão nessa tabela do Statista.

É fácil perceber que essas contas não fecham, pelo menos para o ano de 2021. De resto, a Sputnik nem foi aprovada no Brasil, embora agora a lei permita que imunizante aprovado na Rússia também possa ter liberação acelerada pela Anvisa.

Qualquer quantidade extra de vacina é desesperadamente necessária: 10 milhões de doses em um mês podem salvar a vida de uns 4.500 idosos ou evitar mais de 6 mil internações em UTIs.

Mas a conta da Sputnik até agora não fecha, nem de longe.


Ruy Castro: Aos biógrafos de Bolsonaro

O trabalho deveria começar por seus antepassados: Hitler, Jack o Estripador, Drácula, Herodes e Belzebu

Sempre achei um risco biografar gente viva. Não por medo do biografado ou de sofrer um processo, mas por motivo mais sério: como contar uma história que ainda não terminou? Imagine se, no dia seguinte ao lançamento de uma biografia, o biografado comete algo terrível, como estrangular seu papagaio ou fugir com a mãe de sua mulher. Em um segundo lá se vai o trabalho de anos do biógrafo —por que ele não previu que seu biografado seria capaz daquilo? Donde o certo é esperar que o fulano abotoe naturalmente o paletó, para só então mergulhar na investigação de sua vida.

Mas, com Jair Bolsonaro, não se pode mais esperar que ele vá para o diabo que o carregue. É urgente começar a biografá-lo porque, pela velocidade de sua trajetória —não passa um dia sem praticar um crime contra a democracia, a saúde, a educação, a ciência, a cultura, a economia, a ecologia, a diplomacia, a Justiça, os direitos humanos e a vida—, em breve ela não caberá em um volume. E isso apenas desde que assumiu a Presidência.

Ai está. Uma biografia de Bolsonaro deveria recuar aos seus antepassados, como Hitler, Jack o Estripador, Drácula, Herodes e Belzebu; explorar suas origens em Glicério (SP), burgo de 2.000 habitantes em 1955, onde depositaram o ovo do qual ele nasceu— e chegar à sua infame carreira militar e ascensão política. Vai-se revelar o seu longo e meticuloso processo de corrupção de colegas, servidores, generais, policiais e juízes, e, de passagem, descobrir como construiu seu patrimônio imobiliário e transferiu esse know-how para filhos e mulheres.

O importante é que, em alguma etapa, surja algo que explique o seu grau de desumanidade estudada, demência, crueldade e ódio.

Pelo que sei, já há profissionais biografando Bolsonaro. Só garanto que não sou um deles. Há um limite para a náusea, e basta-me ter ânsias de vômito quando o vejo na televisão.


Bruno Boghossian: Decantação da pandemia no eleitor deve definir novo presidente

Divisão entre medidas de saúde e efeitos na economia pode permanecer até 2022

Quando os americanos foram às urnas em novembro do ano passado, as mortes por Covid-19 voltavam a se aproximar de 1.000 por dia nos EUA. O coronavírus foi um dos temas mais presentes da eleição presidencial, com uma característica que se tornou a marca política da pandemia: a divisão entre as mortes e seus impactos sobre a economia.

A atuação de Donald Trump e os efeitos da doença no mercado de trabalho racharam o país. Entre os eleitores que consideravam a economia uma prioridade, 78% votaram no republicano, segundo pesquisas de boca de urna. Para aqueles que diziam que o importante era conter o vírus, 79% escolheram Joe Biden.

O democrata ficou em vantagem porque mais americanos achavam importante salvar vidas (52%) do que recuperar a atividade econômica (42%). No Brasil, a escalada da doença e a decantação da crise no humor do eleitorado podem definir o próximo presidente.

A questão central é se a pandemia e seus efeitos serão tópicos relevantes até lá. A depender do cenário do país, o eleitorado pode usar o voto para julgar a conduta de Jair Bolsonaro, pode ir às urnas para escolher outro rumo na administração da crise ou pode ignorar a doença em nome de outros interesses.

Bolsonaro desdenhou da morte de milhares de brasileiros porque acreditava que seus efeitos políticos seriam limitados. Em sua matemática, faria mais sentido oferecer a bandeira da defesa da economia a qualquer custo, em contraponto a personagens como João Doria e Luiz Henrique Mandetta.

O resultado dependerá da situação econômica e de quanta responsabilidade o eleitor atribuirá ao governo. Bolsonaro só será beneficiado se o eleitor enxergá-lo como um nome capaz de liderar a recuperação.

volta de Lula bagunça o jogo porque o petista tenta aliar o discurso da saúde a uma pauta de proteção aos mais pobres e de enfrentamento das dificuldades econômicas. Se a plataforma vingar, ele será um rival de Bolsonaro em duas frentes.